Acessibilidade / Reportar erro

Intelectuais orgânicos e legitimação do Estado no Moçambique pós-independência: o caso do Centro de Estudos Africanos (1975-1985)

Resumos

Usando o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane, como exemplo, este artigo analisa as condições sociais da produção de conhecimento e a legitimação do Estado no Moçambique pós-independente e durante a fase da "transição socialista". A tese do artigo é de que os processos de produção de conhecimento em um contexto da construção do estado nacional, geraram dinâmicas que desafiaram os pressupostos sobre os quais o CEA deveria fazer ciência. Por exemplo, na produção de um tipo de pesquisa que não só levou em consideração a sua função como pesquisa politicamente orientada, mas, na identificação e questionamento do próprio processo de produção científica. Estas inter-relações entre produção de conhecimento e legitimação do Estado, poderiam então, não só explicar as especificidades do CEA, mas também o surgimento de uma nova forma de questionamento científico-social no pós-independência.

Intelectual orgânico; Ciências Sociais; engajamento crítico


Using the Center for African Studies (CAS) at Eduardo Mondlane University as an example, this article analyzes the social conditions of knowledge production and legitimization of the post-independence Mozambican State, during the period of "socialist transition". The thesis of the article is that the processes of knowledge production in a context of national state-building generated dynamics that challenged the assumptions on which the CAS should have produced social science. For example, in producing a type of research program that not only took into account their function as policy-oriented research, but also in identifying and questioning the very process of scientific production. These inter-relationships between knowledge production and legitimization of the state, could then explain not only the specificities of the CAS, but also the emergence of a new form of socio-scientific questioning in post-independence Mozambique.

