Acessibilidade / Reportar erro

Quem é o especialista?: Lugares ocupados por profissionais e pacientes no tratamento dos transtornos alimentares

¿Quién es el experto?: Posiciones ocupados por profesionales y los pacientes en el tratamiento de trastornos de la alimentación

Who is the specialist?: Places occupied by professionals and patients in the treatment of eating disorders

Resumos

A epistemologia construcionista social reposiciona profissional e paciente como co-construtores do cuidado em saúde. Assumindo essa perspectiva, buscou-se, com este estudo, conhecer as práticas discursivas de pessoas diagnosticadas com Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa sobre os lugares ocupados por pacientes e profissionais na construção do tratamento. Foram realizadas entrevistas individuais audiogravadas com pacientes de um serviço de assistência em transtornos alimentares. O discurso construcionista social orientou essa pesquisa. Para análise do corpus foram utilizadas as propostas das delimitações temático-sequenciais, as práticas discursivas e produção de sentidos, e a teoria do posicionamento. A construção dos resultados sugere que os padrões de coordenação das ações entre profissionais e pacientes podem sedimentar lugares e posicionamentos enrijecidos e disponibilizar pouco espaço para negociações. As propostas do diálogo aberto e da parceria colaborativa foram oferecidas como possibilidades para construção de novos relacionamentos profissional-paciente, entendendo a conquista do bem-estar como produto da ação conjunta.

relações profissional-paciente; participação do paciente; transtornos da alimentação


La epistemología construccionista social reposiciona profesional y paciente como co-constructores de la atención en salud. Asumiendo esta perspectiva, se buscó con este estudio, conocer las prácticas discursivas de las personas diagnosticadas con anorexia nerviosa y bulimia nerviosa acerca de los lugares ocupados por los pacientes y profesionales en la construcción del tratamiento. Entrevistas individuales audio grabadas se llevaron a cabo con los pacientes en uno servicio de atención en los trastornos alimentarios. El discurso construccionista social ha guiado esta investigación. Para el análisis, se utilizó las propuestas de límites temáticos secuenciales, prácticas discursivas y producción de sentidos, y la teoría del posicionamiento. La construcción de los resultados sugiere que los esquemas de coordinación de acciones entre los profesionales y los pacientes pueden sedimentar lugares y posiciones cristalizadas y ofrecer poco espacio para negociaciones. La propuesta del diálogo abierto y del postura colaborativa se ofrecen como posibilidades para la construcción de nuevas relaciones profesional-paciente, comprendiendo la consecución del bienestar como producto de la acción conjunta.

relaciones profesional-paciente; participación del paciente; trastornos de la conducta alimentaria


The social constructionist epistemology repositions professional and patient as coauthors in health care. Assuming this perspective, we sought in this study to understand the discursive practices of people diagnosed with Anorexia Nervosa and Bulimia about the position of patient and professional in the construction of the treatment. Individual audio taped interviews were conducted with patients from one service center in eating disorders. The social construcionist discourse guided the investigation. For the analysis of this material we used the following proposals: thematic-sequential boundaries, discursive practices and production of meanings, and positioning theory. Thus, we discussed on how the standards of professional-patient coordination can sediment positions and provide little room for negotiations. Proposals such as open dialogue and collaborative partnership were offered as possibilities for building new professional-patient relationships, understanding that the conquest of welfare is a product of joint action.

professional-patient relation; patient participation; eating disorder


ARTIGOS

Quem é o especialista? Lugares ocupados por profissionais e pacientes no tratamento dos transtornos alimentares

Who is the specialist? Places occupied by professionals and patients in the treatment of eating disorders

¿Quién es el experto? Posiciones ocupados por profesionales y los pacientes en el tratamiento de trastornos de la alimentación

Laura Vilela SouzaI; Manoel Antônio dos SantosII

IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro

IIUniversidade de São Paulo

RESUMO

A epistemologia construcionista social reposiciona profissional e paciente como co-construtores do cuidado em saúde. Assumindo essa perspectiva, buscou-se, com este estudo, conhecer as práticas discursivas de pessoas diagnosticadas com Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa sobre os lugares ocupados por pacientes e profissionais na construção do tratamento. Foram realizadas entrevistas individuais audiogravadas com pacientes de um serviço de assistência em transtornos alimentares. O discurso construcionista social orientou essa pesquisa. Para análise do corpus foram utilizadas as propostas das delimitações temático-sequenciais, as práticas discursivas e produção de sentidos, e a teoria do posicionamento. A construção dos resultados sugere que os padrões de coordenação das ações entre profissionais e pacientes podem sedimentar lugares e posicionamentos enrijecidos e disponibilizar pouco espaço para negociações. As propostas do diálogo aberto e da parceria colaborativa foram oferecidas como possibilidades para construção de novos relacionamentos profissional-paciente, entendendo a conquista do bem-estar como produto da ação conjunta.

Palavras-chave: relações profissional-paciente; participação do paciente; transtornos da alimentação.

ABSTRACT

The social constructionist epistemology repositions professional and patient as coauthors in health care. Assuming this perspective, we sought in this study to understand the discursive practices of people diagnosed with Anorexia Nervosa and Bulimia about the position of patient and professional in the construction of the treatment. Individual audio taped interviews were conducted with patients from one service center in eating disorders. The social construcionist discourse guided the investigation. For the analysis of this material we used the following proposals: thematic-sequential boundaries, discursive practices and production of meanings, and positioning theory. Thus, we discussed on how the standards of professional-patient coordination can sediment positions and provide little room for negotiations. Proposals such as open dialogue and collaborative partnership were offered as possibilities for building new professional-patient relationships, understanding that the conquest of welfare is a product of joint action.

Keywords: professional-patient relation; patient participation; eating disorder.

RESUMEN

La epistemología construccionista social reposiciona profesional y paciente como co-constructores de la atención en salud. Asumiendo esta perspectiva, se buscó con este estudio, conocer las prácticas discursivas de las personas diagnosticadas con anorexia nerviosa y bulimia nerviosa acerca de los lugares ocupados por los pacientes y profesionales en la construcción del tratamiento. Entrevistas individuales audio grabadas se llevaron a cabo con los pacientes en uno servicio de atención en los trastornos alimentarios. El discurso construccionista social ha guiado esta investigación. Para el análisis, se utilizó las propuestas de límites temáticos secuenciales, prácticas discursivas y producción de sentidos, y la teoría del posicionamiento. La construcción de los resultados sugiere que los esquemas de coordinación de acciones entre los profesionales y los pacientes pueden sedimentar lugares y posiciones cristalizadas y ofrecer poco espacio para negociaciones. La propuesta del diálogo abierto y del postura colaborativa se ofrecen como posibilidades para la construcción de nuevas relaciones profesional-paciente, comprendiendo la consecución del bienestar como producto de la acción conjunta.

