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Gisèle Sapiro, Sociologia da literatura

Sapiro, Gisèle. Sociologia da literatura. Valentino, Juçara. Belo Horizonte: Moinhos/Contafios, 2019

A obra Sociologia da literatura , da socióloga francesa Gisèle Sapiro, em tradução da edição de 2014, com prefácio de Sérgio Miceli, está organizada em quatro capítulos, além das partes introdutórias e conclusivas. De modo preciso, Sapiro destaca no primeiro parágrafo da introdução que a sociologia da literatura investiga as práticas literárias como um produto social, em que estão inscritos instituições e agentes que produzem, consomem e avaliam esses bens culturais. Além disso, esse domínio requer a compreensão do tecido social que permite que determinadas obras sejam criadas. Valendo-se disso, Sapiro sintetiza que essa obra trata de produzir um “inventário do avanço atual das pesquisas nessa área em plena expansão, dando destaque ao ângulo sociológico e à metodologia [...]” (p. 13), sem deixar de estabelecer um extenso diálogo com autores de diferentes domínios das ciências humanas. Como podemos observar, o livro é ambicioso pois busca sintetizar e apresentar ao leitor um percurso do debate no âmbito da sociologia da literatura, servindo de baliza ao estudante que recém-ingressou, e aos já iniciados traz uma boa atualização da discussão recente, sem deixar de fazer uma abordagem diacrônica e sincrônica.

A exposição parte do geral ao particular, inicia pelo capítulo intitulado “Teorias e abordagens sociológicas da literatura”, passa pelos dois seguintes, “As condições sociais de produção das obras” e “A sociologia das obras”, e finaliza com o que denomina de “Sociologia da recepção”. Se no primeiro mostra-se ao leitor como se desenha o debate teórico no âmbito dos estudos sociológicos da literatura, na sequência há um encadeamento de sua escrita, na tentativa de explicitar que os sentidos mais completos dos bens culturais podem ser desvendados à luz de análises que considerem os seus processos de medição, sejam as condições materiais de produção das obras, os interesses específicos do campo de produção cultural e os diferentes elementos que estão presentes no complexo jogo de recepção e apropriação.

O primeiro capítulo, como bem sintetiza a autora na introdução, “traça a história desta especialidade e as teorias que mais a marcaram, em particular aquelas que tentaram ultrapassar a clivagem entre análise interna e análise externa das obras” (p. 14). O mote da sociologia da literatura é explicar as complexas relações entre as obras e as condições sociais de sua produção. De um lado, a autora apresenta alguns aspectos para assinalar o que chama teorias “protossociológicas”, com o objetivo de mostrar como ocorreu esse debate que redundou numa espécie de “o fazer literário como fazer social”, que consistiria em um olhar sobre “os efeitos sociais da literatura”, “as leis da história literária”, sobre uma transposição “da visão de mundo à sociologia do gosto literário”, e a noção de “literatura como ato de comunicação” (pp. 18-28). De outro, ela registra as diferentes possibilidades que são abertas na segunda metade do século XX, enfatizando três principais movimentos. Primeiro, os estudos oriundos do marxismo, cuja preocupação central seria explicar as obras no interior dos determinantes do mundo material. Nessa tradição, estariam autores que apresentaram variados caminhos de análise das obras, como por exemplo Goldmann ao afirmar que “o verdadeiro sujeito da obra não é o autor individual, mas o grupo social ao qual ele pertence” (p. 31) e Richard Hoggart que, imerso nos estudos culturais, “lança as bases de uma sociologia da recepção das obras por meio de uma investigação sobre as leituras populares” (p. 32). Depois, uma tradição que procura captar o que chama de “mundo das letras como um universo específico que tem suas lógicas próprias” (p. 35). Aqui se inscrevem os estudos da teoria dos campos, nos quais a literatura seria “uma atividade que tem suas próprias leis, suas questões específicas, seus princípios de consagração, os quais são relativamente autônomos em relação às limitações externas” (p. 36). Igualmente inserem-se as pesquisas que delinearam o conceito de instituição literária para definir um “conjunto dos fazeres sociais que contribuem para instituir práticas literárias, como a escrita, ou ainda como um ‘conjunto de normas que aplicam a uma área de atividade particular e que define uma legitimidade que se expressa em uma lei ou código’” (p. 38). Nesse segundo movimento, ainda seria incluída a teoria da polissemia que preconiza “a heterogeneidade dos fenômenos observados e a coexistência de diferentes sistemas estratificados” (p. 40), como produtor, instituição, repertório, mercado, produto, consumidor. Por fim, apareceria o interacionismo simbólico, cuja abordagem ganha força nos estudos biográficos em que variáveis como “relações no seio da família, amizade, vida amorosa, formação de grupos, relações com os pares, com os editores, com os tradutores […]” (p. 44) ganham força explicativa. Outra modalidade inscrita nessa terceira tendência seriam os estudos das redes, cuja potencialidade é “romper com o imaginário das singularidades do ‘criador’” (p. 47). Sapiro assinala que “o paradigma das redes, que se espalhou tanto na história intelectual como na história literária, parece mais apto para descrever as interações às quais dão lugar a atividade comum e os modos de formação dos grupos e seus modos de mobilização” (p. 47).

