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Anticorpos antifosfolipídeos em pacientes gravemente enfermos

Resumos

Os anticorpos antifosfolipídeos são responsáveis por um amplo espectro de manifestações clínicas. A trombose venosa, arterial e microvascular, e casos graves e catastróficos são responsáveis por importante morbidade/mortalidade. Por meio da conexão dos sistemas imune, inflamatório e hemostático, é possível que esses anticorpos contribuam para o desenvolvimento de disfunções orgânicas e sejam associados com um pior prognóstico, tanto em curto quanto em longo prazos, em pacientes gravemente enfermos. Realizamos uma pesquisa do período entre janeiro de 2000 e fevereiro de 2013, utilizando a base de dados PubMed/MedLine, para avaliar a frequência de anticorpos antifosfolipídeos em pacientes gravemente enfermos e seu impacto nos desfechos desses pacientes. Encontramos apenas oito estudos originais envolvendo pacientes gravemente enfermos. Contudo, o desenvolvimento de anticorpos antifosfolipídeos parece ser frequente em pacientes gravemente enfermos, sendo porém necessários mais estudos para esclarecer seu papel patogênico e suas implicações na prática clínica.

Anticorpos antifosfolipídeos; Prognóstico; Estado terminal; Doença catastrófica; Insuficiência de múltiplos órgãos; Síndrome antifosfolipídica; Unidades de terapia intensiva


Antiphospholipid antibodies are responsible for a wide spectrum of clinical manifestations. Venous, arterial and microvascular thrombosis and severe catastrophic cases account for a large morbidly/mortality. Through the connection between the immune, inflammatory and hemostatic systems, it is possible that these antibodies may contribute to the development of organ dysfunction and are associated with poor short and long-term prognoses in critically ill patients. We performed a search of the PubMed/MedLine database for articles written during the period from January 2000 to February 2013 to evaluate the frequency of antiphospholipid antibodies in critically ill patients and their impact on the outcomes of these patients. Only eight original studies involving critically ill patients were found. However, the development of antiphospholipid antibodies in critically ill patients seems to be frequent, but more studies are necessary to clarify their pathogenic role and implications for clinical practice.

Antibodies, antiphospholipid; Prognosis; Critical illness; Catastrophic illness; Multiple organ failure; Antiphospholipid syndrome; Intensive care units


INTRODUÇÃO

Os anticorpos antifosfolipídeos (AAF) são um grupo heterogêneo de anticorpos contra membranas fosfolipídeas ou proteínas ligantes a antifosfolipídeos. A presença de AAF patogênicos, como anticardiolipina (aCL), anticoagulante lúpico (LAC) ou anti-β2 glicoproteína I (aβ2GLP I), é parte dos critérios de diagnóstico da síndrome antifosfolipídica (SAF) e responsável por um maior risco de trombose arterial, venosa e microvascular.(11. Levine JS, Branch DW, Rauch J. The antiphospholipid syndrome. N Engl J Med. 2002;346(10):752-63. Review.

2. Miyakis S, Lockshin MD, Atsumi T, Branch DW, Brey RL, Cervera R, et al. International consensus statement on an update of the classification criteria for definite antiphospholipid syndrome (APS). J Thromb Haemost. 2006;4(2):295-306.

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O mecanismo da trombose mediada por AAF não está completamente elucidado, mas a presença de anticorpos persistentes ou transitórios nem sempre gera trombose; fatores adicionais de risco, também denominados "estímulos secundários ou múltiplos", são necessários para iniciar o processo trombogênico.(33. de Groot PG, Urbanus RT, Derksen RH. Pathophysiology of thrombotic APS: where do we stand? Lupus. 2012;21(7):704-7.,55. Willis R, Harris EN, Pierangeli SS. Pathogenesis of the antiphospholipid syndrome. Semin Thromb Hemost. 2012;38(4):305-21. Review.) Em pacientes com trombose disseminada, disfunção de múltiplos órgãos e circulação de AAF, podem ser identificados eventos desencadeantes em até 60% dos casos, dos quais infecções graves são os mais comuns.(66. Asherson RA. The catastrophic antiphospholipid (Asherson's) syndrome. Autoimmun Rev. 2006;6(2):64-7.

