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A Filosofia em Machado de Assis: Diógenes de Sínope e Quincas Borba

Philosophy in Machado de Assis: Diogenes of Sinope and Quincas Borba

Resumo

Machado de Assis foi um autor filosófico. Algumas obras se dedicaram a investigar a filosofia contida, especialmente, em seus romances. Neste texto busca-se evidenciar alguns indícios da presença, no romance Quincas Borba, de uma corrente filosófico-literária poucas vezes lembrada e muitas vezes ignorada pela tradição machadiana e pela tradição filosófica: o cinismo. No primeiro momento, interpreta-se a homonímia com o cão e a alusão do narrador no último capítulo. Apresentam-se, em um segundo momento, as evidências textuais do narrador, ou de alguma personagem, ao cinismo. E, por fim, expõe-se a interpretação da figura mesma do filósofo Quincas Borba.

Quincas Borba; cinismo literário; cinismo moral; recepção; inversão

Abstract

Machado de Assis was a philosophical writer. Few of those who have studied his Works have investigated the philosophy present, especially, in his novels. In this paper I bring up, in the novel entitled Quincas Borba, some traces of a philosophical-literary school very few times remembered and very often forgotten by the philosophical tradition and by the machadian studies: the Cynicism. Firstly, I propose an interpretation of the homonym between the dog and the narrator in the last chapter. I present, secondly, textual evidences of the adherence of the narrator or of some character to Cynicism. Finally, I comment on the very figure of Quincas Borba, the philosopher.

Quincas Borba; literary cynicism; moral cynicism; reception; inversion

Parte-se aqui da seguinte hipótese: há elementos na literatura de Machado de Assis que têm origem na filosofia cínica e na sua tradição.1 1 A recepção da tradição cínica, propomos, poderia enquadrar-se no que Antonio Candido chamou de "tendência universalista" da literatura brasileira. A "continuidade literária" (outro conceito de Candido) do movimento cínico parece ter em Machado um representante e receptor. Ver: CANDIDO, 2000, p. 23-26. Esta pesquisa centra-se na investigação desses indícios no romance Quincas Borba, cuja primeira edição completa saiu em 1891 (completa, uma vez que ele fora publicado em partes, em formato folhetim, na revista A Estação, entre os anos de 1886 a 1891). Foram feitas alterações para a publicação da primeira edição compilada em livro, de 1891.

A principal motivação de minha hipótese sobre a filiação de Machado de Assis à tradição cínica2 2 Sá Rego (1989) mostra a filiação da literatura machadiana, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), à tradição da sátira menipeia. Pela abrangência dessa obra, que dá conta de toda a produção em prosa de Machado, com exceção das crônicas, o romance Quincas Borba não foi analisado em seus pormenores. enraizada em Antístenes e Diógenes de Sínope, atravessando, certamente, Luciano de Samósata, mas não exclusivamente,3 3 Em uma das poucas obras da bibliografia machadiana que trazem à tona a filosofia subjacente aos romances machadianos, Maia Neto justifica assim a ausência do romance Quincas Borba: "Quincas Borba não é examinado neste estudo. Embora o romance seja considerado como um dos melhores de Machado, não é um romance escrito em primeira pessoa e, portanto, não apresenta um narrador-personagem. Esta é a razão central de sua ausência neste livro" (MAIA NETO, O ceticismo na obra de Machado de Assis, p. 25). ganha força na tese de que o romance Quincas Borba, a partir de seu último capítulo, que remete ao título, faz uma referência implícita e velada ao cinismo, podendo então relacionar-se a essa tradição.4 4 Há na bibliografia alguns estudos importantes sobre a filosofia presente na obra de Machado de Assis, tais como os de: Afrânio Coutinho (A filosofia de Machado de Assis), Margutti ("Machado, o brasileiro pirrônico? Um debate com Maia Neto"), Maia Neto (O ceticismo na obra de Machado de Assis, 2007), Martins Moreira (Quincas Borba ou o pessimismo irônico), Maya (Machado de Assis, algumas notas sobre o humour) e o de Sergio Paulo Rouanet (Riso e melancolia). Reconhecimento parcial e recente disso seria a sua tradução para o inglês.5 5 A tradução norte-americana, mostrando já no título o problema da homonímia entre o filósofo e o cão, é feita pela interrogação: Philosopher or Dog?. Mas o fato de o cão de mesmo nome de uma personagem central intitular o romance ainda não significa que haja uma filiação ao cinismo.

