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Espectro sonoro da flauta transversal

(Sound spectrum of the transverse flute)

Resumos

A flauta é um instrumento musical classificado como instrumento de sopro. Dentre os diversos tipos, a flauta transversal tem esse nome devido ao sopro ser transversal ao comprimento da flauta. Neste artigo, analisamos o espectro sonoro desse tipo de flauta, identificamos os harmônicos mais intensos na formação do timbre do instrumento para diversas notas musicais da escala diatônica, e reproduzimos a forma da onda sonora resultante com base no espectro.

flauta; espectro sonoro; timbre


The flute is a musical instrument classified as a woodwind instrument. Among the various types, the transverse flute has this name because the breath is transverse to the length of the flute. In this paper, we analyze the sound spectrum of this type of flute, identify the most intense harmonics in the formation of the timbre of the instrument for several musical notes of the diatonic scale, and reproduce the shape of the sound wave based on the resulting spectrum.

flute; sound spectrum; timbre


1. Introdução

As flautas estão certamente entre os instrumentos musicais mais antigos construídos e tocados pela humanidade [1[1] N.H. Fletcher, Acoustic and Aerodynamic Determinants of the Sound Quality of Flutes (Acoustical Society of America, Cambridge, 1994).]. Podem ser classificadas pelos formatos ou, por exemplo, de acordo com a maneira como o som é produzido. As flautas pan são compostas de vários tubos fechados, enquanto a flauta doce e a flauta transversal são compostas de um único tubo aberto cada uma. Estas duas últimas diferem ainda pela forma como o ar entra na cavidade para produzir o som: na primeira, o jato de ar é longitudinal; na segunda, um fluxo de ar transversal excita o ar presente no interior do instrumento [2[2] N.H. Fletcher and T.D. Rossing, The Physics of Musical Instruments (Springer-Verlag, New York, 1991).].

Neste artigo vamos analisar o espectro sonoro da flauta transversal e aplicar conhecimentos de acústica. Na Seção 2, há uma visão geral sobre a estrutura e elementos determinantes da produção sonora. Na Seção 3 mostramos os resultados da análise dos espectros sonoros que caracterizam as notas da escala diatônica da flauta. As considerações finais são apresentadas na Seção 4.

2. O instrumento

A estrutura da flauta mudou muito pouco desde a modernização sofrida por Boehm [3[3] N.H. Fletcher, W.J. Strong and R.K. Silk, J. Acoust. Soc. Am. 71, 5 (1982).5[5] P. Bate, The Flute (Ernest Benn, London, 1975).]. Mudanças consideráveis na geometria são percebidas quando comparadas a flauta de Boehm e a denominada flauta clássica, do século XVIII e início do século XIX. Um relato histórico mais detalhado sobre a flauta pode ser encontrado na Ref. [6[6] R.S. Rocksto, A Treatise in the Flute (Musica Rara, London, 1928).]. Neste artigo, daremos mais atenção aos detalhes técnicos do instrumento.

A flauta de Boehm tem corpo aproximadamente cilíndrico e a cabeça da embocadura ligeiramente cônica (ver Fig. 1). Já a flauta clássica tem o corpo cônico em grande parte e a cabeça da embocadura cilíndrica. Boehm teve intenção de elevar a afinação da flauta e tornar seu som mais homogêneo aumentando o diâmetro dos furos, principalmente o furo da cabeça de embocadura. Ele também criou um mecanismo de acoplamento de chaves, de forma a evitar dedilhados cruzados, uniformizando o som [7[7] J. Wolfe, J. Smith, J. Tann and N.H. Fletcher, Journal of Sound and Vibration 243, 127 (2001).].

Figura 1
Partes da flauta transversal.

Atualmente, a flauta profissional é usualmente feita de prata, mas existem flautas de estudo feitas de materiais mais baratos. Os furos tem aproximadamente o mesmo diâmetro, com exceção dos furos mais próximos da embocadura. Com cerca de 66 cm de comprimento, a flauta é fabricada em duas afinações: C (dó) e G (sol). O intervalo de notas alcançado pela flauta afinada em C vai desde o C4 até o C7, onde o índice subscrito indica a oitava a qual pertence a nota. Para a flauta afinada em G, o intervalo vai de G3 até G6[8[8] B.R. Parker, Good Vibrations: The Physics of Music(The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2009).]. A flauta em C tem a nota A4 (lá) afinada em 440 Hz.

