Resumo
A Doença de Behçet é uma doença inflamatória caracterizada por úlceras genitais e orais recorrentes, uveítes e lesões cutâneas. O envolvimento arterial é raro, sendo mais comuns as degenerações aneurismáticas do que as oclusivas. Neste caso clínico, paciente do sexo feminino, em tratamento de doença de Behçet havia 20 anos, iniciou com dor abdominal progressiva por dois meses, com piora súbita importante, foi submetida à tomografia computadorizada, que mostrou pseudoaneurisma toracoabdominal. A paciente foi submetida a tratamento endovascular com sucesso.
Palavras-chave:
doença de Behçet; aneurisma aórtico; aneurisma dissecante; procedimentos endovasculares
Abstract
Behçet’s disease is an inflammatory disease characterized by recurrent oral and genital ulcers, uveitis and skin lesions. Arterial involvement is rare, but when present aneurysmal degeneration is more common than occlusive disease. This report describes the clinical case of a female patient who had been receiving treatment for Behçet’s disease for twenty years before presenting with abdominal pain that progressed for 2 months before suddenly worsening significantly. A CT scan revealed a thoracoabdominal pseudoaneurysm. She was successfully treated with endovascular repair.
INTRODUÇÃO
A Doença ou Síndrome de Behçet (DB) é uma doença inflamatória sistêmica caracterizada por úlceras urogenitais e orais recorrentes, uveítes e lesões cutâneas1. O envolvimento arterial ocorre em torno de 8% dos casos, sendo mais comuns as degenerações aneurismáticas do que as doenças oclusivas2,3. Foram relatados aneurismas em várias localizações arteriais, como: arco aórtico e artéria pulmonar4, tronco celíaco5,6, artéria mesentérica superior7, carótidas8, tronco braquiocefálico9, aorta abdominal10-12, artéria ilíaca13, artéria femoral profunda14 e artéria poplítea15. O acometimento aneurismático do segmento aórtico toracoabdominal foi pouco descrito11,13,16, assim como os pseudoaneurismas aórticos2,16. Assim, descrevemos o presente caso que foi tratado por meio da técnica endovascular com sucesso.
DESCRIÇÃO DO CASO
Paciente do sexo feminino, 36 anos de idade, negra, em tratamento de DB com reumatologista havia 20 anos e em uso contínuo de prednisona 20 mg/dia. Apresentava ainda hipertensão arterial sistêmica controlada, negava tabagismo, diabetes mellitus, infecções e traumas. Os sinais e sintomas apresentados pela paciente, característicos da DB, eram o histórico de úlceras orais dolorosas e úlceras e pústulas genitais recorrentes. Negava uveíte ou lesões cutâneas. Chegou ao Hospital referindo dor abdominal em região entre o mesogástrio e o epigástrio, iniciada havia cerca de dois meses, com piora progressiva ao longo do tempo. Quatro dias antes da internação, passou por atendimento médico em sua cidade, sendo submetida à Tomografia Computadorizada (TC) sem contraste, que mostrou a presença de um aneurisma toracoabdominal. Foi, então, encaminhada ao nosso Serviço.
No exame físico de admissão, apresentava-se hemodinamicamente estável, mucosa corada, com pressão arterial de 180/100 mmHg em ambos os membros superiores, com todos os pulsos periféricos simétricos. Ausculta cardíaca com bulhas normofonéticas e ausculta pulmonar sem ruídos adventícios. Não apresentava nenhum déficit neurológico. Exames laboratoriais de rotina, sem alterações. Foi realizada a angioTC contrastada, que evidenciou três dilatações saculares com 0,9 cm de diâmetro na porção proximal da aorta torácica (2,0 cm), aorta torácica descendente (1,0 cm) e aorta abdominal (1,0 cm). Apresentava também um pseudoaneurisma iniciando-se na transição toracoabdominal e chegando até 1,0 cm acima do tronco celíaco, com 7,0 × 7,8 cm de diâmetro, trombo mural e luz arterial comprimida (0,9 cm de diâmetro) (Figuras 1, 2 e 3).
Corte de angiotomografia computadorizada mostrando pseudoaneurisma aórtico toracoabdominal.
Corte angiotomográfico mostrando imagens de aneurismas saculares pequenos em porção inicial da aorta torácica.
