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ANÁLISE HISTÓRICO-CONCEITUAL DA IMAGEM CORPORAL EM FONTES CIENTÍFICAS DE PSICOLOGIA (1900-1935)

ANÁLISIS HISTÓRICO-CONCEPTUAL DE LA IMAGEN CORPORAL EN FUENTES CIENTÍFICAS DE PSICOLOGÍA (1900-1935)

RESUMO

As pesquisas em imagem corporal creditam ao neurologista Paul Schilder (1886-1940) a definição do termo em 1935. A análise da composição do conceito pode contribuir para o entendimento de sua disseminação em uma comunidade de linguagem. Através de uma análise conceitual em fontes primárias buscou-se identificar a circulação do conceito na literatura de psicologia no início do século XX. Foram revisados artigos publicados em periódicos científicos de Psicologia e livros de Psicologia entre 1900 e 1935. Foram acessadas fontes nos idiomas espanhol, francês, inglês e português. Apenas dois artigos apresentaram referência explícita ao termo imagem corporal, enquanto os outros artigos tangenciaram ideias relativas à imagem do corpo. Já os textos dos livros de psicologia não apresentaram referências explícitas ao conceito, mas descreveram teorias alinhadas às pesquisas em percepção corporal pela literatura de processos psicológicos básicos. A compreensão geral de imagem corporal herdada pela literatura em psicologia foi antecedida por definições associadas ao esquema corporal, como a percepção de movimento e a propriocepção.

Palavras-chave:
Imagem corporal; análise conceitual; história da psicologia

RESUMEN.

Las investigaciones en imagen corporal acreditan al neurólogo Paul Schilder (1886-1940) la definición del término en 1935. El análisis de la composición del concepto puede contribuir al entendimiento de su diseminación en una comunidad de lenguaje. Desde un análisis conceptual en fuentes primarias se buscó identificar la circulación del concepto en la literatura de psicología a principios del siglo XX. Se revisaron artículos publicados en revistas científicas de psicología y libros de psicología entre 1900 y 1935. El idioma de las fuentes consultado fueran Español, Francés, Inglés y Portugués. Sólo dos artículos presentaron referencia explícita al término imagen corporal, mientras que los otros artículos tangenciaron ideas relativas a la imagen del cuerpo. Los textos de los libros de psicología no presentaron referencias explícitas al concepto, pero describieron teorías alineadas a las investigaciones en percepción corporal por la literatura de procesos psicológicos básicos. La comprensión general de la imagen corporal heredada por la literatura en psicología fue precedida por conceptualizaciones asociadas al esquema corporal, como la percepción de movimiento y la propriocepción.

Palabras clave:
Imagen corporal; análisis conceptual; historia de la psicología

ABSTRACT

Body image researchers credit the neurologist Paul Schilder (1886-1940) with the term's definition in 1935. The analysis of the concept's composition can contribute to understanding its dissemination in a language community. We sought to identify the circulation of the idea in the psychology literature in the early twentieth century through a conceptual analysis of primary sources. Articles published in Psychology scientific journals and Psychology books between 1900 and 1935 were reviewed. Sources published in Spanish, French, English and Portuguese were accessed. Only two articles presented an explicit reference to the term body image, while the other articles touched on body image ideas. On the other hand, the psychology books' texts did not present explicit references to the concept. Still, they described theories aligned with research on body perception within primary psychological processes literature. The general understanding of body image inherited by the literature in psychology was preceded by definitions associated with body scheme, such as the perception of movement and proprioception.

Keywords:
Body image; conceptual analysis; history of psychology

Introdução

A história do conceito imagem corporal é marcada pela ocorrência de diferentes tradições e projetos de investigação. Ainda que na literatura contemporânea uma das definições mais utilizadas indique a imagem corporal como as crenças sobre a aparência, sentimentos e percepção sobre o corpo, como tamanho e sentidos de corporeidade (Mountford&Koskina, 2015Mountford, V. A., &Koskina, A. (2015). Body image. In Wade T. (Eds.). Encyclopedia of feeding and eating disorders(p. 76-81). Singapore, MY: Springer.), são diversas as definições utilizadas no curso da história recente (Bailey, Gammage, & Van Ingen, 2017Bailey, K. A., Gammage, K. L., & Van Ingen, C. (2017). How do you define body image? Exploring conceptual gaps in understandings of body image at an exercise facility. Body Image, 23, 69-79. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.bodyim.2017.08.003
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). Esse cenário polissêmico associado ao conceito sugere a necessidade de uma investigação sobre a origem e circulação conceitual do termo em referências iniciais da literatura moderna. Um fator que reforça a tese de pluralidade conceitual associada à imagem corporal é a diversidade de campos de conhecimento nos quais o conceito tem sido aplicado desde o início do século XX.

