Open-access Estudos de Saúde Mental publicados nos últimos 25 anos na Revista Ciência & Saúde Coletiva

Resumo

Realizou-se revisão sistemática de 25 anos de produção da Revista Ciência & Saúde Coletiva sobre a temática de Saúde Mental buscando responder se essa produção tinha se modificado ao longo do tempo. Perguntou-se se essas mudanças guardariam alguma relação com a implementação de um novo marco regulatório e legal para essa área assim como com a expansão de serviços públicos e com os estímulos à investigação do tema por Agencias Públicas de financiamento. Analisaram-se 278 artigos originais, apresentados a partir das categorias: transformações socioculturais relacionadas à loucura e sua abordagem; mudanças legislativas; implantação, capilaridade e funcionamento da rede de serviços substitutivos; clínica/cuidado desenvolvido nos serviços substitutivos; o papel e as possibilidades da atenção básica; problemas relacionados ao uso de drogas; saúde mental de crianças e adolescentes; estudos epidemiológicos/categorias psiquiátricas; e outros - nas quais foram incluídas as questões étnico-raciais, de violência, acerca da população idosa, suicídio, bullying e migração. Pode ser observada relação cronológica entre o aumento de publicações e os editais de pesquisa e a expansão de serviços, não parecendo ser da mesma forma em relação ao tema dos cuidados a pessoas com problemas com álcool e outras drogas.

Palavras-chave:
Saúde mental; Revisão sistemática; Políticas públicas de saúde

Abstract

A systematic review of the 25-year Mental Health production of Journal Ciência & Saúde Coletiva was performed to identify whether this production had changed over time. We investigated whether these changes would have any relationship with the implementation of a new regulatory and legal framework for this field and the expansion of public services and the promotion of public funding agencies’ investigation on the subject. A total of 278 original papers were analyzed from the following categories: sociocultural transformations related to madness and its approach; legislative changes; implantation, coverage range and operation of the network of substitute services; clinic/care developed in substitute services; the role and possibilities of primary care; drug use-related problems; mental health of children and adolescents; epidemiological studies/psychiatric categories; and others - which included ethnic-racial issues, violence, about the elderly population, suicide, bullying, and migration. A chronological relationship can be observed between the increase in publications and research notices and the expansion of services, not seemingly in the same way concerning care for people with alcohol and other drug problems.

Introdução

A literatura internacional sobre a carga de doenças mentais nas sociedades contemporâneas aponta preocupante gap de mortalidade das pessoas com transtornos mentais1. A diminuição desse gap foi colocada pela Organização das Nações Unidas como um dos objetivos do milênio2. Para isso, insta-se aos governos a diminuírem o estigma, a aumentarem o acesso aos serviços de saúde em geral e a vincularem aos serviços de saúde mental (SM), em particular.

Processos de reforma assistencial na SM foram desenvolvidos por inúmeros países ocidentais, com ritmos diferentes, porém com um rumo comum: a inclusão da SM como componente ineludível da saúde geral, a substituição dos hospitais monovalentes asilares por serviços comunitários e o investimento no recovery dos pacientes e no combate ao estigma3.

Os últimos 25 anos foram cenários de grandes mudanças institucionais e políticas no Brasil. Nesse período, o país também avançou em seu processo democrático. Muito jovem, em 1995, a democracia brasileira, depois de 7 eleições presidenciais, encara hoje um desafio inédito. O Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentou desde seus primórdios crises de financiamento e de desenvolvimento regional, mesmo assim, é hoje a principal cobertura de saúde de 75% dos brasileiros4. A implementação de uma política pública de Saúde Mental (SM) tem sido responsável pelas mudanças nas concepções socioculturais sobre a loucura, com a instalação de novos serviços e reformas do modelo assistencial5.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira teve nesse período um importante avanço. Fechamento de leitos asilares, abertura de novos serviços comunitários e aprovação da lei nº 2.016, que em 2001 garantiu um marco jurídico para o processo. Contudo, houve também retrocessos nessa démarche após a crise institucional que derrubou a presidenta da República em 20166. Considerando o período de análise, identificamos os principais acontecimentos em termos de direcionamento das políticas e de fomento ao desenvolvimento da ciência e tecnologia, a partir dos quais buscamos verificar se houve relação entre esses eventos e as publicações.