Diante da dor abdominal importante com irradiação lombar e de um quadro de pseudoaneurisma aórtico espontâneo sintomático, foi indicado tratamento em regime de urgência. Havia opção de tratamento cirúrgico aberto ou endovascular, com uma endoprótese de aorta disponível no Serviço.
Com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente preenchido, a paciente foi submetida à correção endovascular do pseudoaneurisma de aorta. Por meio de acesso cirúrgico da artéria femoral comum direita e da artéria braquial esquerda, foi realizada aortografia com cateter de pigtail centimetrado (acesso femoral). Outro cateter pigtail foi introduzido na aorta torácica descendente pelo acesso braquial. Foi implantada a endoprótese disponível no Serviço ‒ extensão proximal tubular abdominal AFX 95X25MM – ENDOLOGIX®. A arteriografia de controle mostrou sucesso no implante da endoprótese, sem vazamentos. A paciente foi encaminhada à UTI, permanecendo sob cuidados intensivos por dois dias. Ao longo deste período, foi extubada precocemente, não necessitou de drogas vasoativas e não apresentou déficit neurológico. Recebeu alta hospitalar seis dias após o procedimento cirúrgico, com imagem de angioTC evidenciando sucesso na correção endovascular do pseudoaneurisma (Figuras 4 e 5). Em seguimento de 24 meses, a paciente foi acompanhada por meio de consultas ambulatoriais de rotina e TC de tórax, sem intercorrências.
Reconstrução 3D angiotomográfica mostrando a endoprótese corrigindo o pseudoaneurisma aórtico.
DISCUSSÃO
O diagnóstico de DB é feito pelos sintomas clínicos1, segundo os critérios estabelecidos pelo Grupo Internacional de Estudos da DB (Tabela 1). Esta paciente tinha diagnóstico e tratamento estabelecidos por reumatologista, e apresentava, como critérios diagnósticos, apenas as ulcerações orais e genitais recorrentes (um critério maior + um critério menor). As imagens dos aneurismas saculares múltiplos, em angioTC de nosso Serviço, reforçaram esse diagnóstico.
O envolvimento vascular na DB é estimado entre 7 e 29% dos casos, podendo acometer tanto o território arterial quanto venoso17,18. A artéria mais comumente acometida na DB é a aorta, seguida pelas artérias femorais e pulmonares4, sendo 65% por degenerações aneurismáticas e 35% por doenças oclusivas19. A aorta abdominal é o segmento aórtico mais acometido, sendo os aneurismas do tipo sacular os mais frequentes nos pacientes com DB20. A fisiopatologia do envolvimento vascular está relacionada com uma vasculite que determina oclusão da vasa vasorum e necrose da parede vascular, provocando seu enfraquecimento, que podem levar a sua dilatação ou oclusão21. Estudos imuno-histoquímicos confirmam presença de complemento e de imunoglobulinas nas camadas média e íntima das artérias10. A oclusão da vasa vasorum e/ou o hematoma intramural seriam os principais fatores apontados neste tipo de alteração aórtica22. O pseudoaneurisma do presente caso foi, possivelmente, formado por rotura de pequeno aneurisma sacular local, com o extravasamento sanguíneo contido. Na literatura, são raros os relatos de pseudoaneurismas espontâneos de aorta2, sendo mais comuns os anastomóticos após reconstruções aórticas abertas23. O tratamento clínico da DB consiste na terapia com corticoides e/ou imunossupressores, que podem proteger o paciente da agressão arterial inflamatória. No entanto, a paciente desenvolveu complicações vasculares a despeito de tratamento prolongado com corticoides. Com o desenvolvimento da cirurgia endovascular, esta passou a ser preferencial no tratamento cirúrgico nos casos de aneurismas arteriais, incluindo-se os relacionados com a DB2,10,24. Entretanto, não há consenso na literatura sobre esta indicação. A presença de sintomas importantes, que não tiveram remissão com tratamento clínico, e o risco de ruptura foram determinantes para indicação de tratamento em regime de urgência. Neste caso, foi utilizada extensão longa tubular proximal de endoprótese abdominal devido à falta de dimensões adequadas de endopróteses torácicas disponíveis no momento do tratamento. O principal inconveniente deste seria o comprimento mais curto do sistema de entrega destas extensões proximais abdominais, o qual não foi determinante, neste caso, devido ao fato de a paciente ser brevilínea. O comprimento deste sistema de entrega foi adequado e a endoprótese adaptou-se bem à aorta toracoabdominal, uma vez que o seu comprimento e o diâmetro estavam de acordo com a necessidade.