No entanto, essa filiação é sugerida no último capítulo, quando o narrador nos deixa com a incômoda sensação de que a homonímia, apresentada já no quinto capítulo,6 6 O cão nos é apresentado como "rival no coração de Quincas Borba" (ASSIS, Obra completa, p. 557). Essa posição do narrador confunde-se com a perspectiva de Rubião. Mapear, explicar e comentar o perspectivismo do narrador talvez leve a um esclarecimento sobre a posição do próprio autor em Quincas Borba. Não obstante, caso não se leve em conta a biografia intelectual de Machado, incorreremos sempre em hipóteses aproximadas e verossímeis a partir da consideração das diversas perspectivas, o que não fortalece o problema do narrador como problema de fato. O que quero dizer é que o conteúdo da obra, por si só, não basta para se inferir a posição mesma do autor da obra. Sendo assim, focando aqui o conteúdo, opta-se por extrair dele, a partir da interpretação de suas partes, o sentido total que, mesmo com elementos implícitos, faça-se explícito em si mesmo e através da semelhança com outras obras do mesmo corpus. e que os atravessa intermitentemente, possui uma razão maior.7 7 "Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título do livro, e por que antes um que outro, – questão prenhe de questões, que nos levariam longe..." (ASSIS, Obra completa, p. 725, grifo nosso). Ressaltamos aqui que a justificativa da homonímia já havia sido mencionada pelo narrador, pela fala do filósofo Quincas Borba: "[...] uma das extravagâncias do dono foi dar-lhe o seu próprio nome; mas, explicava-o por dois motivos, um doutrinário, outro particular" (Idem, p. 557). Essa razão doutrinária, justificada pelo filósofo Quincas Borba, é "Humanitas" (suspeita-se que o narrador, apresentando essa justificativa do filósofo, dimensionaria implicitamente a posição do próprio Machado de Assis: ou seja, a justificativa para a presença do cão no romance é a sua filiação ao cinismo, o "motivo doutrinário" da homonímia de Quincas Borba). O uso da metáfora como imagem ou símbolo que reflete indiretamente a intenção do autor pode também ser identificado a partir da interpretação do significado do espólio de Rubião. Esta "questão prenhe de questões" é o objeto deste texto, que busca elementos de convergência desta obra literária com a tradição cínica.8 8 O "Humanitismo" precisa ser melhor explorado. Quando ele é defendido por um filósofo que usa os trajes do sábio cínico, no romance anterior, torna-se uma sátira ao próprio cinismo, mas também aos sistemas dogmáticos. Parece haver forte presença darwinista, evolucionista, nessa caricatura e pseudofilosofia: "Mas passemos ao Humanitismo, a mais célebre das filosofias machadianas. Como sugere o nome, trata-se de uma sátira à floração oitocentista dos ismos, com alusão explícita à religião comtiana da humanidade. Os raciocínios fazem pensar em mais outras filiações, além dos princípios positivistas que afirmam a luta de todos contra todos, à maneira do darwinismo social. [...] Veja-se por um exemplo o clássico 'Ao vencedor as batatas', palavra de ordem com que o filósofo pancada Quincas Borba sintetizaria – noutro romance machadiano – a essência de sua doutrina 'humanitista'. A frase possivelmente seja a tradução aclimatada da 'survival of the fittest', expressão mais clássica ainda, inventada por Spencer" (SCHWARZ, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, p. 99). E MAIA NETO: "Entendemos o humanitismo como uma caricatura das doutrinas filosóficas em geral, em particular das cientificistas e da história influentes no período (darwinismo, o positivismo de Comte e o evolucionismo social de Spencer). O elemento caricaturado no humanitismo é o estoicismo que Machado parece identificar, por trás da forma secularizada e científica, na 'nova tendência intelectual' (OC, III, 810): determinismo, racionalismo, concepção da natureza como providencial e benéfica, e concepção otimista da natureza (divinização da espécie)” (p. 94). É claro que, para um cético, o alvo primeiro das sátiras filosóficas deve ser o estoicismo, rival tradicional. No entanto, o "humanitismo" parece ter sentido mais profundo do que aparenta, desde que sua autorreferência se torna clara quando se leva em conta que o seu "portador" e "porta-voz" é um filósofo cínico, mesmo que em caricatura.

Sendo assim, o título deste artigo é uma prévia e uma constatação: suspeita-se que o cinismo, enquanto tradição filosófico-literária vai além e aquém do romance Quincas Borba9 9 O artigo de Gary Vessels ("O cinismo e a prosa cínica nas Memórias póstumas de Brás Cubas". O Espelho. Revista Machadiana. Porto Alegre; West Lafayette, Letras/UFRGS; Pardue University, n. 2, p. 49-64, 1996), ainda não consultado, evidencia o cinismo nas Memórias póstumas (1881). . A constatação está desenvolvida abaixo, e refere-se ao romance Quincas Borba.

É importante também salientar que não há confusão aqui entre a tradição cética e a tradição cínica, mesmo que as fontes históricas de recepção moderna dessas duas tradições clássicas sejam, em parte, as mesmas. O ceticismo encontrou-se com o cinismo em autores como Montaigne, Shakespeare, Voltaire, Diderot e outros. No entanto, parece que esse encontro já ocorrera em Luciano de Samósata, principal fonte cínica, mas, ao que tudo indica, também cética.10 10 BRANCACCI ("La filosofia di Pirrone e le sue relazioni con il cinismo") faz um estudo histórica e filologicamente detalhado da relação, sem deixar de lado o escopo da História das Ideias. Cabe mencionar que um dos pontos em comum entre ceticismo pirrônico e cinismo de Antístenes e Diógenes é a recusa total (por parte dos cínicos) e crítica (por parte dos céticos) de qualquer especulação metafísica,11 11 Estou ciente de que, no caso do ceticismo, esta crítica, que não configura uma recusa plena, talvez tenha sido feita através de uma contraproposta ontológica; o que é evidenciado pelo embate da literatura secundária entre pirronismo e fenomenismo. voltando o pensamento para uma espécie de vitalismo que entende a vida e a moral como campos dos principais problemas que envolvem os homens.12 12 Esse argumento não é de todo e plenamente ignorado pela bibliografia. O que espanta é o bloqueio que leva à recusa em desenvolvê-lo, o que envolveria, dentre outras, uma discussão metodológica que não faremos aqui. No caso da bibliografia machadiana, é MAIA NETO (O ceticismo na obra de Machado de Assis) que esboça a comparação entre ceticismo e cinismo: "Luciano assemelha-se a Timão, principal discípulo de Pirro, ao mostrar (i) o conflito dos diversos sistemas filosóficos helenísticos; (ii) a disparidade entre as teorias dos filósofos e a realidade; e, sobretudo (iii) ao ridicularizar os filósofos e suas doutrinas" (p. 20). Notemos que o "Humanitismo" é tanto uma ridicularização das doutrinas filosóficas megalomaníacas, quanto um efeito propositalmente cômico da constatação da eterna disparidade entra elas. Brancacci (1980) já parte da premissa do acordo temático moral entre Pirro e antigos cínicos (ver, esp., p. 214-15). Por fim, LAURSEN ("Skepticism and Cynicism in the Work of Pedro de Valencia"): "It might be argued that cynicism is not a philosophy, but rather an anti-philosophy, and up to a point that is true. The same can be said for skepticism, especially in the Pyrrhonian variety, yet both varieties are included in the anthologies of Hellenistic debate. But both skepticism and cynicism are philosophies if philosophy means a way of life" (p. 153). Esse consenso é ilustrado pela exacerbada forma de filosofar dos cínicos, voltada exclusivamente para a ação. Esta interpretação radicalmente prática do cinismo salienta os paradigmas que os próprios cínicos conscientemente buscaram evidenciar. Digo isto com a intenção de sugerir o quão complexa é a tarefa do comentador e intérprete, uma vez que tanto Antístenes quanto Diógenes escreveram obras que não sobreviveram até os nossos dias.13 13 Cf. LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 156 e 172.