Nos anos 2000, 2002, 2010 e 2011 foram publicadas portarias que instituíram os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em diferentes modalidades, e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Em 2001 ocorre a aprovação da Lei nº 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, e a realização da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental. Especificamente, acerca da política sobre drogas, a Lei nº 11.343, que cria o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre drogas, foi aprovada em 2006, em 2009 a Portaria que instituiu o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas e em 2010 o Decreto nº 7.179 que cria o Programa de Enfrentamento ao Crack e a Portaria 2.841 que regulamenta o CAPS álcool e outras drogas tipo III (CAPSad III). Nos anos 2006, 2008 e 2009 foram publicados editais do Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS) Saúde Mental. A partir de 2016 são publicadas as Portarias nº 1.482/2016 e nº 3.588/2017 que, respectivamente, incluem as Comunidades Terapêuticas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde e o ambulatório especializado, hospital-dia, hospital psiquiátrico e CAPS álcool e outras drogas tipo IV (CAPSad IV) na RAPS; além da Lei nº 13.840/2019, que Reformula Sisnad e exclui redução de danos das diretrizes da Política sobre Drogas.

A Revista Ciência & Saúde Coletiva , da Abrasco, veio ao longo desse período consolidando sua posição no campo, até se configurar hoje em uma das mais citadas e referenciadas da área da saúde coletiva no Brasil. Nesse marco, nos propusemos a fazer a seguinte pergunta guia para nossa revisão sistemática: Houve mudanças temáticas e metodológicas das publicações sobre SM na Revista Ciência & Saúde Coletiva ao longo dos últimos 25 anos? Se sim, é possível estabelecer alguma relação entre elas e as mudanças nos marcos regulatórios e de estímulo à pesquisa? Como se configura o hoje o campo da SM na Saúde Coletiva Brasileira?

Metodologia

A busca pelos artigos foi realizada entre fevereiro e março de 2020, sendo considerados os trabalhos publicados na Revista Ciência & Saúde Coletiva de 1999 a março de 2020. Para a busca dos artigos foram utilizados os descritores “CAPS or Centros de Atenção Psicossocial or Psychosocial Care Center"; “SM or Mental Health"; “Reforma Psiquiátrica or Psychiatric Reform"; “Reabilitação Psicossocial or Psychosocial Rehabilitation"; “Centros Comunitários de SM or Psychosocial Care Centers". Foram encontrados 585 artigos no SciELO e 349 no PubMed, somando 934. Inicialmente foram excluídos os trabalhos repetidos, restando 329 artigos. Numa segunda fase foi realizada uma busca pelo sumário da revista. Foram encontrados mais 32 artigos para análise, em sua maioria, relativos às questões de violência, saúde mental de crianças e adolescentes e problemas relacionados ao uso de drogas, totalizando 361 artigos. Na terceira fase da seleção, uma nova varredura visou excluir artigos que não respondiam às questões guia. Foram retirados 83 itens, chegando-se ao total de 278 artigos.

Os 278 artigos foram lidos e sistematizados em um quadro contendo dados de identificação: ano de publicação, nome do estudo, autores, instituição, estado das instituições, tipo de estudo, desenho, local de desenvolvimento da pesquisa, principais achados e conclusões. Essa sistematização foi realizada pelo conjunto dos pesquisadores e contou com validações on line. Artigos com dúvida sobre sua classificação foram relidos por mais de um pesquisador até chegar a um consenso (Figura 1). Os dados e análises obtidos são descritos a seguir.

Figura 1
Processo de seleção dos artigos analisados.

Resultados

Em relação às temáticas específicas de saúde mental (Gráfico 1), artigos sobre levantamentos epidemiológicos de problemas mentais específicos e que versavam sobre transformações socioculturais relacionadas à loucura e à sua abordagem totalizaram 51 e 48 artigos, respectivamente. Estes, juntamente com os 43 artigos que abordavam, descreviam ou avaliavam os cuidados desenvolvidos nos serviços substitutivos, representam a grande maioria das temáticas ao longo destes 25 anos.

