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A cidade e os cidadãos

DEBATE

A cidade e os cidadãos

Pedro Jacobi

Sociólogo, economista e professor da PUC SP

Todas as pessoas que vivem na cidade são cidadãos? Não é bem assim. Na verdade, todos têm direito à cidade e têm direito de se assumirem como cidadãos. Mas, na prática, da maneira como as modernas cidades crescem e se desenvolvem, o que ocorre é uma urbanização desurbanizada.

Como as cidades são construídas como um produto de consumo, elas acabam ficando fora do alcance dos seus consumidores potenciais. Porque para consumir a cidade é preciso ter poder aquisitivo, o que exclui dos benefícios urbanos e de muita coisa boa da vida a maioria da população.

Direito à cidade quer dizer direito à vida urbana, à habitação, à dignidade. É pensar a cidade como um espaço de usufruto do cotidiano, como um lugar de encontro e não de desencontro.

Hoje, os habitantes das grandes metrópoles brasileiras estão sendo bombardeados pelas promessas dos seus candidatos a prefeito. Nos seus discursos estão contidas propostas sobre como as cidades deveriam ser governadas, de acordo com os diferentes partidos. (Se é que podemos acreditar nisso.) Nesse quadro, em que aparecem vários modelos de gestão da cidade, a questão do direito à cidade se torna provocativa tanto para os que ainda se permitem sonhar quanto para os descrentes.

Ao falarmos do direito à cidade, imediatamente nos vem à mente a necessidade de transformar a enorme tragédia urbana brasileira. Os novos tempos terão de estar povoados de alternativas, de muita imaginação, capazes de permitir concretizar uma realidade muito diferente da atual.

Hoje, as nossas cidades são o reflexo do abuso do poder autoritário e do capital monopolista, com liberdade franqueada para a especulação, para a ação privada dos grandes negócios.

Até agora, a administração local não teve nem meios financeiros nem vontade política para abordar, efetivamente, os problemas da cidade. Além disso, não existe um movimento social urbano forte e organizado que se oponha de forma mais contundente às políticas existentes.

Nas nossas cidades, assim como na maioria das cidades capitalistas, convivem vários interesses conflitantes e, para cada um deles, a cidade assume um significado diferente. Há os interesses dos proprietários de terras, dos construtores, dos banqueiros e dos industriais, para os quais a cidade é, basicamente, um negócio. E há os cidadãos, para os quais a cidade é o lugar do habitat e o lugar de habitar.

Aqueles que administram a cidade e que têm poder de intervir nela — os que estão na máquina do Estado —, na maioria das suas ações, têm demonstrado ter uma relação muito tênue com aquilo que a cidade significa para o habitante/usuário, transformando-o freqüentemente em cidadão/vítima.

Não são poucos os casos em que a imaginação e a espontaneidade da população conseguem superar e transformar o ambiente hostil planejado pelos "especialistas". Esse é o caso dos conjuntos habitacionais e de muitas praças e áreas de lazer.

O direito à cidade representa acima de tudo a possibilidade de transformar o nosso cotidiano, de forma que cada habitante possa de fato habitar e participar plenamente do espaço onde vive.

As nossas cidades de hoje não são fruto do acaso, mas produto de uma história concreta, de concentração de poder econômico e político nas mãos de alguns e de segregação e desigualdade para a grande maioria.

Durante anos, vivemos sob o fogo cruzado das concepções de eficiência, racionalidade e rentabilidade. Sempre foi dito à população como deveria morar, e ela raras vezes teve oportunidade de dizer como gostaria de morar.

É preciso inverter essa lógica. Contra a lógica da "ordem", a lógica da sobrevivência. Se existem terrenos desocupados, à espera de grandes lucros, é inevitável que eles sejam invadidos por quem precisa morar. E a população cada vez mais vai percebendo que através da ação direta expressa mais convincentemente as suas prioridades.

À medida que o processo político se torna mais aberto e democrático, com eleições diretas em todos os níveis, é possível pensar que a solução progressiva de muitos dos chamados problemas urbanos comece a ser encaminhada. Mas isso não basta para garantir uma política urbana e uma gestão municipal democrática e preocupada com o interesse coletivo. É necessário, além disso, democratizar a gestão administrativa, estabelecer canais de participação, diminuindo a enorme distância existente entre administração e população. Com isso será possível contrapor-se à corrupção, ao clientelismo e à ditadura secreta dos interesses privados anti-sociais.

Assim é importante que as instituições do Estado sejam mais representativas e descentralizadas, multiplicando as formas de participação e controle e permitindo uma articulação da democracia de base com a democracia representativa.

Portanto, falar em direito à cidade implica também ter um movimento social urbano forte e organizado capaz de questionar e contrapor-se à forma em que estão organizadas as relações de poder na cidade.

Não devemos esquecer, entretanto, que na cidade convivem diversos interesses, demandas e soluções. Mas, então, de que direito estamos falando? Para os mais pobres e excluidos, ou seja, para pelo menos 50% da população da cidade de São Paulo e, certamente, muito mais nas cidades nordestinas, falamos do direito à moradia, à alimentação, á saúde, à educação, ao melhor transporte público, questões que vão além de quaisquer outras demandas das classes médias, como mais áreas verdes, menos poluição — e uma questão que afeta a todas indiscriminadamente: a violência urbana.