No último capítulo, ao direcionar o leitor para o sentido mesmo do título, Machado cria um jogo de referências implícitas que parece ganhar sentido e dimensão quando situado em sua fonte histórica, literária e filosófica. Como não relacionar a homonímia do filósofo Quincas Borba com seu cão, pela sutil menção do narrador no último capítulo, à razão dessa mesma homonímia?! A sua razão seria a relação entre o romance e o movimento filosófico (e literário) que teve o cão14 14 A questão da nomeação do cinismo e da simbologia do cão apresenta justificativas históricas. Encontramos quatro razões dessa alcunha, apresentadas por Dudley: "There are four reasons why the 'Cynics' are so named. First because of the “indifference” of their way of life, for they make a cult of adiafogia, like dogs, eat and make love in public, go barefoot, and sleep in tubs and at crossroads…. The second reason is that the dog is a shameless animal, and they make a cult of shamelessness, not as being beneath modesty (Aidos), but as superior to it… The third reason is that the dog is a good guard, and they guard the tenets of their philosophy… The fourth reason is that the dog is a discriminating animal which can distinguish between its friends and enemies… So they do recognize as friends those who are suited to philosophy, and receive them kindly, while those unfitted they drive away, like dogs, by barking at them" (DUDLEY, A History of Cynicism, p. 5). como símbolo maior.

Evidências de que Machado conheceu o Cinismo, através de Luciano, através dos romancistas ingleses e franceses do século XVIII,15 15 A principal referência para o mapeamento da influência das literaturas inglesa e francesa modernas na obra de Machado de Assis é Rouanet (Riso e Melancolia). Certamente há elementos comuns em autores como Sterne e Diderot, que espelham uma influência clássica de Luciano de Samósata, como bem mostrou Sá Rego (1989). Mas o livro de Rouanet é um bom exemplo da presença do cinismo na literatura machadiana. ou/e através de Diógenes Laércio, encontram-se nos capítulos CV, CXLV e CLX.

No capítulo CV, após o episódio da suspeita de adultério levantada por Rubião a partir da carta encontrada no jardim, Sofia rememora os diálogos com Carlos Maria e comprova ao leitor suas intenções adúlteras. Essas intenções, porém, não chegam a se concretizar, conforme nos indica o seu ressentimento:

[...] Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria nenhuma; puro galanteio; – quando muito, um modo de apurar as suas forças atrativas... Natureza de pelintra, de cínico, de fútil.16 16 ASSIS, Obra completa, vol. I, p. 646, grifo nosso.

Aqui Sofia adjetiva a frivolidade ou dissimulação sedutora de Carlos Maria de cinismo, junto à suspeita de seu caráter artificial e falso.17 17 Notar a ironia, conscientemente criada por Machado ou não, e a autorreferência dessa adjetivação. Sofia corresponde aos assédios de Carlos Maria e de outros, aceita todos os mimos de Rubião, diz amar o esposo e ainda chama Carlos Maria de "cínico". Cabe sublinhar o uso pejorativamente moral desse termo, que é a forma identificada no cinismo moderno por Sloterdijk.18 18 Apliquei introdutoriamente a tese da diferença entre cinismo antigo e moderno de Sloterdijk, no artigo: "O(s) cinismo(s) no romance QuincasBorba de Machado de Assis", p. 822-48. Desenvolvida a partir de uma diferenciação lexical da língua alemã, essa tese me parece muito feliz, uma vez que poderá comprovar-se a partir da literatura de Machado de Assis, e não somente aplicar-se a ela.

No capítulo CXLV temos um indício relacionado ao nome dado por Machado a uma personagem. Rubião, já sob os efeitos de moléstia mental, deseja ter o rosto à maneira de Napoleão III. O barbeiro chamado em sua residência para tal serviço chama-se Lucien:

Lá foi um oficial francês, chamado Lucien, que entrou para o gabinete de Rubião, segundo as ordens dadas ao criado.

– Uhm!... – rosnou Quincas Borba, de cima dos joelhos do Rubião.19 19 ASSIS, Obra completa, vol. I, p. 682. Sá Rego também notou essa alusão, e a explica pela inserção na tradição da sátira menipeia. Ver: SÁ REGO, O calundu e a panaceia: Machado de Assis e a sátira menipeia, p. 181.

No capítulo CLX, o narrador faz menção explícita à Lanterna de Diógenes, o cínico. Esse tradicional episódio diz que o cínico andava pelas ruas de Atenas em pleno dia com um lampião aceso, dizendo: "Procuro um homem".20 20 LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VI. No contexto do romance, foi Sofia que, segundo o narrador, quis fazer do sol a "lanterna de Diógenes":

Sofia cuidou que ainda podia sair; estava inquieta por ver, por andar, por sacudir aquele torpor, e esperou que o sol varresse a chuva e tomasse conta do céu e da terra; mas o grande astro percebeu que a intenção dela era constituí-lo lanterna de Diógenes, e disse ao raio úmido: [...].21 21 ASSIS, Obra completa, vol. I, p. 695.

Reparemos não somente na inversão de gênero, mas no tratamento quase pejorativo, sutilmente erótico, do satírico episódio clássico e que condiz com o cinismo moderno. Sofia, que é a personagem cínica desse episódio, no capítulo anterior suspirava por Carlos Maria. O narrador, que nos conta a intenção dela, diz que ela quer fazer do sol "lanterna de Diógenes", ou seja, sair para rua à "procura de um homem", possivelmente aludindo aos pensamentos adúlteros da esposa de Palha.

2.