7. Cervera R, Bucciarelli S, Plasín MA, Gómez-Puerta JA, Plaza J, Pons-Estel G, Shoenfeld Y, Ingelmo M, Espinos G; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome (CAPS) Registry Project Group (European Forum On Antiphospholipid Antibodies). Catastrophic antiphospholipid syndrome (CAPS): descriptive analysis of a series of 280 patients from the "CAPS Registry". J Autoimmun. 2009;32(3-4):240-5.
-88. Cervera R. CAPS Registry. Lupus. 2012;21(7):755-7.)

A maioria dos pacientes com doença grave aguda tem o sistema de coagulação ativado, resultando em presença de trombina e depósito microvascular de fibrina.(99. Marshall JC. Inflammation, coagulopathy, and the pathogenesis of multiple organ dysfunction syndrome. Crit Care Med. 2001;29(7 Suppl):S99-106.) Isso, por sua vez, leva a má perfusão dos tecidos, aumentando o dano tissular e perpetuando o ciclo pró-inflamatório e pró-trombótico. A presença de AAF pode também ser acrescentada a esse ciclo e constituir um elo na complexa conexão entre inflamação, coagulação e resposta imune.

Entretanto, ainda precisa ser esclarecido o papel desses anticorpos na evolução clínica e no prognóstico de pacientes gravemente enfermos.

No presente artigo, apresentamos uma revisão narrativa para descrever a frequência de AAF em pacientes gravemente enfermos e seu impacto nos desfechos desses pacientes.

MÉTODOS

Realizamos uma pesquisa na base de dados PubMed/MedLine compreendendo o período de janeiro de 2000 a fevereiro de 2013, utilizando os seguintes termos: "anticorpos antifosfolipídeos", "anticoagulante lúpico", "anticorpo anticardiolipina", "anti-beta2 glicoproteína I", "doença grave", "UTI", "sepse" e "falência de múltiplos órgãos". Revisamos também as referências dos estudos disponíveis quanto a outros potenciais estudos elegíveis, sendo identificados relatos publicados adicionais, por meio de busca manual de citações dos artigos obtidos (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma da seleção dos estudos.

RESULTADOS

A pesquisa resultou em 49 referências potencialmente relevantes, sendo que a maioria delas consistia de relatos de casos de eventos trombóticos catastróficos associados a AAF circulante, e artigos de revisão não especificamente a respeito do assunto. Desses estudos, além de outros três estudos de fontes adicionais de pesquisa, foram encontrados apenas oito estudos originais envolvendo pacientes gravemente enfermos. As principais características desses estudos são resumidas no quadro 1.

Quadro 1
Principais características dos estudos

Na doença grave, podemos observar três tipos principais de situações clínicas que envolvem AAF. O quadro mais frequentemente citado na literatura é SAF catastrófica (SAFc), um tipo de SAF que pode causar disfunção de múltiplos órgãos e que, assim, demanda tratamentos de suporte à vida e cuidados críticos. Entretanto, há dois outros importantes cenários na prática clínica. Pacientes positivos para AAF com ou sem SAF podem necessitar de tratamento intensivo fora do contexto de doença catastrófica.

Além disto, é razoável assumir que pacientes graves correm risco de desenvolver AAF, e que tais anticorpos podem contribuir para o desenvolvimento de trombose e disfunção de órgãos, afetando a evolução e o desfecho desses pacientes.

Síndrome antifosfolipídica catastrófica

Essa variante da SAF foi inicialmente descrita em 1992 por Asherson(1818. Asherson RA. The catastrophic antiphospholipid syndrome. J Rheumatol. 1992;19(4):508-12. Review.) e recebeu o epônimo de "síndrome de Asherson", em 2003. Responde por menos de 1% dos casos de SAF, contudo sua natureza grave chama a atenção ao tópico atual.