Gráfico 1
Número de artigos publicados por temática específica no campo da saúde mental (n = 278 artigos).

Em seguida vêm as temáticas sobre a implantação e a capilaridade da rede de serviços substitutivos e as que falam do papel e das possibilidades da saúde mental na Atenção Básica, com 28 artigos cada. Temas mais específicos e de tradicional divisão do campo da saúde mental, como Saúde Mental Infanto-juvenil e problemas relacionados ao álcool e outras drogas, tiveram 28 e 19 trabalhos respectivamente.

Foram consideradas como “outros" as temáticas relacionadas à: saúde mental no sistema prisional, saúde mental na saúde suplementar, saúde mental dos trabalhadores, estruturação de redes de saúde de outros países, análise de raça e cor sobre a saúde mental, pesquisas no campo da saúde mental, saúde mental da população idosa.

Nos seus 25 anos de existência, o periódico publicou 5.033 artigos e o ano que se destacou como o de maior ocorrência de artigos com o foco em saúde mental foi 2011, com 40 (0,8% do total), seguido de 2009 e 2013, com 34 (0,7%) e 31 (0,6%) artigos, respectivamente (Gráfico 2).

Grafico 2
Número de artigos com temas relacionados à Saúde Mental publicados por ano (n = 278 artigos).

A partir de 2009 vemos um crescimento substancial das publicações na revista. Somente nesse ano houve mais publicações do que nos dez anos anteriores. Este crescimento não foi pontual e o ano de 2009 parece demarcar uma mudança do patamar quantitativo de publicações voltadas para a saúde mental. Neste período podemos observar as publicações de Editais de fomento do Ministério da Saúde/CNPq Programa Pesquisas para o SUS (PPSUS) que priorizaram a área da SM nos anos de 2006, 2008 e 2009. O aumento de publicações pode estar relacionado com esse estímulo à produção do conhecimento e, obviamente, à imensa expansão de serviços ocorrida nesses anos, cujas normatizações parecem refletir, da mesma forma, picos nas produções5.

O Gráfico 3 foi o resultado do agrupamento dos trabalhos publicados de acordo com o tipo de estudo relatado pelos pesquisadores. A maioria dos trabalhos analisados utiliza metodologias qualitativas. Os 123 estudos qualitativos analisados representam quase 45% de todos os trabalhos publicados envolvendo a temática da saúde mental.

Grafico 3
Número de artigos publicados de acordo com o tipo/modalidade de estudo (n = 278 artigos).

Os estudos que utilizaram metodologias quantitativas vieram em seguida, em termos de frequência, com 76 (27%) ao todo. Apenas 9 (3%) estudos aplicavam tanto metodologias qualitativas como quantitativas. Enquanto que 42 (15%) eram artigos de revisão e outros 28 (10%) foram classificados como teóricos ou de opinião.

No Gráfico 4 são analisadas as regiões de origem dos autores dos trabalhos publicados. Muitos trabalhos possuíam mais de um autor e mais de uma instituição envolvida, mas, por outro lado, como foram retirados desta análise os artigos com autores de origem exclusiva internacional, o número total que vemos na tabela é menor que o total de artigos lidos nesta revisão. Portanto, o contabilizado no gráfico é o número de instituições nacionais por região envolvidas na publicação dos artigos avaliados. Assim, autores provenientes de Instituições do Sudeste foram citados 159 vezes nos trabalhos avaliados, significando 58% das citações. As Instituições do Nordeste vieram em segundo lugar com 20% das citações, seguida da Região Sul com 18%. As Instituições da Região Centro Oeste foram citadas 3% das vezes e a Região Norte apenas 1%. Todas as Instituições que constavam como origem dos autores eram públicas e sua grande maioria universidades públicas brasileiras. Dos 278 estudos, 28 tinham como autoria pesquisadores de outros países (México, Colômbia, Canadá, Inglaterra, Israel, Espanha, Argentina, Austrália e Portugal), seja sozinhos ou em coautoria com os autores brasileiros.