O símbolo da filosofia cínica é explicitamente identificável e refere-se à personagem humana Quincas Borba (personagem esta que já figurara em Memórias póstumas de Brás Cubas).22 22 Memórias póstumas de Brás Cubas saiu em 1880 na Revista Brasileira. O ano da primeira publicação em volume é 1881. Sua aparição no romance anterior fora como indigente, e Machado relembra-nos, por sua vez, essas vestes,23 23 "Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece indigente, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia" (ASSIS, Obra completa, p. 556). Notar, nessa breve descrição, a presença da fortuna, do acaso, da sorte, sustentando a narrativa. A Fortuna foi uma das grandes adversárias dos cínicos antigos, que buscavam incessantemente superá-la pelo uso extremo da razão e da força de vontade. Assim, a figura de Quincas Borba parece representar uma posição filosófica sobre o Acaso, a deusa thycké dos antigos gregos. atribuindo a ele a criação de um sistema doutrinário filosófico.24 24 "Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim?! Não é ele, é Humanitas..." (ASSIS, Obra completa, p. 559). Ora, partindo basilarmente desse fato, a pergunta que se faz é: Por que uma caricatura de um sistema filosófico é colocada por Machado na linguagem de um indigente e, posteriormente, de um demente Quincas Borba?! Essa pista conduz à imagem pejorativa do filósofo cínico.

Sabe-se, principalmente via Diógenes Laércio (o principal bibliógrafo da Antiguidade), que Diógenes (o cínico, discípulo de Antístenes e cofundador do Cinismo) foi denominado, por Platão, como "um Sócrates louco".25 25 Esse epíteto é atribuído a Platão, quando perguntado sobre o que achava de Diógenes. "Alguém perguntou: 'Que espécie de homem pensas que Diógenes é?'. A resposta de Platão foi: 'Um Sócrates demente'. [...]" (LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 165). Esse epíteto deve-se às mais extravagantes atitudes e excêntricos comportamentos, deste que é tradicionalmente conhecido como o "filósofo do tonel".26 26 "Segundo alguns autores, ele foi o primeiro a dobrar o manto, que tinha de usar também para dormir, e carregava uma sacola onde guardava seu alimento; [...]. Em certa ocasião Diógenes escreveu a alguém pedindo-lhe para arranjar uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa ele passou a morar num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas. [...]" (LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 158). A questão que se coloca é: Seria esse um motivo razoável para filiar o romance de Machado a tal tradição? Essa é uma evidência que condiz com as intenções de Machado? Quincas Borba é um personagem secundário, mas que nomeia um romance e é coadjuvante no anterior.

O estudo de Jean Michel Massa (2001) auxilia a tarefa de evidenciar a nossa hipótese. Nele atesta-se a presença de obras de vertente cínica e cética na biblioteca pessoal de Machado.27 27 Os volumes numerados por Jean Michel Massa, importantes para este estudo, estão nas seguintes páginas: p. 153 – livros 36 e 37 (SAMOSATE, Lucien; Oeuvres complètes de Samosate; tradução de Eugène Talbot), p. 145 – livro 5 (ERASME, Éloge de la folie; tradução de De La Veaux), p. 158 – livro 60 (PETRONE, Oeuvres complètes; tradução de M. Héguin de Guerlo), p. 243 – livro 501 (RABELAIS, Oeuvres de Rabelais, Paris Garnier). Os livros 36 e 37 são evidências incontestes. Machado frequentou Luciano de Samósata, esse autor da Antiguidade tardia que, acima de controvérsias filológicas e historiográficas que sua obra ainda gera entre os exegetas, é, de fato, o principal vetor do cinismo literário.28 28 "De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos satíricos (sério-cômicos) que vai de obras com influência de Luciano, como Elogio da loucura de Erasmo, Utopia de More e Gargântua e Pantagruel de Rabelais, passando pelas comédias satíricas de Ben Jonson, as Viagens de Gulliver, de Swift, e O sobrinho de Rameau, de Diderot" (GOULET-GAZÉ, Os cínicos. O Movimento cínico na Antiguidade e o seu legado, p. 29).

A partir dessa evidência, talvez seja possível filiar o romance Quincas Borba à tradição do cinismo literário, cujo vetor maior é Luciano. No interior dessa tradição apresentam-se elementos que a ligam, por sua vez, à tradição filosófica moral (cujo vetor maior seria Diógenes Laércio). Acredita-se ser possível mostrar que existem elementos em Machado dessa vertente do cinismo filosófico. Ou seja, haveria dois vetores do cinismo ao longo da sua tradição, e que foram absorvidos em sua recepção: o cinismo moral e o cinismo literário.29 29 O cinismo literário assume exclusiva relevância, dado que o cinismo moral se vincula, a partir de Luciano e da redescoberta dele na modernidade, a obras literárias. Não considero a hipótese de atribuir a Machado uma "vida cínica" (bíos kinikos). Portanto, sempre que o cinismo for considerado sob seu aspecto moral, esta consideração somente será possível quando se tratar de personagens literárias. O que está em jogo aqui é a separação entre literatura e história, entre obra e biografia. É possível mostrar a presença de ambos em Machado de Assis, dado que essas duas vias fundiram-se a partir de Luciano e ganharam fôlego peculiar no Iluminismo.

Mostram-se, portanto, um e outro aspecto desse cinismo literário presentes em Quincas Borba. Ao considerar a recepção moderna do cinismo, Goulet-Cazé diz que essa recepção das fontes cínicas pode ser mapeada na presença de personagens literárias de cunho e "teor" cínico.30 30 "As evidências podem ser encontradas antes na imitação consciente de gestos cínicos particulares, no reconhecimento de máximas e atitudes cínicas, na relação literária com motivos cínicos e com a figura do cínico, no uso dessa figura como projeção e identificação e de muitas outras formas. Tais referências podem ser encontradas menos em textos teórico-filosóficos do que em textos literário-filosóficos ou mesmo puramente literários – por exemplo, na literatura moral, satírica e aforística" (GOULET-GAZÉ, Os cínicos: O Movimento cínico na Antiguidade e seu legado, p. 361). A propósito da imitação dos gestos cínicos na recepção do Cinismo, leiamos o episódio do furto do relógio de Brás Cubas por Quincas Borba, no capítulo LX de Memórias póstumas de Brás Cubas, na ocasião do encontro dos dois no passeio público: "E dizendo isso abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. [...] Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-me no abraço" (ASSIS, Obras completas, vol. I, p. 478). Esse gesto, deturpado no que condiz aos gestos dos primeiros cínicos, parece, no entanto, ser uma caricatura moderna, portanto pejorativa, de um gesto cínico. Reforçamos, a partir da citação, que a recepção moderna do cinismo foi feita, mais propriamente, através de obras literárias. E que, no interior dessas obras, a presença desta que foi tida como a "filosofia popular da Grécia Antiga"31 31 "[...] o cinismo foi único entre as tradições intelectuais clássicas ao se tornar algo como um 'movimento de massa'" (REALE, História da filosofia antiga III, p. 26). ocorreu, dentre outras, pela figura (caricaturada ou não) do sábio cínico. Ora, pelo que se constatou acima, há um forte indício de que Quincas Borba foi criado em referência a essas personagens literárias cínicas. Trata-se então de, com os elementos da obra, ir em direção à intenção do próprio autor.