No início do século XX, neurologistas, cientistas comportamentais e filósofos voltaram-se à investigação da imagem corporal em termos da sua natureza e significado para as diferentes formas de se perceber o corpo, a representação mental do corpo e também a percepção de membros fantasmas (Grogan, 2017Grogan S. (2017). Body Image: understanding body dissatisfaction in men, women and children. New York, NY: Routledge.). Nesse período, os neurologistas Henry Head (1861-1940) e Gordon Holmes (1876-1965) apresentaram o termo ‘esquema corporal’, definindo-o como o modelo corporal que cada pessoa tem de si mesma (Head & Holmes, 1911). Através desse esquema, seria possível movimentar-se e perceber os movimentos do corpo. Em seu artigo seminal de 1911, Head e Holmes apresentaram casos clínicos nos quais investigaram a percepção de dois tipos de esquemas: o primeiro estava relacionado ao reconhecimento da posição corporal no espaço, e o segundo à capacidade de localizar estimulações no corpo. Com a exposição desses casos, os autores identificaram que lesões cerebrais poderiam afetar esses esquemas de forma significativa, provocando quadros de prejuízo no reconhecimento e execução da lateralidade e não reconhecimento da própria postura corporal.

Inspirado nas proposições de Head e Holmes, Paul Schilder (1886-1941) apresentou em 1923 um conceito semelhante ao falar de espaço corporal, que significaria a percepção do espaço que o corpo ocupa e a percepção deste na mente. Posteriormente, em 1935, Schilder introduziu o conceito de imagem corporal como sendo a imagem tridimensional corporal associada ao espaço ocupado pelo próprio corpo. Esse trabalho tem sido apontado como o texto que popularizou o termo na literatura de psicologia e outras ciências da saúde (Grogan, 2017Grogan S. (2017). Body Image: understanding body dissatisfaction in men, women and children. New York, NY: Routledge.). Entretanto, a definição apresentada por Schilder sugere uma mistura entre diferentes conceitos. Partindo das considerações de Head e Holmes (1911) sobre o esquema corporal, Schilder definiu o termo imagem corporal de forma equivalente ao de esquema: “O esquema corporal é a imagem tridimensional que todos têm de si mesmos. Podemos chamá-la de imagem corporal” (Schilder, 1999Schilder, P. (1999). A imagem do corpo: As energias construtivas da psique. São Paulo, SP: Martins Fontes. Trabalho original publicado em 1935., p. 7). Essa noção de imagem corporal vem sendo utilizada, com algumas variações, em diversos ramos da literatura científica contemporânea, como em estudos que investigam grupos com diagnóstico de transtornos alimentares (McLean&Paxton, 2019McLean, S. A., & Paxton, S. J. (2019). Body image in the context of eating disorders. Psychiatric Clinics of North America, 42(1), 145-156. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.psc.2018.10.006
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).

Revisões de literatura sobre o uso de instrumentos de imagem corporal confirmam a pluralidade de definições associadas à expressão imagem corporal (Castro, Pinhatti, & Rodrigues, 2017Castro, T. G., Pinhatti, M. M., & Rodrigues, R. M. (2017). Avaliação de imagem corporal em obesos no contexto cirúrgico de redução de peso: revisão sistemática. Trends in Psychology, 25(1), 53-65. doi: http://dx.doi.org/10.9788/TP2017.1-04Pt
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). Mesmo que se reconheça a diversidade de origens teóricas e de áreas associadas à imagem corporal, não há um estudo específico investigando a origem da circulação do conceito na literatura psicológica e as possíveis razões sobre sua difusão teoricamente diversificada.

A aparente difusão e combinação de diferentes conceitos, associada ao início da circulação da expressão imagem corporal no século XX, suscita uma investigação sobre a emergência das primeiras versões do conceito em um contexto de literatura específico. Através de uma análise conceitual, o presente estudo tem como objetivo descrever a circulação do conceito imagem corporal em artigos e livros de psicologia publicados entre 1900 e 1935. A análise buscará identificar os contextos teóricos, a rede de associação semântica e os termos substitutivos ou equivalentes à enunciação de imagem corporal.

Método

Fontes e procedimentos de coleta

Para a demarcação temporal das fontes, optou-se pela seleção de artigos e livros de psicologia publicados entre 1900 e 1935. A definição desse período para a seleção dos artigos e livros se justifica pela intenção de se compreender a circulação, na área da psicologia, de temas relativos à percepção e representação mental do corpo e o esquema corporal. O período se estende entre a constituição e circulação inicial do termo nessa literatura até a publicação do livro de Schilder em 1935, considerado difusor do conceito geral de imagem corporal. A primeira etapa da coleta dos dados enfocou as produções em formato de artigo científico, enquanto a segunda etapa especificou a busca por livros de psicologia.

Os artigos de psicologia foram retirados dos periódicos da área com texto integral disponível no Portal de Periódicos da CAPES. Foramidentificadosnoveperiódicos entre 1900 a 1935 com registrosdisponíveisna base, a saber: American Journal of Orthopsychiatry (1930-presente), Journal of Abnormal Psychology (1906-presente), Journal of Applied Psychology (1917-presente), Journal of Comparative Psychology (1921-presente), Journal of Educational Psychology (1910-presente), Psychological Bulletin (1904-presente), American Journal of Psychology (1887-presente), Psychological Review (1894-presente), Journal of Experimental Psychology (1916-presente). Uma segunda busca foi realizada em cada periódico, utilizando o termo body image e assinalando o período de 1900 a 1935, ou do ano inicial de publicação do periódico até 1935. Foram incluídos na análise os artigos com texto completo disponível.

