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Desmontando as armadilhas do feminismo civilizatório

VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial. 2020. Ubu Editora, São Paulo

O livro Um feminismo decolonial (2020), da cientista política e intelectual racializada Françoise Vergès, publicado originalmente na França no ano de 2019, traduzido no Brasil no ano seguinte, promove discussões no campo dos estudos feministas e decoloniais. Cuidado e limpeza do mundo, exploração dos corpos de mulheres racializadas e feminismo civilizatório são temas centrais à obra. Destaca-se, também, seu caráter de manifesto, em defesa de um feminismo decolonial, radicalmente antipatriarcal, antirracista, anticolonial e anticapitalista. Sua escrita, voraz e descomplicada, traz fluidez ao texto e permite horizontalização do debate feminista decolonial, não o restringindo ao âmbito acadêmico.

Podemos dizer que se trata de um mapa no qual Vergès pega o(a) leitor(a) pela mão e lhe apresenta os caminhos para desviar das armadilhas do feminismo civilizatório e seu discurso convincente, apaziguador e palatável, sobretudo às forças do capital. Ela nos prepara para percorrer esses caminhos impedindo que pautas feministas se alinhem ao conservadorismo, imperialismo, neofascismo e neoliberalismo, reconhecendo o caráter estrutural das opressões e lutando para manter nosso poder coletivo e transformador.

A obra defende um feminismo transnacional e plural. Enfatizam-se as epistemologias do sul, posicionando-se de forma contrária aos feminismos civilizatório e liberal. A apresentação do texto organiza-se em duas partes: a primeira, “Definir um campo: o feminismo decolonial”, apresenta série de verbetes sobre feminismos, epistemologias, metodologia e discussão de conceitos fundamentais à obra; a segunda parte, “A evolução para um feminismo civilizatório do século XXI”, refere-se aos usos do feminismo na qualidade de missão civilizadora burguesa e à invisibilidade dos corpos e trabalhos das mulheres racializadas. O prefácio da edição brasileira é assinado pela professora Flávia Rios. Ambos prefácios trazem à tona a importância de refletir sobre a realidade do Sul global e, consequentemente, do Brasil. São também bastante atuais, evidenciando desigualdades no contexto da pandemia e impactos das violências raciais e de gênero na vida de pessoas consideradas descartáveis pelo Estado.

Um dos conceitos fundamentais presentes na obra é o feminismo civilizatório. Ao universalizar a condição da mulher branca, tal feminismo, segundo Vergès, contribuiu para a manutenção do sistema de exploração racial, ou seja, “adotou e adaptou os objetivos da missão civilizatória colonial, oferecendo ao neoliberalismo e ao imperialismo uma política de direitos das mulheres que serve a seus interesses” (Vergès, 2020:17). O feminismo civilizatório, ou “branco-burguês”, como sugere, “não é branco simplesmente porque as mulheres brancas o adotaram, mas porque ele reivindica seu pertencimento a uma parte do mundo, à Europa, que foi construída com base na partilha racializada do mundo” (Vergès, 2020:45). Nessa esteira, elabora-se a crítica ao feminismo branco que exterioriza escravidão, colonialismo, imperialismo, atuando na manutenção do capitalismo, sexismo e racismo.

Vergès demonstra como as feministas francesas têm se alinhado a forças conservadoras, a princípio hostis entre si, e esvaziado suas pautas em favor de uma agenda conservadora e humanitária liberal. Em outras palavras, as feministas civilizatórias corroboram o discurso neoliberal, o qual sustenta que o caminho para igualdade de gênero é a maior entrada das mulheres no mercado de trabalho, acesso a bens de consumo e industrialização, prometendo uma globalização feliz e harmoniosa (Vergès, 2020).

Um amplo aparato do qual dispõe o feminismo civilizatório é apresentado: assembleias internacionais, apoio de Estados ocidentais e pós-coloniais, mídias femininas, instituições governamentais e organizações não governamentais. Tal aparato impõe uma agenda às mulheres do Sul global e supostamente auxilia na reparação da destruição de suas comunidades, porém sem atribuição de responsabilidade aos verdadeiros culpados ou questionamentos mais profundos sobre quem são, de fato, os destruidores. As vozes e demandas dessas mulheres são silenciadas e substituídas por amplo “vocabulário das ONGS”, como empowerment (empoderamento), capacity (capacidade), leadership (liderança), governance (governança) (Vergès, 2020).

Assim, a substituição de pautas e discursos das mulheres do Sul global é uma das formas pelas quais o feminismo civilizatório opera visando ao apagamento de pautas transformadoras e radicalmente antirracistas e anticapitalistas. Outra forma de ação apontada pela autora é o embraquecimento e a pacificação das figuras militantes, levando à reescrita da luta de mulheres negras e racializadas a partir de um viés ocidentalista e branco. Do mesmo modo, há tentativa do feminismo civilizatório de encobrir o caráter estrutural das opressões, afirmando que desigualdades entre homens e mulheres são uma questão de mentalidade ou de falta de educação. Reduzir o feminismo à mudança de mentalidade não apenas individualiza uma questão estrutural, política e coletiva, mas também induz que essa modificação seria válida para todos os homens e mulheres, descontextualizando as opressões e universalizando a situação das feministas civilizatórias.