Palabras clave: relaciones profesional-paciente; participación del paciente; trastornos de la conducta alimentaria.

Nas práticas discursivas em saúde mental, é possível encontrar repertórios interpretativos que realçam a dificuldade do paciente em aceitar o diagnóstico de uma psicopatologia explicada a partir de certa concepção de doença, o que o impediria de perceber-se de maneira realística e sem sofrer a perniciosa influência de suas próprias dificuldades emocionais. Dessa forma, seria apenas com a garantia da concordância plena do paciente sobre a existência de suas dificuldades que o tratamento poderia ser buscado e aceito. Considerando-se esse campo discursivo, no caso do tratamento dos transtornos alimentares (TA), o compromisso ético do profissional passaria a estar relacionado com tentativas de fazer o paciente perceber que sua forma de alimentação não é normal (Malson et al., 2004). A norma, nesse caso, seria balizada pelas teorias científicas, das quais os profissionais de saúde seriam os legítimos representantes por excelência. O que se configura a partir desse cenário relacional é o posicionamento balizado pelos extremos entre alguém que busca ajuda (o paciente) e alguém que oferece ajuda (o profissional). A mudança nessa configuração depende dos paradigmas filosóficos que embasam as práticas em saúde, incluindo a crítica ao lugar exclusivo de poder ocupado pelo profissional (Camargo-Borges & Japur, 2008; Grandesso, 2000).

Masson e Sheeshka (2009), em sua pesquisa sobre a perspectiva dos profissionais sobre o que favorece que os pacientes com TA completem o tratamento, apontam a confiança do paciente no profissional como um importante fator para a aquisição da melhora. Segundo as narrativas dos profissionais entrevistados, os pacientes devem confiar que o tratamento é "eficiente" e devem se entregar "cegamente" aos profissionais e ter "fé" neles. A falta dessa confiança cega do paciente na competência da equipe para conduzir o tratamento favoreceria atitudes de "resistência às regras do lugar" (p. 118). Na voz desses profissionais, essa confiança, ou a falta dela, é associada exclusivamente às características individuais dos pacientes. Nesse cenário, o profissional é o especialista inconteste na condução do tratamento. Ao mesmo tempo, Vandereycken e Vansteenkiste (2009) mostram em sua pesquisa que a possibilidade dos pacientes com TA participarem das decisões iniciais do tratamento diminui significativamente sua taxa de abandono.

No campo da assistência em Anorexia Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN), a baixa adesão dos pacientes ao tratamento preocupa os profissionais da saúde e, muitas vezes, como afirma Mahon (2000), os pesquisadores explicam essa baixa adesão em termos das características das pessoas atendidas, que seriam "desmotivadas". Nesse sentido, a avaliação crítica da situação não leva em conta de que maneira os atendimentos propostos ou o relacionamento profissional-paciente, por exemplo, participam da construção dos baixos índices de adesão. A pesquisadora mostra como não é possível deduzir características comuns entre os pacientes desistentes e fala como a desmotivação dos mesmos muitas vezes guarda relação com a diferença entre o que profissional e paciente consideram que é efetivo no tratamento. Bjorki et al. (2009) consideram importante a renegociação constante entre profissional e paciente sobre quais seriam os objetivos do tratamento e as possibilidades e meios de alcançá-los. Richard (2005) sugere a necessidade de se pensar o tratamento de forma mais pessoalizada, evitando o que ele chama de "mitos de homogeneidade" entre os pacientes.

Hepworth (1999) destaca o fato das teorias sobre os TA negligenciarem os perigos de não se problematizar o efeito das práticas psicoterápicas na simplificação de "práticas sociais e culturais complexas" (p. 112). Nessa perspectiva, conforme entende a autora, esses transtornos deixam de ser considerados problemas individuais e passam para a arena dos debates públicos, que incluem as pessoas diagnosticadas com AN e BN como protagonistas das construções do que vai ser entendido como saúde.

A epistemologia construcionista social é uma oferta alternativa na busca de ampliação dessas aberturas. Essa perspectiva reposiciona profissional e paciente na construção do cuidado em saúde, colocando-os como parceiros na criação de qualquer tratamento e posicionando o paciente como especialista nas questões que dizem respeito à sua saúde. Como afirma Gergen (2009), assim como a definição de sofrimento decorre de uma coordenação local de ações entre pessoas, a definição de um tratamento também acontece por meio de processos colaborativos. Portanto, outras formas de construção do tratamento da AN e BN podem ser exploradas, buscando espaços confortáveis para pacientes e profissionais.

Assumindo essa perspectiva, buscou-se, neste trabalho, conhecer as práticas discursivas de pacientes diagnosticados com Anorexia Nervosa e Bulimia Nervosa sobre os lugares ocupados por pacientes e profissionais na construção do tratamento.

Método

Convite para a pesquisa e cuidados éticos

Foram convidados a participarem do estudo todos os pacientes atendidos havia pelo menos um ano em um serviço de assistência multidisciplinar em AN e BN de um hospitalescola. Com a adoção desse critério, buscou-se garantir que os participantes tivessem um tempo relativo de permanência no serviço. Foram incluídos pacientes que frequentaram o ambulatório no período definido para coleta de Janeiro de 2008 a Junho de 2008. Fazia parte do tratamento ambulatorial oferecido acompanhamento psicoterápico, nutricional e psiquiátrico. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da instituição hospitalar (Protocolo nº 7310/2007) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantir o anonimato dessas pessoas, foram utilizados pseudônimos.

Construção do corpus e de um procedimento de análisee

Concordaram em participar da pesquisa 12 mulheres com idade entre 12 e 45 anos. Foram realizadas entrevistas individuais, seguindo-se um roteiro semi-estruturado que abordava diferentes temáticas sobre o tratamento, incluindo questões sobre como era o relacionamento das pacientes com os profissionais que as atendiam. A entrevistadora era psicóloga da equipe multiprofissional do serviço. Como sua atuação era restrita aos familiares dos pacientes, havia tido pouco ou nenhum contato anterior com as participantes.