Os livros de psicologia foram recuperados nos acervos da biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da biblioteca central da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Foram feitas pesquisas iniciais nos catálogos virtuais das respectivas bibliotecas, a partir dos termos psychology, psicología, psychologie e ‘psicologia’. O período de 1900 a 1935 foi novamente selecionado como intervalo de interesse. A utilização do termo amplo ‘psicologia’ justifica-se para o estabelecimento de uma linha de base dos textos mais antigos de psicologia disponíveis nos acervos para então se definir a seleção das fontes relacionadas ao conceito.

A partir das fontes recuperadas nas buscas virtuais, foram realizadas visitas exploratórias às bibliotecas (Araujo, 2016Araujo, S. F. (2016). A investigação histórica de teorias e conceitos psicológicos: breves considerações metodológicas. In C. Laurenti, C. E. Lopes, & S. F. Araujo (Orgs.), Pesquisa teórica em psicologia: aspectos filosóficos e metodológicos (p. 125-146). São Paulo, SP: Hogrefe.). Essas visitas aos acervos tinham como objetivo acessar o material sinalizado nas buscas dos sistemas virtuais e identificar eventuais obras adicionais que não haviam sido recuperadas na busca inicial. O exame manual dos livros consistiu na análise inicial dos sumários por três pesquisadores e posterior verificação dos conteúdos dos livros, seguindo critérios temáticos relativos ao conceito pré-estabelecidos pela equipe de pesquisa.

Procedimentos de análise

Os procedimentos de análise das fontes foram inspirados no modelo de análise conceitual conectiva proposto por Ludwig Wittgenstein (1889-1950) e posteriormente desenvolvido por Gilbert Ryle (1900-1976) e Peter Strawson (1919-2006) através dos campos denominados geografia e gramática conceitual. Essa estratégia teórica de pesquisa tem por objetivo esclarecer conceitos (Hacker, 2013Hacker, P. (2013). Prologue: Wittgenstein’s philosophy of psychology as a critical instrument for the psychological sciences. In T. P. Racine, & K. L. Slaney (Eds.), A wittgensteinian perspective on the use of conceptual analysis in psychology (p. 10-27). London, UK: Palgrave Macmillan.), através de uma análise descritiva e global da estrutura de um conceito em sua enunciação em uma comunidade de linguagem (Banicki, 2011Banicki, K. (2011). Connective conceptual analysis and psychology. Theory&Psychology, 22(3), 310-323. doi: http://dx.doi.org/10.1177/0959354310383077
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).

A geografia conceitual consiste em delinear um mapa conectivo conceitual da área de enunciação de um conceito de interesse. Já a gramática conceitual consiste em explorar as definições dos conceitos, respeitando as regras e os contextos nos quais foram utilizados originalmente (Banicki, 2011Banicki, K. (2011). Connective conceptual analysis and psychology. Theory&Psychology, 22(3), 310-323. doi: http://dx.doi.org/10.1177/0959354310383077
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). O desenvolvimento dessa gramática facilitaria a distinção do conceito de temas adjacentes a ele, além de clarificar possíveis confusões em relação à sua enunciação (Kuusela, 2013Kuusela, O. (2013). Wittgenstein’s method of conceptual investigation and concept formation in psychology. In T. P. Racine , & K. L. Slaney (Eds.), A wittgensteinian perspective on the use of conceptual analysis in psychology (p. 51-71). London, UK: Palgrave Macmillan.). A proposta wittgensteiniana é a de construir um mapa de enunciações do conceito, para compreender o seu alcance e quais são os caminhos pelos quais o conceito se popularizou (Hacker, 2013Hacker, P. (2013). Prologue: Wittgenstein’s philosophy of psychology as a critical instrument for the psychological sciences. In T. P. Racine, & K. L. Slaney (Eds.), A wittgensteinian perspective on the use of conceptual analysis in psychology (p. 10-27). London, UK: Palgrave Macmillan.). Em casos em que o conceito ainda não foi formalmente operacionalizado, exploram-se os termos associativos e aqueles considerados constitutivos do conceito ou elementos enunciadores do significado associado ao conceito já consagrado no seu contexto de linguagem. Essas situações são comuns em contextos de análise histórica de termos que estão em fase de emergência em um campo de literatura específico.

Neste estudo, configurou-se esse cenário de emergência do conceito imagem corporal em um campo de literatura científica, no caso a Psicologia. Ao analisar a expressão em um período imediatamente anterior à sua operacionalização moderna, procedeu-se à identificação de termos associados à imagem corporal e aos significados correntes no período de sua demarcação em 1935. Tais termos e suas definições foram apreciadas para a criação da gramática conceitual, além das áreas de conhecimento em que o conceito e seus termos auxiliares foram identificados. Os termos associados serão elencados explicitamente nos resultados da pesquisa (ver Figuras 1 e 2, na seção ‘Resultados e Discussão’).

Resultados e Discussão

Artigos publicados em periódicos de psicologia entre 1900 e 1935

Os nove periódicos de psicologia consultados no período de interesse publicaram 11 artigos que continham vinculação ao descritor body image. Destes, um era o resumo de uma reunião da APA, e, portanto, foi excluído da análise. A tabela 1 apresenta as características dos artigos consultados.

