Defendendo ser a saúde uma dimensão relevante para a reflexão ética, pois que afeta a própria vida, o autor advoga o direito à saúde opondo-se a concepções para as quais a demanda por saúde deve ser resolvida pelo mercado. Conjuga sua defesa a uma análise dos óbices existentes à realização de tal direito (dentre eles a mercantilização da medicina) e à indicação de alternativas éticas e práticas.
Arguing that health, since it is of importance to life itself, is a relevant aspect of ethical judgement, the author makes out a case for a right to health while rejecting market-based accounts of medical care. The hindrances to the achievement of such right, above all the profit-aimed outlook of medicine, are discussed, and ethical ways of dealing with questions of health are pointed out.
DIREITO E DIREITOS
O direito á vida e a ética da saúde*
The right to life and ethics of health
Giovanni Berlinguer
Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Roma
RESUMO
Defendendo ser a saúde uma dimensão relevante para a reflexão ética, pois que afeta a própria vida, o autor advoga o direito à saúde opondo-se a concepções para as quais a demanda por saúde deve ser resolvida pelo mercado. Conjuga sua defesa a uma análise dos óbices existentes à realização de tal direito (dentre eles a mercantilização da medicina) e à indicação de alternativas éticas e práticas.
ABSTRACT
Arguing that health, since it is of importance to life itself, is a relevant aspect of ethical judgement, the author makes out a case for a right to health while rejecting market-based accounts of medical care. The hindrances to the achievement of such right, above all the profit-aimed outlook of medicine, are discussed, and ethical ways of dealing with questions of health are pointed out.
No fim deste século, dominado pela economia e pela polÃtica, está ressurgindo a ética: nas discussões filosóficas assim como nas preocupações de todos. O fenômeno é evidente, mesmo que não seja fácil entender-lhe plenamente os motivos. O mais óbvio está no fato de que tanto a economia quanto sobretudo a polÃtica se contaminaram em muitas partes do mundo, a ponto de alterarem as regras do jogo comumente aceitas (a partir do livre mercado e das competições eleitorais) e de suscitarem fortes reações populares e disseminadas intervenções judiciais. Umas e outras, pela primeira vez na história recente, em alguns paÃses se traduzem em mudanças substanciais nas instituições e na composição dos grupos dirigentes, quase numa revolução pacÃfica.
Mas esta explicação permanece ainda superficial e circunscrita. Um motivo menos "incidental", destinado talvez a agir por longo tempo, mesmo quando as "regras do jogo" tiverem sido restabelecidas, está na queda das ideologias, dos sistemas polÃticos rÃgidos e contrapostos que lhes sustentavam, da longa subordinação da ética à razão de Estado. Dado que persistem, e mais, podem agora exprimir-se mais livremente, os valores que nutriam na origem as duas grandes opções que se confrontaram neste século (em termos sumários: justiça e solidariedade de um lado, competição e livre iniciativa do outro), hoje cada pessoa, cada corrente cultural e polÃtica, cada governo deve diretamente se confrontar com a própria realidade. Não há mais o espelho deformante da guerra fria, nem a justificação do inimigo externo. A filosofia prática, a ética entendida como guia da escolha entre diversas opiniões possÃveis, encontra diante de si um campo aberto e sob muitos aspectos inexplorado.
Outros motivos, entre tantos que podem ser analisados, são investigados na inquietude que nasce de duas condições da vida (entendida em sentido material, mas justamente por isso suscitadora imediata de reflexões éticas), que se verificam pela primeira vez no fim deste século:
A. A humanidade tem à disposição os conhecimentos e os recursos produtivos aptos a superar flagelos que sempre acompanharam a nossa espécie, como a fome e as doenças (ao menos grande parte daquelas infecciosas e carenciais), mas não consegue fazê-lo, sobretudo nas áreas mais populosas do mundo.
B. O mundo fÃsico e biológico, que compreende os seres humanos, se encaminha a uma condição de alto risco para sua integridade e para sua própria sobrevivência. Uma das mais elevadas criações do engenho humano, a ciência, se vê na condição de ser, simultaneamente, instrumento de definição e meio de solução juntamente à polÃtica e à economia deste problema.1
Compreende-se como a partir disto surgem novas interrogações, porque ressurge em novas formas o tema do bem e do como agir, na base de quais princÃpios e de quais métodos para consegui-lo. Compreende-se também porque surgiu um novo campo da filosofia moral, a bioética, e porque ela se tornou, provavelmente, o setor mais dinâmico do ressurgimento da ética. Isto se deve ao fato de que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no campo biológico e médico propõe continuamente problemas inéditos, atinentes seja à s "zonas de fronteira" da existência humana (possibilidade de influir sobre o nascimento, vida, morte e doença), seja ao equilÃbrio de todos os viventes de nosso planeta.
O tema da saúde, porém, não está sempre presente em tais discussões2, sendo apenas um campo universal de experiência e de reflexão cotidiana. Muito freqüentemente lhe é negado o tÃtulo de nobreza como objeto da ética, sendo-lhe atribuÃdo somente o valor (considerado plebeu) de "questão social", ou lhe é imposto quando à ética se recorre como sustentáculo do fundamentalismo monetarista o simples quesito do "como alocar os recursos escassos disponÃveis", que é uma tarefa importante mas também desviante, se vem considerada como única e exaustiva.3
Daà a exigência mas também a dificuldade de uma ética da saúde que não seja somente de ontologia médica atualizada, ou reflexão sobre os confins extremos da vida e da morte, mas que seja também conjugada aos princÃpios e à prática de todos os atores e de todos os temas da saúde cotidiana. Na tentativa de contribuir a esta elaboração partirei mais dos fatos que dos conceitos, que examinarei nas próximas três seções, e desenvolverei depois os temas mais propriamente éticos.
SAÃDE PARA TODOS OU PARA POUCOS?
A exigência de atingir para cada um e para todos um nÃvel mais alto de saúde pode ser retomada, neste século, em duas utopias que encontraram a expressão mais acabada na Organização Mundial de Saúde (OMS).
A primeira utopia nasceu na metade do século, com a própria constituição da OMS, que define a saúde como "um estado de completo bem-estar fÃsico, mental e social". Então todos exaltaram esta definição, sobretudo porque superava a idéia de que a saúde fosse concebida apenas no negativo, como ausência de doença, e porque conjugava a condição fÃsica dos indivÃduos à s suas condições mentais e sociais. Mas foi observado ironicamente que se um indivÃduo, proveniente de qualquer paÃs do mundo, se apresentasse na sede da OMS em Genebra e declarasse: "Eu gozo de um completo bem-estar fÃsico, mental e social", arriscar-se-ia a ser considerado um extravagante, e talvez ser recolhido ao manicômio. A definição foi depois discutida também no plano cientÃfico pela sua estaticidade e superada por outras mais dinâmicas, por exemplo, pela concepção de que a saúde é um equilÃbrio ativo entre o homem e o seu ambiente natural, familiar e social. Mas a fórmula da OMS por algumas décadas foi difundida universalmente e desempenhou, substancialmente, uma função estimulante em prol da aspiração à saúde. Mesmo porque, justamente a partir dos anos 50, uma condição de maior bem-estar se demonstrou pela primeira vez atingÃvel por muitos povos da terra.