Em 2000, foi criado, pelo European Forum on Antiphospholipid Antibodies, um registro internacional de síndrome antifosfolipídica catastrófica - SAFc (o "CAPS registry": http://www.med.ub.es/MIMMUN/FORUM/CAPS.HTM). Esse registro conta, atualmente, com 280 casos relatados em todo o mundo. Em razão de sua baixa frequência e, possivelmente, por ser subdiagnosticada, não há, na literatura, grandes estudos multicêntricos e o conhecimento sobre o assunto vem principalmente de estudos observacionais por meio desse registro. A tabela 1 resume os principais aspectos desses pacientes.

Tabela 1
Principais características dos pacientes com síndrome antifosfolipídica catastrófica

A síndrome é caracterizada por desenvolvimento trombótico rápido (pelo menos 1 semana) em três ou mais órgãos em associação com a presença de AAF (Quadro 2).(1919. Asherson A, Cervera R, de Groot PG, Erkan D, Boffa MC, Piette JC, Khamashta MA, Shoenfeld Y; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome Registry Project Group. Catastrophic antiphospholipid syndrome: international consensus statement on classification criteria and treatment guidelines. Lupus. 2003;12(7):530-4. Review.) Diferentemente da SAF clássica, as manifestações trombóticas afetam principalmente pequenos vasos, sendo encontrada microtrombose em 89% das autópsias.(2020. Bucciarelli S, Cervera R, Espinosa G, Gómez-Puerta JA, Ramos-Casals M, Font J. Mortality in the catastrophic antiphospholipid syndrome: causes of death and prognostic factors. Autoimmun Rev. 2006;6(2):72-5. Review.)

Quadro 2
Critérios para classificação de síndrome antifosfolipídica catastrófica

Pacientes com SAFc desenvolvem falência de múltiplos órgãos, e a evolução das manifestações clínicas depende dos órgãos afetados pelo processo trombótico.(66. Asherson RA. The catastrophic antiphospholipid (Asherson's) syndrome. Autoimmun Rev. 2006;6(2):64-7.) Em 1998, Kitchens utilizou o termo "tempestade trombótica", postulando que uma série de alterações na via fibrinolítica seria responsável pela continuidade da trombose.(2121. Kitchens CS. Thrombotic storm: when thrombosis begets thrombosis. Am J Med. 1998;104(4):381-5.)

Em até 60% dos casos, podem-se identificar um ou mais desencadeantes para a trombose, sendo os mais comuns as infecções e os trauma.(66. Asherson RA. The catastrophic antiphospholipid (Asherson's) syndrome. Autoimmun Rev. 2006;6(2):64-7.,77. Cervera R, Bucciarelli S, Plasín MA, Gómez-Puerta JA, Plaza J, Pons-Estel G, Shoenfeld Y, Ingelmo M, Espinos G; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome (CAPS) Registry Project Group (European Forum On Antiphospholipid Antibodies). Catastrophic antiphospholipid syndrome (CAPS): descriptive analysis of a series of 280 patients from the "CAPS Registry". J Autoimmun. 2009;32(3-4):240-5.,2222. Cervera R, Espinosa G. Update on the catastrophic antiphospholipid syndrome and the "CAPS Registry". Semin Thromb Hemost. 2012;38(4):333-8.) Cerca de 25% dos pacientes iniciam as manifestações clínicas com disfunção pulmonar, e a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) é o principal quadro clínico. Durante a evolução da doença, ocorre disfunção renal em até 71%, seguida por envolvimento neurológico, cardíaco e cutâneo. É interessante que a trombose de grandes vasos arteriais ou venosos só é observada em um terço dos pacientes.(77. Cervera R, Bucciarelli S, Plasín MA, Gómez-Puerta JA, Plaza J, Pons-Estel G, Shoenfeld Y, Ingelmo M, Espinos G; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome (CAPS) Registry Project Group (European Forum On Antiphospholipid Antibodies). Catastrophic antiphospholipid syndrome (CAPS): descriptive analysis of a series of 280 patients from the "CAPS Registry". J Autoimmun. 2009;32(3-4):240-5.,88. Cervera R. CAPS Registry. Lupus. 2012;21(7):755-7.,2222. Cervera R, Espinosa G. Update on the catastrophic antiphospholipid syndrome and the "CAPS Registry". Semin Thromb Hemost. 2012;38(4):333-8.)