Tabela 1
Artigos selecionados para análise

Apesar de os artigos recuperados estarem indexados com o termo body image, nem todos apresentaram discussão de questões relativas à consciência do corpo ou percepção do corpo. Dos dez artigos analisados, apenas o de Schilder (1934Schilder, P. (1934). The somato-psyche in psychiatry and social psychology. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 29(3), 314-327. doi: http://dx.doi.org/10.1037/h0075479
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) utilizou a expressão body image, e o artigo de Prince (1923Prince, M. (1923). A case of complete loss of all sensory functions excepting hearing but including cœnesthesis and visual images of the body. The Journal of Abnormal Psychology and Social Psychology, 18(3), 238-243. doi: https://doi.org/10.1037/h0069347
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) utilizou o termo imagem visual do corpo. Prince apresentou um caso clínico, discutido através de ideias psicanalíticas, sobre uma mulher que ‘personalizava’ e ‘despersonalizava’ a partir do uso de técnicas indutivas a estados alterados de consciência. O autor atribuiu a falta de percepção corporal da paciente a um estado de histeria e às repressões sexuais ao longo da vida. Nos momentos de despersonalização ela perdia o conhecimento de seu corpo e das sensações corporais. Essas sensações corporais a que o autor se referiu são semelhantes ao esquema corporal descrito por Head e Holmes (1911Head, H., & Holmes, G. (1911). Sensory disturbances from cerebral lesions. Brain, 34, 102-254. doi: http://dx.doi.org/10.1093/brain/34.2-3.102
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), já que a mulher do estudo não conseguia dar-se conta dos movimentos que realizava e não sabia localizar o corpo no espaço. Prince se referiu a esse episódio como a perda da “[...] imagem visual de seu corpo” (p. 240).

Em seu artigo de 1934, Schilder retomou as ideias de Head e Holmes (1911Head, H., & Holmes, G. (1911). Sensory disturbances from cerebral lesions. Brain, 34, 102-254. doi: http://dx.doi.org/10.1093/brain/34.2-3.102
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) sobre a importância do conhecimento do modelo postural do corpo. Esse modelo postural ou esquema corporal também poderia ser chamado de imagem corporal, de acordo com o autor, sendo essa imagem baseada completamente nas sensações e parcialmente nas representações e pensamentos. Mesmo tendo partido da noção de esquema corporal, a diferenciação do conceito de Schilder estava na atribuição de aspectos libidinais à capacidade de alteração do esquema corporal. A imagem corporal se caracterizaria pela personalidade do corpo, e não apenas por sua imagem somatosensória na mente.

Essa confluência das noções de esquema e imagem foi apontada pelo filósofo Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) como o início da confusão conceitual acerca do tema. Embora os conceitos possam ser compreendidos no mesmo caminho, o esquema corporal deveria ser tratado, segundo Merleau-Ponty (2018)Merleau-Ponty, M. (2018). A fenomenologia da percepção. São Paulo, SP: Martins Fontes. Trabalho original publicado em 1945., como a propriedade do corpo em sua totalidade. Essa totalidade não é apenas a combinação de sensações corporais e percepção, mas a expressão da intencionalidade do corpo próprio em direção ao mundo.

O artigo de Schilder (1934Schilder, P. (1934). The somato-psyche in psychiatry and social psychology. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 29(3), 314-327. doi: http://dx.doi.org/10.1037/h0075479
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) revela o uso do conceito imagem corporal antes do período sinalizado pela literatura como difusor do conceito em 1935. O artigo indica que a submissão foi realizada em julho de 1933, e que o mesmo manuscrito já havia sido lido para a Associação de Psiquiatria de Massachusetts em fevereiro do mesmo ano. Isso confirma que Schilder já trabalhava com a noção de imagem corporal em período anterior a 1935, o que já está relatado pela literatura em relação a um trabalho publicado em 1923.

Os demais artigos não se referiram diretamente à expressão imagem corporal, tampouco discutiram questões teóricas mais diretas relativas à construção de uma imagem de si. Contudo, os artigos evidenciaram o ensaio sobre um elemento subjetivo capaz de diferenciar o ‘eu’ dos outros. O foco de alguns desses estudos era a consciência. Por exemplo, para Baldwin (1903Baldwin, J. M. (1903). Mind and body, from the genetic point of view. Psychological Review, 10(3), 225-247. doi: http://dx.doi.org/10.1037/h0070757
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) a consciência das coisas exteriores ao corpo poderia se dar através do reconhecimento da existência de outros corpos e outras mentes, principalmente pelo recurso de projeções além da díade corpo e mente. Para Stratton (1906Stratton, G. M. (1906). The character of consciousness. Psychological Bulletin, 3(4), 117-124. doi: http://dx.doi.org/10.1037/h0075229
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), é a partir do estudo da consciência que um indivíduo se reconhece como não sendo outro. As sensações corporais são o exemplo que melhor apontam essa construção, iniciada na infância, já que a criança aprende o que é sede, fome e os demais estados, reconhecendo ser ela quem sente isso.

