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Modalidade com graus? Necessidade fraca e o verbo dever do português

Modality with Degrees? Weak necessity and the Portuguese verb dever

RESUMO

Neste artigo, discutimos a motivação e adequação de uma semântica de graus para o verbo modal dever do português, no âmbito de uma crescente literatura sobre o papel da noção de gradação na semântica modal. Exploramos analogias com outros domínios já mais bem mapeados e com os quais a modalidade expressa por dever parece guardar certa relação semântica. Passamos por questões relacionadas à quantificação, probabilidade, gradação e pluralidade, numa amostra das complexidades que a semântica desse verbo nos coloca. Cotejamos dever com determinantes proporcionais, adjetivos graduáveis, DPs universais restritos e descrições definidas plurais, a fim de avaliar a adequação de certas ideias e ferramentas analíticas que tem emergido nesse campo.

Palavras-chave:
modalidade; gradação; necessidade fraca

ABSTRACT

In this article, we discuss the motivation and adequacy of a degree-based semantics for the Portuguese modal verb dever taking into account a crescent body of research on the role of gradation in modal semantics. We explore analogies with other domains with which the modality expressed by dever seem to bear a close relationship. We also address semantic issues connected to notions such as quantification, probability, gradability, and plurality, which provide a sample of the complexities involved in the elucidation of dever’s meaning. This will lead us to comparisons with proportional determiners, gradable adjectives, universal QPs, and plural definite descriptions, in an effort to assess certain analytic tools that have emerged in this area.

Keywords:
modality; gradability; weak necessity

1. Introdução

O objetivo deste artigo panorâmico é discutir a motivação e adequação de uma semântica de graus para o verbo modal dever do português, no âmbito de uma crescente literatura sobre o papel da noção de gradação na semântica modal.3 2 Gostaria de agradecer aos pareceristas anônimos da revista pelas valiosas críticas e sugestões. Agradeço ainda ao CNPq pelo auxílio financeiro na forma de bolsa de produtividade em pesquisa. Durante todo o artigo, exploraremos analogias com outros domínios já mais bem mapeados, e com os quais a modalidade expressa por dever - e seus parentes próximos poder e ter que - parece guardar certa relação semântica. Passaremos por questões relacionadas à quantificação, probabilidade, gradação e pluralidade, numa amostra das complexidades que a semântica desse verbo nos coloca. Cotejaremos dever com determinantes proporcionais (a maioria dos), adjetivos graduáveis (grande), DPs universais restritos (todo NP+AP) e descrições definidas plurais (os+NP), a fim de avaliar a adequação de certas ideias e ferramentas analíticas que têm emergido nesse campo.

O artigo está organizado da seguinte forma: na seção 2, estabelecemos como ponto de partida o tratamento conferido pela lógica modal às noções de possibilidade e necessidade. Na seção 3, apresentamos o desafio introduzido pelo verbo dever e sua força modal intermediária entre possibilidade e necessidade. Discutimos possíveis alternativas semânticas em termos de cardinalidade (seção 3.1), probabilidade (seção 3.2) e gradação (seção 3.3). Esta última é explorada mais detalhadamente na seção 4. Já na seção 5, questionamos empiricamente a adequação do uso gramatical (semântico) da noção de gradação na modelagem da força modal de dever. Na seção 6, apresentamos a formalização de Kratzer (1981KRATZER, Angelika. 1981. The notional category of modality. In: H.J. Eikmeyer & H. Rieser. Eds. Words, Worlds, and Contexts. Berlim: de Gruyter.,1991______. 1991. Modality. In: Arnim von Stechow & Dieter Wunderlich. Eds. Semantik/Semantics: An International Handbook of Contemporary Research. Berlim: de Gruyter.) para a gradação modal, em geral, e a noção de necessidade fraca, em particular, bem como a proposta de von Fintel e Iatridou (seção 6.1). Essas propostas buscam modelar a força modal intermediária de verbos como dever sem apelar a uma semântica baseada em graus. A seção 7 apresenta algumas objeções conceituais levantadas mais recentemente pela própria Kratzer. Por fim, a seção 8 destaca um outro ponto levantado recentemente por Kratzer, que diz respeito à noção de homogeneidade, uma propriedade instanciada em outros domínios e que nos parece um aspecto chave para entender a semântica de modais como dever.