A "imitação consciente de gestos cínicos" é feita por Quincas Borba (na criação do sistema filosófico,32 32 O cínico antigo não criou sistemas filosóficos. Por que aponto esta questão como marca cínica em Machado de Assis? Pela observação fundamental de que Quincas Borba é uma sátira cínica ao cinismo e ao dogmatismo, no modelo dos diálogos de Luciano em que ocorre a crítica aos cínicos, como no Fugitivo. mas também na postura existencial que adota ao longo de sua vida, aceitando e superando o acaso, e não se abalando pelos reveses da fortuna).33 33 Estes são "motes", ou motivos, do sábio cínico, par excellence: a aceitação do destino, a recusa ascética como maneira para se exercitar nos reveses da Fortuna, a não sistematização teórica, que acarreta na adoção da ação como único critério prático. Esses motivos foram adotados pelos estoicos, com alterações, como máximas morais de seu sistema. Sabemos que Zenão fora aluno de Crátes. A relação literária com motivos cínicos é elemento constituinte da literatura moral que Machado criou em Quincas Borba. Os motivos e temas cínicos, poucas vezes lógicos, nenhuma vez estéticos, mas sempre morais, encontram eco nesse romance, mesmo que de uma maneira alterada e invertida, portanto moderna.

A partir de Luciano, essas duas esferas se fundiram, e os personagens cínicos passaram a figurar no interior de textos de vertente literária (ocorrendo uma ficcionalização do cinismo).34 34 Ou, o que Bakhtin chamou de "romanceamento" do sábio cínico. "Foi, claro, primariamente por intermédio dessas tradições de narração de casos que Diógenes sobreviveu para entrar na literatura europeia pelas obras de Luciano e autores posteriores. Da forma como é apresentado aqui, ele já é 'uma figura profundamente romanceada', como observa Bakhtin, não apenas no sentido de que Diógenes é uma figura de histórias, como um personagem de um romance, com seu barril, seu manto dobrado ao meio, sua vasilha quebrada, alforje e lentilhas – todos esses adereços que se tornaram os atributos definidores do cínico como tipo e que se agrupam em torno dele dando à sua imagem algo dos detalhes circunstanciais da vida cotidiana" (GOULET-GAZÉ, Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e seu legado, p. 100). Machado e o seu Quincas Borba parecem participar dessa tradição.35 35 Dudley sintetiza em três aspectos o cinismo: "The conclusion of this study is that Cynicism was really a phenomenon which presented itself in three not inseparable aspects – a vagrant ascetic life, an assault on all established values, and a body of literary genres particularly well adapted to satire and popular philosophical propaganda" (DUDLEY, A History of Cynicism, p. xi-xii). A primeira característica sintetizada por Dudley corresponde às idas, vindas e sumiços do próprio Quincas Borba, que levou, desse modo, uma "vida ascética e vagante". A terceira, a recepção da filosofia no "corpo literário de gênero particularmente adaptado", como a sátira, incluiria, no caso do romance machadiano, a segunda característica, um "ataque a todos os valores estabelecidos". Cabe, em próximo estudo, mostrar através de quais elementos o romance Quincas Borba critica os valores sociais e culturais.

3.

Assim, mostrou-se a presença romanceada da personagem que levou vida errante, símbolo tradicional da filosofia cínica, juntamente às principais evidências textuais de que Machado de Assis teve contato com a tradição luciânica. Como dito, a crítica da cultura e dos valores estabelecidos, marca moral cínica possivelmente presente em Quincas Borba, envolve considerações mais detalhadas, que serão tema de outro texto.36 36 "Luciano é crítico da cultura, entendida como paideia" (BRANDÃO, A poética do hipocentauro, p. 53). A crítica da cultura, portanto, é herança da tradição luciânica, e a identificamos em Machado não só nesse romance. Percebe-se a dimensão dessa crítica em Luciano, que colocou em xeque as instituições reconhecidamente legítimas de seu tempo, e não só a Filosofia. Este parece ser o sentido de cultura enquanto paideia, desenvolvido por Lins Brandão em sua obra, única em língua portuguesa, sobre o escritor e filósofo de Samósata.