As anormalidades laboratoriais mais comuns são a trombocitopenia e a anemia hemolítica.(77. Cervera R, Bucciarelli S, Plasín MA, Gómez-Puerta JA, Plaza J, Pons-Estel G, Shoenfeld Y, Ingelmo M, Espinos G; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome (CAPS) Registry Project Group (European Forum On Antiphospholipid Antibodies). Catastrophic antiphospholipid syndrome (CAPS): descriptive analysis of a series of 280 patients from the "CAPS Registry". J Autoimmun. 2009;32(3-4):240-5.) Fatores associados à coagulação intravascular disseminada (CIVD) são identificados em 15% dos pacientes em uma análise observacional. Apenas a trombocitopenia (100% versus 59%; p<0,01) foi identificada como significantemente diferente entre os grupos de pacientes com ou sem CIVD.(2323. Asherson RA, Espinosa G, Cervera R, Gómez-Puerta JA, Musuruana J, Bucciarelli S, et al. Disseminated intravascular coagulation in catastrophic antiphospholipid syndrome: clinical and haematological characteristics of 23 patients. Ann Rheum Dis. 2005;64(6):943-6.)

Apesar das reduções na mortalidade durante a última década, provavelmente em razão de regimes terapêuticos combinando anticoagulação, corticosteroides e plasmaferese, a taxa de mortalidade permanece acima de 40%.(77. Cervera R, Bucciarelli S, Plasín MA, Gómez-Puerta JA, Plaza J, Pons-Estel G, Shoenfeld Y, Ingelmo M, Espinos G; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome (CAPS) Registry Project Group (European Forum On Antiphospholipid Antibodies). Catastrophic antiphospholipid syndrome (CAPS): descriptive analysis of a series of 280 patients from the "CAPS Registry". J Autoimmun. 2009;32(3-4):240-5.,2020. Bucciarelli S, Cervera R, Espinosa G, Gómez-Puerta JA, Ramos-Casals M, Font J. Mortality in the catastrophic antiphospholipid syndrome: causes of death and prognostic factors. Autoimmun Rev. 2006;6(2):72-5. Review.)

Além de sua gravidade e associação com intensa resposta inflamatória, e dos frequentes fatores desencadeantes que contribuem para o espectro de manifestações clínicas, em 46% dos pacientes essa é a primeira manifestação da SAF, sem histórico pregresso de AAF positivo, trombose ou perda fetal.(77. Cervera R, Bucciarelli S, Plasín MA, Gómez-Puerta JA, Plaza J, Pons-Estel G, Shoenfeld Y, Ingelmo M, Espinos G; Catastrophic Antiphospholipid Syndrome (CAPS) Registry Project Group (European Forum On Antiphospholipid Antibodies). Catastrophic antiphospholipid syndrome (CAPS): descriptive analysis of a series of 280 patients from the "CAPS Registry". J Autoimmun. 2009;32(3-4):240-5.) Coerentemente, seu diagnóstico torna-se um desafio e depende da suspeita clínica, já que, frequentemente, é indistinguível de outras condições clínicas, como sepse, CIVD ou anemia hemolítica microangiopática, podendo causar retardo do tratamento e ter uma evolução desastrosa.

Além disso os critérios diagnósticos são complexos e difíceis de cumprir, principalmente pela necessidade de biópsia e de dois exames revelando persistência de positividade de anticorpos. Na maioria dos casos, devido à gravidade da doença desses pacientes e da mortalidade precoce, frequentemente os pacientes não são reavaliados quanto à presença de AAF.

Assim, é de fundamental importância estabelecer o papel desses anticorpos permanentes ou transitórios em pacientes gravemente enfermos e identificar grupos de pacientes em risco de eventos catastróficos relacionados a esses anticorpos.