A segunda utopia, retomada na fórmula Saúde para todos no ano 2000, foi lançada pela OMS nos anos 70, no ápice de um ciclo de progresso sanitário certamente desigual, mas rápido e difundido, sem precedentes em grande parte do mundo. Esta idéia, que foi acompanhada de projetos, prazos e comprometimentos de muitos governos, teve um impacto menor que a precedente não apenas porque manifestou desde o inÃcio o seu caráter utópico e à s vezes ilusório, porém mais ainda porque mudaram, logo depois, as condições sócio-polÃticas que teriam possibilitado se aproximar da meta.
A Conferência sobre a promoção da saúde, organizada pela OMS em Sundsvall (Suécia) de 9 a 16 de junho de 1991, reconheceu um substancial fracasso deste objetivo. O documento final contém afirmações significativas, como a seguinte: "A exploração do trabalho, a exportação de rejeitos e de substâncias nocivas, o consumo dos recursos mundiais mostram que o modelo atual de desenvolvimento está em crise.(...) As despesas militares tendem a crescer, e a guerra, que causa invalidez e morte, está introduzindo novas formas de vandalismo ecológico.(...) A dÃvida internacional está exaurindo as frágeis economias dos paÃses subdesenvolvidos.(...) Milhões de pessoas vivem em extrema pobreza, milhões de crianças não têm acesso à instrução, e as mulheres são oprimidas, exploradas, discriminadas no trabalho e em outros campos.(...) Tudo isto torna o objetivo da Saúde para todos no ano 2000 extremamente difÃcil de ser atingido".
Neste documento, foi proposto inserir, no lugar da última frase citada, esta outra: "Tudo isto está transformando a saúde para todos em saúde para poucos". A formulação não foi aceita, seja pelas razões diplomáticas que freqüentemente ofuscam a linguagem da OMS, seja porque não seria correspondente à verdade: em uma população mundial que se encaminha rumo aos seis bilhões, de fato, não são poucos aqueles que gozariam, neste fim de século, de uma melhor ou uma boa saúde: em cifras muito aproximativas, cerca de um terço. Um outro terço a tem tolerável, e os outros em piora ou péssima. Estes últimos, contudo, estão crescendo, por causa da maior dinâmica demográfica que se manifesta naquelas áreas do mundo que estão em vias de desenvolvimento; ou que se encontram em plena estagnação, ou em vias de ulterior subdesenvolvimento. Nestas ressurgem doenças que se acreditava venadas há tempo, como o cólera na América Latina; ou ainda aumenta a incidência de antigas doenças endêmicas e letais, como a malária, que na Ãfrica se soma aos efeitos devastadores da nova epidemia, a Aids. Mas também nos paÃses mais ricos a distribuição da saúde (e da possibilidade de vida) não responde ao princÃpio para todos na Conferência de Sundsvall a senhora Ingrid Thalen, ministra da Saúde sueca, narrou com singeleza que na população do seu paÃs, uma dentre as mais saudáveis e mais bem assistidas do mundo, a vida dos operários das indústrias manufatureiras é em média dez anos mais curta que a daqueles que fazem trabalhos mais salubres e que têm um nÃvel mais alto de instrução.
Talvez tenha-me equivocado ao falar de linguagem diplomática da OMS. Nas frases que citei, sejam aquelas do documento final, seja aquela da senhora Thalen, há de fato absoluta clareza sobre dois pontos, que desenvolverei sucessivamente em relação aos fundamentos éticos: a) não se afirmou ainda uma prioridade da saúde nos atos dos governos, nas escolhas da economia, nas orientações da sociedade; e b) o princÃpio da justiça, por todos reconhecido como um dos fundamentos da bioética, ainda está longe de ser realizado.
O WELFARE STATE: UM PARÃNTESE NA HISTÃRIA?
Essas duas constatações crÃticas valem em quase toda parte. Mas da conquista de uma saúde melhor para todos se aproximaram, neste século, principalmente dois grupos de paÃses: de um lado algumas nações que, embora negando liberdades fundamentais, enfrentaram o problema do subdesenvolvimento atribuindo à saúde e à instrução uma importância essencial, como a China e Cuba; do outro muitas nações que, partindo do crescimento produtivo já iniciado no século XIX, sucessivamente colocaram em cena, antes ou depois das duas guerras mundiais, polÃticas de welfare state.
Deter-me-ei sobre estas últimas, objeto das maiores mudanças e das mais acaloradas discussões nesta última década. à indubitável que onde foram implantados sistemas de seguridade social obrigatória (como na França e na Alemanha) ou serviços de saúde nacionais (como na Grã-Bretanha, Espanha e Itália) atingiu-se, destinando-se a esses serviços gastos menores (em valores absolutos e relativos), um nÃvel de saúde melhor em relação aos Estados Unidos, onde prevaleceu o desafio, à s vezes mais eficiente mas sempre mais custoso e menos eficaz em termos coletivos dos seguros privados. Todos os principais indicadores de saúde, da mortalidade infantil à esperança média de vida no nascimento, confirmam esta diferença.4 Ela se deve, mais do que à ação especÃfica dos serviços públicos, à cultura do welfare state, uma mescla efetuada na Europa, feita de solidariedade e de lutas, de dirigismo e de participação, de pesquisa do bem-estar entendido em sentido próprio, como star bene pessoal, e de comprometimento pela saúde coletiva.
Tudo parecia simples. Ao Estado era atribuÃda a tarefa de prover à s necessidades dos cidadãos "do berço ao túmulo", como se dizia com uma expressão provavelmente desditosa e certamente paternalista. O sistema do welfare state parecia destinado a se perpetuar e a se expandir, quando nos anos 80 se manifestou a sua crise. Ela surgiu antes de tudo (não podia ser diferente, em tempos em que o dinheiro se tornava medida universal da polÃtica e até mesmo da ética) como crise fiscal, devido à impossibilidade de se controlar o crescimento da despesa sanitária e previdenciária mesmo em relação à s mudanças positivas introduzidas pelo welfare state, como o aumento da população idosa e o crescimento da demanda por saúde.
Manifestaram-se menos, no inÃcio, outros fatores de crise. Entre estes, um polÃtico e o outro funcional. O primeiro foi definido por Jonas como "o difÃcil problema de uma assistência social que mais reduz o cidadão a súdito do que o emancipa".5 Esse problema tem também contribuÃdo para distorcer a demanda, pois os súditos, sabe-se desde que existem as monarquias, dirigem petições ao soberano sem que devam se preocupar se são justas ou injustas, compatÃveis ou incompatÃveis com a administração do Estado. Dessa forma, muitos cidadãos perderam ou delegaram, para me referir a um outro princÃpio bioético universalmente aceito, a própria autonomia. A crise funcional golpeou profundamente os serviços e as profissões, que sobretudo no setor público (e nos setores privados subvencionados pelo Estado) cederam em qualidade, humanidade e eficácia em quase todo lugar.6
Muitos atribuem tais retrocessos à onda neoliberal que se espraiou por toda parte a partir do inÃcio dos anos 80;7 mas a este argumento vai agregada uma pergunta: a quais defeitos do welfare state é atribuÃdo o rápido sucesso de tal onda? Esta pergunta implica muitas outras. Uma é se o acesso à saúde, ou pelo menos aos serviços de saúde, pode ser mais bem garantido por meio do mercado ou de direitos, ou mediante uma integração (e de que forma) dos dois. A outra é se o welfare state pode e deve ser defendido; mas, sobre este ponto, está amadurecendo a opinião de que os direitos conquistados requerem, justamente para não definharem irreversivelmente, ser justificados no plano ético e atualizados no plano prático.
