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A base psicobiológica da "transferência" e a sua ativação

The psychobiologycal basis of "transference" and its activation

Resumos

O autor apresenta o fenômeno de "transferência", "positiva" ou "negativa", como uma conduta instintiva e, portanto, como uma manifestação psicológica normal. Sua ativação ocorre através de diferentes tipos de estímulo: sinal liberador, figura simbólica e figura eqüivalente. Dentro de um modelo cibernético adotado pela Psicanálise Científica ele propõe que o termo "transferência" seja chamado de transposição.

transferência; transposição; sinal liberador; figura simbólica; figura eqüivalente


The author presents the phenomenon of "trsnsterence". "positive" or "negative", as an instinctive and, therefore, as a normal psychological manifestation. Its activation occurs through different types of stimuli: discharging signal, symbolic figure and equivalent figure. Inside a cybernetic model adopted by Scientific Psychoanalisis he proposes that the term "trensierence" be called transposition.

transference; transposition; discharging signal; symbolic figure; equivalent figure


ARTIGOS

A base psicobiológica da "transferência" e a sua ativação

The psychobiologycal basis of "transference" and its activation

Sebastião Elyseu Júnior

Mestre em Psicologia Clínica, Prof. Titular de Psicologia Médica e Teorias Psicanalítica da PUC-Campinas

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Av. Dr. Moraes Salles, 1610 apto 31 - Cambuí - Cep 13010-002 - Campinas - S.P. - Fone/fax: (0XX19) 252-7519.

RESUMO

O autor apresenta o fenômeno de "transferência", "positiva" ou "negativa", como uma conduta instintiva e, portanto, como uma manifestação psicológica normal. Sua ativação ocorre através de diferentes tipos de estímulo: sinal liberador, figura simbólica e figura eqüivalente. Dentro de um modelo cibernético adotado pela Psicanálise Científica ele propõe que o termo "transferência" seja chamado de transposição.

Palavras-chave: transferência- transposição -sinal liberador- figura simbólica- figura eqüivalente.

ABSTRACT

The author presents the phenomenon of "trsnsterence". "positive" or "negative", as an instinctive and, therefore, as a normal psychological manifestation. Its activation occurs through different types of stimuli: discharging signal, symbolic figure and equivalent figure. Inside a cybernetic model adopted by Scientific Psychoanalisis he proposes that the term "trensierence" be called transposition.

Key-words: transference- transposition - discharging signal- symbolic figure- equivalent figure.

Desde que Freud descobriu há um século, no célebre caso Dora, a importância do mecanismo psíquico consistente na reedição, em relação ao analista, de afetos, desejos, atitudes e reações tidos anteriormente em relação à determinadas figuras (pai, mãe, irmão etc), a Übertragung tornou-se o foco principal da terapia psicanalítica.

Por este fato histórico e pela reedição inadequada à realidade atual, a "transferência" tornou-se um conceito psicopatológico: o fim psicoterapêutico é a dissolução da mesma.

Desde então, infindáveis trabalhos psicanalíticos foram feitos sobre e a partir dela, tendo o próprio Freud (1912, p. 414) demonstrado que ela funciona como resistência ao processo terapêutico; mas, até hoje, não se explicou o porquê ela existe.

Cabe, inicialmente, tecer algumas considerações sobre o conceito de "transferência" entre a Psicanálise tradicional que é, segundo John Bowlby, toda aquela que adota o conceito de Trieb, e a Psicanálise científica, iniciada por ele e a qual seguimos.

Ambas reconhecem igualmente o fenômeno de "transferência"; mas, (1) enquanto a Psicanálise tradicional afirma que há deslocamento de energia psíquica libidinal e/ou agressiva, a Psicanálise científica, baseada na Biologia e, especialmente, nas Neurociências, não reconhece a existência desta energia e explica este fenômeno psíquico, tal como os outros, através do processamento de informações pelos sistemas neuropsíquicos, como será exposto adiante; (2) enquanto a Psicanálise tradicional preocupou-se, desde o seu início, com o conteúdo transferido, o seu simbolismo e a sua interpretação, a Psicanálise científica preocupou-se com o conhecimento das bases instintivas da conduta humana para, sobre elas, continuar edificando cientificamente uma teoria geral da Personalidade; nesse sentido, está verificando agora se a "transferência" tem uma base instintiva, já que se trata de um fenômeno psicológico universal no homem e tão importante para a sua vida em geral.