As entrevistas foram audiogravadas em fitas K7 e transcritas na íntegra e literalmente. Para a organização desse material utilizou-se a estratégia das "delimitações temático-sequenciais" proposta por Rasera e Japur (2003), adaptada para a análise de entrevistas. Dessa forma, as entrevistas foram delimitadas em seus diferentes momentos, de acordo com cada temática que estava em pauta na conversa entre entrevistadora e participante. Para o presente trabalho, foram selecionados os momentos das entrevistas nos quais estivesse presente a temática do relacionamento profissional-paciente no contexto de tratamento da AN e BN, mais especificamente, explorando o lugar de cada um deles na construção do tratamento. Três participantes abordaram essa temática em suas entrevistas, sendo que uma participante (Talia) a abordou em dois momentos, discorrendo sobre as experiências que vivenciara com profissionais que não os do ambulatório de assistência em AN e BN no qual era cuidada. As participantes foram: Estefânia, 23 anos, em atendimento havia três anos e sete meses, diagnóstico de BN. Talia, 19 anos, em tratamento havia dois anos e meio, diagnóstico de BN. Ilda, 45 anos, acompanhada no serviço havia 12 anos, diagnóstico de AN.

Os momentos selecionados para análise serão aqui apresentados preservando-se a sequência de falas da entrevista transcrita. Foi utilizado como referencial teórico-metodológico a perspectiva das práticas discursivas e produção de sentidos de Spink e Medrado (2000) para o estudo dos sentidos produzidos nas entrevistas. Gergen (1997) sugere, como opção alternativa ao conceito de sentido como derivado de um mundo individual, a noção de "sentido com os outros", ou seja, do sentido compartilhado. Para esse autor, são os relacionamentos humanos que geram linguagem e entendimento, e as pessoas entendem umas às outras por participarem de sistemas comuns de significação. Além disso, a teoria do posicionamento (Harré & Van Langenhove, 1999) foi escolhida para a análise dos jogos de posicionamentos profissional-paciente e pacienteentrevistadora. O conceito de "posição", que esse marco teórico preconiza refere-se a um conjunto de "atributos pessoais" que constroem nas relações um lugar social específico. Esse lugar social específico, no presente estudo, corresponde aos lugares ocupados pelo profissional e pelo paciente no tratamento dos TA. Esses distintos lugares implicam diferentes deveres e direitos no que concerne, por exemplo, às decisões a serem tomadas em relação aos cuidados em saúde.

Resultados e Discussão

Participante 1

Estefânia. Esse momento destacado se iniciou com Estefânia contando que logo se formaria e que o fato de estar frequentando o serviço de atendimento em TA como paciente a impediria de realizar seu sonho, que era ser uma profissional da equipe desse serviço:

Estefânia: Então, isso me atrapalha muito... Ver um trabalho aqui dentro [no ambulatório de TA], minha vontade de querer fazer uma prova e estar aqui dentro também. Sei que não vai ser legal. Como os pacientes vão me ver como uma profissional aqui se eu também sou paciente? Então, assim, eu fico cultivando um sonho que eu acho que não pode se realizar. Então pra mim é difícil, porque às vezes... [Choro]. Ai, não sei.

Entrevistadora: Ã, hun. Fica essa, essa distância em relação a esse desejo?

Estefânia: É. [Choro]. Já me atrapalhou muito.

Entrevistadora: Então tem uma vontade sua talvez de sair dessa, dessa estabilidade? É uma estabilidade que ficou aí com algumas coisas que você ainda queria mudar?

Estefânia: Pra mim é um saco ter que vir aqui. Ainda mais agora, que eu tô pra me formar.

Ao contar sobre seu desejo de ser contratada para trabalhar no serviço, Estefânia falava do lugar de paciente. Ser paciente, considerando o contexto de proposição de um tratamento em saúde, marca uma diferença em relação ao lugar social ocupado pelo profissional. Estefânia qualificou essa diferença como algo que distinguia não apenas as funções sociais de cada um, profissional e paciente, mas como uma marca que remetia às condições de saúde de cada um deles. Segundo o discurso biomédico, a pessoa diagnosticada com BN possui sintomas de distorção no modo como percebe seu peso e corpo, assim como na forma de ver o mundo (APA, 2000). Tal distorção a impediria de saber o que é melhor para si. O profissional, ao operar nessa lógica discursiva, seria aquele capaz de perceber essa disfuncionalidade, uma vez que tem preservado seu discernimento em relação ao que é normal ou não.

Não seria possível, portanto, a partir desses sentidos outorgados, ser profissional e paciente ao mesmo tempo, pois um profissional diagnosticado com uma psicopatologia poderia ser visto com desconfiança, uma vez que seu funcionamento mental não estaria apropriado ao desempenho de seu papel. Como ainda não havia recebido alta do serviço, Estefânia permaneceu posicionada pela equipe como alguém adoecida e, ao concordar com tal posição, concluiu que seu "sonho" de vir a ser uma profissional não poderia se realizar.

Na sequência da conversa, a entrevistadora buscou entender se o termo "estabilidade" mencionado por Estefânia podia ter relação com a presença de sintomas do problema alimentar que ainda a atrapalhavam e que ela gostaria de modificar. Partindo de um universo discursivo que entende que a estabilidade de um quadro psicopatológico não pode ser tomada como sinônimo de sua supressão, a pergunta da entrevistadora posicionou Estefânia como alguém que ainda tinha aspectos problemáticos a serem cuidados e que, portanto, ainda teria que frequentar o tratamento para lidar com eles. Estefânia respondeu a esse posicionamento falando do quanto era difícil dar continuidade ao tratamento, e relacionou essa dificuldade com a proximidade de sua formatura. A recusa de Estefânia em frequentar o tratamento pode ser entendida como parte dessas negociações de sentidos sobre o que é o problema alimentar e quem é o paciente.

Participante 2

Talia

Talia:

Aí o médico falou que ia me internar no [nome da clínica], que é uma clínica que tem lá no, em [cidade da região], de psiquiatria, só que aí ele nem chegou a me internar porque ele foi embora, sabe? Ele foi embora sem dar explicação nem nada, sem lógica, uma coisa de louco. Aí me indicaram pra São Paulo. São Paulo eu fui lá num psiquiatra, o psiquiatra riu da minha cara e falou que ia me dar um remedinho que ia ser tiro e queda. Aí, eu chegava lá em casa se deixasse um bolo, assim, eu queria, eu, eu devorava o bolo inteiro, só que aí, como eu tinha controle, eu comia um pedaço de bolo e eu tinha vontade de comer o resto, só que eu não comia, o que eu fazia? Pegava o bolo, tacava na parede e gritava, muito desesperada, gritava, gritava, gritava e não conseguia dormir, de espernear ficava muito ansiosa. Que eu tinha controle da comida, mas não tinha controle dos desejos. Aí eu peguei, descobri que era o coiso [psiquiatra], não quis ir mais nele, né? Descobri que era o remédio que tava me dando apetite. Não quis ir mais nele e cheguei e vi que, não acreditei em psiquiatra nenhum, falei assim que psiquiatra pra mim não existia, psiquiatra tinha que ter confiança, ser uma pessoa de confiança, falei assim: "Não quero".