Direito à cidade, democratização ao poder locai e participação popular, tornam-se então um denominador comum. São expressão correta de uma vontade coletiva dos cidadãos, a partir da expressão territorial das suas necessidades e vontades.

Ser Cidadão. Mas Como?

Atualmente, mesmo considerando que muitas das cidades brasileiras são governadas por membros da oposição ao regime autoritário, ainda é marcante a preocupação de esvaziar qualquer ameaça de pressão dos cidadãos. Ainda que isso seja feito através de uma discutível política de participação, que não passa de fachada.

A pergunta que surge, então, é: como ampliar o nível de participação dos cidadãos, de uma forma mais ampla que a simples defesa dos interesses do bairro? Ou como fazer com que a população participe a nível dos interesses dos problemas do bairro, da rua, do quarteirão, do conjunto habitacional? As limitações que encontramos para isso não são apenas políticas, mas principalmente culturais.

A pergunta — como ser cidadão — deve ser colocada a nós mesmos. E mais: descentralizar como? Participar, onde e para quê? Essas provocações abrem espaço para refletir em que medida a descentralização supõe um passo em direção a um novo modelo de gestão da cidade. Descentralizar significa, antes de tudo, ceder uma parcela do poder a uma unidade inferior. Ou seja, dotar de competências e meios os organismos intermediários (conselhos, órgãos administrativos regionalizados etc), para que possam desenvolver a sua gestão de uma maneira mais próxima dos interesses dos cidadãos.

Na prática, isso implica definir, claramente, através de que modelo de descentralização se vai governar e quais os reais espaços para a participação dos cidadãos. Mas faltam propostas.

Por exemplo, ao se falar em participação dos usuários, pouco se tem avançado. O limite é sempre o mesmo: a ameaça aos grupos de interesses dominantes, que temem ver alterados os padrões tradicionais de cidadania, garantia dos seus privilégios. O que existe hoje é a "panacéia participativa", cheia de adjetivos e frágil na perspectiva da transformação.

Não queremos ser administrados.

Os diversos movimentos sociais que emergiram nos últimos anos têm indicado alguns caminhos a respeito do que é necessário para se criar uma consciência mais ampla da cidade.

A criação de um sentimento solidário nos bairros, onde as pessoas se unem para discutir os seus problemas e propõem soluções, constituindo um tecido de vida social organizada, e, conscientes da vontade de não mais serem "administradas", consideram cada vez mais a vontade de participar da tomada de poder na cidade. E isso não é só um ato político, mas uma recuperação qualitativa da vida urbana. A cidade não pode mais ser mercadoria nas mãos dos que lucram com ela.

Os projetos de transformação incorporam uma nova maneira de conhecer e se integrar na cidade e rompem com as práticas tradicionais, que incentivam as atitudes individualistas, competitivas e desagregadoras.

Talvez eu esteja entrando no terreno das utopias. Temos o direito de sonhar, podemos aprender a assimilar as experiências isoladas que se multiplicam através daqueles que acreditam que e possível transformar o dia-a-dia das nossas cidades, buscando respostas e alternativas.

Vários movimentos sociais têm avançado na questão, apresentando propostas concretas de gestão da cidade e questionando as práticas existentes. Avanços foram feitos pelos Conselhos de Saúde, pelos movimentos de moradia e pelas associações de usuários de transportes coletivos, disseminadas em São Paulo, Belo Horizonte e Goiânia. Essas experiências refletem novas concepções dos moradores, uma vez que passam a interferir diretamente na qualidade dos serviços, no controle do processo de produção de moradias para as classes populares e na fiscalização da administração do sistema de transporte coletivo.

A população conhece, muito melhor do que os técnicos do Estado, quais são as suas necessidades e qual a melhor forma de resolvê-las. E as experiências demonstram que a participação igualitária e direta do usuário nos conselhos de bairros tem contribuído no processo de formação de uma consciência coletiva sobre o direito à cidade.

Cidades mais Livres e Igualitárias.

O grande desafio de propor alternativas para a administração das cidades não depende só de vontades, mas da criação de condições objetivas.

É preciso consolidar um movimento forte de cidadãos, que se ¡orne um interlocutor reconhecido pelo Estado. Isso pode ser feito através de uma ampla organização em todos os níveis e da criação de formas institucionais adequadas à participação cada vez mais ampla.

O direito à cidade representa, acima de tudo, pensar uma cidade democrática, uma cidade que rompa as suas amarras com o passado.

Estamos acostumados a viver na cidade pensando sempre na apropriação individual, no espaço do nosso grupo social. Esquecemos das coisas mais simples que podem encaminhar a grande transformação: formas de solidariedade que nos obriguem a desenvolver a nossa capacidade de conviver com as diferenças.

Uma política municipal democrática, para tornar as cidades livres e mais igulalitárias, não poderá ser desenvolvida apenas por alguns grupos políticos nem por algumas equipes de técnicos isoladamente. As forças políticas democráticas precisam encontrar formas de cooperação e os organismos técnicos terão de criar mecanismos para envolver um grande esforço coletivo na gestão municipal.

Para que isso se torne realidade, algumas pistas já estão dadas pela própria ação dos moradores mais organizados. Mas quase tudo está por ser feito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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