Para a Psicanálise científica, base instintiva quer dizer base filogênica, ou melhor, sistemas neuropsíquicos automáticos desenvolvidos evolutivamente e não a existência de energia psicobiológica (Trieb); o comportamento de apego, que tem base instintiva, possibilitou a excelente Teoria do Apego (Bowlby, 1969), já bastante desenvolvida e difundida no ocidente e no oriente; o comportamento de posse, também instintivo, possibilitou a Teoria da Posse (Elyseu Jr. - 1998, p. 77 a 80), em desenvolvimento e difusão; e, o estudo etológico da conduta transferencial pode possibilitar o reconhecimento da base instintiva ou psicobiológica da "transferência'' , de Freud.

Segundo Dethier e Stellar (1970, p. 97),

"os etólogos concebem o comportamento instintivo com uma interação complexa de influências internas e externas, organizada em uma hierarquia de mecanismos nervosos com cada nível do sistema nervoso controlando atos instintivos específicos. (...) Cada um dos atos instintivos é desencadeado pelos efeitos combinados de estímulos externos, hormônios e influências nervosas centrais excitatórias. A investigação dos estímulos externos geralmente mostra que eles são padrões temporais e espaciais complexos que podem ser analisados em componentes específicos chamados sinais-estímulos. (...) Quando os sinais-estímulos são produzidos pelo comportamento de outro animal, temos uma base inata para interações e organizações sociais. Experiências cuidadosas feitas pelos etólogos mostraram quão complexos e, freqüentemente, quão específicos podem ser os sinais-estímulos."

Por sua vez, Bowlby (1979, p. 31) tem como modelo básico de comportamento instintivo uma unidade de padrão de comportamento específico com um mecanismo que controla a sua ativação e, outro, sua terminação, e cuja função biológica é concorrer para os processos metabólico, reprodutivo e de autopreservação. Ainda para ele (Bowlby, 1969, p. 40 e 41), o comportamento instintivo possui as seguintes características: a) obedece a um padrão reconhecivelmente similar e previsível em quase todos os membros de uma espécie; b) não é uma resposta simples a um único estímulo, mas uma seqüência comportamental com um curso previsível; c) alguns de seus efeitos tem valor de sobrevivência individual ou para a espécie; e, d) desenvolve-se, em muitos casos, mesmo quando as oportunidades de aprendizagem são exíguas ou ausentes.

A "transferência", ou melhor, a conduta transferencial apresenta um mecanismo que controla a sua ativação: são os inputs sensoriais exteroceptivos da realidade atual, processados pelos sistemas neuropsíquicos automáticos, que mobilizam vivências passadas que, então, são reeditadas em relação a esta realidade, sendo terminadas ou por outros inputs sensoriais, novos ou de feed-back, ou por ação voluntária do Eu.

Irrestrita aos analisandos, ela é reconhecida pela Psicanálise, tradicional e científica, como tendo um padrão similar em quase todos os membros da espécie humana: uma conduta antiga é reeditada no presente frente a estímu- los que com ela tem nexo associativo.

Não se resume a uma resposta simples, pois cada conteúdo psíquico mobilizado ativa uma seqüência de comportamentos com curso previsível, isto é, se o mobilizado foi, por exemplo, o medo de figuras ameaçadoras prevê-se que, além do medo, outras atitudes transferenciais defensivas sejam manifestas diante da figura atual, tida como ameaçadora: evitamento, busca de proteção, inibição ou retraimento, fuga etc.

Estas atitudes, entende-se, concorrem para a sobrevivência, único referencial que torna inteligível todas as estruturas e fenômenos biológicos.

A conduta transferencial também é não aprendida, manifestando-se automaticamente frente a estímulos atuais que mobilizam vivências passadas.