Grafico 4
Número de intituições nacionais envolvidas por artigos publicados de acordo com a origem institucional dos autores (Região Geográfica).

Cada categoria foi analisada posteriormente com vistas a observar possíveis tendências e mudanças ao longo dos anos. A seguir, discutimos os resultados obtidos a partir de cada uma delas, especificamente.

Transformações socioculturais relacionadas à loucura e sua abordagem

Podemos afirmar que a sanção da chamada Lei de Saúde Mental, marca o começo da produção bibliográfica neste campo. Com início em 2001, as publicações mantêm a média de 2/ano até 2008, com destaque para temática da cidadania7,8, do movimento social e militância em SM9,10, mudanças no cuidado e prática clínica11,12, saúde do trabalhador de SM13,14, representações na mídia15 e transformações no ensino16. No ano de 2009, os artigos trataram da Reforma Psiquiátrica trazendo contrapontos entre o modelo manicomial e as concepções biológicas da saúde mental. Temas como cidadania, redes de suporte social e cuidado territorial foram discutidos, enfatizando-se a importância da implementação de serviços substitutivos e a implantação da legislação para redirecionar o modelo de atenção17-20. A participação social aparece como tema correlato à construção de políticas de saúde, apontando-se a necessidade de se superar desafios relacionados à representatividade, legitimidade e participação21. O período 2011-2013 concentra a metade das publicações desta categoria (22 artigos), com destaque para a participação de usuários no desenvolvimento de pesquisas em SM22-24 e nas políticas e práticas25,26. A estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM) e do recovery fazem-se presentes27. De 2014 a 2019, os estudos refletiram sobre os avanços no modelo assistencial e na sociedade com relação ao tema da SM, apontando importantes retrocessos nas políticas públicas da área nos últimos anos. É destacada a necessidade de se ampliar os estudos sobre relações familiares, condições de moradia e renda, direito à saúde e trabalho28,29.

Mudanças legislativas

A primeiras publicações referentes a essa categoria são de 2009 e abordam os avanços na implantação de políticas de SM e a participação social como estratégia para construção da reforma30, assim como a necessidade de avançar a Lei nº 10.216 em consonância com os princípios e as diretrizes do SUS31. A interface entre SM e justiça, no âmbito do judiciário e da atenção às pessoas em conflito com a lei, é abordada em 201432 e, em 2016, artigos discutem a redução de danos tomada como paradigma ético, clínico e político, a partir da política de drogas33, e apontam uma mudança paulatina de modelos normativos sobre os problemas com drogas, superando a visão psiquiátrica rumo ao modelo psicossocial34.

Implantação, capilaridade e funcionamento da rede de serviços substitutivos

De 2001 a 2009, os artigos versam sobre dificuldades na implementação da SM no cotidiano dos serviços e o convívio com práticas características de instituições asilares, resgatando a perspectiva dos trabalhadores sobre a produção das práticas nos serviços35,36. Alguns artigos avaliaram a rede de SM de regiões e municípios, discutindo municipalização, importância da gestão, capacitação de equipes e participação social37,38. Cerca de 40% dos artigos deste eixo foram publicados em 2011, e entre eles constam discussões sobre satisfação no trabalho em SM e suas relações com questões internas e externas aos serviços39, o papel da psiquiatria na reforma psiquiátrica40, a importância da infraestrutura e da equipe nos CAPS41, particularidades do funcionamento da rede a partir de uma organização não governamental42 e a importância da articulação entre entes federativos. Outros 40% estão compreendidos entre 2013 e 2019. Diversos pontos são discutidos nesse período, como: sofrimento moral dos trabalhadores43, consolidação de uma rede de serviços especializados no SUS para autistas44 e baixa coordenação estadual dos CAPS, produzindo discrepâncias de cobertura e de funcionamento entre os diferentes municípios45.