Apresenta-se enfim a pergunta mais substancial: o welfare state, sua cultura e suas instituições, suas regras e sua ética, suas vantagens e seus defeitos, representam um parêntese histórico entre a época do liberalismo (e aquelas precedentes, pouco diferindo nas atitudes diante da saúde dos cidadãos) e a do neoliberalismo, ou então uma experiência destinada a se renovar e a assinalar uma meta também para outros paÃses, por ter sabido conjugar mais do que outros a aspiração à justiça e à estabilidade da democracia? Os caprichos da história assinalam, por hora, que enquanto o welfare state está em dificuldades onde foi desejado e em certa medida realizado, nesta experiência começa a se inspirar o maior paÃs desenvolvido, os EUA, que até agora haviam rejeitado o welfare state.
DA MEDICALIZAÃÃO DA VIDA Ã MERCANTILIZAÃÃO DA MEDICINA?
Analisei junto a V. Garrafa, nos últimos anos, um fenômeno que pode ser considerado como uma conseqüência imprevista, embaraçosa e à s vezes dramática do progresso biomédico: a crescente tendência a transformar em objeto de compra e venda as partes especÃficas do corpo humano, que se tornaram pela primeira vez utilizáveis para o progresso dos conhecimentos de base no campo genético e imunológico, e para as técnicas da bioengenharia, da fecundação artificial, da transfusão e dos transplantes.8 Também discuti os pressupostos e as implicações éticas desta tendência que já abarca quase todo o corpo masculino e feminino, salvo por hora o cérebro: as seqüências do gene humano, as células da linha germinal e somática, os embriões e a função materna, o sangue e os órgãos. Estes fenômenos têm, no momento, disseminação relativamente limitada (exceto pela coleta paga de sangue, que em alguns paÃses é generalizada), e ainda influem pouco sobre a saúde coletiva. Mas influenciam muito a saúde e o destino (nascer, viver, curar-se, morrer) de diversas pessoas, e também sobre as opiniões morais de muitas outras. Suscitam por isso, com todo o direito, acalorados debates éticos.
Perguntei-me porém muitas vezes, referindo-me a tais fenômenos que são por hora marginais, mas destinados talvez a constituir um dos temas éticos mais controversos do nosso tempo, se eles não são ainda a face mais proeminente de uma realidade muito difusa, quase a metáfora de uma condição que, em alguma medida, tende a se generalizar.
Não falo somente de "medicalização da vida", uma expressão que foi difundida nos anos 50 como crÃtica da tendência da medicina a ocupar e usurpar os lugares e os tempos mais cruciais da vida humana. O parto no hospital, dizia-se, subtraiu à mulher parturiente o apoio dos parentes e dos vizinhos, deixou-a sozinha a sofrer as manipulações de técnicos estranhos e desconhecidos, impediu-lhe de participar como sujeito da extraordinária experiência do nascimento e do primeiro relacionamento com o filho; logo depois, de fato, as regras do hospital transferiram o filho para um outro setor, com a pretensão de ditar horários e modalidades a esse relacionamento que deve ser o mais espontâneo, Ãntimo e natural possÃvel. Da mesma forma, dizia-se, foi desumanizado um outro evento decisivo da vicissitude individual, a morte. Contextualize-se em seu tempo esta crÃtica, sublinhando ao mesmo tempo que ela não devia induzir à nostalgia: quando de fato o parto se desenrolava de modo natural, era "risco de morte o nascimento" (Leopardi) para o filho e à s vezes para a própria mãe; quando não havia cuidados especializados, nem hospitais modernos, a morte sobrevinha naturalmente, mas em uma idade média que era a metade em relação à atual, que se aproximou muito do destino natural da nossa espécie. Hoje, pelo contrário, a mortalidade perinatal é um décimo daquela antiga, e a morte por parto é considerada, ao menos nos paÃses desenvolvidos, um evento excepcional.
A doutrina e a experiência se orientam agora, justamente, rumo à recuperação da naturalidade, da intimidade, da participação do sujeito nesses atos cruciais da vida humana, mas em um contexto de assistência especializada e eficiente. Não é ainda o que ocorre na prática, salvo raras e positivas experiências. Mas o fenômeno que pretendo analisar, ainda que se entrelace com a persistente medicalização da vida, é um outro, talvez mais grave: a mercantilização da medicina, conjugada à transformação em mercadoria ou dinheiro de cada parte do corpo, e de cada ato voltado à vida e à saúde.
Posso mencionar dois casos extremos, atinentes justamente ao nascimento, um da Itália e outro do Brasil. Em 23 de abril de 1993, o prof. Francesco Romano, chefe de equipe do serviço de ginecologia do hospital público da cidade de Cosenza, foi preso, com outros cinco médicos do setor, acusado de ter exigido de mais de 600 parturientes somas em liras, representando entre 300 e 600 dólares, para interná-las e assisti-las em condições adequadas. As mulheres que não pagavam eram, diversamente, colocadas em ambulatórios lotados, visitadas tardiamente, expostas a desconfortos e riscos. O inquérito judicial iniciou-se em virtude da morte de uma mulher que se recusara a pagar, e concluiu-se com a condução a julgamento de quatro médicos por homicÃdio culposo. Nem todos os hospitais italianos são assim, por sorte. Mas é bastante freqüente que chefes de equipe de hospitais públicos e de clÃnicas universitárias trabalhem ao mesmo tempo, contra legem, em hospitais privados, e nestes tratem dos doentes que podem pagar um alto preço pelos seus serviços. Nestes casos, a instituição pública se vê deixada à mÃngua, os seus cuidados se tornam de baixa qualidade, e a possibilidade de restabelecimento toma-se uma função do preço pago.
No Brasil tomei conhecimento de que na cidade de São Paulo, mas também em outras localidades, 60% dos partos hospitalares se realizam por meio de cesariana. Não pode existir qualquer justificativa clÃnica para esta incidência, mas o fato é que o instituto de seguridade pública (INAMPS/INSS) paga pela cesariana mais do que pelo parto normal. A mesma escolha do tipo de intervenção é condicionada portanto ao preço, e por isso se comete uma violência contra a mulher e contra o nascimento. A isto se acrescenta como agravante, não como atenuante que freqüentemente são as próprias mulheres que requisitam a cesariana, por dois motivos: a) por ser considerada mais segura do que o parto normal, que por sua vez realizar-se-ia em condições higiênicas e assistenciais de alto risco; e b) porque à cesariana se associa a ligadura de trompas, requisitada por muitas mulheres, especialmente por aquelas que tiveram muitos filhos, como a única opção contraceptiva. O preço em dinheiro é baseado em conhecido critério dos supermercados: "leve dois e pague um"; realizam-se duas operações em uma: a seguridade paga a cesariana e a mulher somente a ligadura de trompas.