Talia contou como a visão que tinha de seu próprio corpo foi colocada em xeque pelo psiquiatra, que disse que ela tinha uma distorção de sua autoimagem. Nesse caso, o profissional estava posicionado como aquele que era capaz de avaliar a norma e o desvio, cumprindo o discurso tradicional de distinção entre os lugares ocupados pelo paciente e pelo profissional. Todavia, quando contou que esse profissional "foi embora sem dar explicação", acabou por posicionar o médico como aquele que confirmou, com esse gesto, a inadequação de sua forma de agir, no entender de Talia, algo que para ela se configuraria como "coisa de louco". No uso desse repertório interpretativo, a loucura passou a ser descrita como incongruência identificada no comportamento daquele que, a princípio, dentro de um campo discursivo específico que constrói a tradicional hierarquia entre profissional e paciente, deveria demonstrar ser são. Dessa forma, Talia ficou posicionada como alguém capaz de perceber a inadequação das atitudes dos profissionais que a atenderam, alguém com juízo crítico da realidade preservado.

A narrativa de Talia sobre o estranho comportamento do médico parecia relacionar-se a sua denúncia do mau uso que esse profissional teria feito na ocupação de seu lugar social. Alguns comportamentos que poderiam ter sido construídos como sintomas de um distúrbio emocional individual, tais como: "devorar o bolo inteiro", "tacar o bolo na parede", "gritar e espernear" e o sentimento que ela nomeia de "ansiedade", foram tecidos como consequência do comportamento inadequado do profissional. Além de gerar intenso sofrimento em Talia, a omissão do profissional, ao dissimular sua real intenção com a prescrição do medicamento, foi construída como tendo como efeito a sua falta de "confiança" em qualquer outro profissional que a atendesse posteriormente, fazendo com que, a partir daquele momento, Talia decidisse se cuidar sozinha.

Entendendo o contexto da entrevista como oportunidade que a paciente narrasse de que maneira a relação profissional-paciente poderia ser favorecedora de mudanças, ao final da conversa, a pesquisadora retomou a história do primeiro psiquiatra que atendeu Talia e perguntou como esse médico poderia ter sido "melhor" na sua forma de conversar com ela:

Entrevistadora: Você falou do psiquiatra que te falou que você tinha AN. E aí você falou: "Meu filho, tá achando que eu sou louca, né?" Como seria um jeito legal dele te falar? Lembrando de você naquela época, né? Com as dificuldades que você tava, com o seu jeito de entender as coisas. Você acha que teria um jeito melhor?

Talia: Teria: "Talia, você tem um transtorno alimentar". Aí não sei o rumo que ele...: "Você tá com transtorno alimentar, então teus pensamentos pensam que você tá gorda e tudo mais, mas isso tem cura", e "Tá tá tá, nã, nã". E, por fim de tudo, ele falaria: "Isso tem um nome, isso se chama AN, mas tem tratamento". Ele falou "Nossa Senhora, você tem AN." Pegou, abriu o livro e: "Aqui a menina com AN" e pôs o esqueleto lá.

Entrevistadora: Ele falou?

Talia: Mostrou aquele esqueleto. Eu olhei pra cara dele e falei: "Meu filho, eu não tô com isso não, fio". Foi desse jeito, ele me mostrou [eu] lá no fundo: "Nunca!".

Entrevistadora: Ele não te deu a ideia da possibilidade da esperança de se modificar?

Talia: Não me deu a possibilidade e já me mostrou que eu estava lá no fundo [do poço], né? Que eu poderia ficar assim, que eu já tava lá no fundão. Poderia ter descartado essa hipótese. Podia ter mostrado, podia ter falado que tem tratamento, que tal, que, com psicólogo, com psiquiatra, que ele ia me dar um remedinho pra melhorar meus pensamentos, que eu ia tá pensando que eu não estava, mas eu... É... Que eu não estava, que eu estava gorda.

Entrevistadora: Que era normal que você pensasse que você não tinha?

Talia: Isso! Que era normal que eu pensasse que eu não tinha. Que era normal que eu pensasse que eu tava gorda: "Não era normal eu tá falando que era gorda, não era normal, "Você tá me chamando de louca?". Foi uma coisa diferente que eu não esperava.

Em sua descrição de um cenário ideal no qual o profissional comunicaria o diagnóstico de TA para o paciente, Talia enfatizou a possibilidade de "cura" do transtorno. Uma abordagem médica que enfatizasse a esperança que o tratamento poderia trazer ajudaria, segundo a participante, a diminuir os efeitos negativos que o diagnóstico de AN poderia trazer. Nesse momento, Talia pareceu estar fazendo uso dos repertórios interpretativos na área dos TA que constroem essas psicopatologias como graves (Becker, 2004) e de difícil tratamento (Richard, 2005). Além disso, o uso do sentido dos TA como psicopatologias pode convidar descrições identitárias estigmatizantes (Gergen 1997), incluindo o estigma da loucura, já que é descrito como um tipo de transtorno psiquiátrico. Pode ter sido a partir desse último sentido que Talia entendeu que, ao lhe falar que ela tinha AN, o médico a estaria chamando de "louca".

A essencialização da psicopatologia como entidade concreta e irreversível levaria a AN a ser entendida como algo que se é e não como algo que se tem. O profissional ideal citado por Talia podia estar respondendo a essa diferença, pois ele enfatizaria a AN como algo que a pessoa tem e posicionaria o paciente como alguém que iria submeter-se a um tratamento para ser curado, isto é, destituído dessa condição que fazia dele alguém que diverge da norma. O ato de mostrar uma foto de uma pessoa "esquelética" posicionou Talia como alguém "no fundo do poço", referindo-se possivelmente à descrição de uma pessoa com AN como gravemente adoecida, sentido apregoado pela literatura especializada e referendado pelo conhecimento do senso comum (Nielsen et al., 1998).