Se, pelo exposto, a conduta transferencial é instintiva, ela é, então, um fenômeno psíquico normal, contradizendo o sentido que lhe é usualmente dado; pois, o que ocorreria a um animal que não se utilizasse de suas experiências passadas para enfrentar as situações de vida atual?

A conduta instintiva, defensiva ou não, está baseada em padrões mnêmicos instintivos, caso contrário, não seria possível a interpretação e a avaliação das informações (estímulos) ambientais; já a conduta não instintiva, defensiva ou não, está baseada em padrões mnêmicos adquiridos (episódicos) e pode estar superposta à conduta instintiva. Ambas as memórias, instintiva e episódica, existem para garantir respectivamente a adaptação básica e refinada do indivíduo ao ambiente, através dos sistemas neuropsíquicos ativados; assim, a "transferência" de afetos, desejos, atitudes e reações para uma situação atual semelhante constitui uma conduta natural e normal para dela se servir ou dela se defender, concorrendo para a sobrevivência.

Messenger (1979, p. 61 e 72), sobre este tema, diz:

Nós chamamos de aprendizagem ao processo pelo qual um animal muda adaptativamente seu comportamento, em virtude da experiência individual que adquire no decorrer de sua vida. E àquílo que é aprendido chamamos memória (ou traço de memória, ou engrama). Embora alguns a considerem um atributo humano, ou restrita a mamíferos superiores, de uma forma ou de outra, a aprendizagem ocorre em quase todos os principais filos de metazoários."... "a aprendizagem dota o animal de um registro de informação mais atualizada que pode ser utilizada na ação. Os órgãos sensoriais fornecem informações sobre alterações no ambiente e a hereditariedade garante que eles forneçam a informação que foi útil no passado (evolucionário). As partes `inferiores" do SNC processam essa informação de acordo com programas estabelecidos (ou "ligados") pela hereditariedade, ressalvada a possibilidade de tais programas serem modificados por níveis superiores no SNC ("metacontrole"). (...) No entanto, o ambiente "não é estático": grande parte do mesmo é constituída de outros animais, todos empenhados em diferentes estratégias para sobreviver, o que leva o ambiente a modificar-se constantemente e em diversas maneiras. O problema do animal é ligar significado a essas mudanças. De tal forma que um sistema de instruções incorporadas (codificadas em DNA) provê o SNC com os programas necessários, dentre os quais pode selecionar. Tal sistema não alimenta o SNC com informações atualizadas que o capacitem a selecionar o programa mais apropriado em face do que aconteceu ontem, ou mesmo há uma hora. Apenas o processo de aprendizagem pode fazer isso. O sistema de memória, tão bem desenvolvido nos animais superiores, fornece essa informação e, assim, torna mais provável que o SNC selecione o programa motor mais adequado para manter o animal vivo, bem alimentado e apto para procriar."

Tomemos, agora, alguns exemplos de comportamento animal para ver se há ou não uma conduta transferencial tal como a observada em humanos, lembrando que o fenômeno de "transferência" é o fato de dirigir a alguma figura de relação atual um conteúdo psíquico gerado anteriormente em relação a uma outra figura e não o próprio conteúdo transferido.

Carthy (1966, p. 73) relata alguns comportamentos de animais que servem de exemplos: (1) foi demonstrado que um gaio (ave da família dos Corvídeos) inexperiente, intoxicado pela ingestão de uma borboleta monarca, passa depois a rejeitar também a espécie mimética apetecível Limentis archippus; (2) da mesma maneira, os sapos que aprendem a rejeitar as abelhas passam a recusar também insetos da família Syphidae, semelhantes a zangões; (3) pássaros que tenham aprendido a evitar lagartas de mariposas vermelhas (venenosas), listradas de amarelo e preto, passam também a evitar vespas; etc. Outro exemplo muito observado é a convivência pacífica entre animais instintivamente antagônicos, por terem sido criados juntos desde que nasceram; um gato criado nestas circunstâncias com um fox inglês foi levado a outro local onde existia outro fox inglês, que no momento dormia; inicialmente, o gato caminhou tranqüilamente perto do novo cão até que este despertou e o atacou, fazendo-o fugir célere, visivelmente assustado.