Um exemplo importante dessa universalização é o foco dado ao uso do véu pelas mulheres muçulmanas, encobrindo a ótica colonialista e xenófoba, potencializando o lugar das mulheres brancas como salvadoras. Criaram-se argumentos superficiais e preconceituosos, misturando o uso do véu com denúncias sobre interpretações do Alcorão ou práticas como mutilação genital e casamento infantil. Expressa-se assim a persistência de um orientalismo, reificando o Oriente como lugar de outreidade e a convicção de que “na nossa casa” (França/Europa) “a mulher é igual ao homem” ( Vergès, 2020VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo, Ubu Editora, 2020.: 81). A crítica levantada por Vergès está presente entre feministas árabes e muçulmanas, embora ainda siga margeando o debate acadêmico. Saba Mahmood já afirmava a intensificação da islamofobia e a má formulação da problemática religiosa por parte de intelectuais feministas ( Mahmood, 2006MAHMOOD, Saba. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: Algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v.10, n.1, 2006, pp.121-158 [https://doi.org/10.4000/etnografica.6431– acesso em: 22 jun 2021].
https://doi.org/10.4000/etnografica.6431...
: 121). Lembremos da icônica questão colocada por Lila Abu-Lughod: “As mulheres muçulmanas realmente precisam de salvação?” ( Abu-Lughod, 2012ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre relativismo cultural e seus Outros. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 2, mai./ago. 2012, p. 451-470 [https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200006– acesso em: 22 jun 2021].
https://doi.org/10.1590/S0104-026X201200...
: 465). A resposta dada por Lughod é “não”, justificada mediante crítica ao viés feminista civilizatório que percebe a mulher muçulmana num lugar exclusivo de passividade, devendo ser libertada pela mulher ocidental branca.

Vergès defende um feminismo decolonial embativo e aciona propostas fundamentais, como fidelidade às mulheres do Sul global e suas trajetórias, heranças, memórias, luta e “despatriarcalização das lutas revolucionárias”. A busca por “reapropriação científica e filosófica que revisa a narrativa europeia do mundo” e, em contestação à “economia-ideologia da falta”, da ausência de razão, beleza, ciência e técnica que encontra apoio em mulheres do Norte global, em “nova etapa no processo de decolonização” (Vergès, 2020:35, 39).

Uma notoriedade da obra é o diálogo com o feminismo de quilombagem e sua proposta radical de ruptura e desobediência. A partir do diálogo com o afro-feminismo, questiona-se o sistema de plantation , a escravização e sua contribuição com a condição das mulheres racializadas. Tendo como referência Maria Lugones e Oyèrónke Oyewùmí, Vergès reflete sobre a “colonialidade do gênero” ( Lugones, 2008LUGONES, Maria. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n.9, Bogotá, jul.dez/2008, pp.73-101. ) e a promoção da determinação sexual e dupla subjugação das mulheres por parte dos colonizadores e dos homens colonizados ( Vergès, 2020VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo, Ubu Editora, 2020. ).

A autora finaliza o livro retomando as reflexões iniciais sobre como a organização da sociedade, ancorada no racismo, capitalismo e xenofobia, constrói um regime de desgaste dos corpos racializados, pessoas designadas pelas forças do capital como exploráveis e descartáveis. Esse grupo de pessoas dedica-se, em geral, a tarefas de cuidado, compondo ampla massa invisível para criar um mundo adequado, limpo e agradável para o capitalismo. Apesar da ampla produção de lixo e resíduos pelo capitalismo, tudo isso deve estar oculto aos olhos de quem tem uma vida livre de desgaste. Impõe-se, então, uma segregação do mundo a partir das noções de limpeza/sujeira, baseada numa divisão racial do espaço urbano, direito à cidade, ao bem-estar e à vida.

Vergès reitera a necessidade urgente de o feminismo decolonial questionar “quem limpa o mundo” e analisar os trabalhos de limpeza e cuidado frente a um cenário de neoliberalismo racial. Tal análise enfrenta as armadilhas do feminismo civilizatório e reafirma o direito à existência num mundo no qual os direitos foram em parte forjados para excluir (Vergès, 2020). A chegada do livro de Vergès no Brasil, num cenário de pandemia, elucida a importância de se pensar sobre o trabalho de cuidado e limpeza, bem como os impactos das perdas de direitos pela população mais vulnerável. Não nos esqueçamos de Rosana Aparecida Urbano, empregada doméstica e primeira vítima fatal da Covid-19 no Brasil. As mulheres racializadas, responsáveis pela limpeza, são as grandes vítimas da pandemia e das políticas neoliberais, assim, torna-se indispensável para as teorias feministas elucidar as estruturas e estratégias que oprimem e invisibilizam tais corpos.

Referências bibliográficas

  • ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre relativismo cultural e seus Outros. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 2, mai./ago. 2012, p. 451-470 [https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200006– acesso em: 22 jun 2021].
    » https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200006–
  • LUGONES, Maria. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n.9, Bogotá, jul.dez/2008, pp.73-101.
  • MAHMOOD, Saba. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: Algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v.10, n.1, 2006, pp.121-158 [https://doi.org/10.4000/etnografica.6431– acesso em: 22 jun 2021].
    » https://doi.org/10.4000/etnografica.6431–
  • VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo, Ubu Editora, 2020.
  • Resenha do livro: VERGÉS, Françoise. Um feminismo decolonial . São Paulo, Ubu Editora, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2021
  • Aceito
    16 Fev 2021
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