Feita essa discussão mais geral, no segundo capítulo, a autora debruça-se sobre as condições sociais da produção da literatura e o modo de funcionamento do mundo das letras, seja para desenvolver uma narrativa de âmbito teórico ou para mostrar como tais estudos são conduzidos metodologicamente. Aqui se avança em relação à discussão já assinalada no capítulo anterior, particularmente ao aprofundar as propostas de que as obras somente podem ser compreendidas com base nas mediações dos diferentes condicionamentos sociais e das relações específicas do campo de produção cultural, mas sem deixar de considerar que são necessários estudos empíricos para observar como ocorrem esses processos nas diferentes experiências históricas. A discussão de caráter mais teórico está fundamentada nos estudos produzidos sobre os constrangimentos ideológicos e econômicos que pesam sobre as produções culturais, desde aqueles que indicam a prevalência da heteronomia até os que evidenciam o aparecimento social do escritor, a diferenciação social e a divisão do trabalho intelectual e, consequentemente, a emergência de uma certa autonomia. Por exemplo, Sapiro observa que “da censura às políticas de apoio à criação literária e ao livro, a relação do poder político com a literatura em diferentes regimes oferece um vasto terreno de pesquisa, largamente explorado pelos historiadores e cada vez mais pelos historiadores da literatura” (p. 49). Ela apoia-se na historiografia e na sociologia para mostrar como o escritor ganha espaço social, chegando a assumir uma posição de destaque com a emergência do campo de produção cultural, estabelecendo-se mecanismos de resistência às limitações do campo político e do campo econômico. Esse processo, isto é, “a autonomia do campo literário se afirmou, na segunda metade do século XIX, por meio da reivindicação da primazia do julgamento dos pares e dos especialistas sobre aquelas dos profanos” (p. 54). Ao mesmo tempo a autora assinala a necessidade de estudos que tratem das mediações entre as obras e as condições sociais de sua produção em outros países da Europa e de outros continentes.

Ao tratar das condições sociais de produção das obras, Sapiro já está imersa nas discussões da teoria dos campos de Pierre Bourdieu. Mas essa vinculação ganha força quando passa a debater o modo de funcionamento do mundo das letras, enfatizando os mecanismos de recrutamento dos escritores. Novamente ela dialoga com historiadores – Alain Viala, Daniel Roche, Robert Darnton, Rémy Ponton – para mostrar o nascimento do escritor no século XVII. A autora utiliza as pesquisas historiográficas para demarcar as clivagens regionais, pois “os escritores regionalistas, recrutados principalmente na média e pequena burguesia comerciante, aparecem bem menos dotados de capitais herdados do que seus colegas que obtiveram um reconhecimento nacional” (p. 58). Da mesma forma identifica as disparidades de acesso à escolarização, uma vez que “os escritores constituem uma elite por suas origens sociais e por sua formação escolar secundária em uma época em que a taxa de escolarização por classe de idade é muito baixa” (p. 58). Além disso, ela registra que “o mundo das letras é também um lugar de observação das desigualdades entre os sexos e das clivagens de gênero” (p. 59), cujo processo de expansão do mercado reservava, no final do século XIX, uma diferenciação entre o que homens e mulheres poderiam escrever. No entanto, conforme assinala a autora, “a ascensão das mulheres à instituição escolar modificou amplamente essa situação. A feminização do campo literário após a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, a partir dos anos 1970, é uma das maiores transformações desse espaço” (p. 60).