Mas não é tudo, ainda. Muitas mulheres esterilizadas "se arrependem" e solicitam a refertilização. Como a recanalização das trompas é uma operação raramente possÃvel, os médicos oferecem a opção (quase sempre ilusória) da fecundação in vitro e do implante no útero dos óvulos fecundados. Deste modo, a fecundação artificial, que nos paÃses mais desenvolvidos é indicada como remédio para a esterilidade, aqui é praticada como remédio para a esterilização. O ciclo da medicalização total está completo: toda a atividade reprodutiva da mulher a ele está condicionada, e os fios condutores de tudo isso são o ganho do médico e a mercantilização do corpo feminino.
Exemplos extremos? Certamente. Mas se a esse respeito se pergunta sobre que efeitos à saúde e à medicina está produzindo a incorporação do mercado como valor absoluto, constata-se que esses casos são apenas a expressão exasperada de uma tendência geral.9 No paÃs que reconheceu mais do que qualquer outro o valor absoluto do mercado (mesmo como regulador da assistência à saúde), os Estados Unidos da América, é legalmente reconhecido que quem não está coberto pela seguridade, ou não paga diretamente os médicos e os hospitais, não tem direito a ser amparado (salvo, e nem sempre, os casos de urgência): poder pelo menos se tratar é uma função legÃtima, direta e explÃcita do dinheiro. Afirma-se por isso, na prática e à s vezes no direito, uma cidadania censitária em face da assistência, da saúde, da doença.
Há, em sÃntese, três estÃmulos que ameaçam acelerar essa tendência. O primeiro parece de qualquer maneira inscrito nos próprios progressos da medicina. A perspectiva para o século XXI foi enunciada de modo brutal por Montagnier, descobridor do vÃrus HIV, agente da Aids: "A pesquisa médica possibilitará sem dúvida soluções extraordinárias, mas tão custosas que inescapavelmente acarretarão consideráveis questionamentos sociais. As terapias preventivas a serem aplicadas antes do aparecimento de lesões irreversÃveis alongarão talvez a vida média em uma vintena de anos até o fim do próximo século. Mas as conseqüências sociais dessa revolução biológica serão imprevisÃveis. à claro que não poderão beneficiar-se dela dez bilhões de indivÃduos, e que o melhor tocará a quem tiver os meios para pagá-la".10 O segundo estÃmulo pode vir dos próprios cidadãos. Em quase todos os paÃses, em mulheres e em homens, em quase todas as idades aumentou o desejo por saúde como resultado da liberdade, da cultura, do saber e de ver que uma saúde melhor é uma meta atingÃvel. Mas as distorções e as pressões que acompanharam o crescimento desse desejo, alimentadas por uma informação dirigida e sugestiva, realmente fizeram com que já agora, para cada aspecto da saúde, a demanda dos cidadãos se volte para uma mercadoria ou para uma profissão especializada; e que passem para o segundo plano os fatores de saúde dependentes de escolhas coletivas e de comportamentos pessoais que não sejam mercantilizáveis. O terceiro, enfim, vem justamente da ética. Mais exatamente daquela corrente da bioética que tende a justificar, juntamente à compra e venda do sangue por transfusão e dos órgãos por transplante, a negação da existência de um "direito humano fundamental ao provimento de assistência à saúde, sequer ao provimento de um mÃnimo aceitável de assistência médica."11 Não pode ser subestimado o aparecimento dessa tendência, que se apresenta após um século no qual se afirmaram os princÃpios de eqüidade e de solidariedade no campo da saúde;sobretudo porque essas idéias, antes mesmo que tivessem recebido dignidade filosófica, foram amplamente introduzidas na prática. O fato de que Engelhardt Jr. as justifique com a impossibilidade de conciliar fins contraditórios entre si, como a contenção dos custos, a qualidade da assistência, a igualdade de acesso aos serviços, a liberdade de escolha de quem presta e de quem recebe os cuidados, impõe uma reflexão também à queles que propugnaram o direito à saúde e à assistência à saúde. Esses direitos foram vitoriosos durante quase todo este século, seja nos planos cultural e moral, seja nos seus efeitos práticos; todavia correm o risco, agora, de serem erodidos e por fim anulados, se não for enfrentada e superada essa suposta incompatibilidade.
DA ÃTICA BIOMÃDICA AO DIREITO Ã SAÃDE
Na medida em que se afirmam essas tendências, vê-se erodida, nos seus próprios fundamentos, a ética tradicional da medicina. Contemporaneamente ela se vê desafiada pelo próprio progresso dos conhecimentos e das técnicas, que ampliam os campos de intervenção da medicina (e agora da biologia) até abarcar cada aspecto da vida humana presente, e de algum modo mesmo a vida futura. Seria contudo equivocado, diante dessa erosão e desses desafios, recusar um confronto aberto e refugiar-se no culto de uma tradição, que entre outras coisas é cada vez mais contraditada pela prática cotidiana. Seria equivocado, ainda porque dessa crise da tradição pode-se tentar ir adiante, com implicações que podem conduzir mais além deste campo especÃfico da filosofia moral.
Deve-se recordar, de fato, que a medicina foi a primeira profissão laica (assim como o fez por sua conta o sacerdócio) a nascer dotando-se simultaneamente de um corpo doutrinário e de um código ético. Isto se explica pelo fato de que ela foi por muito tempo de Hipócrates ao nosso século a única techné capaz de influir de modo direto, deliberado e profundo sobre aspectos fundamentais da vida humana individual; e teve por isso, para ser reconhecida e respeitada, de escolher critérios e regras aceitáveis pelos seus adeptos, mas também compatÃveis com as demandas de todos os demais. Antecipou, por isso, conceitos que são hoje considerados fundamentais na bioética, como o princÃpio de beneficência e não-maleficência, inscrito no dito hipocrático: "Face à doença, buscar dois objetivos: ajudar ou não causar dano", traduzido depois para o latim (e simplificado) no mote primum non nocere.12 O mesmo se pode dizer do princÃpio de autonomia: no segredo profissional, de fato, se encontra pela primeira vez o reconhecimento de que o doente, isto é, o outro, se bem que em condição de inferioridade, é contudo o único titular de informações concernentes ao próprio corpo e à s próprias relações Ãntimas; ele pode compartilhá-las com o médico enquanto este não pode transferi-las a mais ninguém. No dito de Hipócrates: "A arte tem três momentos: a doença, o doente e o médico. O médico é o ministrador do ofÃcio, e que à doença se oponham o doente e o médico juntos"13, encontra-se assim, junto ao paternalismo (também ele categoria bioética por muitos sustentada), o reconhecimento da utilidade prática e da validade moral de uma autonomia ativa, intersubjetiva, participativa, na luta contra a doença.