Estão presentes pesquisas avaliativas, sobre acesso aos serviços para problemas com drogas46 e RAPS locais47, indicando que as avaliações dos serviços de SM devem estender-se para além da comparação com o modelo hospitalocêntrico48, sendo constatada uma centralidade do CAPS ad na rede de atenção aos usuários de drogas. A partir de uma perspectiva histórica, Almeida e Campos49 abordaram a relação entre as mudanças políticas municipais, a constituição do SUS e a atenção às questões de saúde mental, com ênfase nos movimentos sociais, de trabalhadores, usuários e familiares. Os trabalhos são críticos à estruturação do processo de trabalho na rede de atenção psicossocial. O referencial teórico foi o da reforma psiquiátrica brasileira e a defesa pelos cuidados em liberdade, em que os pesquisadores refletiram criticamente sobre como essa rede estava sendo construída. É recorrente o reconhecimento da potência da rede substitutiva e da ampliação do acesso que dela adveio. Entretanto, as dificuldades apontadas são de base estrutural, como insuficiência de recursos humanos e/ou falta de capacitação profissional. Enquanto os CAPS são vistos como grande avanço, as pesquisas também acrescentaram novos desafios: estigma, preconceito e tutela continuam presentes e práticas manicomiais persistem nos serviços substitutivos50-55.

Clínica/cuidado desenvolvido nos serviços substitutivos (CAPS e RAPS)

Apontam-se consensos: mudança de uma visão psiquiátrica para um modelo psicossocial, precisando ainda de maior amplitude das ações quando comparada a outros países. A falta de estrutura da RAPS e os bons resultados do apoio matricial como modelo de integração entre CAPS e UBS são aspectos centrais em grande parte desses estudos. A prevalência de sofrimento psíquico nas equipes e nos familiares também foram pontos abordados. Publicação de 2006 aponta dificuldades na implementação da clínica dos serviços substitutivos. O convívio com práticas asilares e novos tipos de cronicidade foram foco de alguns estudos56-58. Nos anos posteriores são abordadas estratégias de cuidado59 e o enfoque sob a dimensão de gênero42,60-63. Mais da metade das publicações relativas a esse eixo ocorreu entre 2011 e 2015. Dentre os conteúdos, observou-se associação entre a crescente ampliação dos CAPS e da atenção psicossocial na Atenção Básica, com diminuição das taxas de internação em alguns períodos e regiões, apontando para a relevância da articulação entre os serviços, as famílias e as comunidades64. A falta de consenso entre movimentos sociais, trabalhadores e formuladores foi debatida e propostas para a participação de maior número de atores foram apontadas. A necessidade de construção de aliança entre usuários e profissionais, mas também entre usuários e academia para horizontalização do cuidado, fortalecimento do combate ao estigma, formulação de consensos sobre boas práticas e denúncia à crescente medicalização da vida são algumas reflexões42,62,65-67.

A necessidade de suporte social e a relevância dos CAPS para o processo de inclusão foram aspectos reconhecidos na clínica, com destaque à intervenção familiar68,69. A ambiguidade apresentada pelas famílias e pelos serviços no suporte vs. tutela, também foi levantada70,71.

Alguns artigos abordam o Acompanhamento Terapêutico e o trabalho com grupos nos CAPS. As discussões consideraram o modelo de atenção territorial com vistas à integralidade72-74. Artigos alertaram para a adaptação das ofertas para as singularidades das demandas e das experiências socioculturais dos usuários75-77. Salienta-se a necessidade de maior investimento em pesquisa, formulação de políticas e implementação de cuidado à população idosa78. A formação de profissionais e as condições para exercer ações qualificadas nos serviços substitutivos também foram abordados79-81. A importância das estratégias de apoio aos familiares na RAPS foi apontada, recomendando-se educação permanente82,83, sendo reiterada a relevância da avaliação de serviços a partir da satisfação de usuários.

O papel e as possibilidades da Atenção Básica (AB)

A primeira publicação se deu em 2001, apontando a lógica biomédica reproduzida por profissionais e familiares e reforçada pela insuficiência do sistema público de SM local84. Apenas 8 anos depois voltaram a aparecer publicações. A relação entre CAPS e PSF/ESF foi um tema recorrente nos artigos, discutindo-se integralidade do cuidado, articulação em rede, dificuldades de desenvolvimento da atenção em SM na Atenção Básica, papel do Agente Comunitário de Saúde nos casos de SM e superação do modelo biomédico85-90.