Essas observações devem ser tomadas como desafio para estudos com recortes em outras regiões e continentes, como reitera Sapiro, em particular daqueles escritores que se encontram às margens das instituições de alto prestígio e de forte potencial de consagração. Nesses termos, ela destaca a metodologia de Análise de Correspondências Múltiplas, já bastante usada por Bourdieu – especialmente em A distinção (2007) –, para explicitar a estrutura do campo literário, seja para mostrar o funcionamento desse espaço social, seja para evidenciar os posicionamentos e as tomadas de posições dos agentes que nele estão imersos. Do mesmo modo, ela salienta que os estudos de redes podem ajudar a compreender as estruturas de relações e as estratégias empreendidas pelos agentes para integrar as instituições próprias do mundo das letras. Na parte final do segundo capítulo destaca-se que a sociologia da literatura explora o uso de dados qualitativos e quantitativos, em particular o uso de Análise de Correspondências Múltiplas.

No capítulo seguinte, a análise assume uma escala mais específica, pois ingressa no debate sobre a sociologia das obras, privilegiando uma reflexão sobre as representações por elas criadas e os modos de fazer utilizados pelos escritores. Esses dois aspectos ganham uma extensa imersão no universo dos estudos sociológicos, partindo das noções de visão de mundo, consciência coletiva, ideologia, senso comum, estrutura do sentimento ou dos afetos e chegando ao conceito de representação que ganhou visibilidade a partir dos anos 1980. Esse movimento sintetizado pela autora se desenha na assertiva de que “as obras literárias constituem uma fonte para estudar as representações sociais de uma época. Por suas representações sociológicas, a literatura realista se presta particularmente bem a este exercício” (p. 78). Valendo-se dessa consideração, a socióloga indica alguns estudos que mostram como as obras de Balzac, Flaubert, Zola, Proust, Stendhal e Céline permitem acessar as representações de suas épocas. Por exemplo, “todos os romances de Stendhal têm como pano de fundo a luta de classe travada entre a aristocracia e a burguesia na Restauração e depois sob a Monarquia de Julho, e seus heróis se debatem contra os determinismos sociais aos quais estão aprisionados” (p. 78). Outra frente de análise se refere aos estudos empreendidos após os debates da noção de gênero, introduzindo pesquisas de obras como “ Mademoiselle de Maupin (1835), de Théophile Gautier, assim como Gabriel (1840), de George Sand, [que] constituem exemplos paradigmáticos, em uma época em que a inversão e o ato de travestir-se são considerados patológicos” (p. 80).

A autora considera importante problematizar a relação entre obras e condições sociais de sua produção, destacando que os produtos culturais não podem ser tomados apenas como reflexo das estruturas. É preciso considerar que a literatura tem um conjunto de estratagemas que a constituem como modo de conhecimento prático. Sobre essa discussão, Sapiro afirma que “conceber a literatura como uma forma de conhecimento levanta a questão das relações entre literatura e os outros saberes, e os usos que são feitos dela” (p. 83). A análise indica que ater-se apenas às representações que uma determinada obra veicula não é suficiente para compreender as suas especificidades, o que requer um trabalho sobre a “formatação”, isto é, sobre o processo “que transforma essa matéria em produto literário identificado como tal”. Esse empreendimento analítico supõe “trazer à luz os ‘modos de fazer’, isto é, o ‘espaço dos possíveis’, de acordo com Bourdieu, ou o ‘repertório’ de modelos (temas, estilos, opções linguísticas) disponíveis em um momento dado, segundo Even-Zohar” (p. 86).

Diante disso, a autora faz uma provocação de ordem metodológica: como desenvolver pesquisas com esses princípios? Ela explora a abordagem relacional com o objetivo de mostrar sua fecundidade em contraposição à hermenêutica essencialista da linguística. Da mesma forma, sublinha a potencialidade do conceito de “repertório” que “permite compreender as formas legítimas de fazer da literatura” (p. 86), embora ele seja mais funcionalista que relacional. A abordagem relacional seria o mote central dos estudos da teoria dos campos de Bourdieu, em que se enfatizaria o modo de fazer, mas dentro do espaço dos possíveis.