Já os artigos selecionados de Whipple (1901Whipple, G. M. (1901). An analytic study of the memory image and the process of judgment in the discrimination of clangs and tones. The American Journal of Psychology, 12(4), 409-457. doi: http://dx.doi.org/10.2307/1412145
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) e Sullivan (1921Sullivan, A. H. (1921). An experimental study of kinaesthetic imagery. The American Journal of Psychology, 32(1), 54-80. doi: http://dx.doi.org/10.2307/1413476
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) teceram suas discussões tendo como eixo central aspectos da imagem da memória e cinestesia. Whipple buscou compreender como essa imagem influenciava na percepção e julgamento de sons. Para isto, era preciso conhecer a influência dos processos cognitivos e de como eles se constituíam na consciência, além de compreender interferências da imagem auditiva na realização de julgamentos. Sullivan, também através de uma série de experimentos, buscou entender as diferenças entre duas formas de imagem, a cinestésica e a da memória em termos atributivos e perceptivos. A cinestesia a qual Sullivan se referiu seria a propriocepção, definida como a forma de apercepção dos estados do corpo. A autora também faz referência à sinestesia, que corresponde à capacidade de identificação de relações entre diferentes sentidos que criam uma imagem mental desse cruzamento. O estudo dos estados internos e da criação de imagens da imaginação e da memória sugere que as imagens cinestésicas são ativas. Isto significa que não apenas ocorrem sensações fisiológicas e psicológicas, mas há a construção de um complexo sensorial que permite o reconhecimento do self.

A partir da revisão realizada nesta etapa do estudo, observou-se que o elemento principal levantado nas pesquisas foi a percepção do corpo e as sensações corporais. Embora a imagem corporal como proposta por Schilder em 1935 não fosse o foco das discussões dos artigos, os princípios considerados e analisados pelos autores sugerem temas de investigação para o que posteriormente seria abordado na noção de imagem corporal. Na Figura 1 é apresentado o mapeamento de termos associados à imagem corporal e as áreas de concentração dos artigos levantados. No primeiro nível, o conceito de interesse, body image (círculo). No segundo nível, identificado pelos retângulos em linhas completas, estão as áreas de enunciação do conceito, identificados a partir da área da psicologia. No terceiro nível estão os termos de associação semântica, identificados pelos retângulos tracejados.

Figura 1
Mapeamento dos conceitos relativos à enunciação de imagem corporal em artigos.

Livros de psicologia publicados entre 1900 e 1935

Os acervos consultados continham materiais de diversas áreas da psicologia, como psicologia da moral e estudos dos processos psicológicos básicos. Alguns dos livros continham no prefácio ou apresentação ao leitor a caracterização de manuais introdutórios para utilização nos cursos normais para ensino de psicologia. As narrativas, em geral, consistiam em análises e exposições de ideias e teorias psicológicas em caráter introdutório, caracterizando-se como manuais de ensino de psicologia. Ao todo 166 livros de psicologia foram consultados e 15 apresentaram informações de interesse para a pesquisa. A tabela 2 apresenta as informações de identificação dos livros selecionados.

Tabela 2
Livros de psicologia publicados entre 1900 e 1935

Na análise do material, buscou-se identificar as discussões relativas ao corpo, a fim de identificar se a fonte já apresentava em seu escopo temas relacionados à imagem corporal. Neste sentido, não foram encontradas referências diretas ao termo imagem corporal, mas foram identificados temas que ilustram como as discussões acerca do corpo estavam sendo realizadas no período. Em geral, as tendências das discussões dos livros se concentravam em processos psicológicos básicos como percepção, sensação e atenção. Em relação ao corpo, os temas encontrados relacionam-se à consciência e percepção do corpo (Angell, 1908Angell, J. R. (1908). Psychology: an introductory study of the structure and function of human consciousness. Nova Iorque, NY: Henry Holt &Company.; Gordy, 1904Gordy, J. P. (1904). New Psychology. Nova Iorque, NY: Hinds & Nobles.; James, 1930James, W. (1930). Compendio de psicología. Buenos Aires, AR: EmecéEditores.; Rey, 1934Rey, A. (1934). Psicologia. Porto Alegre, RS: Livraria do Globo.) e sensações cinestésicas (Bomfim, 1917Bomfim, M. (1917). Noções de psychologia. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Francisco Alves.; Titchener, 1932Titchener, E. B. (1932). Manuel de psychologie. Paris, FR: Félix Alcan.).

Com relação à consciência e percepção do corpo, os autores apresentaram noções sobre a formação da consciência corporal e percepção do movimento. No livro New psychology, Gordy (1904Gordy, J. P. (1904). New Psychology. Nova Iorque, NY: Hinds & Nobles.) defendeu o aspecto dual entre mente e corpo, apontando que o conhecimento do corpo se dá através das sensações corporais. Para o autor, só é possível ter certeza da consciência acerca dos fatos mentais, de forma que o conhecimento do corpo é tido ou construído a partir da atenção dada a ele. Semelhante a essa proposição é a elaborada por James (1930James, W. (1930). Compendio de psicología. Buenos Aires, AR: EmecéEditores.) em seu Compendio de psicología, tradução em língua espanhola da versão condensada de Princípios de psicologia (1890). Para James, a percepção do corpo se dá através da percepção de si e do espaço, sendo a visão um elemento fundamental para a tarefa.