Rotineiramente, antiplaquetários devem ser prescritos após o tratamento endovascular dos aneurismas aórticos25. Por outro lado, o controle clínico da DB dependerá do grau de atividade da doença de base e da adequação nas doses dos corticoides e imunossupressores. Alguns autores sugerem manutenção rotineira de imunossupressão para se evitar a recorrência de pseudoaneurismas nas extremidades das endopróteses2,23.
CONCLUSÃO
As alterações aneurismáticas e pseudoaneurismáticas arteriais, como parte da DB, não são frequentes, mas, com base nos relatos da literatura, o tratamento endovascular tende a ser uma opção cada vez mais utilizada. O tratamento endovascular foi, neste caso, uma opção adequada e eficaz.
-
Fonte de financiamento: Nenhuma.
-
O estudo foi realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Botucatu, SP, Brasil.
REFERÊNCIAS
- 1 International Study Group for Behcet’s Disease. Criteria for diagnosis of Behcet’s disease. Lancet. 1990;335(8697):1078-80. PMid:1970380.
-
2 Liu CW, Ye W, Liu B, Zeng R, Wu W, Dake MD. Endovascular treatment of aortic pseudoaneurysm in Behcet disease. J Vasc Surg. 2009;50(5):1025-30. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2009.06.009. PMid:19660895.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2009.06.009 -
3 Alpagut U, Ugurlucan M, Dayioglu E. Major arterial involvement and review of Behcet’s disease. Ann Vasc Surg. 2007;21(2):232-9. http://dx.doi.org/10.1016/j.avsg.2006.12.004. PMid:17349371.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.avsg.2006.12.004 -
4 Yuan S-M. Pulmonary artery aneurysms in Behçet disease. J Vasc Bras. 2014;13(3):217-28. http://dx.doi.org/10.1590/jvb.2014.041.
» http://dx.doi.org/10.1590/jvb.2014.041 -
5 Azghari A, Belmir H, Bouayad M, et al. Coeliac trunk aneurysm revealing Behçet disease (2 case reports). J Mal Vasc. 2009;34(5):362-5. http://dx.doi.org/10.1016/j.jmv.2009.05.004. PMid:19720484.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.jmv.2009.05.004 -
6 Ullery BW, Pochettino A, Wang GJ, Jackson BM, Fairman RM, Woo EY. Celiac artery aneurysm repair in Behcet disease complicated by recurrent thoracoabdominal aortic aneurysms. Vasc Endovascular Surg. 2010;44(2):146-9. http://dx.doi.org/10.1177/1538574409357247. PMid:20089553.
» http://dx.doi.org/10.1177/1538574409357247 -
7 Hafsa C, Kriaa S, Zbidi M, et al. Superior mesenteric artery aneurysm revealing a Behçet disease: a case report. Ann Cardiol Angeiol. 2006;55(5):291-3. http://dx.doi.org/10.1016/j.ancard.2006.04.001. PMid:17078268.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.ancard.2006.04.001 -
8 Bouarhroum A, Sedki N, Bouziane Z, et al. Extracranial carotid aneurysm in Behcet disease: report of two new cases. J Vasc Surg. 2006;43(3):627-30. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2005.09.049. PMid:16520185.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2005.09.049 - 9 Kato E, Isobe Y, Mizuno A, et al. A case of Behçet disease with multiple nodular shadows and aneurysm of the brachiocephalic trunk caused by necrotizing vasculitis. Nihon Kokyuki Gakkai Zasshi. 2006;44(2):111-6. PMid:17228804.
-
10 Belczak SQ, Aun R, Valentim L, Sincos IR, Nascimento LD, Puech-Leão P. Tratamento endovascular de aneurismas da aorta em pacientes com doença de Behçet: relato de dois casos. J Vasc Bras. 2010;9(2):89-94. http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492010000200014.