Pacientes positivos para anticorpos antifosfolipídeos admitidos na unidade de terapia intensiva

Pacientes com AAF podem necessitar de terapia intensiva fora do contexto de um evento catastrófico. Atualmente, o quanto e como a presença desses anticorpos influencia a evolução clínica e o prognóstico na unidade de terapia intensiva (UTI) ainda não são bem compreendidos.

Os dados da literatura a respeito de pacientes gravemente enfermos e de doenças autoimunes são limitados e, em comparação a pacientes com AAF, praticamente inexistem. No entanto, os dados apontam para uma menor sobrevida em longo prazo de pacientes com diagnóstico prévio de SAF internados na UTI em comparação a pacientes com outras doenças autoimunes.

Dois estudos recentes, que avaliaram o prognóstico e os preditores de mortalidade em curto prazo de pacientes com doenças autoimunes na UTI, incluíram um total de 31 pacientes com AAF positivo, entretanto os autores não analisaram esse subgrupo.(2424. Antón JM, Castro P, Espinosa G, Marcos M, Gandía M, Merchán R, et al. Mortality and long term survival prognostic factors of patients with systemic autoimmune diseases admitted to an intensive care unit: a retrospective study. Clin Exp Rheumatol. 2012;30(3):338-44.,2525. Faguer S, Ciroldi M, Mariotte E, Galicier L, Rybojad M, Canet E, et al. Prognostic contributions of the underlying inflammatory disease and acute organ dysfunction in critically ill patients with systemic rheumatic diseases. Eur J Intern Med. 2013;24(3):e40-4.) Em análises multivariadas, Faguer et al. identificaram hospitalização por pneumonia bacteriana ou exacerbação de doença reumática sistêmica, necessidade de amina vasoativa durante a permanência na UTI e dermatomiosite como doenças de base preditores de mortalidade em 30 dias.(2525. Faguer S, Ciroldi M, Mariotte E, Galicier L, Rybojad M, Canet E, et al. Prognostic contributions of the underlying inflammatory disease and acute organ dysfunction in critically ill patients with systemic rheumatic diseases. Eur J Intern Med. 2013;24(3):e40-4.)

Um pequeno estudo retrospectivo, realizado em 2002, teve como objetivo avaliar as causas de hospitalização e o prognóstico de pacientes com lúpus erimatoso sistêmico (LES) e/ou SAF admitidos à UTI. Dentre os 61 pacientes incluídos, 37 tinham SAF, embora apenas um caso fosse considerado primário. A principal causa de internação foi infecção (41%). Cerca de metade desses pacientes apresentava insuficiência renal quando da admissão. Durante a permanência na UTI, 61% receberam ventilação mecânica, 67% necessitaram de aminas como suporte e 63% necessitaram de hemodiálise, sem diferença entre pacientes com ou sem AAF. Apesar disso, após ajuste para variáveis relevantes, a presença de SAF mostrou tendência a aumento da mortalidade na UTI e sobrevida em longo prazo reduzida.(1212. Williams FM, Chinn S, Hughes GR, Leach RM. Critical illness in systemic lupus erythematosus and the antiphospholipid syndrome. Ann Rheum Dis. 2002;61(5):414-21.)

O papel dos anticorpos antifosfolipídeos na doença grave

Sabe-se, hoje, que os anticorpos AAF reagem com o endotélio e monócitos circulantes, e estimulam as células a produzirem e liberarem interleucina 6 (IL-6) e fator de necrose tumoral (TNF).(2626. Satta N, Kruithof EK, Fickentscher C, Dunoyer-Geindre S, Boehien F, Reber G, et al. Toll-like receptor 2 mediates the activation of human monocytes and endothelial cells by antiphospholipid antibodies. Blood. 2011;117(20):5523-31.

