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Saúde, riscos e hiperprevenção

EDITORIAL

Saúde, riscos e hiperprevenção

Prof. Dr. Luis David Castiel

Pesquisador em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública - Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRZ, Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Há uma ênfase moralista e normativa nas complexas sociedades modernas e sua correspondente preocupação com responsabilidade e culpabilização(1). Esta atual visão moralista se apresenta especialmente no campo da promoção da saúde. Baseia-se em raciocínios que visam a estabelecer riscos de agravos preferencialmente sustentados pela busca de provas oriundas de pesquisas médico-epidemiológicas. Desta forma, procura-se definir, localizar e intervir naqueles indivíduos considerados responsáveis por falhas em termos de prevenção de riscos à saúde.

A prevenção – baseada no princípio de que algo é seguro enquanto não se demonstre perigoso, havendo evidências estatísticas que sustentam a noção de risco – se soma à precaução, com base no princípio de que nada é seguro enquanto não se demonstre ser inofensivo, quando não há tais evidências de falta de risco. Juntemos a proteção a essa díade – as medidas de controle da qualidade e segurança para a saúde em relação ao consumo de água e alimentos, condições de moradia, saneamento.

Esse conjunto é capaz de ocasionar o que poderia ser chamado de hiperprevenção. Aqui, estamos nos referindo, sob o ponto de vista de uma teoria crítica, à instituição de uma normatividade prevencionista excessiva no campo da saúde pública, em geral, e da promoção da saúde, em particular. Atualmente isso pode suceder diante das ameaças catastrofistas tanto no âmbito coletivo como individual. Veja-se, por exemplo, o ambiente de pânico inicial em relação à gripe suína.

No caso da prevenção dos riscos sanitários, diante de tantas imponderabilidades que abrangem a determinação e a presentificação de agravos à saúde, mesmo tomando-se as medidas preventivas, não temos certeza de que os resultados de proteção estejam garantidos com as medidas tomadas. Convivemos, de modo geral, com um estado de riscofobia – o medo por ficarmos à mercê de riscos que estariam em ação em um momento de descuido nosso para nos ameaçar.

Cabe ressaltar que não se trata aqui de desconsiderar o indiscutível poder do conhecimento existente sobre riscos, importante nas técnicas e conjuntos de práticas com vistas à prevenção de doenças em abrangência populacional. Inegavelmente, o cálculo dos riscos, em termos de sua orientação temporal futurológica, desempenha importante papel no sentido de viabilizar o delineamento de regularidades e padrões até que se possam ordenar as circunstâncias de modo que se obtenha algum senso de previsibilidade com vistas ao controle e à prevenção.

Importa, sim, sinalizar os possíveis efeitos de exageros em sua utilização e ressaltar sua vinculação com aspectos indesejáveis de uma cultura da ansiedade diante da impossível gestão de todos os apregoados riscos que nos ameaçam.

Considerados especificadamente, os riscos podem ter origem inteligível. Podem ser razoavelmente descritos, explicados, antecipados e serem passíveis de controle efetivo mediante intervenções bem indicadas. Encarados como fenômeno cumulativo, os riscos parecem ser bem menos razoáveis em termos de abordagem e contenção. Vistos como fenômeno de caráter global complexo, os riscos criam um ambiente apocalíptico resultante da hibridação de riscos reais e imaginários de distintos teores e provemientes de diferentes fontes – ecológicas, meteorológicas, geológicas, biomédicas, sociais, militares, políticas, econômicas, financeiras e informacionais(2).

Cabe aqui a pergunta: Será que, cada vez mais, se irá conceber a ideia de saúde a partir da noção de segurança? E que esta será mediada por uma pedagogia dirigida à monitoração por meio de autovigilância passível de criar um ambiente propício a paranoias e práticas obsessivas de hiperprevenção?

Em suma, a atual promoção de saúde dominante pode apresentar efeitos colaterais em sua perspectiva neo-higiênica, de forte conteúdo moral com vistas às pretensões da longevidade com vitalidade. De certa forma, pretende-se que nos mantenhamos mais tempo saudáveis no contexto individualista da produção de riquezas e do consumo. Mas, ao mesmo tempo, pode alimentar precariedades ambientais, sociais, políticas e econômicas e elevar nossas incertezas, ansiedades e medos.

  • 1. Innerarity D. La sociedad invisible. Madrid: Ed. Espasa Calpe, 2004.
  • 2. Van Loon J. Risk and Technological Culture: towards a sociology of virulence. London: Routledge, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2011
  • Data do Fascículo
    2011
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