Referências

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  • LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres Brasília: UnB, 1988, p. 153-179.
  • LAURSEN, John Christian. Skepticism and Cynicism in the Work of Pedro de Valencia. In: Skepticism in the Modern Age: Building on the Work of Richard Popkin. Leinden-Boston: Brill, 2009.
  • MAIA NETO, José Raimundo. O ceticismo na obra de Machado de Assis São Paulo: Annablume, 2007.
  • MARGUTTI, Paulo Roberto. Machado, O brasileiro pirrônico? Um debate com Maia Neto. Revista Sképsis, ano I, n. 1, 2007.
  • MARTINS MOREIRA, Thiers. Quincas Borba ou o pessimismo irônico Rio de Janeiro: Livraria São José, 1964.
  • MASSA, Jean Michel; JOBIN, José Luiz (Orgs.). A biblioteca de Machado de Assis Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2001.
  • MAYA, Alcides. Machado de Assis, algumas notas sobre o humor Santa Maria, RS: Editora UFSM; Porto Alegre: Movimento, 2007.
  • MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 204-273.
  • OLIVEIRA, Marcelo Fonseca Ribeiro de. O(s) cinismo(s) no romance Quincas Borba de Machado de Assis. Actas del II Congreso de la SFU, Montevideo, 2015, p. 822-48.
  • REALE, Giovanni. História da filosofia antiga São Paulo: Loyola, 1992, vol. III, p. 23-48, e vol. IV, p. 187-211.
  • ROUANET, Sergio Paulo. Riso e melancolia São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • SÁ REGO, Enylton de. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 1997.
  • SEXTUS EMPIRICUS. Outlines Of Pyrrhonism Massachusetts, London: Harvard University Press, Loeb Classical Library, 1933.
  • 1
    A recepção da tradição cínica, propomos, poderia enquadrar-se no que Antonio Candido chamou de "tendência universalista" da literatura brasileira. A "continuidade literária" (outro conceito de Candido) do movimento cínico parece ter em Machado um representante e receptor. Ver: CANDIDO, 2000, p. 23-26.
  • 2
    Sá Rego (1989)SÁ REGO, Enylton de. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. mostra a filiação da literatura machadiana, a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), à tradição da sátira menipeia. Pela abrangência dessa obra, que dá conta de toda a produção em prosa de Machado, com exceção das crônicas, o romance Quincas Borba não foi analisado em seus pormenores.
  • 3
    Em uma das poucas obras da bibliografia machadiana que trazem à tona a filosofia subjacente aos romances machadianos, Maia Neto justifica assim a ausência do romance Quincas Borba: "Quincas Borba não é examinado neste estudo. Embora o romance seja considerado como um dos melhores de Machado, não é um romance escrito em primeira pessoa e, portanto, não apresenta um narrador-personagem. Esta é a razão central de sua ausência neste livro" (MAIA NETO, O ceticismo na obra de Machado de Assis, p. 25).
  • 4
    Há na bibliografia alguns estudos importantes sobre a filosofia presente na obra de Machado de Assis, tais como os de: Afrânio Coutinho (A filosofia de Machado de Assis), Margutti ("Machado, o brasileiro pirrônico? Um debate com Maia Neto"), Maia Neto (O ceticismo na obra de Machado de Assis, 2007), Martins Moreira (Quincas Borba ou o pessimismo irônico), Maya (Machado de Assis, algumas notas sobre o humour) e o de Sergio Paulo Rouanet (Riso e melancolia).
  • 5
    A tradução norte-americana, mostrando já no título o problema da homonímia entre o filósofo e o cão, é feita pela interrogação: Philosopher or Dog?.
  • 6
    O cão nos é apresentado como "rival no coração de Quincas Borba" (ASSIS, Obra completa, p. 557). Essa posição do narrador confunde-se com a perspectiva de Rubião. Mapear, explicar e comentar o perspectivismo do narrador talvez leve a um esclarecimento sobre a posição do próprio autor em Quincas Borba. Não obstante, caso não se leve em conta a biografia intelectual de Machado, incorreremos sempre em hipóteses aproximadas e verossímeis a partir da consideração das diversas perspectivas, o que não fortalece o problema do narrador como problema de fato. O que quero dizer é que o conteúdo da obra, por si só, não basta para se inferir a posição mesma do autor da obra. Sendo assim, focando aqui o conteúdo, opta-se por extrair dele, a partir da interpretação de suas partes, o sentido total que, mesmo com elementos implícitos, faça-se explícito em si mesmo e através da semelhança com outras obras do mesmo corpus.
  • 7
    "Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se o seu defunto homônimo é que dá o título do livro, e por que antes um que outro, – questão prenhe de questões, que nos levariam longe..." (ASSIS, Obra completa, p. 725, grifo nosso). Ressaltamos aqui que a justificativa da homonímia já havia sido mencionada pelo narrador, pela fala do filósofo Quincas Borba: "[...] uma das extravagâncias do dono foi dar-lhe o seu próprio nome; mas, explicava-o por dois motivos, um doutrinário, outro particular" (Idem, p. 557). Essa razão doutrinária, justificada pelo filósofo Quincas Borba, é "Humanitas" (suspeita-se que o narrador, apresentando essa justificativa do filósofo, dimensionaria implicitamente a posição do próprio Machado de Assis: ou seja, a justificativa para a presença do cão no romance é a sua filiação ao cinismo, o "motivo doutrinário" da homonímia de Quincas Borba). O uso da metáfora como imagem ou símbolo que reflete indiretamente a intenção do autor pode também ser identificado a partir da interpretação do significado do espólio de Rubião.
  • 8
    O "Humanitismo" precisa ser melhor explorado. Quando ele é defendido por um filósofo que usa os trajes do sábio cínico, no romance anterior, torna-se uma sátira ao próprio cinismo, mas também aos sistemas dogmáticos. Parece haver forte presença darwinista, evolucionista, nessa caricatura e pseudofilosofia: "Mas passemos ao Humanitismo, a mais célebre das filosofias machadianas. Como sugere o nome, trata-se de uma sátira à floração oitocentista dos ismos, com alusão explícita à religião comtiana da humanidade. Os raciocínios fazem pensar em mais outras filiações, além dos princípios positivistas que afirmam a luta de todos contra todos, à maneira do darwinismo social. [...] Veja-se por um exemplo o clássico 'Ao vencedor as batatas', palavra de ordem com que o filósofo pancada Quincas Borba sintetizaria – noutro romance machadiano – a essência de sua doutrina 'humanitista'. A frase possivelmente seja a tradução aclimatada da 'survival of the fittest', expressão mais clássica ainda, inventada por Spencer" (SCHWARZ, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, p. 99). E MAIA NETO: "Entendemos o humanitismo como uma caricatura das doutrinas filosóficas em geral, em particular das cientificistas e da história influentes no período (darwinismo, o positivismo de Comte e o evolucionismo social de Spencer). O elemento caricaturado no humanitismo é o estoicismo que Machado parece identificar, por trás da forma secularizada e científica, na 'nova tendência intelectual' (OC, III, 810): determinismo, racionalismo, concepção da natureza como providencial e benéfica, e concepção otimista da natureza (divinização da espécie)” (p. 94). É claro que, para um cético, o alvo primeiro das sátiras filosóficas deve ser o estoicismo, rival tradicional. No entanto, o "humanitismo" parece ter sentido mais profundo do que aparenta, desde que sua autorreferência se torna clara quando se leva em conta que o seu "portador" e "porta-voz" é um filósofo cínico, mesmo que em caricatura.