2. Da Lógica Modal

Como ponto de partida, importemos da lógica modal (cf. Hughes e Cresswell (1996HUGHES, G. & Cresswell, Max. 1996. A New Introduction to Modal Logic. Londres: Routledge.), Gamut (1991GAMUT, L.T.F. 1991. Logic, Language, and Meaning. Chicago: University of Chicago Press.)), os operadores sentenciais ◊ e □‪, bem como sua semântica baseada em quantificação restrita sobre mundos possíveis:

(1) [[φ]]w = 1 sse w [R(w,w) & [[ϕ]]w = 1]

(2) [[φ]]w = 1 sse w [R(w,w) [[ϕ]]w = 1]

A ideia é que ◊ e ‪□ codificam necessidade e possibilidade, respectivamente. R é uma relação entre mundos possíveis, frequentemente chamada de relação de acessibilidade, que restringe os mundos sobre os quais a quantificação modal opera. O escopo (ou prejacente) do operador é uma fórmula (ϕ), interpretada como uma proposição (um conjunto de mundos possíveis). Como se nota, os operadores efetuam um deslocamento modal, fazendo com que seus complementos sejam avaliados em mundos (w’) distintos do mundo de base w.

Esses operadores são definíveis um em função do outro e considerados duais (assim como o são os quantificadores ∃ e ∀ da lógica de predicados), no sentido de obedecerem as equivalências abaixo:

(3) φ ¬¬φ, ¬φ ¬φ

(4) ‪φ ¬¬φ, ¬φ ¬φ

Verbos modais, como poder e ter que, apresentam-se como candidatos naturais para as contrapartes linguísticas desses operadores:

(5) a. Pode estar chovendo.

b. Tem que estar chovendo.

Neste caso, a interpretação mais natural é a de modalidade epistêmica ou evidencial. Dado o conhecimento do falante, ou dadas as evidências disponíveis, é possível/necessário que esteja chovendo. Como se pode notar, as equivalências acima, ainda que um pouco convolutas quando apresentadas em português, são válidas. Por exemplo, se é verdade que pode não estar chovendo, é falso que tem que estar chovendo, e vice versa.

Além da interpretação epistêmica, outras interpretações são possíveis para os verbos modais, dependendo do contexto linguístico e/ou extralinguístico. Considere, por exemplo:

(6) a. Você pode ir à pé.

b. Você tem que ir à pé.

Nesses casos, a interpretação mais natural é a teleológica. Dado o seu objetivo (por exemplo, deslocar-se de onde você está até o centro da cidade), para atingi-lo, é possível/necessário ir à pé.

Como se vê, no caso dos verbos modais, a força quantificacional é determinada lexicalmente, mas a relação de acessibilidade (sabor modal) é determinada contextualmente. Assumindo que o sujeito pré-verbal dos exemplos acima seja apenas reflexo de exigências da sintaxe superficial do português, e que, semanticamente, o complemento do verbo modal denota uma proposição, temos que a forma lógica simplificada dos exemplos acima é M R (p), em que p denota uma proposição e M um operador modal restrito por uma relação de acessibilidade R. Para os verbos poder e ter que, teríamos as seguintes entradas lexicais:

(7) poderRw=λp·w'Rw,w'& w'p

(8) ter_queRw=λp·w'Rw,w' w'p

Não é difícil notar que (7) e (8) são meras versões composicionais (categoremáticas) dos operadores lógicos definidos em (1) e (2).

3. Uma Força Intermediária

Se até aqui, lógica formal e linguagem natural parecem caminhar de mãos dadas, ao menos léxico-semanticamente, o cenário se complica quando estendemos minimamente nosso fragmento natural:

(9) Deve estar chovendo.

(10) Você deve ir à pé.

A novidade aqui é o verbo dever. De uma perspectiva semântica, dever parece se agrupar com poder e ter que, relativizando a avaliação de uma proposição a certos mundos possíveis determinados contextualmente. Mas qual seria sua força quantificadora?

Uma intuição sólida é que sentenças simples com dever são semanticamente mais fortes que suas contrapartes com poder e mais fracas que suas contrapartes com ter que. Força semântica, nesse caso, pode ser entendida como acarretamento (⇒) assimétrico. Esses três itens modais formariam, assim, uma escala:

(11) poder < dever < ter que

(12) a. Tem que estar chovendo ⇒ Pode/deve estar chovendo

b. Deve estar chovendo ⇒ Pode estar chovendo

(13) a. Pode/deve estar chovendo /⇒ Tem que estar chovendo

b. Pode estar chovendo /⇒ Deve estar chovendo.