» http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492010000200014 -
11 Kwon TW, Park SJ, Kim HK, Yoon HK, Kim GE, Yu B. Surgical treatment result of abdominal aortic aneurysm in Behcet’s disease. Eur J Vasc Endovasc Surg. 2008;35(2):173-80. http://dx.doi.org/10.1016/j.ejvs.2007.08.013. PMid:17964825.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.ejvs.2007.08.013 -
12 Kalko Y, Basaran M, Aydin U, Kafa U, Basaranoglu G, Yasar T. The surgical treatment of arterial aneurysms in Behcet disease: a report of 16 patients. J Vasc Surg. 2005;42(4):673-7. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2005.05.057. PMid:16242553.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2005.05.057 - 13 Rampoldi V, Righini P, Trimarchi S, Tolva V, Bonandrini L. Single stage repair of symptomatic type IV thoracoabdominal aortic and iliac aneurysm in Behcet’s disease. Case report. J Cardiovasc Surg (Torino). 2001;42(5):691-4. PMid:11562603.
-
14 O’Leary EA, Sabahi I, Ricotta JJ, Walitt B, Akbari CM. Femoral profunda artery aneurysm as an unusual first presentation of Behcet disease. Vasc Endovascular Surg. 2011;45(1):98-102. http://dx.doi.org/10.1177/1538574410379655. PMid:20810402.
» http://dx.doi.org/10.1177/1538574410379655 - 15 D’Alessandro GS, Machietto RF, Silva SM, et al. Popliteal artery aneurysm as a manifestation of decompensated Behçet’s disease. J Vasc Bras. 2006;5:215-9.
-
16 Ohira S, Masuda S, Matsushita T. Nine-year experience of recurrent anastomotic pseudoaneurysms after thoracoabdominal aneurysm graft replacement in a patient with behcet disease. Heart Lung Circ. 2014;23(10):e210-3. http://dx.doi.org/10.1016/j.hlc.2014.05.009. PMid:25017043.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.hlc.2014.05.009 -
17 Park JH, Chung JW, Joh JH, et al. Aortic and arterial aneurysms in behcet disease: management with stent-grafts--initial experience. Radiology. 2001;220(3):745-50. http://dx.doi.org/10.1148/radiol.2203001418. PMid:11526277.
» http://dx.doi.org/10.1148/radiol.2203001418 -
18 Silva OF Jr, , Araújo RHS, Freire EAM, et al. Doença de Behçet cursando com trombose de veia cava superior. J Vasc Bras. 2006;5(1):74-7. http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492006000100015.
» http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492006000100015 - 19 Koc Y, Gullu I, Akpek G, et al. Vascular involvement in Behcet’s disease. J Rheumatol. 1992;19(3):402-10. PMid:1578454.
-
20 Park JH, Han MC, Bettmann MA. Arterial manifestations of Behcet disease. AJR Am J Roentgenol. 1984;143(4):821-5. http://dx.doi.org/10.2214/ajr.143.4.821. PMid:6332492.
» http://dx.doi.org/10.2214/ajr.143.4.821 -
21 Matsumoto T, Uekusa T, Fukuda Y. Vasculo-Behcet’s disease: a pathologic study of eight cases. Hum Pathol. 1991;22(1):45-51. http://dx.doi.org/10.1016/0046-8177(91)90060-3. PMid:1985077.
» http://dx.doi.org/10.1016/0046-8177(91)90060-3 -
22 Pereira AH. Ruptura dos vasa vasorum e hematoma intramural da aorta: um paradigma em mudança. J Vasc Bras. 2010;9(2):57-60. http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492010000200008.
» http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492010000200008 -
23 Kim SW, Lee Y, Kim MD, et al. Outcomes of endovascular treatment for aortic pseudoaneurysm in Behcet’s disease. J Vasc Surg. 2014;59(3):608-14. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2013.09.052. PMid:24246540.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.jvs.2013.09.052 -
24 Kim WH, Choi D, Kim JS, Ko YG, Jang Y, Shim WH. Effectiveness and safety of endovascular aneurysm treatment in patients with vasculo-Behcet disease. J Endovasc Ther. 2009;16(5):631-6. http://dx.doi.org/10.1583/09-2812.1. PMid:19842735.
» http://dx.doi.org/10.1583/09-2812.1 -
25 Walker TG, Kalva SP, Yeddula K, et al. Clinical practice guidelines for endovascular abdominal aortic aneurysm repair: written by the Standards of Practice Committee for the Society of Interventional Radiology and endorsed by the Cardiovascular and Interventional Radiological Society of Europe and the Canadian Interventional Radiology Association. J Vasc Interv Radiol. 2010;21(11):1632-55. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvir.2010.07.008. PMid:20884242.
» http://dx.doi.org/10.1016/j.jvir.2010.07.008