Nos três primeiros exemplos, observa-se o comportamento instintivo alimentar de cada animal dirigido ao alimento próprio da espécie, com base nos padrões mnêmicos instintivos, referenciais para a interpretação e a avaliação dele: é a adaptação básica ao ambiente. Porém, os sistemas neuropsíquicos automáticos instintivos de uma dada espécie não selecionam uma conduta alimentar para um alimento específico, mas para uma classe dele. Por isso foi possível uma experiência individual desfavorável, que estruturou uma defesa (aprendida). Esta defesa passou a ser reeditada posteriormente em relação a um alimento apetecível pelo fato dele sinalizar um aumento de risco, dada a sua semelhança com o anterior: é a adaptação refinada ao ambiente.

É importante notar que embora o animal esteja se defendendo de um alimento apetecível, a própria conduta defensiva inicial é absolutamente normal por estar baseada nos padrões mnêmicos adquiridos da experiência desagradável anterior, pois só assim tem valor de sobrevivência - arriscar-se novamente pode ser, em muitos casos, fatal.

Continuaremos a nossa argumentação depois, para não perdermos de vista o último exemplo: a convivência social dos dois animais fez com que as suas tendências instintivas antagônicas ficassem desativadas; mas, esta experiência prévia possibilitou, para desespero do gato, a reedição da sua amistosa conduta social frente ao novo cão.

É interessante notar que a experiência favorável facilita novas experiências com figuras semelhantes, o que não acontece quando a experiência é desfavorável. Isto é biologicamente compreensível pelo fato de que a defesa tem alto valor de sobrevivência.

Entendendo a conduta exposta abaixo como exemplo de `'transferência'' humana, vamos, a seguir, compará-Ia com as condutas animais expostas acima.

Alguém que tenha tido na vida precoce várias experiências desfavoráveis no sentido de ser enganado, provavelmente apresentará aspectos paranóides em sua personalidade; assim, reeditará naturalmente sua atitude de desconfiança a qualquer nova pessoa com quem venha estabelecer relação. Poderia ser o contrário e uma atitude de confiança ser reeditada.

No ambiente de adaptabilidade evolutiva da espécie humana, como Bowlby chama o ambiente natural no qual o homem se desenvolveu, a não reedição da atitude de desconfiança colocaria em risco a sobrevivência do indivíduo.

Ao compararmos as condutas animal e humana aqui apresentadas notamos que são essencialmente iguais: aquilo que se vivenciou em situações passadas é reeditado no presente em relação a situações semelhantes; portanto, podemos concluir por uma conduta transferencial em animais.

À parte disto, verifica-se, na clínica ou fora dela, um fato muito importante: há pessoas que, na situação atual, corrigem a sua conduta transferencial inicial e, outras, não.

As pessoas que corrigem a sua conduta transferencial inicial o fazem após tomar melhor conhecimento da realidade atual e verificar que não é igual à antiga. Nos exemplos humanos acima, a atitude de desconfiança cede lugar à de confiança ou a uma conduta mais adaptada a essa realidade atual, e a atitude de confiança cede lugar à de desconfiança ou a uma outra mais adaptada. Assim, parece que é a avaliação correta da realidade atual favorável, realizada pelo processamento das informações mnêmicas e inputs sensoriais do momento, através dos sistemas neuropsíquicos automáticos e voluntários, que perm ite corrigir a conduta transferencial defensiva inicial; e, que é a avaliação correta da realidade atual desfavorável, realizada da mesma forma, que perm ite corrigir a conduta transferencial não defensiva inicial. A esta capacidade de corrigir a conduta transferencial inicial para efeito de uma adaptação à realidade atual, em função de não ter se desenvolvido uma superaprendizagem desta conduta (superestruturação dos sistemas neuropsíquicos automáticos responsáveis por ela), demos o nome de flexibilidade adaptativa e a estabelecemos como critério de normalidade psíquica (Elyseu Jr. - 1996, p. 132).