A posição ocupada pela entrevistadora nesse momento da entrevista parecia ser a da profissional que tratava desses transtornos, posição que garantia à profissional o status de especialista nesses problemas. Assim, a ênfase que o "profissional ideal" concebido por Talia colocaria na cura e no tratamento do transtorno foi construída como possibilidade de trazer "esperança" ao paciente, a partir da oferta do tratamento com profissionais de saúde. Compartilhando, nesse momento, do sentido da AN como psicopatologia individual, a fala da entrevistadora trouxe a esperança como advinda do cuidado especializado que o psiquiatra que atendeu Talia poderia oferecer. Dessa forma, esse profissional ofereceria o diagnóstico, mas também falaria da possibilidade de promover o tratamento. Suplementando esse sentido, Talia contou que acreditava que uma fala mais adequada do profissional enfatizaria aquilo que poderia ser feito para o alcance da melhora. Além disso, o profissional ideal iria mencionar a distorção da imagem corporal da paciente como parte do transtorno.

Diferentemente da distorção da imagem corporal significada como fruto de uma psicopatologia, o sentido outorgado à percepção da autoimagem de Talia como algo "normal" foi oferecido pela entrevistadora e suplementado por Talia como pertinente para a busca de uma fala do profissional que, ao normalizar a percepção de si trazida pelo paciente, evitaria o estigma da loucura. O conflito entre profissional e paciente seria, então, decorrente da necessidade do psiquiatra em enquadrar a paciente em uma categoria diagnóstica. Essa necessidade é justificada pela legitimação das teorias nosológicas em saúde (Grandesso, 2000). O profissional, como responsável em fazer o paciente reconhecer-se a partir do diagnóstico de AN, pode entrar em conflito com um paciente que carrega suas próprias teorias sobre o que acontece consigo mesmo.

Participante 3

Ilda. Ilda foi internada para tratar da AN no mesmo hospital em que trabalhava anteriormente como profissional da saúde. Durante essa internação, contou que não se enxergava como doente:

Entrevistadora: O fato de você ser da área da saúde ajuda nessas coisas? [referindo-me ao conhecimento que Ilda tinha de que, na implantação do cateter como recurso extremo para contornar sua recusa em se alimentar por via oral, os médicos não estavam conseguindo encontrar a via de acesso correta, devido a seu corpo esquálido].

Ilda: Eu não me via como paciente, me via profissional. Então é diferente o profissional que fica doente, é muito mais difícil tratar, eu acho. Porque até você tomar a tua posição que você não é o profissional, você é o doente, chegava a uma condição, uma situação assim que, às vezes no noturno, eu ajudava os outros pacientes, coitada da funcionária. Ou mesmo assim ajudar na parada [cárdio-respiratória]. Tinha uma paciente em parada, chamaram, na época tinha a - agora acho que não tem mais, tinha o pessoal da equipe de parada cardíaca que a gente chamava no CTI - enquanto os funcionários tava lá, eu ia ligando, tudo. Aí depois ele pegou e me dispensou: "Vai lá pro centro obstétrico onde você trabalha, fica lá um pouco, realmente parou [o coração do paciente que ela estava ajudando a cuidar] e não teve jeito". Aí, eu peguei, era assim, ou então eu ia lá pro centro obstétrico onde eu trabalhava, eu começava a ajudar as meninas lá. Com sonda [nasogástrica] e tudo eu tava lá, ficava anotando. Até que a enfermeira falou: "Ó, você não pode assinar, não, não sei o quê, não posso te responsabilizar, não sei o quê".

Entrevistadora: É... O importante foi essa... Essa possibilidade do outro te trazer o que tá acontecendo? Que você fala: "Olha, uma coisa importante pra mim é essa orientação que vem dos profissionais, né? Essa capacidade de descreverem...".

Ilda: É, tipo assim, é, não presumir que o paciente sabe. Porque, apesar de eu ser [profissional da saúde], eu sou paciente. Então muitas coisas são passadas por cima, por quê? Porque você é um profissional, você, alguma coisa você entende, tecnicamente, né? As coisas você sabe como é que funcionam, o metabolismo, essas coisas você sabe, mas você tem que ter aquela noção da pessoa te passar: "Olha, você tá com esses sintomas assim, quando tá baixa acontece isso, pode acontecer aquilo, esse sintoma significa", tipo assim, uma hipoglicemia: "Então o que você pode fazer?". Como a gente faz com diabético. Eu orientava muito, eles falavam: "O que você faz se você começar a passar mal? Como é que você sabe que tá passando mal? Que sintoma que você tem que prestar atenção?" Sabe? Então são coisas que eu acho que a gente tem que saber. Você saber a constituição dos alimentos, até eu questionei uma vez com uma nutricionista que saiu, ela era voluntária e ela teve uns problemas, ela acabou não ficando. Esqueci, não sei, como que ela chama, esqueci o nome dela. É, eu perguntava se ela não dava pra fazer uma lista, assim, com as calorias, ela falou assim: "Não, isso não é o adequado, né? Pra ficar, enquadrar os alimentos que vão te manter o peso, porque o peso não é mantido assim. Não adianta te dar uma dieta de 1200 calorias, você não vai fazer aquela dieta de 1200 calorias. Você tem um cardápio muito restrito e monótono e você não... Eu não posso fazer nesse sentido pra você ficar no que tá", então ela falou assim. O número de calorias não, mas poderia me explicar assim que nutriente que tem mais, por exemplo, você tá com déficit de potássio, qual alimento que tem mais, que você poderia, né, tá comendo, senão você vai fazer reposição, se você não fizer por alimentação, você vai ter que repor com medicamento.

Na primeira pergunta da entrevistadora, uma Ilda profissional, posição oferecida pela entrevistadora, foi convidada a narrar suas histórias. Construída a diferença entre esses dois lugares, Ilda contou que, durante sua primeira internação, cuidava dos pacientes internados no hospital, os acudia na parada cárdio-respiratória e os monitorava no ambulatório de obstetrícia. Esse comportamento não parecia ser o esperado pela equipe que a atendia na internação. Na voz da enfermeira, Ilda apareceu como aquela que não teria condições de ser responsabilizada por suas ações. Essa fala, como discutido, encontra eco em teorias psicológicas e psiquiátricas que descrevem as pessoas com transtornos emocionais como aquelas que podem estar limitadas em sua capacidade de discriminação da realidade e de avaliação objetiva de suas ações. Parece ter sido desse lugar que a enfermeira questionou Ilda.