27. Zhou H, Sheng L, Wang H, Xie H, Mu Y, Wang T, et al. Anti-β2GPI/β2GPI stimulates activation of THP-1 cells through TLR4/MD-2/MyD88 and NF-kB signaling pathways. Thromb Res. 2013;132(6):742-9.
-2828. Allen KL, Fonseca FV, Betapudi V, Willard B, Zang J, McCrae KR. A novel pathway for human endothelial cell activation by antiphospholipid/anti-ß2 glycoprotein I antibodies. Blood. 2012;119(3):884-93.) Essas citocinas desempenham um importante papel nas respostas imune e inflamatória. Entretanto, a mesma resposta induz, por sua vez, à expressão de fator tissular (FT), o principal fator desencadeante da coagulação, que pode aumentar a produção de fator X ativado (FXa) e trombina.(2929. Ruf W, Disse J, Carneiro-Lobo TC, Yokota N, Schaffner F. Tissue factor and cell signalling in cancer progression and thrombosis. J Thromb Haemost. 2011;9 Suppl 1:306-15) Esse último, por sua vez, atua produzindo coágulo de fibrina e também tem a capacidade de ativar receptores celulares específicos (receptores de protease ativada ou PARs), gerando respostas como ativação de plaquetas e endotélio, estímulo da inflamação, resposta imune, acúmulo de fluidos no terceiro espaço (frequentemente encontrado em pacientes graves), entre outros.(3030. Ramachandran R, Hollemberg MD. Proteinases and signalling: pathophysiological and therapeutic implications via PARs and more. Br J Pharmacol. 2008;153 Suppl 1:S263-82.)

A intersecção entre AAF, sistema imune e coagulação pode ocorrer para regular autorrespostas, e fenômenos trombóticos, assim como piora dos padrões inflamatórios, podem ser uma consequência do desequilíbrio nesta regulação.

Maneta-Peyret et al. compararam líquido de lavagem broncoalveolar (LBA) de pacientes com e sem SDRA e identificaram a presença de AAF exclusivamente em pacientes com SDRA, em comparação a pacientes mecanicamente ventilados por outras razões.(1010. Maneta-Peyret L, Kitsiouli E, Lekka M, Nakos G, Cassagne C. Autoantibodies to lipids in bronchoalveolar lavage fluid of patients with acute respiratory distress syndrome. Crit Care Med. 2001;29(10):1950-4.) Subsequentemente, Wiedermann et al. avaliaram a presença de AAF no LBA ou sangue de 27 pacientes sem história pregressa de SAF, que necessitaram de ventilação mecânica por SDRA. Os autores encontraram baixos títulos de AAF no LBA e soro desses pacientes, embora esses títulos não fossem associados com a gravidade da lesão pulmonar ou mortalidade.(1313. Wiedermann FJ, Lederer W, Mayr AJ, Sepp N, Herold M, Schobersberger W. Prospective observational study of antiphospholipid antibodies in acute lung injury and acute respiratory distress syndrome: comparison with catastrophic antiphospholipid syndrome. Lupus. 2003;12(6):462-7.)

A detecção de AAF no LBA de pacientes com SDRA pode sugerir o envolvimento de mecanismos autoimunes na patogênese da síndrome, mas não há evidência para apoiar a produção local de anticorpos. Acredita-se que sua presença no LBA é em razão do aumento da permeabilidade pulmonar. Entretanto, continua obscuro se a produção heterogênea de AAF contribui de alguma forma para o desenvolvimento ou a gravidade da SDRA.

Wenzel et al. avaliaram prospectivamente 51 pacientes adultos (>18 anos) admitidos a uma UTI geral com aumento dos níveis do tempo de protrombina parcial ativada (TTPa). Foi observado LAC em 52,9%. Nenhum paciente foi positivo para aCL ou aβ2GLP I. Sepse e dependência de vasopressores se associaram com o desenvolvimento do anticorpo, que, subsequentemente, tornou-se negativo após, em média, 4 semanas. Dentre os parâmetros inflamatórios, a proteína C-reativa (PCR) foi mais elevada em pacientes positivos para LAC (14,7 [11,4 a 20,8] versus 6,0 [1,4 a 21,1], p=0,01). Não houve eventos trombóticos clinicamente detectáveis.(1111. Wenzel C, Stoiser B, Locker GJ, Laczika K, Quehenberger P, Kapiotis S, et al. Frequent development of lupus anticoagulants in critically ill patients treated under intensive care conditions. Crit Care Med. 2002;30(4):763-70.)