Outra evidência relacionada à consciência como elemento fundamental para a percepção do corpo é o capítulo intitulado ‘Os elementos - os movimentos - a motricidade psicológica’ do livro intitulado Psicologia (Rey, 1934Rey, A. (1934). Psicologia. Porto Alegre, RS: Livraria do Globo.). Nesse capítulo, Rey discute a noção de imagem cinestésica ou imagem do movimento. Essa imagem seria a imagem de representação do movimento do corpo que permite a sua coordenação, que, quando alterada ou perturbada, desregula a coordenação corporal e a locomoção. Tais perturbações podem se expressar de forma motora ou visual. Essa imagem representacional é constituída por diversas outras imagens, como as que constituem a sensação. Esse livro também é a única referência que se aproxima da noção de imagem corporal tal como descrita por Schilder em 1935. Isto porque o autor fala de uma imagem total do corpo, que permite a imagem do movimento, já que é preciso que o indivíduo reconheça o espaço circundante para que possa atuar nele. Esse reconhecimento é composto por dois atlas corporais, um correspondente aos músculos e outro correspondente à localização corporal.

Para James (1930James, W. (1930). Compendio de psicología. Buenos Aires, AR: EmecéEditores.) e Rey (1934Rey, A. (1934). Psicologia. Porto Alegre, RS: Livraria do Globo.), é preciso que exista uma apercepção corporal para a realização do movimento e ações direcionadas ao ambiente exterior. As apreciações de James (1930)James, W. (1930). Compendio de psicología. Buenos Aires, AR: EmecéEditores. se referem principalmente ao fluxo de consciência, que, quando direcionado ao corpo e a seus elementos, permite a síntese de percepções corporais. Assim, não se trata apenas da consciência isolada, mas enraizada em elementos corporais, apontando que as sensações táteis, visuais e auditivas também contribuem para constituição da consciência como o eu ou como objeto real.

O livro Psychology: na introductory study of the structure and function of human consciousness de Angell (1908Angell, J. R. (1908). Psychology: an introductory study of the structure and function of human consciousness. Nova Iorque, NY: Henry Holt &Company.), no capítulo sobre relações espaço-temporais, apresenta uma análise sobre o movimento e como representações mentais estão envolvidas em sua realização. Nessa apreciação o autor se referiu às sensações do movimento, que fazem parte da representação espacial. Alterações físicas, como a cegueira, podem dificultar de maneira drástica a percepção do movimento e, por conseguinte, a percepção corporal. De acordo com Angell, as estimulações cutâneas só são percebidas pela capacidade de perceber que algo toca em uma extensão maior ou menor do corpo. O exemplo dado pelo autor é a percepção da diferença do tamanho de objetos no antebraço e nos dedos. Essas sensações do tato se referem à superfície corporal, que Head e Holmes (1911Head, H., & Holmes, G. (1911). Sensory disturbances from cerebral lesions. Brain, 34, 102-254. doi: http://dx.doi.org/10.1093/brain/34.2-3.102
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) chamaram posteriormente de esquema corporal superficial. Para Angell (1908), as sensações de tato se projetam e se estendem aos objetos manuseados pelo indivíduo. De acordo com o autor há uma intencionalidade dos movimentos, de forma que eles só possuem sentido se existirem representações do corpo e dos movimentos que serão realizados. O espaço perceptual, por sua vez, está em constante mudança, com seu estado variando de acordo com as experiências dos indivíduos. Os adultos percebem os movimentos de forma imediata e não-reflexiva, ao contrário dos bebês, que não possuiriam essas percepções precisas.

Em Noções de psychologia, Bomfim (1917Bomfim, M. (1917). Noções de psychologia. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Francisco Alves.) indicou que as sensações foram estudadas por diferentes pesquisadores, com nomes e compreensões distintas para o que seria o mesmo fenômeno, impossibilitando uma unidade de definição. Na psicologia, a sensação é definida como o fato elementar da consciência, enquanto na fisiologia a sensação é compreendida como modificação excitativa que dá início a um processo nervoso e constitui o fenômeno psicológico da sensação. As atividades sensoriais produziriam, então, o “[...] sentido cinestésico [...]” (p. 55), descrito como sentido do movimento ou das atitudes próprias, que permite identificar, a todo momento, as partes do corpo no espaço. A aprendizagem do espaço, por sua vez, se daria através do exercício de relação corpo-espaço e também através da aprendizagem das alterações fisiológicas.

Ao descrever as sinonímias do sentido cinestésico, Bomfim acabou por indicar que, de fato, tais sensações não existem primariamente, mas que se unificam na consciência. A sensação da posição do corpo é construída pelos músculos, articulações, tendões e o aparelho vestibular, e é o processamento dessas informações que causará uma sensação de alguma parte do corpo. Já a percepção do corpo depende do sentido dos afetos, pois cada indivíduo percebe objetos e ações em relação ao corpo de acordo com sua perspectiva e valoração pessoal.