Outro ponto de conflito entre as distintas descrições de si presentes no fragmento de fala em questão, relaciona-se com o lugar social designado para o paciente, conforme comentado anteriormente, como o de alguém que deve colocar-se na posição de quem recebe o tratamento em uma postura passiva, e para o profissional como aquele que interroga as queixas do paciente, estabelece um diagnóstico que depende de uma semiologia que o instrui a perscrutar sinais e sintomas imediatamente presentes e identificáveis, e prescreve o tratamento em uma postura ativa e diretiva. Como escreve Grandesso (2000), essa relação passa a ser definida por uma hierarquia de poder, que constrói uma relação entre um agente (profissional) e um paciente, sendo que este último submete-se ao processo. Como profissional, considerando-se essa hierarquia, Ilda estaria ocupando um lugar social de maior prestígio e, sendo assim, é possível entender sua afirmação de que, para um profissional, é um tanto quanto mais difícil ocupar o lugar de doente.

A segunda pergunta da entrevistadora, nesse fragmento selecionado, trouxe para a conversa o sentido do relacionamento entre profissional e paciente como um espaço no qual o profissional teria a obrigação de esclarecer ao paciente sobre os procedimentos a que ele teria de se submeter. Em sua resposta, Ilda descreveu a posição da equipe a partir de dois aspectos. O primeiro seria que o profissional não falaria sobre os procedimentos realizados e não partilharia das decisões sobre o tratamento porque pressumiria que a paciente-profissional de saúde já saberia do que se trata. Nesse caso, o argumento de Ilda parece endossar a concepção de que a equipe entende que o profissional, quando colocado no lugar de paciente, deveria ser tratado como paciente, ou seja, deveria receber todos os esclarecimentos acerca de seu problema. O segundo aspecto foi que, justamente pelo fato de a paciente ser profissional de saúde e compartilhar do jargão técnico da área, seria possível estabelecer uma comunicação bem-sucedida entre os dois partícipes do tratamento. Assim, a orientação a respeito dos procedimentos seria facilitada.

Esses argumentos e justificativas pareceram pesar na defesa do pressuposto de que, no caso dos TA, o paciente deveria ser tratado da mesma maneira que nas demais patologias, como no exemplo que Ilda trouxe de sua experiência profissional, das pessoas com diabetes mellitus. Ao comparar o relacionamento entre profissional e paciente, no caso dos dois tratamentos, do TA e do diabetes mellitus, Ilda pareceu convidar a entrevistadora a perceber a diferença com que os pacientes com AN e BN são tratados.

No caso da AN, diagnóstico designado à Ilda, mesmo que o paciente recebesse as orientações sobre o que seria uma alimentação saudável, isso não o impediria de continuar evitando comer a todo custo, colocando sua vida em risco. Essa diferença sustenta a posição que o profissional passa a ter que ocupar no caso das assim denominadas psicopatologias, a de não poder confiar que o paciente vai cumprir o que ele, durante a consulta, assume que fará. A opção oferecida pela nutricionista Ariane marcou a possibilidade de atender o pedido de Ilda, de receber orientações sobre sua alimentação e, ao mesmo tempo, respondeu ao sentido que possivelmente estava informando a posição tomada pela nutricionista, do TA como um acontecimento que está fora do controle do paciente. Assim, Ariane negociou com Ilda quais esclarecimentos seriam válidos para ela melhorar sua saúde e quais estariam a serviço da manutenção dos sintomas dos transtornos.

Ampliando a discussão e construindo possibilidades

Nas entrevistas analisadas foi construído o esforço dos profissionais mencionados pelas participantes em mostrarem para elas a inadequação de seus comportamentos e a necessidade de aceitarem o tratamento. Talia entrou em conflito com seus primeiros psiquiatras porque precisou defender tenazmente a legitimidade de sua percepção sobre o próprio corpo. A divergência de opiniões entre profissional e paciente sobre estar ou não acima do peso ideal, que Talia mencionou como uma discussão a respeito de o paciente estar magro ou gordo, remete à noção de existência de uma régua única e confiável, que seria capaz de avaliar quem está certo ou errado em seu julgamento. O risco de morte por complicações decorrentes da desnutrição, no caso da AN, parece tornar ainda mais necessária a referência do profissional a essa régua, sendo que o paciente precisaria ser convencido da validade desses parâmetros. O que se ganha e o que se perde com a necessidade de convencer o paciente sobre a "realidade" de sua autoimagem? Que outras realidades são deixadas de fora nesse processo de convencimento?

Como é possível pensar movimentos alternativos de negociação de sentidos entre profissional e paciente, nos quais um não tenha que necessariamente estar errado para o outro estar certo? Muitas vezes os padrões de coordenação profissionalpaciente se sedimentam e, assim, disponibilizam pouco espaço para tolerar negociações. Todavia, como afirma Gergen (1999), se os conflitos são construídos no diálogo, também podem ser dissolvidos nele. As tradições realistas e racionalistas presentes nas construções de argumentos entre as pessoas podem promover movimentos nos quais uns tentam persuadir os outros de como estão certos. Nessas conversas há a busca pelas verdades universais e a disputa por quem as detém.

Gergen (1999) considera diálogo transformador aquele que consegue "transformar uma relação entre indivíduos" (p. 31), favorecendo conversas férteis sem que as pessoas tenham que ter um acordo sobre verdades. Para esse autor, o diálogo transformador é favorecido pela possibilidade de "encontrar algo dentro da expressão do outro a que podemos conceder nossa concordância e apoio" (p. 38). Qual seria o efeito produzido se o psiquiatra que atendeu Talia pudesse ter compartilhado com ela que sua busca por um diagnóstico tinha relação com seu desejo de ajudá-la e que esse procedimento parecia ser - para ele, a partir de sua formação acadêmica - o caminho que considerava o mais legítimo, mas que, ao mesmo tempo, estava interessado em escutar como Talia entendia o que estava acontecendo consigo. Qualquer posicionamento implica limites nas possibilidades de interação com o outro. Quando o profissional desqualifica, no entendimento do paciente, o que o paciente traz como valioso, desconsidera uma gama de relacionamentos que o paciente possui e que legitimam esse entendimento que ele sustenta em seu discurso (Gergen & Gergen, 2007).