Para produzir o som, o instrumentista sopra através de um furo lateral na cabeça do instrumento. O jato de ar produz uma turbulência quando atravessa a aresta da abertura; parte do ar entra e a outra escapa. Este ar “perdido”, aliado aos efeitos viscosos e térmicos nas paredes dos tubos, são responsáveis por grandes perdas acústicas, o que exige do instrumentista bastante habilidade no direcionamento do jato de ar e no controle da pressão do sopro.

3. O espectro sonoro

O corpo de qualquer instrumento musical funciona como um ressonador que reforça determinados comprimentos de onda. Dessa forma, cada instrumento apresenta características sonoras próprias, que são resultado de fatores como a forma e o material de constituição. Essa “assinatura” acústica é revelada nos diferentes timbres dos instrumentos musicais. O entendimento de como se forma o timbre de um instrumento pode vir do conhecimento de quais frequências são reforçadas, e com que intensidades, no processo de produção sonora.

Para analisar o espectro sonoro da flauta transversal utilizamos um programa de computador chamado Espectrogram 16.0, disponível em http://spectrogram.software.informer.com/16.0. Conectamos ao computador um microfone simples, desses acoplados ao redfone, e tocamos a flauta, da marca Weril, nota por nota. Para cada nota obtivemos um gráfico de níveis de intensidade sonora em função da frequência, como mostra a Fig. 2, onde pode ser vista uma das análises do espectro da nota F4 (Fá). São apresentados os níveis de intensidade sonora, em decibeis, de todas as frequências presentes no som produzido pela flauta, dentro do intervalo de frequências escolhido. Os picos mais altos representam as frequências reforçadas pelo corpo do instrumento.

Figura 2
Espectro sonoro da nota Fá grave.

Os níveis de intensidade representam uma escala logarítmica da razão da intensidade sonora dada em W/m2 pela intensidade de referência

(1)β=10log10(II0),
onde I0 = 10−12 W/m2 representa uma intensidade de referência para o som [9[9] D. Halliday, R. Resnick and J. Walker, Fundamentos de Física Vol. 2 (LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 1996), 4a ed.]. Com auxílio da Eq. (1), plotamos os gráficos das intensidades sonoras (U.A.) em função das frequências (Hz) para todas as notas diatônicas de duas oitavas da flauta transversal, desde o C4 ao B5. Usamos unidades arbitrárias para a intensidade sonora porque estamos interessados apenas nas diferenças relativas de intensidades dos harmônicos.

Chamamos de notas graves o intervalo compreendido entre C4 e B4. Os resultados podem ser vistos nas Figs. de 3 a 9. Podemos notar que, com exceção das notas Fá e Si, em todas as outras notas o harmônico mais presente é o segundo. Isto significa, por exemplo, que no som da nota C4a frequência que caracteriza a nota C5 está presente com mais intensidade do que as demais.

Figura 3
Espectro sonoro da nota Dó grave.
Figura 4
Espectro sonoro da nota Ré grave.
Figura 5
Espectro sonoro da nota Mi grave.
Figura 6
Espectro sonoro da nota Fá grave.
Figura 7
Espectro sonoro da nota Sol grave.
Figura 8
Espectro sonoro da nota Lá grave.
Figura 9
Espectro sonoro da nota Si grave.

As notas médias compreendem o intervalo entre C5 e B5, cujos resultados estão nas Figs. de 10 a 16. Neste intervalo de frequências, todas as notas apresentam como harmônico mais intenso o primeiro. É importante observar que as frequências que caracterizam os primeiros harmônicos na escala média são as mesmas que caracterizam os segundos harmônicos na escala grave. Certamente, as notas mais graves da flauta transversal são mais difíceis de serem evidenciadas do que as notas da escala média.