  • 9
    O artigo de Gary Vessels ("O cinismo e a prosa cínica nas Memórias póstumas de Brás Cubas". O Espelho. Revista Machadiana. Porto Alegre; West Lafayette, Letras/UFRGS; Pardue University, n. 2, p. 49-64, 1996), ainda não consultado, evidencia o cinismo nas Memórias póstumas (1881).
  • 10
    BRANCACCI ("La filosofia di Pirrone e le sue relazioni con il cinismo") faz um estudo histórica e filologicamente detalhado da relação, sem deixar de lado o escopo da História das Ideias.
  • 11
    Estou ciente de que, no caso do ceticismo, esta crítica, que não configura uma recusa plena, talvez tenha sido feita através de uma contraproposta ontológica; o que é evidenciado pelo embate da literatura secundária entre pirronismo e fenomenismo.
  • 12
    Esse argumento não é de todo e plenamente ignorado pela bibliografia. O que espanta é o bloqueio que leva à recusa em desenvolvê-lo, o que envolveria, dentre outras, uma discussão metodológica que não faremos aqui. No caso da bibliografia machadiana, é MAIA NETO (O ceticismo na obra de Machado de Assis) que esboça a comparação entre ceticismo e cinismo: "Luciano assemelha-se a Timão, principal discípulo de Pirro, ao mostrar (i) o conflito dos diversos sistemas filosóficos helenísticos; (ii) a disparidade entre as teorias dos filósofos e a realidade; e, sobretudo (iii) ao ridicularizar os filósofos e suas doutrinas" (p. 20). Notemos que o "Humanitismo" é tanto uma ridicularização das doutrinas filosóficas megalomaníacas, quanto um efeito propositalmente cômico da constatação da eterna disparidade entra elas. Brancacci (1980)BRANCACCI, Aldo. La filosofia di Pirrone e le sue relazioni con il cinismo. Lo Scetticismo antico: Atti del Convegno Organizzato dal Centro di Studio del Pensiero Antico del C.N.R., Roma, 5-8 Novembre 1980. já parte da premissa do acordo temático moral entre Pirro e antigos cínicos (ver, esp., p. 214-15). Por fim, LAURSEN ("Skepticism and Cynicism in the Work of Pedro de Valencia"): "It might be argued that cynicism is not a philosophy, but rather an anti-philosophy, and up to a point that is true. The same can be said for skepticism, especially in the Pyrrhonian variety, yet both varieties are included in the anthologies of Hellenistic debate. But both skepticism and cynicism are philosophies if philosophy means a way of life" (p. 153).
  • 13
    Cf. LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 156 e 172.
  • 14
    A questão da nomeação do cinismo e da simbologia do cão apresenta justificativas históricas. Encontramos quatro razões dessa alcunha, apresentadas por Dudley: "There are four reasons why the 'Cynics' are so named. First because of the “indifference” of their way of life, for they make a cult of adiafogia, like dogs, eat and make love in public, go barefoot, and sleep in tubs and at crossroads…. The second reason is that the dog is a shameless animal, and they make a cult of shamelessness, not as being beneath modesty (Aidos), but as superior to it… The third reason is that the dog is a good guard, and they guard the tenets of their philosophy… The fourth reason is that the dog is a discriminating animal which can distinguish between its friends and enemies… So they do recognize as friends those who are suited to philosophy, and receive them kindly, while those unfitted they drive away, like dogs, by barking at them" (DUDLEY, A History of Cynicism, p. 5).
  • 15
    A principal referência para o mapeamento da influência das literaturas inglesa e francesa modernas na obra de Machado de Assis é Rouanet (Riso e Melancolia). Certamente há elementos comuns em autores como Sterne e Diderot, que espelham uma influência clássica de Luciano de Samósata, como bem mostrou Sá Rego (1989)SÁ REGO, Enylton de. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.. Mas o livro de Rouanet é um bom exemplo da presença do cinismo na literatura machadiana.
  • 16
    ASSIS, Obra completa, vol. I, p. 646, grifo nosso.
  • 17
    Notar a ironia, conscientemente criada por Machado ou não, e a autorreferência dessa adjetivação. Sofia corresponde aos assédios de Carlos Maria e de outros, aceita todos os mimos de Rubião, diz amar o esposo e ainda chama Carlos Maria de "cínico".
  • 18
    Apliquei introdutoriamente a tese da diferença entre cinismo antigo e moderno de Sloterdijk, no artigo: "O(s) cinismo(s) no romance QuincasBorba de Machado de Assis", p. 822-48. Desenvolvida a partir de uma diferenciação lexical da língua alemã, essa tese me parece muito feliz, uma vez que poderá comprovar-se a partir da literatura de Machado de Assis, e não somente aplicar-se a ela.
  • 19
    ASSIS, Obra completa, vol. I, p. 682. Sá Rego também notou essa alusão, e a explica pela inserção na tradição da sátira menipeia. Ver: SÁ REGO, O calundu e a panaceia: Machado de Assis e a sátira menipeia, p. 181.
  • 20
    LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VI.
  • 21
    ASSIS, Obra completa, vol. I, p. 695.
  • 22
    Memórias póstumas de Brás Cubas saiu em 1880 na Revista Brasileira. O ano da primeira publicação em volume é 1881.
  • 23
    "Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as Memórias póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece indigente, herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia" (ASSIS, Obra completa, p. 556). Notar, nessa breve descrição, a presença da fortuna, do acaso, da sorte, sustentando a narrativa. A Fortuna foi uma das grandes adversárias dos cínicos antigos, que buscavam incessantemente superá-la pelo uso extremo da razão e da força de vontade. Assim, a figura de Quincas Borba parece representar uma posição filosófica sobre o Acaso, a deusa thycké dos antigos gregos.