Isso não quer dizer que o profissional de saúde deve abandonar suas convicções, uma vez que ele também se vê legitimado por uma série de relacionamentos significativos que dão suporte para as construções de mundo que defende. Uma mudança que a adoção de uma postura alternativa implica é que a relação profissional deixa de ser hierárquica para ser uma "parceria colaborativa" (Anderson, 2009) entre pessoas com diferentes conhecimentos. Essa forma de atuar é definida pela autora como um "falar com" e não um "falar para" o paciente. Para Anderson e Gehart (2007), o paciente deve ser valorizado como único e não como uma categoria. O profissional deve estar preparado para se adaptar a cada relacionamento constituído com o paciente, em um cenário de responsabilidade compartilhada, que requer não um saber estabelecido previamente, mas um saber tecido junto ao paciente. Os profissionais que adotam tal postura relatam, segundo as autoras, sentirem-se menos estressados no trabalho, com mais liberdade em sua atuação e com mais esperança em relação ao prognóstico do paciente, permitindo "com que todas as partes acessem sua criatividade e desenvolvam possibilidades onde nenhuma parecia existir antes" (Anderson & Gehart, 2007, p. 57).

Isso não significa dizer que clientes e profissionais criam os sentidos da maneira como bem entenderem. Eles também são relacionalmente responsivos a outras pessoas, como os demais profissionais, comunidade científica, integrantes de suas redes sociais, entre outros (McNamee, 2003). Seikkula e Arnkil (2006) sugerem que os profissionais possam ocupar um lugar de constante incerteza com relação às suas verdades, abrindo mão de um lugar de controle do tratamento. Esses autores construíram um modelo de atendimento a pacientes considerados em surto psicótico, que reúne profissionais, familiares, amigos do paciente e o próprio paciente para que, juntos, possam construir seu entendimento sobre o que é um plano terapêutico ideal. Esse grupo reunido convida a estruturação de uma rede social de apoio que se estende para fora do muro das instituições de atenção em saúde mental e que disponibiliza cuidados ao paciente que, necessariamente, não virão dos profissionais. Os autores consideram que esses encontros constituem ricos momentos dialógicos, nos quais todos podem pensar juntos, colocar as diferentes vozes e buscar entendimentos que possam construir consensos. Eles entendem que, ao convidarem todas essas pessoas, legitimando-as como igualmente importantes na construção do tratamento, favorece-se a coresponsabilização pelo bem-estar do paciente, o que inclui o próprio paciente como protagonista dessa busca.

Diferentemente do que acontece em situações nas quais o paciente é considerado como estando "fora de si", os profissionais alinhados aos princípios defendidos por Seikkula e Arnkil são incentivados a ouvirem o paciente considerado em surto psicótico. A voz "da loucura" ou "da psicose" é considerada como uma voz tão importante de ser escutada como a do psiquiatra. No caso do atendimento a pacientes com AN e BN essa postura seria inovadora por validar a voz "da distorção da imagem corporal" como uma forma diferente, e não errônea, do paciente olhar para si mesmo. Nesse modelo de atendimento, o que vai ser definido como importante não é determinado por parâmetros externos, como os resultados de pesquisas empíricas disponibilizadas pela literatura científica. A produção científica pode fazer parte do diálogo ampliado, uma vez que os profissionais podem considerá-las valiosas, mas elas não são consideradas como mais ou menos acuradas do que as descrições trazidas pelo paciente, por sua família ou membros de sua comunidade de origem.

Nesses "Diálogos Abertos", como é batizada essa abordagem de atenção à saúde mental, as fronteiras profissional-paciente ficam borradas e não há uma distinção entre especialistas e leigos. Os profissionais não perdem seus papéis sociais, seu conhecimento especializado não se extingue, mas o tratamento não se apoia apenas nele. O conhecimento especializado é utilizado em resposta a algo contextual, essa é a diferença capital. Os participantes desses diálogos abertos podem negociar sobre a necessidade de diagnosticar o problema, fazendo uso das teorias científicas, ou podem apenas concordar em falar em termos de situações preocupantes: "o problema só se dissolve se todos que o definiram como problema não mais o comunicarem de tal forma" (Seikkula & Arnkil, 2006, p. 55).

Profissionais e pacientes devem confiar em um tratamento que é planejado de modo compartilhado. Propostas dialógicas como essa, dentre outras possíveis, confiam que, quando o paciente é posicionado como ativo na construção do tratamento, mais propenso estará a se apropriar do que acontece com ele e a se mostrar envolvido nesse trabalho compartilhado (Camargo-Borges & Mishima, 2009; Grandesso, 2000). Anderson (2009) considera importante o posicionamento do paciente como especialista da sua própria vida, com o profissional podendo atuar como um aprendiz questionador. Assim, paciente e profissional são parceiros conversacionais e decidem juntos os limites da relação terapêutica e os objetivos do tratamento. No diálogo, acredita essa autora, as possibilidades surgem e novas histórias sobre si mesmo, sobre os problemas e sobre o futuro podem ser tecidas. O profissional exerce um papel ativo nas conversas que mantém com o paciente e traz para o diálogo seus conhecimentos e teorias. Todavia, não é diretivo no sentido de que sua técnica irá preceder as decisões sobre como o atendimento deve acontecer, definindo os rumos e o desfecho do tratamento.

Fernández, Cortês e Tarragona (2007), profissionais que trabalham na assistência em TA no México, baseiam-se no modelo colaborativo proposto por Anderson (2009) em seu trabalho com pessoas diagnosticadas com AN e BN. Essas profissionais consideram que o cuidado oferecido deve se fazer no processo relacional profissional-paciente, sendo que o plano de atendimento não deve ser rigidamente estabelecido a priori, mantendo-se sensível às vicissitudes do caminho a ser percorrido junto com cada paciente. Essa flexibilidade soma-se a uma postura de incerteza (Anderson, 2009), que equivale a acompanhar o cliente em seu desenvolvimento, sem agarrar-se a uma certeza de para onde o atendimento deve seguir, o que levaria o profissional a direcioná-lo para que pudesse alcançar essa meta.

A referida equipe buscou posicionar os pacientes como especialistas sobre suas próprias vidas, ainda que tal empreitada tenha sido desafiadora, uma vez que, como relatam as autoras, muitas vezes o paciente tinha uma ideia sobre sua própria saúde que contrastava radicalmente com os valores dos profissionais envolvidos. A questão da precariedade do estado clínico do paciente, como no caso da AN, trazia para a discussão da equipe a urgência da consideração da possibilidade de morte da pessoa atendida. Ainda assim, a equipe tomou a decisão de não impor os assuntos sobre peso, estado físico ou perigo de morte durante as conversas. Isso não quer dizer que as profissionais não podiam compartilhar suas preocupações com os clientes, mas que isso acontecia em um contexto dialógico. Os pacientes atendidos por essas profissionais afirmaram que a possibilidade de serem ouvidos foi a melhor qualidade das conversas. Além disso, eles contaram que o ambiente de conversa era agradável, as conversas eram "normais" como em outros relacionamentos, referindo-se ao fato de não sentirem a hierarquia profissional-cliente, e de se sentirem próximos das pessoas que estavam cuidando deles. Eles também relataram que, se a equipe tivesse imposto o que eles tinham que fazer, eles simplesmente não teriam seguido com o tratamento.