Daí o fato de sentenças como (14) soarem contraditórias, em contraste com (15):

(14) # Tem que/deve estar chovendo, mas não pode estar.

(15) Pode/deve estar chovendo, mas não tem que estar.

3.1. Cardinalidades

Há, no domínio nominal, sintagmas cujas forças quantificadoras sugerem uma analogia com as forças modais associadas a ter que e poder. Em particular, os sintagmas introduzidos por todo/toda e algum/alguma ou alguns/algumas:4 3 Ver Portner (2009), Yalcin (2010), Katz et al. (2012), Klecha (2014), Portner e Rubinstein (2016), Lassiter (2017), Silk (2017), inter alia. Para o português brasileiro, ver, em especial, Pessotto (2014) e a entrevista de Angelika Kratzer a Roberta Pires de Oliveira e Ana Pessotto (Kratzer et. al 2014).

(16) a. Toda criança chora.

b. Algumas crianças choram.

Neste ponto, uma analogia entre dever e a expressão nominal quantificadora a maioria dos se torna tentadora (cf. Horn 2001HORN, Laurence. 2001. A Natural History of Negation. Stanford: CSLI Publications., para os modais do inglês):

(17) poder : dever: ter que

alguns : a maioria dos: todos os

(18) Todos os alunos saíram ⇒A maioria dos alunos saiu ⇒Alguns alunos saíram5 4 Ignoramos aqui questões morfossintáticas, ligadas a gênero e número gramaticais, bem como certas questões semântico-pragmáticas, relacionadas a pressuposições existenciais (a de que existem crianças, nos exemplos em questão).

(19) Alguns alunos saíram /⇒A maioria dos alunos saíram /⇒Todos os alunos saíram.

Nesse caso, assim como a maioria dos, dever não seria equivalente nem ao quantificador universal, nem ao existencial. É comum modelar a semântica de quantificadores proporcionais como a maioria dos em termos de conjuntos e cardinalidades:

(20) [[a maioria dos]] = λP. λQ. | P Q | > | P ~Q |

Nessa linha, os quantificadores existencial e universal podem ser tratados nos mesmos termos:

(21) [[algum]] = λP. λQ. | P Q | 1

(22) [[todo(s)]] = λP. λQ. | P Q | = | P |

A princípio, tudo vai bem. Como o leitor poderá verificar, essas entradas conduzem aos acarretamentos assimétricos ilustrados acima, assumindo-se que P e Q são conjuntos não-vazios.

Entretanto, as coisas se complicam um tanto quando infinitudes estão envolvidas. Nesse caso, um conjunto pode ter a mesma cardinalidade de alguns de seus subconjuntos próprios. Com isso em mente, pense em uma sentença como (23), a seguir:

(23) A maioria dos números naturais não é múltiplo de 10.

Apesar de intuitivamente verdadeira (só um em cada dez números naturais são múltiplos de dez), (23) deveria ser falsa, de acordo com a entrada acima. Isso porque o conjunto dos números naturais, o conjunto dos números múltiplos de dez e o conjunto dos números que não são múltiplos de dez são todos infinitos e seus elementos podem ser postos em correspondência biunívoca (um a um). Esses três conjuntos têm, portanto, a mesma cardinalidade.6 5 Assumindo, nesse caso, que a denotação do NP menino(s) seja não-vazia.

Se esse problema parece restrito a certas sentenças construídas em cima de um jargão técnico, o mesmo não se pode dizer dos casos envolvendo verbos modais. Não apenas o conjunto dos mundos possíveis é infinito, como também subconjuntos correspondentes a proposições expressas por sentenças banais, como está chovendo. A solução baseada na analogia entre dever e a maioria dos, ainda que instigante, não parece estar calcada na noção de cardinalidade.

3.2. Probabilidades

Uma mudança de perspectiva seria a reformulação das extensões de dever e de a maioria dos utilizando probabilidades ao invés de cardinalidades. Assim, no caso de (23), teríamos que a probabilidade de um número natural não ser múltiplo de dez é maior que a probabilidade de ele ser um múltiplo de dez. Ou ainda, em termos numéricos, a probabilidade de um número natural não ser múltiplo de dez é maior que 0.5 (ou 50%).