As pessoas que não conseguem corrigir a sua conduta transferencial, ou não estão em condições de fazer uma avaliação correta da realidade atual, favorável ou desfavorável, em função de uma superestruturação mais ampla dos sistemas neuropsíquicos, voluntários e automáticos, vinculados a esta conduta, ou, se estão em condições de fazer a avaliação correta em nível ideacional (sistemas neuropsíquicos voluntários), não conseguem vencer a superestruturação dos sistemas neuropsíquicos automáticos (superaprendizagem), responsáveis por esta conduta. A esta incapacidade de corrigir a conduta transferencial, mantendo a inadaptação à realidade atual, demos o nome de fixidez inadaptativa e a estabelecemos como critério de anormalidade psíquica; portanto, não é a "transferência" em si que constitui um fenômeno psicopatológico, mas a sua irreversibilidade.

A "transferência'' defensiva inicial, mesmo que injusta à realidade do momento, assim como a sua correção, é uma conduta normal; não corrigi-Ia, apesar da realidade ser inócua ou boa, é uma conduta patológica. Igualmente, a "transferência'' não defensiva inicial, mesmo que injusta, assim como a sua correção, é normal; persistir na não defesa, apesar da realidade ser má, é uma conduta patológica - é o caso das pessoas que "levam na cabeça" e não aprendem.

Com base nas digressões antecedentes, sugerimos a classificação da "transferência'' em dois tipos: defensiva e não defensiva.

Entretanto, as oportunidades e a capacidade que o ser humano tem de revisar a sua experiência passada são bem diferentes das dos animais em seu ambiente natural. Nos exemplos citados, seria preciso que só o alimento apetecível rejeitado estivesse disponível para que fosse verificado se os animais se arriscariam a ingeri-Io e se, conseqüentemente, corrigiriam a sua conduta transferencial inicial ou, pelo contrário, persistiriam na defesa, caracterizando uma conduta fora da normalidade. Neste caso particular, dada a diversidade de alimento no ambiente natural, não se observa aparentemente nos animais essa conduta patológica.

Por outro lado, as condições de vida humana, não mais inteiramente naturais, e a maior capacidade de aprendizagem do ser humano concorrem freqüentemente para o estabelecimento de padrões superaprendidos, que já podem prejudicar o indivíduo por contrariar a sua condição biológica ou, mesmo que não prejudiquem diretamente, têm a possibilidade de levá-to a relativas inadaptações se eventualmente surgem modificações ambientais. A conduta patológica assim formada, baseada geralmente na irreversibilidade transferencial (defensiva ou não), faz parte da herança ambiental legada aos novos indivíduos através da relação "objetal". A "transferência", existente nos animais e no homem, se faz com o que dispõe o indivíduo no seu repertório mnêmico e comportamental.

Porém, nem a flexibilidade adaptativa nem a fixidez inadaptativa têm a ver com a ativação do fenômeno de "transferência", que passamos agora a tratar.

Diz Ferenczi (1909, p. 81):

"semelhanças físicas irrisórias, cor dos cabelos, gestos, maneiras de segurar a caneta, nome idêntico ou só vagamente parecido com o de uma pessoa outrora importante para o paciente bastam para engendrar a transferência".

Mas, o fato de que até detalhes como estes possam mobilizar a "transferência'' por associação direta (o que não é simbolização) não é a grande questão teórica, e sim o fato de uma figura de relação atual provocar os mesmos afetos, desejos etc que uma figura antiga, pois as implicações clínicas disto são extremamente significativas.

Esta figura atual, que apropriadamente chamamos de figura equivalente, também ativa a "transferência'' tal como o fazem os detalhes acima mencionados, mas diferentemente dela, eles não são capazes, per se, de provocarem diretamente os mesmos afetos, desejos etc que a figura original antiga; são apenas sinais desencadeadores, que os etólogos costumam chamar de Iiberadores ou sinalizadores.