O princÃpio de beneficência, como é notório, nos séculos sucedâneos foi incorporado em atividades assistenciais difusas inspiradas na religião ou no civismo (assim como na experiência dos Liberi Comuni italianos), e foi depois integrado aos princÃpios de justiça e de solidariedade, que se afirmaram entre os séculos XIX e XX e deram vida no plano prático à s seguridades sociais e aos serviços de saúde nacionais, e no plano teórico ao conceito de direito à saúde.
Na Constituição italiana (1948), esse princÃpio foi afirmado na fórmula "o Estado tutela a saúde como direito do indivÃduo e interesse da coletividade"; na Constituição brasileira, na fórmula "a saúde é direito da pessoa e dever do Estado"; e em muitÃssimas constituições hoje em vigor é sancionado com fórmulas análogas. Isso corresponde não somente a um progresso da consciência social, mas também à s novas possibilidades abertas pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela ciência e pela técnica. Pode-se recordar, de fato, a distinção que faz Norberto Bobbio entre necessidades e direitos: uma necessidade não pode ser considerada um direito, senão quando existe historicamente a possibilidade de satisfazê-la. Nos séculos passados a saúde podia ser uma aspiração; era contudo uma necessidade, mais impositiva do que hoje, pela freqüência de doenças graves, de epidemias, de mortes prematuras; mas não existiam, ao contrário de hoje, nem os conhecimentos, nem os recursos para que se transformasse em um direito.
Foram portanto profundamente modificados, no nosso século, os parâmetros éticos e os princÃpios jurÃdicos atinentes ao posicionamento diante do homem sadio, de tutelá-lo para que possa se manter em tais condições; e diante do homem doente, de cuidá-lo e de reabilitá-lo para que possa readquirir a plenitude das suas faculdades. Isso teve importantes conseqüências no campo especÃfico, que é a vida material, mas também muito além dele. Contribuiu certamente para ampliar a esfera dos direitos humanos e sociais, e para afirmar e manter, contrastando com a tendência ao isolamento e ao egoÃsmo, relações de solidariedade entre os cidadãos.
A EROSÃO E OS DESAFIOS
Já aludi à erosão, primeiramente lenta e depois acelerada, que está sofrendo a ética tradicional da medicina. Mas também o direito à saúde sofre um processo análogo: não só porque freqüentemente é negado na realidade, mas também porque vem sendo contestado em princÃpio.
Na realidade, a crÃtica mais substancial está na persistente (e talvez progressiva) iniqüidade distributiva das doenças. Uma explicação original... e originária deste fenômeno está em Letters from the Earth, de Mark Twain, que as atribui à profunda malvadeza do Deus Criador: "O ser humano", ele escreve, "é uma máquina, uma máquina automática composta de milhares de mecanismos complexos e delicados, que exercem as suas funções harmoniosa e perfeitamente.(...) Para cada um destes milhões de mecanismos, Deus estudou um inimigo, cuja tarefa é atormentá-lo, afligi-lo, persegui-lo, danificá-lo, martirizá-lo com dores e sofrimentos e, enfim, destruÃ-lo. E nenhum mecanismo foi esquecido(...) Todos os agentes de morte particularmente ferozes, inventados pelo Criador, são invisÃveis. à uma idéia engenhosa, que por milhares de anos impediu ao homem descobrir a origem das doenças, frustrando os seus esforços para dominá-las. Notarei entre parênteses que Deus tem sempre uma especial atenção pelos pobres. Nove décimos das doenças por ele inventadas são destinadas aos pobres, e estes efetivamente as recebem. Os ricos têm somente o restante".14
Mas mesmo quando os micróbios (que segundo Mark Twain "eram a parte mais importante da Arca, a parte pela qual o Criador era mais ansioso e enamorado") se tornaram visÃveis, e demonstrou-se que Deus não era então assim perverso, porque havia finalmente permitido aos homens reconhecê-los e vencê-los, a iniqüidade permaneceu. Isso é confirmado por todas as estatÃsticas e sublinhado, em Civilization and Disease, por Henry Sigerist: "Em um mundo que poderia produzir todo o alimento que as pessoas poderiam eventualmente consumir; em uma época na qual a ciência é suficientemente avançada para utilizar sistematicamente os recursos da natureza e para produzir todos os bens que poderiam ser usados, a grande maioria dos habitantes da Terra estão ainda em um nÃvel que não permite a eles viver uma vida saudável. A pobreza permanece a causa principal das doenças e é um fator que está além das possibilidades de controle imediato por parte da medicina".15 A pobreza material (e ao menos tanto quanto a cultural), assim como desempenhar uma atividade de trabalho insalubre, pouco qualificada e pouco satisfatória, favorece a ação de todos os fatores especÃficos da doença, obstaculiza a adoção de medidas preventivas, torna mais difÃcil curar-se. Até mesmo nos paÃses escandinavos, onde há muito tempo existem sistemas de welfare e onde o nÃvel médio de saúde melhorou destacadamente nas últimas décadas, persistem neste campo desigualdades sociais notáveis.16
Elas podem ser atenuadas, mas não eliminadas dos sistemas assistenciais públicos. Estes, por outro lado, atravessam, há algum tempo, crescentes dificuldades que não são apenas de origem monetária. Nota-se quase em toda parte uma "perda de objetivo", testemunhada pelo fato de que a única dimensão dos cuidados que vem sendo discutida é o seu custo; só há pouco tempo, e não em todo lugar, se começa a avaliar a eficácia, seja das terapias especÃficas, seja da sua ação integral sobre a saúde da população. Outrossim, esses sistemas, nascidos quase em toda a parte por iniciativa dos trabalhadores, incharam-se e burocratizaram-se até o ponto de excluir os próprios trabalhadores da participação e da gestão. Acerca de atos médicos especÃficos chegou-se, no máximo, a afirmar que o paciente deve exprimir pelos procedimentos de cura um consentimento informado (uma fórmula que vem sendo usada sobretudo para garantir o médico e a instituição diante dos protestos e solicitações de ressarcimento por parte dos doentes), negligenciando-se valorizar a plena participação do sujeito no conhecimento, na terapia, na prevenção. Mesmo que os sistemas de welfare tenham obtido resultados melhores, relativamente aos paÃses nos quais prevaleceram as seguridades privadas, estas agora os desafiam abertamente; e eles somente poderão ser defendidos e desenvolvidos no caso de se renovarem profundamente.17
Mas o desafio principal, no plano social, é aquele da eqüidade: mais do que na assistência (direito, acesso, qualidade, humanidade), na própria saúde. Falo de eqüidade, ao invés de igualdade, também para criticar uma tendência niveladora que ignorou o significado positivo das diferenças individuais e coletivas (de sexo, de idade, de etnia), que por isso pretendeu uniformizar os seres humanos em um só modelo e que infelizmente dominou por muitas décadas as idéias da esquerda. Falo de eqüidade pensando por um lado no valor intrÃnseco de cada pessoa especÃfica, por outro na importância de medidas sociais aptas a remover os obstáculos ao bem-estar (entendido como estar-bem): aqueles, e somente aqueles, que não possam ser superados pela vontade e pela conduta pessoais.