Essa solução parece se estender bem para o caso de dever interpretado epistemicamente. Detalhes à parte (cf. Yalcin 2010YALCIN, Seth. 2010. Probability operators. Philosophy Compass 5: 916-37), (24) parece ser adequadamente parafraseável por algo como (25), em que um jargão probabilístico é explicitamente usado:

(24) Deve estar chovendo.

(25) A probabilidade de estar chovendo é maior que a probabilidade de não estar chovendo.

Ou, ainda, de forma mais coloquial:

(26) É mais provável estar chovendo do que não estar chovendo.

Ou, talvez, algo mais vago:

(27) A probabilidade de estar chovendo é relativamente alta.

Já casos envolvendo modalidades não epistêmicas, como a teleológica, não são tão amenos ao mesmo tratamento:

(28) Você deve pegar um táxi (para ir até o centro).

Aqui não parece cabível uma análise probabilística. Mas podemos, ainda assim, resguardar o caráter geral da análise, se associarmos diferentes sabores modais a diferentes funções numéricas. No caso acima, por exemplo, podemos pensar em uma escala de valores representando uma ponderação entre quesitos como conforto, rapidez, custo, ou o que quer que embase a escolha de um meio de transporte em detrimento de outros. (28) expressaria, assim, algo como é melhor (ou mais satisfatório) ir de carro do que não ir de carro, ou talvez, o grau de satisfação em ir de carro é relativamente alto.7 6 Para uma introdução aos aspectos básicos da noção de infinitude na teoria dos conjuntos, cf. Partee et al. (1990).

3.3. Gradações

A analogia emergente dessas últimas considerações passa a ser entre dever e predicados graduais, como o adjetivo alto, por exemplo:

(29) João é alto.

Essa sentença indica que a altura do João é relativamente elevada, ou que supera um certo valor padrão. Essa analogia foi explorada em Portner (2009PORTNER, Paul. 2009. Modality. Oxford: Oxford University Press .) que implementou uma semântica baseada em graus para modais semelhantes a dever muito próxima àquela assumida em boa parte da literatura para adjetivos graduais (ver Kennedy 1997KENNEDY, Chris. 1997. Projecting the Adjective: The Syntax and Semantics of Gradability and Comparison. Tese de Doutorado. University of California Santa Cruz., inter alia). Vejamos os detalhes, começando por uma breve incursão na semântica de um adjetivo como alto.

A ideia central é que em sua forma básica, não modificada, o adjetivo alto denota uma função que mapeia indivíduos em graus, entendidos como valores pertencentes a uma escala e atreláveis a uma certa dimensão. No caso em questão, trata-se de uma escala de altura, havendo várias dimensões possíveis, incluindo metros, centímetros, polegadas, etc. Valendo-nos, na metalinguagem, de uma função µaltura que leva indivíduos na sua altura (expressa, vamos assumir aqui, em metros), temos:

(30) [[alto]] = λx. µaltura(x)

Para interpretar sentenças como (29), assume-se que essa forma básica se combina com um modificador POS, que introduz um valor contextualmente determinado, correspondendo a um padrão de altura a partir do qual se pode separar os indivíduos entre altos (aqueles cuja altura supera o padrão) e não altos (aqueles cuja altura não supera o padrão):

(31) a. [[POS]] = λP.λx. P(x) > dC

b. [[POS alto]] = λx. µaltura(x) > dC

Como se pode notar, POS transforma o adjetivo em um predicado de indivíduos, caracterizando aqueles cuja altura supera o padrão contextual. É esse predicado que se aplicará ao sujeito de (29):

(32) [[João é alto]] = [[POS alto]]([[João]])

(33) [[João é alto]] = 1 sse µaltura(j) > dC

Outros adjetivos graduais que também medem indivíduos são quente e inteligente. O que há em comum entre eles é o fato de aparecerem naturalmente em formas derivadas ou modificadas, como comparativas (mais quente), superlativas (inteligentíssimo) e intensificadas (muito alto). Note ainda que nem sempre há uma dimensão numérica pressuposta. Se nos casos de alto e quente, são bem conhecidos o sistema métrico e a escala Celsius, no caso de inteligente não há algo da mesma natureza. Por fim, nem todo adjetivo gradual mede indivíduos. Alguns, como provável e bom, por exemplo, parecem, ao menos em certos casos, qualificar proposições:

(34) a. É provável que esteja chovendo.

b. É bom que esteja chovendo.