  • 24
    "Crê-me, o Humanitismo é o remate das coisas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim?! Não é ele, é Humanitas..." (ASSIS, Obra completa, p. 559).
  • 25
    Esse epíteto é atribuído a Platão, quando perguntado sobre o que achava de Diógenes. "Alguém perguntou: 'Que espécie de homem pensas que Diógenes é?'. A resposta de Platão foi: 'Um Sócrates demente'. [...]" (LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 165).
  • 26
    "Segundo alguns autores, ele foi o primeiro a dobrar o manto, que tinha de usar também para dormir, e carregava uma sacola onde guardava seu alimento; [...]. Em certa ocasião Diógenes escreveu a alguém pedindo-lhe para arranjar uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa ele passou a morar num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas. [...]" (LAÉRCIO, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 158).
  • 27
    Os volumes numerados por Jean Michel Massa, importantes para este estudo, estão nas seguintes páginas: p. 153 – livros 36 e 37 (SAMOSATE, Lucien; Oeuvres complètes de Samosate; tradução de Eugène Talbot), p. 145 – livro 5 (ERASME, Éloge de la folie; tradução de De La Veaux), p. 158 – livro 60 (PETRONE, Oeuvres complètes; tradução de M. Héguin de Guerlo), p. 243 – livro 501 (RABELAIS, Oeuvres de Rabelais, Paris Garnier).
  • 28
    "De fato, a expressão mais poderosa da vitalidade do cinismo no início e no apogeu do mundo moderno provavelmente não está no domínio da filosofia per se, mas numa tradição literária de fantasia e diálogos satíricos (sério-cômicos) que vai de obras com influência de Luciano, como Elogio da loucura de Erasmo, Utopia de More e Gargântua e Pantagruel de Rabelais, passando pelas comédias satíricas de Ben Jonson, as Viagens de Gulliver, de Swift, e O sobrinho de Rameau, de Diderot" (GOULET-GAZÉ, Os cínicos. O Movimento cínico na Antiguidade e o seu legado, p. 29).
  • 29
    O cinismo literário assume exclusiva relevância, dado que o cinismo moral se vincula, a partir de Luciano e da redescoberta dele na modernidade, a obras literárias. Não considero a hipótese de atribuir a Machado uma "vida cínica" (bíos kinikos). Portanto, sempre que o cinismo for considerado sob seu aspecto moral, esta consideração somente será possível quando se tratar de personagens literárias. O que está em jogo aqui é a separação entre literatura e história, entre obra e biografia.
  • 30
    "As evidências podem ser encontradas antes na imitação consciente de gestos cínicos particulares, no reconhecimento de máximas e atitudes cínicas, na relação literária com motivos cínicos e com a figura do cínico, no uso dessa figura como projeção e identificação e de muitas outras formas. Tais referências podem ser encontradas menos em textos teórico-filosóficos do que em textos literário-filosóficos ou mesmo puramente literários – por exemplo, na literatura moral, satírica e aforística" (GOULET-GAZÉ, Os cínicos: O Movimento cínico na Antiguidade e seu legado, p. 361). A propósito da imitação dos gestos cínicos na recepção do Cinismo, leiamos o episódio do furto do relógio de Brás Cubas por Quincas Borba, no capítulo LX de Memórias póstumas de Brás Cubas, na ocasião do encontro dos dois no passeio público: "E dizendo isso abraçou-me com tal ímpeto, que não pude evitá-lo. [...] Meto a mão no colete e não acho o relógio. Última desilusão! O Borba furtara-me no abraço" (ASSIS, Obras completas, vol. I, p. 478). Esse gesto, deturpado no que condiz aos gestos dos primeiros cínicos, parece, no entanto, ser uma caricatura moderna, portanto pejorativa, de um gesto cínico.
  • 31
    "[...] o cinismo foi único entre as tradições intelectuais clássicas ao se tornar algo como um 'movimento de massa'" (REALE, História da filosofia antiga III, p. 26).
  • 32
    O cínico antigo não criou sistemas filosóficos. Por que aponto esta questão como marca cínica em Machado de Assis? Pela observação fundamental de que Quincas Borba é uma sátira cínica ao cinismo e ao dogmatismo, no modelo dos diálogos de Luciano em que ocorre a crítica aos cínicos, como no Fugitivo.
  • 33
    Estes são "motes", ou motivos, do sábio cínico, par excellence: a aceitação do destino, a recusa ascética como maneira para se exercitar nos reveses da Fortuna, a não sistematização teórica, que acarreta na adoção da ação como único critério prático. Esses motivos foram adotados pelos estoicos, com alterações, como máximas morais de seu sistema. Sabemos que Zenão fora aluno de Crátes.
  • 34
    Ou, o que Bakhtin chamou de "romanceamento" do sábio cínico. "Foi, claro, primariamente por intermédio dessas tradições de narração de casos que Diógenes sobreviveu para entrar na literatura europeia pelas obras de Luciano e autores posteriores. Da forma como é apresentado aqui, ele já é 'uma figura profundamente romanceada', como observa Bakhtin, não apenas no sentido de que Diógenes é uma figura de histórias, como um personagem de um romance, com seu barril, seu manto dobrado ao meio, sua vasilha quebrada, alforje e lentilhas – todos esses adereços que se tornaram os atributos definidores do cínico como tipo e que se agrupam em torno dele dando à sua imagem algo dos detalhes circunstanciais da vida cotidiana" (GOULET-GAZÉ, Os cínicos: O movimento cínico na Antiguidade e seu legado, p. 100).
  • 35
    Dudley sintetiza em três aspectos o cinismo: "The conclusion of this study is that Cynicism was really a phenomenon which presented itself in three not inseparable aspects – a vagrant ascetic life, an assault on all established values, and a body of literary genres particularly well adapted to satire and popular philosophical propaganda" (DUDLEY, A History of Cynicism, p. xi-xii).
  • 36
    "Luciano é crítico da cultura, entendida como paideia" (BRANDÃO, A poética do hipocentauro, p. 53). A crítica da cultura, portanto, é herança da tradição luciânica, e a identificamos em Machado não só nesse romance. Percebe-se a dimensão dessa crítica em Luciano, que colocou em xeque as instituições reconhecidamente legítimas de seu tempo, e não só a Filosofia. Este parece ser o sentido de cultura enquanto paideia, desenvolvido por Lins Brandão em sua obra, única em língua portuguesa, sobre o escritor e filósofo de Samósata.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2015
  • Aceito
    22 Fev 2016
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