Compartilho, neste sentido, o ponto de partida sugerido por Ãlvaro de Vita, que retomou a tese de John Rawls acerca da justiça: esta pode ser prejudicada desde o inÃcio pela existência de uma arbitrariedade moral, que escapa à s escolhas individuais na medida em que se manifesta no próprio ato do nascimento. Com o nascimento, de fato, vêm ao mundo indivÃduos diversos como genótipo e como fenótipo; a sua variedade e imprevisibilidade constitui a infinita riqueza da espécie humana. Com o nascimento, porém, criam-se também iniqüidades de partida que podem depender de doenças ou de predisposições genéticas, das condições materiais nas quais têm curso a gravidez e o parto, e ainda mais freqüentemente da famÃlia, do lugar e da classe social na qual sevem ao mundo. "Se acreditamos que o bem-estar de cada pessoa tem valor intrÃnseco", afirma A. de Vita, "então temos que acreditar também numa derivação dessa idéia: a de que as instituições básicas de uma sociedade democrática devem funcionar de modo a tanto quanto possÃvel reduzir a influência desses fatores moralmente arbitrários sobre as oportunidades de vida das pessoas".18
Pode-se reabrir, sobre esta base, o debate teórico sobre o direito à saúde. Como primeira aproximação expus as duas teses contrapostas, aquela de Bobbio sobre a transformação das necessidades em direitos, que se verifica quando se cria, historicamente, a possibilidade de que as necessidades sejam satisfeitas; e aquela de Engelhardt Jr. que nega, como princÃpio, a existência de um direito à assistência médica no caso de doença. Tal contraste concerne, porém, mais do que ao direito de bem-estar, ao direito de ter acesso aos cuidados médicos: o primeiro pode ser considerado como uma aspiração legÃtima de cada pessoa, e por isso como um direito natural; o segundo abarca mais propriamente a esfera dos direitos sociais, cujo reconhecimento depende de condições historicamente determinadas, das relações de força que se criam nas várias épocas e nações particulares, a partir da capacidade daqueles que são excluÃdos desses cuidados para individualizar e para impor soluções praticáveis. Mais do que a ética, neste caso vale a polÃtica, que pode retirar substância da legÃtima aspiração a iguais oportunidades assistenciais em caso de doença.
Admitindo-se, porém, que a vida é um direito natural de cada pessoa, e que a busca do bem-estar começa pela correção da "arbitrariedade moral" que se manifesta desde o nascimento, cabe considerar útil mas não suficiente o direito social ex post de usufruir daqueles atos terapêuticos que são tarefa especÃfica e tradicional da medicina. Lembro que um escritor inglês do século passado, Samuel Butler, descreveu o paÃs imaginário de Erewhon (1872), que era governado segundo o critério de que o poder humano deveria favorecer as decisões e as injustiças da natureza, acrescentando felicidade aos afortunados e sofrimento aos desventurados. Um dos casos descritos é o processo de um cidadão culpado pelo delito de tuberculose, um crime "punido até há pouco tempo com a morte". O promotor público, ao propor a condenação, dirige uma crÃtica ao réu: "Se fôsseis nascido de pais abastados, não terÃeis violado as leis do nosso paÃs"; e acrescenta que é inútil invocar, como atenuante, o motivo de ter nascido de pais adoentados: "Não estou aqui para me ocupar de complicadas questões metafÃsicas sobre a origem disto ou daquilo, questões que uma vez enfrentadas não teriam mais fim". O mundo de hoje afortunadamente é um pouco diverso daquele de Erewhon, mesmo que a tendência ao victim blaming tenha ressurgido nos últimos anos com particular vigor. Quase todos reconhecem, mesmo que freqüentemente a realidade contradiga tal aspiração, que os atingidos pela tuberculose ou por outras doenças deveriam ser curados, mas raramente se enfrentam até o fundo as "complicadas questões metafÃsicas sobre a origem disto ou daquilo", isto é, sobre o direito natural ao bem-estar e sobre os fatores que o obstaculizam.
A PRIORIDADE DA SAÃDE E AS PRIORIDADES NA SAÃDE
O tema mais freqüentemente discutido, na ética da saúde, é como se podem estabelecer as prioridades na alocação dos recursos destinados aos serviços de saúde, que se tornaram escassos (mas foram alguma vez abundantes?) por diversos motivos concomitantes: o envelhecimento da população, o custo crescente das tecnologÃas, a maior demanda por assistência, mas também as restrições impostas aos orçamentos por muitos governos nacionais, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. No estado do Oregon (EUA) procurou-se estabelecer, promovendo inclusive debates públicos, uma lista prioritária de cuidados baseados no impacto social das várias doenças. Em primeiro lugar foi oportunamente colocada a assistência materno-infantil, mas na gradação sucessiva foram introduzidos critérios muito subjetivos, alguns dos quais inspirados no victim blaming; por exemplo, o transplante de fÃgado em pessoas alcoólatras foi posicionado bem mais abaixo, no elenco das prioridades, em relação ao mesmo transplante tornado necessário por outras causas "menos culpáveis", como a hepatite. Isso demonstra, entre outras coisas, que a democracia não é um instrumento suficiente quando devem ser tomadas decisões de natureza moral.
Um filósofo, Raanan Gillon, cogitou, em vez disso, de individualizar as prioridades recorrendo ao instrumento da inocência. Submeteu para isso uma questão à filha de oito anos: "A quem, dentre três pessoas, devo atribuir o único aparelho salva-vidas de que disponho? Ao mais jovem, porque poderá viver por mais tempo; ao mais doente, porque tem dele a maior necessidade; ou ao mais valoroso porque o merece mais?"19 Mesmo que Gillon tivesse a sincera intenção de apresentar à filha as três opções bioéticas mais comuns (utilitarista, clÃnica e meritocrática), surge alguma dúvida sobre a conveniência pedagógica de submeter a uma menina, ainda que seja de modo abstrato, decisões de vida e de morte; deste ponto de vista, o fato de que Gillon seja diretor do Journal of Medical Ethics poderia ser considerado uma condição agravante. Contudo, a filha deu a resposta mais sensata, rejeitando a hipocrisia das escolhas "objetivas" e mostrando saber como são, muito constantemente, as coisas deste mundo: "Certamente não à quele do qual você é mais amigo, porque não seria honesto".