Mantendo o aparato formal que acabamos de ver para alto, teríamos, para provável, o seguinte:

(35) [[provável]]w = λp. µprob,w(p)

Passamos a um sistema intensional, relativizando extensões e funções de medida a mundos possíveis w, apenas para deixar claro que a probabilidade de uma proposição é algo contingente e pode variar a depender do mundo em que é avaliada. Quanto à escala em questão, podemos chamá-la de probabilística, com a função de medida atribuindo valores não negativos entre 0 e 1 a proposições. Intuitivamente, o valor 1 corresponde a atribuir certeza absoluta à veracidade da proposição em um certo mundo, o valor zero certeza absoluta à sua falsidade, o valor 0.5 total incerteza, e assim por diante. Como no caso de alto, assume-se que a forma básica se combina com POS, introduzindo-se, assim, um padrão contextual, como em (36)a. Para a sentença (34)a, teríamos a derivação em (36)b:

(36) a. [[POS]]w = λP.λp. P(p) > dC

b. [[POS provável]]w = λp. µprob,w(p) > dC

[[que esteja chovendo]]w = pchove = λw. está chovendo em w’

[ [ é p r o v á v e l q u e e s t e j a c h o v e n d o ] ] w = 1 s s e µ p r o b , w ( p c h o v e ) > d C

Note que o papel semântico de POS continua o mesmo: transformar seu argumento (P) em um predicado de elementos de uma certa classe. No caso de alto, esses elementos eram indíviduos. Já no caso de provável, são proposições. Assumimos aqui que d C é fixado exclusivamente pelo contexto de fala, correspondendo intuitivamente ao valor (para os propósitos da conversa em questão) acima do qual considera-se algo como sendo provável. Possíveis valores para d C seriam 0.5 (indicando simplesmente que a probabilidade de p é maior que a de sua negação) ou valores um pouco mais elevados, como 0.6 ou 0.7, exigindo uma certa diferença mínima entre a probabilidade de p e a de sua negação (cuja soma, lembremos, deve ser sempre igual a 1).

Já no caso de sentenças como (34)b com o adjetivo bom complementado por uma sentença, podemos pensar em uma escala de satisfação ou algo parecido. Como no caso de inteligente, não há aqui uma dimensão numérica bem estabelecida:8 7 Aproximamo-nos, aqui, do conceito de utilidade esperada da teoria das decisões.

(37) é bom que esteja chovendow=1 sse μsatis,wpchove>dC

4. Modalidade com Graus?

Com esse mínimo no lugar, voltemos ao verbo dever em sentenças como as seguintes:

(38) Deve estar chovendo.

(39) Você deve pegar um táxi.

Em analogia direta com os adjetivos graduais que acabamos de discutir, sobretudo os proposicionais, a ideia é que verbos como dever medem proposições em uma escala modal determinada contextualmente e que podemos representar genericamente como µmodal:

(40) [[POS]]w = λP.λp. P(p) > dC

[ [ P O S d e v e ] ] w = λ p . µ m o d a l , w ( p ) > d C

No caso de (38), teríamos:

(41) [[estar chovendo]]w = pchove = λw. está chovendo em w’

[ [ d e v e e s t a r c h o v e n d o ] ] w = 1 s s e µ m o d a l , w ( p c h o v e ) > d C

Nesse caso, em que a leitura mais saliente é a epistêmica, a escala em questão seria a probabilística. De fato, o sentido de deve estar chovendo parece equivalente (mesmas condições de verdade) ao de é provável que esteja chovendo.

Já para o caso de sentenças como (39), envolvendo modalidade não epistêmica (teleológica, por exemplo), o procedimento seria o mesmo, exceto pelo fato de a escala se relacionar a graus de recomendação, safisfação, adequação ou outra noção semântica próxima. Note que diferentes tipos de modalidade não epistêmica compatíveis com dever encontram correlatos no domínio adjetival (bom, recomendável, etc.).