Organic intellectual; social sciences; critical engagement


  • 2 Allen Isaacman, "Legacies of Engagement: Scholarship Informed by Political Commitment", African Studies Review, v. 46, n.1 (2003), pp. 1-41.
  • 3 Ver, por exemplo, a tônica do reitor da Universidade Eduardo Mondlane, Fernando Ganhão, na distinção entre a teoria da "transformação social" e a teoria "burguesa" e "reacionária" da ordem social; mas, por outro lado, no interior do CEA, as diferentes abordagens teóricas e metodológicas da Oficina de História do Núcleo da África Austral, e do Curso de Desenvolvimento: Fernando Ganhão, "Problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais", Estudos Moçambicanos, n. 4 (1984), pp. 5-17.
  • 4 Jasmin Beverwijk, "The Genesis of a System: Coallition Formation in Mozambican Higher Education, 1993-2003" (Tese de Doutorado, Universidade de Twente, 2005), p. 102.
  • 5 Ganhão, "Problemas", pp. 5-17.
  • 6 Ganhão, "Problemas", pp. 5-17.
  • 7 Ganhão, "Problemas", p. 8.
  • 11 Depoimento de Pietro Petrucci, jornalista italiano, apud Sílvia Bragança, Aquino de Bragança: batalhas ganhas, sonhos a continuar, Maputo: Ndijira, 2009, p. 55.
  • 13 Marcelino dos Santos, "Elogio Funebre", Research Bullet (1987), p. 6.
  • 16 Immanuel Wallerstein, "Southern Africa and the World- Economy", Research Bulletin, Fernand Braudel Center for Study of Economics, Historical Systems, and Civilizations, Binghamton: State University of New York Press, (1987), pp. 1-5.
  • 18 As conversações começaram em Genebra, Suíça, em outubro de 1976, entre o governo de Ian Smith e os partidos nacionalistas. Os nacionalistas estavam divididos, apesar dos esforços do presidente dos estados da "Linha da Frente" para uni-los. Os dois principais líderes nacionalistas, Joshua Nkomo e Robert Mugabe tinham, no entanto, formado, nesse mesmo mês, a aliança política "Frente Patriótica". Ndabaningi Sithole e Abel Muzorewa, líderes dos outros partidos, participaram na conferência separadamente. Ian Smith, líder do governo minoritário branco da Rodésia, insistia que o propósito da Conferência fosse o de implementar as propostas de Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA, que incluíam controle branco da defesa, da lei e ordem. Os nacionalistas rejeitaram logo de início essas propostas. Ivor Richard, o embaixador britânico nas Nações Unidas, presidiu a Conferência que durou 7 semanas. As conversações foram adiadas para dezembro, contudo nunca mais foram recomeçadas. Ver Gwyneth Williams e Brian Hackland, The Dictionary of Contemporary Politics of Southern African, London: Routledge, 1988.
  • 20 CEA, A questão rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978.
  • 22 Este argumento é baseado na entrevista que fiz com Marc Wuyts, em julho de 2009. Para uma leitura mais detalhada sobre este Relatório de Investigação como também da emergência desta nova forma de fazer pesquisa no CEA, ver Carlos Fernandes, "Dinâmicas de pesquisa em Ciências Sociais: o caso do CEA - 1975-1990" (Tese de Doutorado, Universidade Federal da Bahia, 2011), p. 284.
  • 41 Christian Geffray, "Fragments dun discours du pouvoir (1975-1985): Dun bon usage d'une meconnaissance scientifique", Politique Africaine, n. 29 (1988), pp. 71-87.
  • 42 Joseph Hanlon, Mozambique: The Revolution Under Fire, Londres: Zed Books, 1984, p. 46.
  • 43 Ver Thomas Henriksen, Mozambique: A History, Cape Town: Rex Collings, 1978.
  • 44 Hanlon, "Mozambique", p. 82.
  • 46 Teses do 3º Congresso, citadas a partir do artigo de Thomas Henriksen, "Marxism and Mozambique", African Affairs, v. 77, n. 309 (1978), p. 459.
  • 47 Estudos Moçambicanos, n. 2, UEM, CEA (1981), p. 2.
  • 48 Plantações e maquinarias de irrigação foram deliberadamente destruídas, gado abatido e gêneros alimentícios disponíveis retirados do mercado com o intuito de criar uma escassez artificial. Ver, Sónia Kruks, "From Nationalism to Marxism: The Ideological History of Frelimo, 1962-1977", in Irving Markovitz (org.), Studies in Power and Class in Africa (Londres: Oxford University Press, 1987).
  • 49 Vide, Merle Bowen, The State Against the Peasantry: Rural Struggles in Colonial and Postcolonial Mozambique, Charlottesville: University Press of Virginia, 2000.
  • 50 Dan O'Meara, "The Collapse of Mozambican Socialism", Transformation, n.14 (1991), pp. 82-103.
  • 51 Merle Bowen, "Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary Mozambique", The Journal of Modern African Studies, n. 30 (1992), pp 255-79, 261.
  • 52 Otto Roesch, "Economic Reform in Mozambique: Notes on Destabilization War, and Class Formation", Taamuli, Dar es Salaam (1989), apud, Bowen, "Beyond", p. 263.
  • 53 Ver Barry Munslow, "Rethinking the Revolution in Mozambique", Race & Class, v. XXVI, n. 2 (1984), p.15-31.
  • 54 Em 1987, segundo dados do Banco Mundial (1989), Moçambique tinha um PIB per capita de 170 US$, colocando-se na 9º posição no ranking dos países mais pobres. Vide João Mosca, "Evolução da agricultura moçambicana no período pós-independência", Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural, Instituto Superior de Agronomia de Lisboa (1996), pp. 1-51.
  • 55 Kurzman e Owens, "The Sociology of Intellectuals", Annual Review of Sociology, v. 28 (2002), pp. 63-90.
  • 56 Robert Fatton, "Gramsci and the Legitimization of the State: The Case of the Senegalese Passive Revolution" Canadian Journal of Political Science, v.19, n.4 (1986), p. 735.