As propostas do diálogo aberto e da parceria colaborativa foram aqui oferecidas como possibilidades abertas para a construção de relacionamentos profissional-paciente nos quais a voz do paciente, seus próprios termos e suas definições sobre o que acontece consigo, são considerados tão válidos como os sentidos produzidos na literatura científica. Tal validação oferece ao paciente diagnosticado com TA um lugar diferente no tratamento, entendendo que a conquista do bem-estar é produto da ação conjunta de todos os atores envolvidos na rede social, e que os conceitos do que seja a melhora devem ser definidos no diálogo.

Recebido em 19. Jul.11

Revisado em 15. Mar.13

Aceito em 17. abr.13

Laura Vilela Souza, Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Endereço para correspondência: Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais, Departamento de Psicologia. Avenida Getúlio Guaritá, 159, Centro Educacional (Sala 320). Bairro Abadia. Uberaba - MG - Brasil. CEP: 38025-440. Tel.+55 (34) 3318-5929. E-mail: lauravilelasouza@gmail.com

Manoel Antônio dos Santos, Livre-docente pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, professor associado 3 do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

  • American Psychiatric Association (2000). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (4ª ed. rev.). Washington DC: Author.
  • Anderson, H. (2009). Conversação, linguagem e possibilidades: Um enfoque pós-moderno da terapia São Paulo: Roca.
  • Anderson, H., & Gehart, D. (2007). Collaborative therapy: Relationships and conversations that make a difference Nova Iorque: Routledge.
  • Becker, A. E. (2004). New global perspectives on eating disorders. Cultural Medical Psychiatry, 28(4),433-437.
  • Bjorki, Y., Bjorck, C., Clinton, D., Sohlberg, S., & Norring, C. (2009). What happened to the ones who dropped out? Outcome in eating disorder patients who complete or prematurely terminate treatment. European Eating Disorders Review, 17(2),109-119.
  • Camargo-Borges, C., & Japur, M. (2008). Sobre a (não) adesão ao tratamento: Ampliando sentidos do autocuidado. Texto & Contexto Enfermagem, 17(1),64-71.
  • Camargo-Borges, C., & Mishima, S. (2009). A responsabilidade relacional como ferramenta útil para a participação comunitária na atenção básica. Saúde e Sociedade, 18(1),29-41.
  • Fernández, E., Cortês, A., & Tarragona, M. (2007). You make the path as you walk. In H. Anderson & D. Gehart (Orgs.), Collaborative therapy: relationships and conversations that make a difference (pp. 129-148). Nova Iorque: Routledge.
  • Gergen, K. J. (1997). Realities and relationships: Soundings in social construction (2ª ed.). Cambridge: Harvard University Press.
  • Gergen, K. J. (1999). Rumo a um vocabulário do diálogo transformador. In D. F. Schnitman & S. Littlejohn (Orgs.), Novos paradigmas em mediação (pp. 29-45). (M. A. G. Dominguez & J. H. Rodrigues, Trads.). Porto Alegre: Artes Médicas.
  • F. Schnitman & S. Littlejohn (Orgs.), Novos paradigmas em mediação (pp. 29-45). (M. A. G. Dominguez & J. H. Rodrigues, Trads.). Porto Alegre: Artes Médicas.
  • Gergen, K. J. (2009). Relational being: Beyond self and community. Nova Iorque: Oxford University Press.
  • Gergen, K. J., & Gergen, M. (2007). Qualitative inquiry: Tensions and transformations. In N. K. Denzin & Y. Lincoln. The landscape of qualitative research: theories and issues (pp. 575-610). Londres: Sage Publications.
  • Grandesso, M. (2000). Reconstrução do significado: Uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Harré, R., & Van Langenhove, L. (Orgs.) (1999). Positioning theory Oxford: Blackwell Publishers.
  • Hepworth, J. (1999). The social construction of anorexia nervosa. Londres: Sage Publications.
  • Mahon, J. (2000). Dropping out from psychological treatment for eating disorders: What are the issues? European Eating Disorders Review, 8(3),198-216.
  • Malson, H., Finn, D. M., Treasure, J., Clarke, S., & Anderson, G. (2004). Constructing 'the eating disordered patient': A discourse analysis of accounts of treatment experiences. Journal of Community & Applied Social Psychology, Chichester, 14(6),473-489.
  • Masson, P. C., & Sheeshka, J. D. (2009). Clinicians'perspectives on the premature termination of treatment in patients with eating disorders. Eating disorders, 17(2),109-125.
  • McNamee, S. (2003). Who is the therapist: A social constructionist exploration of the therapeutic relationship. Psychotherapy Section Newsletter, 34,29-39.
  • Nielsen, S., Moller-Madsen, S., Isager, T., Jorgensen J., Pagsberg, K., & Theander, S. (1998). Standardized mortality in eating disorders: A quantitative summary of previously published and new evidence. Journal of Psychosomatic Research, 44(3),413-34.
  • Rasera, E. F., & Japur, M. (2003). Grupo de apoio aberto para pessoas portadoras do HIV: Aconstrução da homogeneidade. Estudos de Psicologia, 8(1),55-62.
  • Richard, M. (2005). Care provision for patients with eating disorders in Europe: What patients get what treatment where? European Eating Disorders Review, 13(3),159-168.
  • Seikkula, J., & Arnkil, T. E. (2006). Dialogical meetings in social networks. Londres: Karnac.
  • Spink, M. J. P., & Medrado, B. (2000). Produção de sentidos no cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In M. J. P. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas (pp. 41-61). São Paulo: Cortez.
  • Vandereycken, W., & Vansteenkiste, M. (2009). Let eating disorder patients decide: Providing choice may reduce early drop-out from inpatient treatment. European Eating Disorders Review, 17(3),177-183.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2011
  • Aceito
    17 Abr 2013
  • Revisado
    15 Mar 2013
Programa de Pós-graduação em Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicobiologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte Caixa Postal 1622, 59078-970 Natal RN Brazil, Tel.: +55 84 3342-2236(5) - Natal - RN - Brazil
E-mail: revpsi@cchla.ufrn.br