A SM infantojuvenil na AB também foi objeto de estudos, evidenciando dificuldades em reconhecer, avaliar, tratar e encaminhar situações91-93. A avaliação de prevalência e de padrão de consumo de psicofármacos em unidade PSF revelou a relevância da AB para melhorar o acesso e o uso racional de medicamentos94. O Apoio Matricial foi considerado importante para a implementação e a qualificação do cuidado psicossocial95-102. No biênio 2015-6 os estudos reconhecem a potencialidade da Atenção Primária para o acompanhamento de SM, favorecida pelo vínculo com a população. Contudo, observam a persistência de práticas de cuidado coletivas e singularizadas concomitantemente à manutenção da lógica biomédica103-105. Conexões entre clínica, contexto social e cultural para as intervenções de SM na AB foram apontadas106. De 2018 a 2020, as redes de apoio são prevalentes como tema, apontando-se a prevenção e o acompanhamento de pessoas com Transtornos Mentais Comuns107, o suporte para os usuários da SM108, a função do NASF junto às UBS98 e o Apoio Matricial109.

Problemas relacionados ao uso de drogas

O número de artigos desta temática (19) é pequeno em comparação ao total (278), correspondendo a 6,8%. As publicações são esparsas, sendo publicados de 1 a 3 artigos sobre o tema por ano, com períodos sem nenhuma publicação. Não foi percebido aumento das publicações relacionado ao investimento do governo federal no programa “Crack, é possível vencer"110. Vários estudos têm uma visão estigmatizante dessa população, mantendo um enfoque psiquiátrico. A perspectiva da Redução de Danos, consolidada como estratégia no cenário internacional, tímida nas iniciativas do governo nacional, foi tema de apenas um artigo111, que destaca a garantia dos direitos humanos e a inclusão social dos usuários de drogas, ao passo que houve avanço na atenção dos policy makers. Vários trabalhos apontam dificuldades de mensuração de resultados, abrangência e eficácia da Redução de Danos, sugerindo investimento em avaliações. Um estudo retoma o processo histórico da Política de Álcool e Outras Drogas no Brasil, tendo em vista os atravessamentos políticos, sociais e clínicos, apontando a necessidade de financiamento e acompanhamento das ações112. Outros estudos também consideraram as ações preventivas pontuais e descontinuadas113-117. Problemas relacionados a diversas substâncias psicoativas foram analisados: uso abusivo de álcool118, tabaco e medicamentos psicotrópicos113, maconha119 e drogas injetáveis120. Evidenciou-se a importância da detecção precoce e de sua associação com fatores sociodemográficos para direcionar as estratégias de prevenção121. Mudanças na abordagem dos profissionais, maior adesão às metodologias interativas e fomento da intersetorialidade entre saúde e educação também foram salientadas122,123.

SM de crianças e adolescentes

A partir de 2010 cresce o número de publicações sobre a SM de crianças e adolescentes. O tema é abordado a partir de um leque diversificado de aspectos, sendo mais numerosos aqueles relacionados à violência sofrida pelo público infantojuvenil53,124-129; caracterização de jovens em conflito com a lei e as condições das instituições de medidas socioeducativas (MSE)112,130-132; políticas de SM e tipo de tratamento oferecido pelos serviços substitutivos33,133-137. Entre os anos 2000-2010 destacam-se estudos que ressaltam a necessidade de prevenção de suicídio. Também é salientada a importância de investimento na formação de professores127. A violência volta a ser discutida entre 2011-2015, destacando-se discussões de fatores no desenvolvimento e na SM, a necessidade de atenção para a SM das mães, conflitos familiares e precariedade socioeconômica128,138,139. Outro aspecto reiterado foi a SM de jovens em conflito com a lei, reconhecendo a precariedade das instituições responsáveis, denunciando a manutenção da lógica manicomial nas instituições de MSE130; e a alta prevalência de transtornos mentais nesse público112. Identifica-se, ainda, um estudo sobre o bullying140 e outro sobre a construção de rede de cuidados territorial133. Tszesnioski et al.133 identificaram que as crianças possuíam vínculos mais fortes com agentes comunitários de saúde e profissionais de creche do que com os serviços de SM. É no período entre 2016-2020 que encontramos maior número de estudos sobre as políticas de SM voltadas para crianças e adolescentes, apontando avanços, mas também reforçando a necessidade de maiores investimentos em termos de efetividade dos serviços e de acesso a informações e cuidados134-137.