O debate que está posto é a relação entre escritor, obras e mundo social. Sapiro sugere que um caminho seria reconstituir as escolas, as correntes e os gêneros no âmbito da literatura, utilizando métodos quantitativos para mostrar a evolução dos gêneros e realizar comparação entre gêneros e escolas, assim como o método prosopográfico para reconstituir as posições dos escritores e suas tomadas de posições com base em múltiplas variáveis como origem social, formação, idade etc. Outras variáveis podem ser fecundas nesse processo de análise, como as clivagens ortodoxia e heterodoxia, literatura e identidade, literatura e nação, o que gera toda uma problematização resultante no e dos estudos pós-coloniais, cuja centralidade é partir “de uma experiência da excentricidade para interrogar a cultura erudita e o cânone literário a partir das margens e da periferia” (p. 97).

No centro dessa discussão a autora assinala que os estudos expressam dois movimentos. De um lado, as pesquisas que tratam das literaturas periféricas tendem a enfatizar aspectos de caráter coletivo, como as lutas identitárias. De outro, as que retratam trajetórias de escritores com maior reconhecimento tendem a dar mais importância aos atos de criação. No entanto, a partir da tradição inaugurada por Bourdieu com a teoria dos campos, ela observa que os estudos relacionais pretendem superar essa clivagem, pois “a análise sociológica da produção das obras deve estudar o encontro entre um habitus e um campo, a interiorização do espaço dos possíveis sendo uma das condições de possibilidade do conhecimento das regras do jogo e da dimensão reflexiva, o que caracteriza a autonomia relativa do campo” (p. 100). Nesses termos, o objeto da sociologia da literatura estaria nessa complexa relação entre autoria, obra e campos, podendo recorrer-se aos conceitos de estratégia de escrita e estratégia de autor, revolução simbólica, posturas e cenografias autorais para analisar como se configuram as mediações entre habitus e campo.

No último capítulo, ao tratar da sociologia da recepção a autora traz outros aspectos para esse complexo jogo analítico. Os sentidos das obras que já deixaram de estar apenas na intenção do autor ou no próprio texto, pois estão imersos nas múltiplas relações do mundo social e no universo particular do mundo das letras, ganham novas configurações com os problemas atinentes aos processos de recepção. Esse aspecto é discutido com base no que a autora chama de condições de recepção e apropriação, assim como dos usos feitos das obras. Ora, essa especificidade da sociologia da literatura assume que “irredutível à intenção de seu autor, o sentido de uma obra se deve, em parte, às interpretações e apropriações que são feitas por seus leitores” (p. 109). À luz dessa afirmação, Sapiro elege um conjunto de variáveis que compõem as instâncias de mediação, a saber: etapas e desafios da recepção, os processos literários, a recepção crítica, os efeitos da recepção sobre a obra, a circulação transnacional das obras literárias. Cada uma dessas variáveis tem aspectos peculiares, como por exemplo as etapas da recepção que vão desde o paratexto, ao texto e depois da publicação, os quais devem ser considerados pelos estudos que se inscrevem na sociologia da recepção. A autora cita alguns exemplos do que classifica como efeitos de recepção para sustentar que “não se pode pretender escrever a história literária ou a história intelectual sem levar em conta os processos de recepção e seus efeitos” (pp. 117-118). Igualmente assevera que um conjunto de estudos que toma seus objetos valendo-se do conceito de transnacional mostra que não se pode pensar a recepção e a apropriação apenas atreladas à noção de nacional, remetendo às diferentes escalas que vão do regional ao internacional.

O outro aspecto do processo de recepção está no uso que se faz de um conjunto de obras, chamado de sociologia da leitura, em que se destacariam desde levantamentos sobre leituras até trajetórias de leitores, isto é, estudos com caráter quantitativo para mapear os índices das leituras por região, cidade, país, idade, sexo, assim como pesquisas qualitativas que buscam esmiuçar as modalidades de apropriação e as diferentes interpretações que os leitores fazem das obras. A autora reconhece a ampliação das possibilidades de estudos a partir do uso do impresso e da evolução das práticas de leitura, ao dialogar com os pesquisadores da história do livro e da leitura. Ela indica as fontes possíveis para realizar esse desiderato investigativo, sem deixar de manifestar as dificuldades de fazer essa reconstituição, especialmente das práticas de leitura, das formas de apropriação e de interpretação. Ela amplia essa discussão para tratar das tentativas de identificação dos tipos de leitura, cujos estudos classificam “de público culto” e “público popular”, ou leituras sérias e leituras de diversão. Sapiro indica que o processo de invenção do livro escolar produziu novas classificações, como “práticas altruístas da elite, a utilidade moral e social das leituras sérias para as classes populares e médias e as leituras de entretenimento, como o romance de folhetim, relegadas ao mais baixo nível” (p. 131). Sem deixar de apontar os limites dessas classificações, Sapiro finaliza o capítulo assinalando que estudos sobre as trajetórias de leitores mostram “a diversidade das práticas e ‘interesses de leitura’: instrução, entretenimento, busca de conselhos práticos, devoção religiosa etc., que podem existir em um mesmo indivíduo, inclusive com leitura esteta” (p. 133), assim como reiterando a necessidade de aprofundar os estudos no campo da sociologia da recepção.