Muitos tendem a atribuir aos médicos não apenas essas escolhas extremas, mas também as exigências de comedimento cotidiano no uso dos serviços. Isso pode ser justo para evitar os desperdÃcios, para escolher os procedimentos mais apropriados, para se defender quando os fabricantes de medicamentos e de aparelhos impelem ao sobreconsumo. Reputo porém excessivo requisitar aos médicos "interiorizar o conceito de escassez".20 Esta de fato pode ser absoluta, mas também relativa, segundo a importância que assume a saúde no quadro de todas as prioridades públicas e pessoais: se ela não está nos primeiros lugares é efetivamente dever dos médicos atuar, junto aos cidadãos, para que todos interiorizem o conceito de prioridade, mais propriamente do que aceitem demasiadamente e difundam o da escassez. Os médicos, e todos os agentes de saúde, pelo fato mesmo de que vêem as doenças na população e podem conhecer-lhes as causas, deveriam sentir o dever moral de exigir medidas coletivas aptas a combatê-las. Poderia, em contrapartida, surgir algum risco se a polÃtica confiasse aos próprios médicos a definição das prioridades na saúde, como nos advertira, com um de seus paradoxos, George Bernard Shaw no prefácio a The Doctor's Dilemma: "Não é culpa dos nossos doutores se os serviços médicos da comunidade, como são prestados atualmente, constituem um absurdo homicida. Se qualquer nação sã e equilibrada, tendo observado que se pode assegurar o pão criando nos panificadores um interesse pecuniário servindo para tal fim, possa prosseguir oferecendo aos cirurgiões um interesse pecuniário na amputação de uma perna, é suficiente para nos deixar desesperados quanto à humanidade polÃtica. Mas isto é exatamente o que fizemos. E quanto mais medonha é a mutilação, mais o mutilador é pago.(...) Vozes escandalizadas murmuram que as operações são necessárias.(...) Pode ser. Pode ser também necessário enforcar um homem ou demolir uma casa. Mas nós cuidamos muito de não fazer o carrasco e o demolidor juÃzes disto. Se o fizéssemos, nenhum pescoço estaria mais seguro e nenhuma casa seria mais estável".
Não há dúvida de que, quem quer que julgue, tem uma base real a observação de Engelhardt Jr. sobre a difÃcil compatibilidade das várias exigências assistenciais: contenção dos custos, qualidade e igualdade de acesso aos serviços, liberdade de escolha. As decisões poderiam porém tornar-se mais simples se, além das prioridades na saúde, sobretudo se pensasse na prioridade da saúde em relação à s outras exigências. Refiro-me tanto à s opções dos governos como à quelas das pessoas particulares.
Para os governos, é notório que em grande parte das nações as despesas prioritárias são as militares. Elas são, proporcionalmente à renda, três vezes maiores nos paÃses subdesenvolvidos (por sua vez abastecidos em armas pelos paÃses mais ricos), isto é, naqueles paÃses que teriam maior necessidade de dedicar os seus recursos à saúde. Avaliou-se que, com a atual "velocidade de despesa" para fins militares, 35 segundos permitiriam construir escolas para 30.000 crianças, ou nutrir 22.000 pessoas por um ano inteiro; 12 minutos bastariam para construir 40.000 centros médicos aparelhados; 150 minutos (duas horas e meia) correspondem a todo o orçamento anual da Organização Mundial de Saúde, e 12 dias poderiam ser suficientes para abastecer com água potável todos os paÃses pobres.21 Mas nessa questão, mais do que as cifras, interessa o problema moral. Ele foi colocado por J. Harris nestes termos: a ameaça à vida dos cidadãos, que pode surgir dos inimigos estrangeiros e que pode justificar as despesas militares, é futura e teórica, enquanto as mesmas vidas se encontram constantemente em risco imediato pela falta de cuidados. Por isso devemos "adotar o saudável princÃpio de que os perigos reais e imediatos sejam enfrentados antes dos teóricos"; este princÃpio deveria induzir a "dar quase sempre ao orçamento da saúde a precedência com relação ao orçamento destinado à defesa da nação".22
Mas esse discurso se refere ainda aos critérios de repartição da despesa pública, sobretudo em relação aos serviços médicos. Detém-se, isto sim, na ética distributiva dos recursos sem enfrentar o tema da prevenção. Esta compreende: a) as medidas especÃficas (por exemplo, as vacinações) aptas a combater os fatores de doença; e b) as possibilidades preventivas que derivam de escolhas efetuadas em outros campos (por exemplo, a difusão da instrução, a humanização do trabalho, o melhoramento da nutrição e das moradias); essas medidas contribuem de maneira decisiva para a promoção e para a proteção da saúde, seja porque logram modificar as condições objetivas da existência, seja porque introduzem, no nÃvel individual, conhecimentos e estÃmulos idôneos não para torná-los obrigatórios, mas para favorecer comportamentos mais saudáveis.
O conteúdo ético da prevenção está na sua virtude antecipadora e na sua capacidade tendencialmente igualitária. R. Saracci escreveu que o acesso aos tratamentos corre hoje o risco de se tornar sempre mais custoso e sempre menos igualitário. Em contrapartida, "o único modo de enfrentar simultaneamente o volume da despesa e a desigualdade na proteção da saúde é a prevenção... Toda medicina tem certamente como meta a saúde, mas somente a prevenção tem como caracterÃstica intrÃnseca e como meta especÃfica a igualdade de cada cidadão no campo da saúde".23
O conteúdo ético e o valor prático da prevenção são acrescidos dos seus efeitos disseminadores em escala internacional, e são reconhecidos por todos... em palavras. Na realidade, as nações desenvolvidas dedicam a essa meta não mais do que 2-4% dos gastos com saúde, além de somas certamente não ingentes incluÃdas em outros orçamentos (aquelas, por exemplo, destinadas à segurança do trabalho e à higiene pública, para aquedutos e esgotos). Mas há coisa pior. Cito apenas um exemplo europeu, o do tabaco.24 A Comunidade Européia lançou, em 1992, uma campanha contra os tumores, centrada nos danos do fumo, despendendo nela 11 milhões de ECU (a unidade de cálculo européia, de valor semelhante ao dólar americano). No mesmo ano despendeu 1331 milhões de ECU, isto é, 121 vezes mais, em subvenções aos cultivadores de tabaco. Foi calculado que o tabaco contribui, cada ano, para a morte de meio milhão de europeus; a esta cifra pode-se acrescentar, desde algum tempo, um número incalculável de vÃtimas no Terceiro Mundo, de onde vêm exportados o tabaco e o hábito do fumo dos europeus.
Não sei se esse exemplo pode ser considerado como uma das "complicadas questões metafÃsicas sobre a origem disto e daquilo", que o magistrado de Erewhon se recusava a discutir porque "uma vez enfrentadas não teriam mais fim". Mas talvez, se decidÃssemos enfrentá-las, assumiriam menor dramaticidade outras questões éticas e à s vezes metafÃsicas sobre as prioridades na saúde, que estão no centro de interessantes mas por vezes irresolúveis discussões bioéticas.
Quando falo de questões irresolúveis refiro-me aos aspectos éticos daqueles casos nos quais devem ser tomadas decisões de vida e de morte que contrastam com os princÃpios absolutos. Entre estes, sobretudo, o valor intrÃnseco de cada existência humana, que não pode ser estimado na base da "qualidade de vida"; e que não é compreendido no critério utilitarista do "procurar o maior benefÃcio ao maior número de pessoas possÃveis". Não quero porém excluir esse critério, nem remover a exigência de alocar os recursos com base em escolhas polÃticas sustentadas por avaliações possivelmente objetivas. Falo de recursos monetários, mas ainda mais daqueles cientÃficos e humanos, que compreendem não só as funções profissionais mas também aquelas que podem colocar em campo cada grupo e organização social, cada movimento coletivo e, pessoalmente, cada cidadão.