De maneira geral, o que emerge da ideia e implementação de Portner (2009PORTNER, Paul. 2009. Modality. Oxford: Oxford University Press .) é que proposições, assim como indivíduos, podem ser ``medidas’’ (comparadas) em termos escalares. Dadas duas proposições p e q, e um mundo w, µmodal,w(p) > µmodal,w(q) indica que p é uma alternativa ou possibilidade acima de (ou melhor que) q. µmodal,w é, portanto, uma função de medida especificada contextualmente. Possíveis valores incluem graus de certeza (modalidade epistêmica) e de recomendação (modalidades teleológica e deôntica).

Na esteira dessa semântica baseada em graus para os verbos modais, Portner e Rubinstein (2016______ and Aynat Rubinstein. 2016. Extreme and Non-Extreme Deontic Modals. In: N. Charlow & M. Chrisman. Eds. Deontic Modality. Oxford: Oxford University Press.) analisam os auxiliares should e must do inglês como predicados modais de grau. A relevância desta análise para os propósitos do presente artigo é que a assimetria de força entre dever e ter que atestada em português se parece muito com a observada entre should e must, com o primeiro mais fraco que o segundo, e ambos mais fortes que um típico modal de possibilidade como may/can em inglês ou pode em português.

Olhemos, então, para o aspectos centrais da proposta dos autores, que estão assentados sobre mais uma analogia entre verbos modais e adjetivos graduais:

(42) dever : ter que

grande : imenso

(43) a. Essa casa é imensa ⇒ Essa casa é grande

b. Essa casa é grande /⇒ Essa casa é imensa

Os adjetivos do inglês usados por Portner e Rubinstein (2016______ and Aynat Rubinstein. 2016. Extreme and Non-Extreme Deontic Modals. In: N. Charlow & M. Chrisman. Eds. Deontic Modality. Oxford: Oxford University Press.) foram big e gigantic. Como se pode notar nos exemplos acima, os adjetivos grande e imenso têm comportamento semelhante nesse quesito. Outros pares semelhantes são bad/ruim e terrible/terrível.

A ideia central é que tanto should/dever quanto must/ter que são predicados modais de grau que operam em uma mesma dimensão. Entretanto must/ter que operam na porção extrema de uma escala. Os autores importam de Morzycki (2012MORZYCKI, Marcin. 2012. Adjectival extremeness: degree modification and contextually restricted scales. Natural Language and Linguistic Theory 30: 567 609.) o tratamento semântico do que se chama de adjetivos extremos, como gigantic/imenso e sua relação com seus assemelhados não-extremos big/grande:

(44) [[big/grande]] = λx.λd. d C & µtamanho(x) = d

[ [ g i g a n t i c / i m e n s o ] ] = λ x . λ d . d > m a x ( C ) & µ t a m a n h o ( x ) = d

Note, primeiramente, uma pequena diferença entre o tipo dessas denotações e o que havíamos visto mais acima para os adjetivos graduais. Em (44), esses adjetivos denotam relações entre indivíduos e graus, e não funções de indivíduos em graus, como anteriormente. Essa diferença, entretanto, não tem qualquer impacto nas ideias que estamos discutindo, sendo intercambiáveis e igualmente satisfatórias as duas implementações semânticas. O ponto principal para nós é que os adjetivos extremos estendem uma escala adicionando valores (extremos) que superam o valor máximo do que se poderia admitir como a extensão padrão (C) da escala. Adaptando essa ideia aos verbos modais, chegamos à essência da proposta de Portner e Rubinstein (2016______ and Aynat Rubinstein. 2016. Extreme and Non-Extreme Deontic Modals. In: N. Charlow & M. Chrisman. Eds. Deontic Modality. Oxford: Oxford University Press.):

(45) [[should/dever]]w = λp.λd. d C & µmodal,w(p) = d

[ [ m u s t / t e r q u e ] ] w = λ p . λ d . d > m a x ( C ) & µ m o d a l , w ( p ) = d

Detalhes à parte, o que realmente importa notar são alguns paralelismos entre adjetivos graduais extremos e não-extremos, de um lado, e modais como os acima, de outro. Tais paralelismos envolvem contrastes relacionados a construções graduais típicas como comparativas e equativas. Deixando o português momentaneamente de lado, passemos aos dados de Portner e Rubinstein (2016______ and Aynat Rubinstein. 2016. Extreme and Non-Extreme Deontic Modals. In: N. Charlow & M. Chrisman. Eds. Deontic Modality. Oxford: Oxford University Press.). O primeiro paralelo diz respeito ao fato de adjetivos extremos, como terrible, e modais fortes, como must, resistirem a comparativas, mas melhorarem com even:

(46) a. ?The salsa is more terrible than the guacamole.

b. ?Susan must call her mother more than she must call her father.