  • 57 Leonardo Salamini, "Gramsci and Marxist Sociology of Knowledge: An Analysis of Hegemony-Ideology-Knowledge", The Sociological Quarterly, v. 15, n. 3 (1974), pp. 359-80.
  • 58 Georges Balandier, "Problematique des classes sociale en Afrique noire", Cahier Internationaux de Sociologie, n. XXXVIII (1965), p. 141,
  • apud, Valdemir Zamparoni, "Entre Narros & Mulungos: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940" (Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1998), p. 582.
  • 61 FRELIMO, "III Congresso do Partido Frelimo", Directivas Económicas Sociais, Maputo: FRELIMO, 1977, pp. 1-12.
  • 63 Geffray, "Fragments", p. 73.
  • 64 Geffray, "Fragments", p. 76.
  • 65 Geffray, "Fragments", p. 76.
  • 66 Neste artigo, O'Laughlin reflete sobre uma das grandes preocupações do governo na altura, que era de aferir os motivos do fracasso da edificação das aldeias comunais em algumas regiões, da fraca participação camponesa, como também do persistente domínio da produção individual familiar em detrimento da política da produção coletiva e cooperativa. Para esta autora, as suas causas estavam relacionadas com a natureza da estrutura de classe rural deixada pela dominação do capitalismo colonial em Moçambique, mas também "com a falta de tomada de consciência do caráter urgente da cooperativização, como tarefa imediata da revolução, por alguns setores do próprio aparelho do Estado. Ver Bridget O'Laughlin, "A questão agrária em Moçambique", Estudos Mocambicanos, n.3 (1981), p. 27.
  • 67 Ver, Leonardo Salamini, "Gramsci and Marxist Sociology of Knowledge: An Analysis of Hegemony-Ideology-Knowledge", The Sociological Quarterly, v. 15, n. 3 (1974), pp. 359-80.
  • 70 Allen Isaacman, "Legacies of Engagement: Scholarship Informed by Political Commitment", African Studies Review, v. 46, n.1 (2003), pp. 1- 41.
  • 71 Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, "Da idealização da FRELIMO a compreensão da História de Moçambique", Estudos Moçambicanos, n.5/6 (1986), pp. 30-52.
  • 72 Bragança e Depelchin, "Da idealização", p. 33.
  • 73 Bragança e Depelchin, "Da idealização", p. 33.
  • 74 Ganhão, "Problemas", p. 9.
  • 75 Ganhão, "Problemas", p. 9.
  • 80 Harold Wolpe, sociólogo sul-africano e ativista anti-apartheid, defendia esta posição. Ele insistia que o trabalho intelectual e investigativo tinha que produzir conhecimento para a política, sem, no entanto desligar-se da investigação objetiva e científica do mundo. Ver, Peter Alexander, "Harold and History", Keynote delivered at the Harold Memorial Trust's Tenth Anniversary Colloquium, "Engaging Silences and Unresolved issues in the Political Economy of South Africa", n. 21-23 ( 2006), pp. 1-5.
  • 81 Por exemplo, o paradigma da economia política marxista que dominou o trabalho científico do CEA (fundamentalmente através do Curso de Desenvolvimento) acabou sendo mais "economicista" que "político", pois o CEA nunca se propôs a abordar questões relacionadas, por exemplo, a uma análise empírica na realidade moçambicana sobre "como aqueles que governam, governam?". Ou mesmo "como os dominantes e os dominados percebem essa mesma dominação? Poderíamos também incluir o tema do conflito armado contra a RENAMO. Como sabemos, para o CEA, como também para o partido no poder, a RENAMO era vista unicamente como uma força desestabilizadora criada fora de Moçambique. Durante este período da "transição socialista", a discussão nos círculos acadêmicos moçambicanos sobre a existência ou não de uma "guerra civil" em Moçambique, ou mesmo de o debate sobre os fatores internos do conflito - ligados, por exemplo, àquilo que Christian Geffray (1991), com a publicação do livro A causa das armas, em 1990, se referiu como o "descontentamento popular" advindo da ineficácia das políticas agrárias da FRELIMO e da marginalização das tradições locais e estruturas de autoridade - era, de fato improvável de acontecer naquele contexto histórico. Vide Christian Geffray, A causa das armas: antropologia da guerra contemporânea em Moçambique, Porto: Afrontamento, 1991.
  • 82 Michel Foucault, A ordem do discurso, São Paulo: Loyola, 1996, p. 8.
  • 85 Merle Bowen, "Beyond Reform: Adjustment and Political Power in Contemporary Mozambique", The Journal of Modern African Studies, n. 30 (1992), pp. 255-79, 261.
  • 86 Segundo Marina Ottaway, a morte de Samora serviu para enfatizar a continuidade da liderança da FRELIMO, em vez de significar uma nova viragem. Para esta autora, as reformas adotadas no pós-Nkomati foram feitas sem nenhuma modificação do sistema político ou mesmo de mudança de pessoal. Em suma, Moçambique passou de um "socialismo simbólico" para uma "reforma simbólica", uma vez que estava-se em presença de um "estado fraco" (soft state) em paralelo também com uma sociedade civil fraca, que não permitiram que as mudanças propostas tivessem o efeito desejado. Ver Marina Ottaway, "Mozambique: From Symbolic Socialism to Symbolic Reform", The Journal of Modern African Studies, n. 6 (1988), pp. 211-26.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2012
  • Aceito
    10 Dez 2012
Universidade Federal da Bahia Praça Inocêncio Galvão, 42 Largo 2 de Julho, Centro, 40060-055 - Salvador - BA, Tel: 5571 3283-5501 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: ceao@ufba.br