Figura 10
Espectro sonoro da nota Dó média.
Figura 11
Espectro sonoro da nota Ré média.
Figura 12
Espectro sonoro da nota Mi média.
Figura 13
Espectro sonoro da nota Fá média.
Figura 14
Espectro sonoro da nota Sol média.
Figura 15
Espectro sonoro da nota Lá média.
Figura 16
Espectro sonoro da nota Si média.

A intensidade de uma onda sonora é proporcional ao quadrado da amplitude Ω da onda,

(2)I=12BkΩ2,
onde k é o número de onda e B é o módulo de compressão. Na formação de um som estão presentes harmônicos com diferentes intensidades. Pela transformação de Fourier, a onda sonora resultante, em um determinado ponto do espaço, pode ser representada como a soma de funções senoidais
(3)y(t)=Ωisen(2πfit),
onde o índice i representa cada harmônico presente e os coeficientes Ωi estão relacionados com as respectivas intensidades dos harmônicos.

A partir dos três primeiros harmônicos evidenciados construímos os gráficos das funções de onda de deslocamento correspondentes em um intervalo de tempo determinado. Nas Figs. 17 e 18 estão os gráficos das ondas que representam a nota Dó e a nota Sol, respectivamente.

Figura 17
Onda de saída da nota Dó. As frequências dos harmônicos são 262, 524, 786, em Hz, nessa ordem; e as respectivas intensidades são 2, 79254, 55, 2077, 2, 10863 em potências de 10−10 U.A.
Figura 18
Onda de saída da nota Sol. As frequências dos harmônicos são 388, 776, 1164, em Hz, nessa ordem; e as respectivas intensidades são 2, 46604, 3, 43558, 0, 191426 em potências de 10−8 U.A.

4. Considerações finais

Apesar dos resultados serem evidentemente aproximados, como consequência inicialmente das limitações dos equipamentos e técnicas utilizados, foi possível notar em todos os gráficos representativos dos espectros que os três primeiros harmônicos são muito mais evidentes do que os harmônicos seguintes. Isso nos levou a considerar apenas estes no momento de traçar os gráficos das funções de onda, desprezando a influência dos demais harmônicos. Isso, porém, não compromete a descrição geral e o entendimento da combinação dos diferentes harmônicos na formação da onda sonora produzida pela flauta transversal. O mesmo poderá ser feito para os demais intrumentos de sopro, cordas ou membranas. Os resultados certamente são influenciados também pela forma de direcionar o jato de ar na cavidade da embocadura. Sons captados da flauta tocada por diferentes instrumentistas certamente apresentariam qualidades diferentes, o mesmo acontecendo quando tocadas flautas diferentes. De qualquer forma, o presente trabalho representa uma maneira rica de instrumentação dos conhecimentos de física, mais especificamente da acústica, com materiais de fácil acesso.

Referências

  • [1]
    N.H. Fletcher, Acoustic and Aerodynamic Determinants of the Sound Quality of Flutes (Acoustical Society of America, Cambridge, 1994).
  • [2]
    N.H. Fletcher and T.D. Rossing, The Physics of Musical Instruments (Springer-Verlag, New York, 1991).
  • [3]
    N.H. Fletcher, W.J. Strong and R.K. Silk, J. Acoust. Soc. Am. 71, 5 (1982).
  • [4]
    T. Boehm, The Flute and Flute Playing (Dover, New York, 1964), reprinted.
  • [5]
    P. Bate, The Flute (Ernest Benn, London, 1975).
  • [6]
    R.S. Rocksto, A Treatise in the Flute (Musica Rara, London, 1928).
  • [7]
    J. Wolfe, J. Smith, J. Tann and N.H. Fletcher, Journal of Sound and Vibration 243, 127 (2001).
  • [8]
    B.R. Parker, Good Vibrations: The Physics of Music(The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2009).
  • [9]
    D. Halliday, R. Resnick and J. Walker, Fundamentos de Física Vol. 2 (LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 1996), 4a ed.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2014
  • Aceito
    14 Nov 2014
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