Artigo aborda crianças que sofrem violência sexual129; outro associa violência, bullying e uso de substâncias psicoativas entre adolescentes53. Os jovens em conflito com a lei voltam a ser abordados, apontando-se baixa oferta de tratamento em CAPSad e CAPSi131; e as demandas de SM desse público132. Outro tema foi o modo como crianças e adolescentes experimentam as crises psicossociais, destacando-se a necessidade de que os CAPSi ofereçam espaços de elaboração141. Há também levantamento das condições sociais e emocionais de mães, a baixa escolaridade influenciando as dificuldades na constituição do vínculo com o bebê121. E, finalmente, um artigo aborda os Transtornos do Espectro Autista e as limitações dos serviços do SUS para lidar com essa demanda135.

Estudos epidemiológicos/categorias psiquiátricas

Grande parte dos estudos são descritivos, medem prevalências de transtorno mental, embora cada um deles trabalhe com públicos específicos ou em contextos singulares. Outra parte apresenta pesquisas quantitativas sobre diferentes condições de saúde, índices de violência, qualidade de vida, oferta e uso de serviços de saúde e traçam relações de associação simples. Foram mais numerosas as pesquisas sobre prevalência de transtorno mental em idosos142-147; em profissionais de saúde148-151; e em pessoas institucionalizadas152-154, publicações que crescem a partir de 2009. Alguns abordaram a exposição de crianças a situações de violência155,156. Prevalência de transtornos psiquiátricos em profissionais de saúde da AB148; e condições de saúde bucal em moradores de Serviços Residenciais Terapêuticos157. As temáticas se repetem entre 2011 e 2015, tais como a SM de profissionais de saúde149-151 ou a prevalência de transtornos mentais em pessoas institucionalizadas153,158. A gama de temas é bastante diversa, sendo a originalidade e a abrangência de muitos estudos baixa. Essa categoria cresce quantitativamente a partir de 2016, podendo apontar certa facilidade relativa dos estudos quantitativos para serem publicados na Revista.

Outros

Trata-se de um grupo com temas bastante diversificados que apontam para a necessidade de maiores investimentos em pesquisa, como é o caso das relações entre SM e questões étnico-raciais e de gênero60; e da relação entre condições de vida nas favelas e SM159. Dois temas que se repetiram, indicando que a comunidade acadêmica já reconhece sua importância. A investigação científica em SM começa a ser tematizada, na análise do investimento do Ministério da Saúde em pesquisa e desenvolvimento160. Houve também artigo sobre a construção de indicadores avaliativos de políticas de atenção à saúde da pessoa idosa vítima de acidentes e violência161. Dois artigos trataram da questão da SM do trabalhador162,163. Em 2011 há um conjunto de artigos que analisa a Reforma Psiquiátrica nos contextos mundial164 e brasileiro, as políticas de SM brasileiras e seu processo de implementação, os entraves, os desafios e as conquistas que lhe foram inerentes165-171.

São publicadas também discussões acerca de metodologia de pesquisa em SM172, indo do uso de narrativas173 à relação entre pesquisa e clínica174; da adoção de técnicas de entrevistas coerentes com o ideário da Reforma Psiquiátrica175 até abordagens etnográficas176. Destaca-se ainda, artigo que versa sobre a participação de usuários de SM no ensino de psicopatologia24. Há artigos que abordam o trabalho em SM no contexto de desastres socioambientais177,178; bem como trabalhos sobre determinantes sociais da SM em favelas159; a oferta de serviços de SM pela saúde suplementar179; religiosidade e SM180; sistema penal e SM32; vigilância da saúde do trabalhador e SM181; e representação social do terapeuta comunitário no SUS182. Entre 2016 e 2020, o trabalho de SM em contextos de desastres volta a ser discutido183. Artigos abordam a SM e a depressão na população idosa184,185, enquanto outros discutem questões raciais186, mobilidade social e transtornos mentais em adultos187 e intervenções de SM em migrantes expostos à violência em seus países de origem188.