A obra resenhada faz uma síntese de um amplo escopo de tradições que tratam dos estudos da relação entre escritores e sociedade. Em termos gerais, esse problema perpassa três tradições teóricas principais. No largo movimento marxista há um conjunto de autores com posições distintas no que tange ao modelo de explicação, mas todos preocupados em modular a forma de cotejar as ações dos indivíduos e as múltiplas determinações sociais, indo de Althusser aos estudos culturais de Williams. Se nesse grupo há um intenso debate no sentido de superar a teoria do reflexo (que subsumia o indivíduo à história), na outra linha apareceriam os estudos interacionistas, resultando em inúmeras frentes com tendência a privilegiar uma abordagem sobre o indivíduo, sobre a história de uma vida. Essa tendência encontra, de acordo com Sapiro, grande recepção no âmbito da história. De fato, nessa área podemos observar uma certa preocupação em captar não apenas os aspectos representativos de um grupo numa determinada trajetória, mas também as suas singularidades, como podemos observar na discussão de François Dosse (2009)DOSSE, François. (2009), O desafio biográfico: escrever uma vida . São Paulo, Edusp. . Essas duas tradições indicam tentativas de superação de uma escrita desencarnada das obras, bastante comum na história da filosofia, literatura e arte. Esse debate perpassa grande parte do século XX e integra muitas áreas das ciências humanas. Na história, como diz Chartier (2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 28), Lucien Febvre criticava esse modelo de escrita: “por isolar as ideias ou os sistemas de pensamento das condições que autorizam sua produção, por separá-los radicalmente das formas da vida social, essa história desencarnada institui um universo de abstrações onde o pensamento parece não ter limites já que não tem dependências”. Ou seja, “pensar de outro modo essas diferentes relações (entre a obra e seu criador, entre a obra e sua época, entre as diferentes obras de uma mesma época) exigia formar conceitos novos” ( Chartier, 2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 30). Assim “o indivíduo é devolvido à sua época, já que, seja ele qual for, não pode se subtrair às determinações que regulam as maneiras de pensar e de agir de seus contemporâneos” ( Chartier, 2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 34).

No entanto, havia uma certa preocupação com o apagamento do espaço de criação do indivíduo, razão pela qual assistimos ao retorno das microssociologias e das biografias. Isso estava no centro da discussão da relação escritor e sociedade. Por exemplo, de um lado, ao citar um fragmento de Dupront que remonta aos anos de 1960, Chartier (2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 42) afirma que “a história das ideias [...] pende demais para a intelectualidade pura. O que importa, tanto quanto a ideia talvez mais, é a encarnação da ideia, suas significações, o uso que se faz dela”. Por outro, o mesmo autor cita Franco Venturi para dizer que “o risco da história social das Luzes, é estudar as ideias quando elas se tornaram estruturas mentais, sem apreender o momento criativo e ativo, examinar toda a estrutura geológica do passado, salvo precisamente o húmus sobre o qual crescem as plantas e os frutos” ( Chartier, 2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 42). O leitor pode encontrar em Bourdieu uma via de entrada para essa discussão, acessando os livros Coisas ditas (1992a), especialmente o capítulo o “Campo intelectual: um mundo à parte”, Razões práticas: sobre a teoria do agir (2008), particularmente o capítulo “A ilusão biográfica”, Para uma sociologia da ciência (2004a), notadamente o capítulo “Esboço para uma auto-análise”, e Esquisse: pour une auto-analyse (2004b).