Se esta figura atual, sob a forma de um input sensorial, é a informação capaz de gerar as mesmas manifestações psíquicas que a figura original, ela não é símbolo desta, apenas eqüivale a ela. Embora esta figura eqüivalente ative a "transferência'' tal como a figura simbólica e o sinal Iiberador não podemos, pelo exposto acima, explicar a atitude de alguém, numa relação com ela, como unicamente "transferencial".

Em termos de processamento humano de informações as figuras originais são dados mnêmicos ativados pelo input sensorial da figura equivalente que, reprocessados, provocam as mesmas manifestações psíquicas originais que se superpõem às desta figura por serem coincidentes; assim, pela superposição, as manifestações atuais são potencializadas, mas referidas unicamente à figura atual percebida. Por essa última razão, propomos que este fenômeno seja denominado de transposição, mesmo porque o termo transferência está ligado ao conceito de energia psíquica que não cabe num modelo cibernético adotado pela Psicanálise científica.

Uma relação pode ser considerada totalmente transferencial quando o que está em jogo é uma figura simbólica; porém, nem todo símbolo pode ser considerado de valor psicanalítico. Por exemplo: muitas pessoas aprendem culturalmente que a hóstia representa o corpo de Cristo, mas apenas uma parte delas sente esta representação como verdadeira, comportando-se em relação à hóstia diferentemente da parte que não sente. Só o símbolo que é sentido como representante do simbolizado é um símbolo emotivo e tem valor psicanalítico; quando não é sentido, mas ainda representa o simbolizado, é tão somente um símbolo formal ou lingüístico.

Ao contrário da "transferência" total, que ocorre em relação à figura simbólica, não há relação transferencial, mas direta, quando existe uma projeção maciça do "objeto interno" original sobre a figura continente que, então, não é simbólica; e. g., uma mulher que embala um toco de madeira como se fosse o seu filho perdido.

Afinal, a "transferência" pode ser desencadeada (I) por sinais (detalhes associativos), que não representam a figura original e, portanto, não são símbolos dela; (2) por símbolos (emotivos) que a representam e (3) por figuras equivalentes, que não representam a figura original por provocarem as mesmas manifestações que ela. A fonte das manifestações "transferenciais" é descoberta por associação de idéias no caso dos sinais, por interpretação no caso dos símbolos e por dedução analógica no caso das figuras equivalentes.

Esperamos ter contribuído para que a "transferência'' (1) seja reconhecida como um fenõmeno psicológico normal, por ter caráter instintivo e, portanto, valor de sobrevivência; (2) não seja analisada na psicoterapia a menos que demonstre uma fixidez inadaptativa, que caracteriza a anormalidade; (3) seja reconhecida apenas como parte da relação atual, quando se trata de figura equivalente; e, (4) seja interpretada, no tratamento, apenas quando a figura simbólica é um símbolo emotivo, por ser o único com valor psicanalítico.

  • BOWLBY, J. (1969) - Apego, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1984.
  • ______(1979) - Formação e rompimento de laços afetivos, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1982.
  • CARTHY, J. D. (1966) - Comportamento animal, São Paulo, Epu-Edusp, 1980.
  • DETHIER, V.G. e Stellar, E. (1970) -Comportamento animal, São Paulo, Editora Edgar Blücher, 1988.
  • ELYSEU JR., S. -Contribuições a uma teoria da personalidade, Campinas, Editora Alínea, 1996.
  • _______ - Teoria da posse, Campinas, Revista Estudos de Psicologia, vol. 15/1, Editora Átomo, 1998.
  • FERENCZI, S. (1909) - Transferência e introjeção in Obras completas (vol. I), São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1991.
  • FREUD, S. (1912) - La dinamica de Ia transferencia in Obras completas (vol.II), Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1968.
  • MESSENGER, J. B. (1979) - Nervos, cérebro e comportamento, São Paulo, Epu-Edusp, 1980.
  • Endereço para correspondência:
    Av. Dr. Moraes Salles, 1610 apto 31 - Cambuí - Cep 13010-002 - Campinas - S.P. - Fone/fax: (0XX19) 252-7519.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
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