Discussão

Podemos afirmar que o estabelecimento da política pública de saúde mental, bem como o acompanhamento dos serviços que compõem a RAPS, em particular, incluídos os entraves da assistência comunitária frente à determinação de fatores como estigma e discriminação têm sido tema crescente nos últimos anos, notadamente desde 2009, o que aponta para a área de SM como profícua no campo da Saúde Coletiva. Os editais de pesquisa e a forte expansão de serviços, vivida desde 2003, podem ter repercutido na ampliação dessas publicações. Alguns temas despontam como preocupações mais contemporâneas (raça, gênero) e, surpreendentemente, outros parecem não ter acompanhado a crescente indução das políticas públicas, ao menos no âmbito da saúde coletiva, como o tema do cuidado às pessoas com problemas com drogas, ainda que não tenham sido incluídos termos específicos nas buscas. O leve aumento de estudos quantitativos em anos recentes pode estar refletindo certo viés de seleção da Revista, cabendo a pergunta se esses estudos têm aumentado em quantidade ou se tem sido mais fácil para eles atravessar a cada vez mais exigente barreira da avaliação por pares, em um ambiente cada vez mais competitivo como tem sido o das publicações de Saúde Coletiva no Brasil. Com relação às temáticas priorizadas por entidades internacionais como a OMS, as publicações da Revista Ciência & Saúde Coletiva parecem ainda atreladas ao cenário brasileiro e latino-americano. Temáticas como o gap de mortalidade, e estudos de implementação e avaliações de ampla escala persistem ausentes das publicações. Por outro lado, temáticas que poderiam ser autóctones e de interesse para o cenário mundial, como as relações entre desigualdade social e barreiras à assistência; SM em situações de violência; relações entre SM, saúde indígena e ecologia, por exemplo, encontram-se totalmente ausentes nas publicações estudadas.

Conclusões

O período estudado permite acompanhar o nascimento e o desenvolvimento de um campo de estudo que se apoia nas mudanças trazidas pela constituição de 1988. A fundação do Sistema Único de Saúde, e todo seu aparato conceitual e legislativo, permitiu processos de transformação. Nosso estudo permite acompanhar o processo de transição paradigmática do campo de saber Saúde Mental e Coletiva no Brasil. Pudemos identificar a característica multidisciplinar e intersetorial do campo, envolvendo diversas disciplinas para refletir sobre o mesmo objeto, desconstruindo certa visão psiquiátrica da doença mental, influenciando mudanças na legislação, nas instituições e na sociedade. É interessante perceber que, num primeiro momento, os textos apontam as potencialidades do campo a partir da redemocratização, como se um leque temático e metodológico fosse se abrindo ao longo dos anos, indicando a complexidade da tarefa. Em seguida, à medida que novos serviços e práticas foram sendo desenvolvidos, a produção teórica passa a dialogar com esta nova realidade, refletindo tanto as dificuldades como os inegáveis avanços conquistados. É interessante perceber que nesse processo a voz do usuário foi ganhando maior relevância, evidenciando que a estruturação do campo da Saúde Mental e Coletiva no Brasil está intimamente relacionada ao social, à cidadania, ao enfrentamento das desigualdades, dos preconceitos e - em última instância - às questões políticas e da democracia.

Agradecimentos

Agradecemos aos editores o convite para realizar esta revisão, que nos permitiu voltar a trabalhar juntos, em alguns casos após vários anos. Todos os autores (exceto a bibliotecária Rosana Evangelista Poderoso) foram membros do Grupo de Pesquisa Saúde Coletiva e Saúde Mental: Interfaces realizando seus doutorados sob orientação da Prof. Rosana Onocko Campos e encontram-se hoje nucleados em diversas Universidades do país.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Aceito
    28 Jul 2020
  • Publicado
    30 Jul 2020
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