No livro Psychologia de Dória (1930Dória, A. S. (1930). Psychologia. São Paulo, SP: São Paulo Editora.) apresentam-se as sensações motoras divididas entre simples e mistas. Nas primeiras estão classificadas o estado geral dos órgãos, a posição do tronco e dos membros e também o movimento do tronco e dos membros. Já as sensações mistas podem ser visuais ou táteis. O sentido motor foi apontado pelo autor como de muita importância para o indivíduo. É a partir da organização dessas sensações que os objetos e o corpo podem ser percebidos. Para a execução dos movimentos, por exemplo, é preciso a evocação da memória relacionada a eles, sendo a visão um elemento fundamental para a percepção dos objetos externos e do próprio corpo. Todas as sensações táteis ou visuais produzem correntes nervosas que geram a consciência dos movimentos.

Em seu Tratado de psicología (1933Radecki, W. (1933). Tratado de psicología. Buenos Aires, AR: Jacobo Peuser.), WaclawRadecki apresentou ideias semelhantes ao que já estava sendo discutido por outros materiais no período, referindo-se à execução do ato. Para o autor, as sensações contribuem para a percepção corporal e possuem cunho afetivo, determinadas por cada indivíduo sobre a sua sensação corporal. De acordo com Radecki, o ser humano pode realizar a ação de tudo o que ele pode representar na consciência. Referenciando os Princípios de Psicologia de William James, o autor afirmou que somente os conteúdos de experiências prévias poderiam ser discriminados e acessados, criando uma imagem individual.

Com exceção do livro de Rey (1934Rey, A. (1934). Psicologia. Porto Alegre, RS: Livraria do Globo.), em que o autor utilizou o termo imagem total do corpo, não foram encontradas outras referências diretas à expressão imagem corporal. Por outro lado, os autores De La Vaissière (1912De La Vaissière, S. J. (1912). Elementos de psicologia experimental. Rio de Janeiro, RJ: Globo.), Dwelshauvers (1934Dwelshauvers, G. (1934). Traité de psychologie. Paris, FR: Payot.) e Boring (1929Boring, E. G. (1929). A history of experimental psychology. New York, NY: Appleton - Century Crafts.) abordaram temas constituintes do esquema corporal descrito em 1911 por Head e Holmes. De La Vaissière (1912) se referiu a uma forma de esquema corporal quando dissertou sobre a ilusão dos amputados. Essa ilusão seria um erro do sentido no que foi definido pelo autor como “[...] esquema imaginativo [...]” (p. 113), ou o esquema imaginativo do corpo, que é sempre atualizado através das sensações. No capítulo sobre o conhecimento sensitivo, De La Vaissière discorreu sobre um conjunto de percepções que permitem o conhecimento dos movimentos dos membros, que denominou de sentido muscular.Essas percepções podem também ser chamadas de sensações sinestésicas, e relacionam-se à capacidade dos indivíduos de notar simultaneamente o que está acontecendo em seu corpo e ao seu redor. Referenciando essa noção nos trabalhos de Maine de Biran (1766-1824), o autor citou a capacidade de distinção entre o que é indivíduo (si) e o que não é indivíduo (não-si). Para De La Vaissière essas percepções são explicadas através dos movimentos musculares, já que o corpo saudável sabe quando ele está se movimentando ou não.

Em Traité de psycologie, livro de autoria de Dwelshauvers (1934Dwelshauvers, G. (1934). Traité de psychologie. Paris, FR: Payot.), os temas das sínteses sensíveis das sínteses espaciais são as que apresentam conteúdos como imagem motora e esquema motor. O autor também discutiu a compreensão da percepção do espaço segundo teorias como o naturalismo e o empirismo e apresentou dados de investigações sobre sensações táteis. Tais sensações contribuiriam para a formação de uma imagem motora que permite a realização dos movimentos. Entretanto, a ideia de imagem caberia apenas ao estudo psicológico, pois ela só acontece quando aparece na consciência e desaparece imediatamente, sendo algo ininteligível. A consciência do movimento criada a partir da imagem já é o movimento em si, o que torna a imagem motriz o ponto comum entre a intencionalidade do ato e sua realização.

Por sua vez, o livro A historyof experimental psychology, publicado em 1929 por E. G. Boring, apresenta a noção de sensação de localidade a partir dos trabalhos de E. H. Weber (1795-1878) no campo da psicologia fisiológica. Nessa sensação o tato permitiria a discussão sobre um esquema de localização, pois seria através da pele e do toque que o ser humano se relaciona com o mundo material. A pele também recebeu destaque no Manuel de psychologie de 1932, em que E. B. Titchener se referiu à cinestesia como as sensações que englobam os sentidos e criam uma impressão geral do corpo. Essa impressão pode ser percebida na vida cotidiana, como na escrita, na marcha e no movimento, já que é a pele que envolve o sistema motor e é o que permite contato com o mundo. Para Titchener, é preciso clarificar a diferenciação dos sentidos ou sensações cinestésicas das sensações cutâneas. De acordo com o autor essa diferenciação já havia sido apontada por Aristóteles, mas os estudos em psicologia estavam negligenciando as sensações musculares em detrimento dos cinco sentidos (olfato, paladar, tato, audição e visão).