Semelhantemente, Aldawood et al. incluíram prospectivamente 155 pacientes admitidos a uma UTI geral para investigar a incidência de prolongamento do TTPa causado pelo LAC e eventos relacionados à presença do anticorpo. Houve positividade para LAC em 77% dos pacientes testados. Sepse e vasopressores foram também associados com positividade para AAF. Não houve aumento de eventos tromboembólicos ou sangramento. Contudo, a presença de anticorpos positivos foi associada com uma mortalidade de 46% em comparação a 5,6% no grupo negativo.(1414. Aldawood AS, Crowther M, Jaeschke R, Dabbagh O, Alkhairy K, Baharoon S, et al. The incidence and impact of lupus anticoagulants among patients in the intensive care unit. Saudi Med J. 2005;26(12):1994-5.)

Recentemente, em análise retrospectiva de uma série de casos de 18 pacientes graves com câncer, que desenvolveram disfunção orgânica e manifestações trombóticas, foi identificado LAC em 100% dos casos. Observou-se que as mortalidades na UTI, hospital e em 90 dias foram, respectivamente, de 61%, 72% e 83% - uma taxa mais elevada do que o relatado na literatura contemporânea para pacientes com câncer gravemente enfermos.(1616. Salluh JI, Soares M, De Meis E. Antiphospholipid antibodies and multiple organ failure in critically ill cancer patients. Clinics (São Paulo). 2009;64(2):79-82.)

O mesmo grupo avaliou prospectivamente a prevalência e o impacto dos AAF em 95 pacientes com câncer gravemente enfermos. Pelo menos um AAF foi positivo em 70% de todos os pacientes, sendo os mais comuns LAC (61%) e aβ2GLP I (32%). Ocorreram complicações vasculares em 18% de todos os pacientes, que foram comparáveis entre pacientes AAF positivos e negativos. Além disso, associaram-se com sepse grave ou choque séptico na admissão (40% versus 20%; p=0,047) e com maior necessidade de terapia de substituição renal durante a permanência na UTI (33% versus 8%; p=0,017). Escores da Sequential Organ Failure Assessment (SOFA) mais elevados (cada ponto) [HR=2,83 (1,59-5,00)], internações clínicas [HR=2,66 (1,34-5,27)] e dímero D >500ng/dL [HR=1,89 (1,04-3,44)] associaram-se independentemente com mortalidade. Após ajustar para essas covariáveis, a condição em relação a AAF não se associou com os desfechos [HR=1,22 (0,60-2,47)].(1717. Vassalo J, Spector N, de Meis E, Rabello LS, Rosolem MM, do Brasil PE, et al. Antiphospholipid antibodies in critically ill patients with cancer: A prospective cohort study. J Crit Care. 2014 Feb 14. [Epub ahead of print])

Além de relatos de casos mostrando a presença de AAF em pacientes com grave disfunção de múltiplos órgãos, poucos e curtos estudos foram publicados em uma tentativa de avaliar o papel patogênico no desenvolvimento da disfunção orgânica, ou sua associação com mortalidade e prognóstico desses pacientes.

CONCLUSÃO

Anticorpos antifosfolipídeos são responsáveis por um amplo espectro de manifestações clínicas, inclusive trombose venosa, arterial e microvascular, e casos graves e catastróficos que respondem por uma alta morbidade/mortalidade. Por meio da conexão entre os sistemas imune, inflamatório e hemostático, é possível que esses anticorpos contribuam para o desenvolvimento da disfunção orgânica e se associem com um pior prognóstico, em curto e longo prazos, em pacientes gravemente enfermos. Segundo os dados existentes, o desenvolvimento de anticorpos antifosfolipídeos em pacientes gravemente enfermos parece ser comum, porém transitório na maioria dos pacientes, e também parece não se associar com eventos trombóticos ou com a sobrevida em médio prazo. Entretanto, são necessários mais estudos para esclarecer melhor o papel dos anticorpos antifosfolipídeos em pacientes gravemente enfermos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2014
  • Aceito
    18 Abr 2014
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