Se avaliarmos comparativamente os progressos realizados nas últimas décadas na luta contra as doenças e na promoção da saúde, em relação aos meios empregados e aos recursos alocados, abate-se sobre nós uma novidade surpreendente. Digo novidade porque, ainda nos anos 50, os maiores progressos foram realizados com meios obtidos mediante laboriosa experimentação cientÃfica e disseminados através de produtos industriais: refiro-me à s descobertas que salvaram mais vidas e evitaram maiores mutilações, que acredito serem para aquele perÃodo os antibióticos e a vacina antipólio. Dos anos 60 em diante foram descobertos aperfeiçoamentos muito úteis; mas não foi introduzido, parece-me, qualquer produto que tenha tido um impacto positivo de dimensões análogas.
Quais foram, sucessivamente, as três inovações que evitaram mais doenças e salvaram mais vidas humanas? Qualquer um poderia sugerir o seu próprio elenco. Também eu o quero fazer, incluindo: 1) a terapia das gastrenterites infantis mediante reidratação oral com água, sal e açúcar, efetuada nos paÃses pobres; 2) a prevenção do infarto do miocárdio e de outras doenças cardio-circulatórias com a mudança dos "estilos de vida": nutrição, atividade fÃsico-esportiva, abolição do fumo e controle da hipertensão, efetuada nos EUA e depois em outros paÃses desenvolvidos; e 3) a prevenção das doenças gastrentéricas mediante o uso cotidiano da água fervida em todas as casas, efetuada sobretudo na China. Nenhum dos "descobridores" desses métodos teve o prêmio Nobel, mesmo se o tivessem merecido tanto quanto outros cientistas. Nenhum desses métodos requer tecnologÃas avançadas, medicamentos e produtos custosos; pelo contrário, eles contribuÃram para reduzir o seu uso e assim comprimir os custos assistenciais. As suas caracterÃsticas comuns estão em obter o máximo resultado com o mÃnimo de meios; em não haver contra-indicações de natureza ética, pelo fato de que não se criam conflitos com outros interesses legÃtimos; em requerer, mais do que uma delegação da própria saúde a profissões e instituições especializadas, uma participação responsável de cada um, e em estimular assim um nexo fecundo entre o direito à saúde e o dever de contribuir pessoalmente para mantê-la e promovê-la.
Não quero sobrecarregar de significados morais essas experiências, nem sustentar que essas orientações tenham que ser consideradas exclusivas, ou que sejam generalizáveis para onde quer que seja, para todos os lugares e todas as doenças. Parece-me indubitável porém que elas contribuem, com a força dos métodos e dos resultados, para delinear alguns pontos fundamentais de uma ética das prioridades na saúde.
Referências bibliográficas
- 1 Cf. Jonas, H. Il Principio responsabilitĂ . Turim, Einaudi, 1990.
- (Edição alemã: Das Prinzip Verantwortung. Frankfurt, Insel Verlag, 1979.
- 2 Berlinguer, G. Questioni di vita. Etica, scienza e salute. Turim, Einaudi, 1991.
- (Edição brasileira: Questões de vida. Ãtica, ciência, saúde. São Paulo, APCE-Hucitec-CEBES, São Paulo, 1993.
- 4 Berlinguer, G. "Welfare state e riforme sanitarie". In Storia e polĂtica delia salute. MilĂŁo, Franco AngelĂ, 1991, PP- 221-242.
- 66 Ver, por exemplo, La Crisis de la salud pública: reflexiones para el debate. Washington, Organización Panamericana de la Salud, Publicación CientÃfica 540, 1992.
- 7 Uma das anĂĄlises mais acabadas das polĂticas neoliberais neste campo estĂĄ em A. C. Laurell (org.). Estado y polĂticas sociales en el neoliberalismo (Cidade do MĂŠxico, Friedrich Ebert Stiftung, 1992).
- 8 Berlinguer, G. e Garrafa, V. "La Merce uomo". Micromega 1, 1993, pp. 217-234;
- Garrafa, V. "Usos e abusos do corpo humano". SaĂşde em debate 36, outubro de 1992, pp- 24-26;
- Berlinguer, G. "O Corpo humano: mercadoria ou valor?", Conferência na sede do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (no prelo, Estudos Avançados).
- 9 Relman, A. S. "What market values are doing to medicine". The Atlantic Monthly, março de 1992, pp. 99-106.
- 10 Montagnier, L. "Chi avrĂĄ il diritto a essere curato". Roma, Il Mondo fra dieci anni, 1991.
- 11 Engelhardt Jr., H. T. Manuale de bioĂŠtica. MilĂŁo, Il Saggiatore, 1991, p. 189.
- 12 HipĂłcrates: Le Epiderme, livro I, 11. In. Vegetti, M. (org.). Opere. Turim, Utet,1965, p. 304.
- 14 Twain, Mark. Lettere dalla tetra (em inglĂŞs: Letters from the Earth). Roma, Editori Riuniti, 1964, pp. 32 e 35.
- 15 Sigerist, H.E. Civilization and disease, Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1943, p. 239.
- 16 Rahkonen, O., et al. "Persisting health inequalities: social class differentials in illness in the Scandinavian countries". Journal of Public Health Policy, vol. 13, Springs 1993, pp. 95-110.
- 18 Vita, A. de. "Ătica e sociedade". Exposição na mesa redonda sobre este tema, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de SĂŁo Paulo, 2 de maio de 1993 (mimeo).
- 19 Gillon, R. Philosophical Medical Ethics. Nova York, John Wiley & Sons, 1988. cap. 15.
- 20 Brenna, A. Considerazioni su medicina, economia ed etica. 1993, no prelo.
- 21 Kiefer, C. W. "Militarismo e salute nel mondo". Cuamm notizie, janeiro-agosto de 1992, pp. 83-87.
- (O artigo foi originalmente publicado em Soc. Sci. Med. 34, 7, 1992, pp. 719-724.
- 22 Harris, J. "La Biotecnologia nel 2000. Wonderwoman e Superman". Bioetica n. 1, 1993, pp. 25-26.
- Na seção "Recursos" deste artigo, Harris adota os conceitos por ele expressos era outros lugares: "More and better justice". In Mendus, S. e Bells, M. (orgs.). Philosophy and Medical welfare. Cambridge, Cambridge: University Press, 1988, pp. 75-97;
- e "National health = National defence". Issues in Focus, agosto, 1992.
- 23 Saracci, R. "Pour en finir avec l'inegalitĂŠ face a la santĂŠ". Le Monde, 10 de outubro de 1990, p. 19.
- 24 Kickbusch, I. "Is Health part of the European dream?" Apresentação na conferência Enlarging the European Community Northern Europe. Reykjavik, 17-18 de maio de 1993.