Nesse debate, Sapiro incluiu a teoria dos campos de Pierre Bourdieu, cuja preocupação é apresentar uma metodologia que considere as condições materiais das produções das obras (aspecto relevante na tradição marxista) e o espaço de ação dos indivíduos (elemento fundamental aos estudos interacionistas). Assim sendo, caberia ao pesquisador a complexa tarefa de perceber os processos de mediação de uma obra, desde as condições materiais até as razões singulares dos indivíduos. O recurso do pensamento bourdieusiano é a teoria dos campos, em que se inscreve o espaço dos possíveis. A estratégia de Bourdieu é propor a hipótese de existência de campos com regras específicas com alguma força para condicionar a produção de seus bens. É nesse contexto que ele produz um conjunto de estudos que mostram a constituição de certos campos, especificamente o campo de produção cultural, como bem analisa em As regras da arte (1996) e Manet: une révolution symbolique (2013). Em sentido estrito o leitor pode consultar o artigo intitulado “Le champ littéraire”, que mostra que “o grau de autonomia desse campo pode ser mensurado pelo efeito de retradução ou refração que sua lógica específica impõe aos constrangimentos externos” (Bourdieu, 1992b, p. 8, tradução nossa). No horizonte dos herdeiros de Bourdieu, registramos La guerre des écrivains - 1940-1953 (1999), La responsabilité de l’écrivain: Littérature, droit et morale en France (XIXe-XXIe siècles) (2011) e Les écrivains et la politique en France, de l’Affaire Dreyfus à la guerre d’Algérie (2018) , de Gisèle Sapiro, assim como A república mundial das letras (2002), de Pascale Casanova.

A obra de Sapiro ainda sintetiza um longo debate que diz respeito à teoria da circulação e recepção que atravessa as ciências humanas. Na história, por exemplo, Chartier (2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 52) defende que “restituir essa historicidade do consumo cultural ou intelectual seja ele mesmo tomado como uma produção, que certamente não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas àquelas que o produtor, o autor ou o artista investiram em sua obra”. Esse exercício de ruptura consiste, primeiramente, “afirmar que a obra só adquire sentido através das estratégias de interpretação que constroem suas significações”. Essa caracterização implica que a significação do “autor é uma dentre outras, que não encerra em si a verdade, suposta única e permanente, da obra” ( Chartier, 2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 52). Assim, “pode ser restituído o justo lugar ao criador, cuja intenção (clara ou inconsciente) não contém mais toda a compreensão possível de sua criação, mas cuja relação com a obra não é, no entanto, eliminada” ( Chartier, 2002CHARTIER, Roger. (2002), “História intelectual e história das mentalidades”. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude . Porto Alegre, UFRGS, pp. 23-60. , p. 53). Esse problema também estava presente nas discussões de Bourdieu ao dizer que “[...] os textos circulam sem seu contexto, sendo-os inseridos e interpretados em função da estrutura do campo de recepção” (Bourdieu, 2002, p. 4, tradução nossa). No entanto, ele asseverava que “o sentido e a função de uma obra são determinados pelo campo de recepção e campo de produção” ( Bourdieu, 2002BOURDIEU, Pierre. (2002), “Les conditions sociales de la circulation internationale des idées”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 145: 3-8. , p. 4, tradução nossa). Portanto, “trata-se de produzir um conhecimento científico dos campos de produção nacionais e das categorias nacionais do pensamento em que se engendram e se difundem esse conhecimento” ( Bourdieu, 2002BOURDIEU, Pierre. (2002), “Les conditions sociales de la circulation internationale des idées”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 145: 3-8. , p. 7, tradução nossa). Em língua portuguesa o leitor pode acessar o texto “Leitura, leitores, letrados, literatura” que está no livro Coisas ditas , já citado anteriormente.

Enfim, como se observa, a discussão do livro de Sapiro poderá induzir o leitor a uma imersão por diferentes tradições teóricas da sociologia da literatura, assim como à diferentes áreas do conhecimento das ciências humanas. A autora apresenta elementos que interessam tanto aos pesquisadores que desejam produzir estudos no âmbito da sociologia dos intelectuais, em interface com a história intelectual e história dos intelectuais, como a quem pretende enveredar-se por caminhos mais próximos à sociologia da literatura. Sem dúvida que esse último aspecto é o que está diretamente no horizonte desse livro da socióloga francesa, embora muitas discussões que estão presentes são objeto de reflexão das práticas de escrita de diferentes especialistas que se dedicam à relação entre intelectuais e sociedade.

Referências Bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    8 Mar 2020
  • Aceito
    4 Maio 2020
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