No geral, os tópicos contemplados nos livros estão ligados aos processos psicológicos básicos, o que é consoante com a predominância da psicologia experimental no final do século XIX e início do século XX. Dentro desse campo dos processos básicos foi observado que os elementos de enunciação de temas associados à imagem corporal estavam principalmente relacionados às sensações e à percepção do corpo. Diferente da noção de imagem corporal difundida ao longo do século XX, que implica um caráter afetivo, as ideias sobre imagens estavam relacionadas ao movimento. O que foi apresentado por Angell (1908Angell, J. R. (1908). Psychology: an introductory study of the structure and function of human consciousness. Nova Iorque, NY: Henry Holt &Company.) e Bomfim (1917Bomfim, M. (1917). Noções de psychologia. Rio de Janeiro, RJ: Livraria Francisco Alves.) no início das duas primeiras décadas de 1900 reflete diferentes perspectivas da compreensão das formas de percepção de uma imagem do corpo. A Figura 2 apresenta o mapa conceitual das áreas e termos relacionados ao conceito nos livros de psicologia analisados. No primeiro nível está o conceito de interesse, body image. No segundo nível (retângulos em linhas completas) estão as áreas de enunciação do conceito, identificados a partir da área da psicologia. No terceiro nível estão os termos associados ao conceito de interesse (retângulos em tracejado).

Figura 2
Mapeamento dos conceitos relativos à enunciação de imagem corporal nos livros.

Considerações finais

A partir desta análise sobre o conteúdo dos artigos e livros de psicologia, foram identificadas poucas referências diretas ao termo imagem corporal. Apenas dois artigos apresentaram termos relacionados ao conceito. O primeiro é o artigo de Prince (1923Prince, M. (1923). A case of complete loss of all sensory functions excepting hearing but including cœnesthesis and visual images of the body. The Journal of Abnormal Psychology and Social Psychology, 18(3), 238-243. doi: https://doi.org/10.1037/h0069347
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), com o termo ‘imagem visual do corpo’ e o segundo o artigo de Schilder (1934Schilder, P. (1934). The somato-psyche in psychiatry and social psychology. The Journal of Abnormal and Social Psychology, 29(3), 314-327. doi: http://dx.doi.org/10.1037/h0075479
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), em que o autor utilizou o termo imagem corporal, fornecendo mais evidências de que já abordava o conceito antes de 1935. Nos livros de psicologia não foram encontradas referências diretas à noção de imagem corporal, apenas uma menção indireta à ‘imagem do corpo’ no livro de Rey (1934Rey, A. (1934). Psicologia. Porto Alegre, RS: Livraria do Globo.). Nos livros, observou-se que as discussões sobre o corpo se encontravam principalmente no campo da filosofia e dos processos psicológicos básicos. Os textos discutiram o desenvolvimento da noção do eu e a separação com o mundo exterior e objetivo.

A gramática conceitual apontou o uso de temas de enunciação próximos ao conceito, nos dois tipos de fonte consultados. A ênfase esteve nas discussões e investigações sobre as representações corporais na mente, além do estudo do esquema motor nos livros de psicologia do período. Vale ressaltar que os temas esquema motor e percepção de movimento remetem à noção de esquema corporal desenvolvida por Head e Holmes em 1911Head, H., & Holmes, G. (1911). Sensory disturbances from cerebral lesions. Brain, 34, 102-254. doi: http://dx.doi.org/10.1093/brain/34.2-3.102
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. Possivelmente essas ideias circularam na literatura do período com denominações distintas e tiveram influência sobre a composição posterior de uma versão geral do conceito imagem corporal. Contudo, futuras investigações que ampliem o escopo das fontes poderão melhorar o entendimento sobre a relação entre esquema e imagem corporal.

A análise das características dos dois formatos de fontes não apontou confluência dos temas discutidos, com exceção do tema cinestesia, através de discussões sobre sensações sinestésicas e as sensações do movimento. Os artigos tratavam, no geral, de experimentos de psicologia para investigação da consciência e percepção ou apreciações de temas psicológicos. Os livros, por se tratar de material destinado ao ensino de psicologia, consistiam na apresentação introdutória e explicação de teorias psicológicas e ideias filosóficas.

Considerando o desenvolvimento da psicologia no final do século XIX e início do século XX, teria sido pertinente acessar também materiais no idioma alemão. A ausência de fontes nesse idioma é uma das limitações deste estudo. Sugere-se que novas investigações façam um mapeamento mais amplo considerando outros idiomas e novos acervos. Também se sugere a ampliação temporal posterior à publicação do livro de Paul Schilder, em 1935. Investigações dos anos subsequentes poderão fornecer mais elementos sobre a circulação e recepção do conceito na psicologia, além de sua disseminação para outras culturas. A partir da identificação dos termos associados ao conceito imagem corporal, novas investigações podem ser realizadas para integrar os mapas conceituais propostos neste estudo. Os resultados do estudo contribuem para a visão geral de polissemia do conceito imagem corporal, uma vez que sinaliza a associação histórica do termo a ideias constitutivas de percepção de movimento e de autoidentificação consciente de um self.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2019
  • Aceito
    15 Fev 2021
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