(47) a. The salsa is even more terrible than the guacamole.

b. (?) Susan must call her mother even more than she must call her father.

Já adjetivos não-extremos, como bad, e modais fracos, como should, são sempre aceitáveis:

(48) a. The salsa is (even) worse than the guacamole.

b. Susan should call her mother (even) more than she should call her father.

O segundo paralelo é que tanto adjetivos extremos quanto não extremos aceitam construções equativas, o mesmo se dando com modais fortes e fracos:

(49) a. The salsa is as terrible as the guacamole.

b. The salsa is as bad as the guacamole.

(50) a. Susan must call her mother just as much as she must call her father.

b. Susan should call her mother just as much as she should call her father.

Esses paralelismos intrigantes dão considerável lastro empírico às ideias de Portner e Rubinstein (2016______ and Aynat Rubinstein. 2016. Extreme and Non-Extreme Deontic Modals. In: N. Charlow & M. Chrisman. Eds. Deontic Modality. Oxford: Oxford University Press.) sobre os modais should e must do inglês. Com eles em mente, voltemos ao português.

5. Onde estão os graus?

Voltando aos modais dever e ter que do português, deparamo-nos com um problema. Aos meus ouvidos, e aos dos falantes que consultei, nenhuma das contrapartes em português das sentenças modais acima soa impecável, quebrando o paralelismo:

(51) a. ?Esse molho é mais terrível que a guacamole.

b. ??Susana tem que ligar pra mãe dela mais do que ela tem que ligar pro pai dela.

(52) a. Esse molho é ainda mais terrível que a guacamole.

b. ??Susana tem que ligar pra mãe dela ainda mais do que ela tem que ligar pro pai dela.

(53) a. Esse molho é (ainda) pior que a guacamole.

b. ??Susana deve ligar pra mãe dela (ainda) mais do que ela deve ligar pro pai dela.

A situação se mantém nas equativas:

(54) a. Esse molho é tão terrível quanto a guacamole.

b. Esse molho é tão ruim quanto a guacamole.

(55) a. ??Susana tem que ligar pra mãe dela tanto quanto ela tem que ligar pro pai dela.

b. ??Susana tem deve ligar pra mãe dela tanto quanto ela deve/tem que ligar pro pai dela.

Meus julgamentos, como já disse, são de que em nenhuma das construções graduais acima, os modais dever e ter que soam perfeitos ou tão bons quanto os adjetivos em questão. A situação se estende a outros exemplos, como (56), e construções, como as intensificações com muito, em (57):

(56) a. ??Maria deve receber um coração mais do que João (deve receber um coração).

b. É mais provável/importante a Maria receber um coração do que o João (receber um coração).

(57) a. ?? Maria deve muito ligar pra mãe dela.

b. É muito provável/importante Maria ligar pra mãe dela.

Não estamos negando que as sentenças (a) acima sejam compreensíveis ou mesmo utilizáveis em uma conversa. Entretanto, parece-nos claro haver um contraste com os casos envolvendo adjetivos, o que é inesperado, dada uma suposta semelhança semântica entre os modais e os adjetivos. O que me parece correto afirmar é que, na medida em que são aceitáveis, os exemplos com modais se assemelham a casos de coerção, em que um predicado não gradual é contextualmente forçado a uma interpretação gradual, como se vê nos exemplos abaixo:

(58) João é mais brasileiro do que Pedro.

(59) João é muito brasileiro.

Nesse caso, ser brasileiro é interpretado como algo relacionado a estar próximo de um brasileiro típico, que é, obviamente, uma propriedade gradual.

Seja como for, os contrastes acima convidam ao menos a um retorno a análises semânticas que não se baseiam em graus. É o que faremos no restante deste artigo. Antes, porém, uma observação importante a esse respeito.

A relação entre adjetivos graduais e noções como escalas, graus e dimensões parece bastante robusta do ponto de vista intuitivo. De alguma forma, o conceito de gradação deve estar ligado ao sentido desses adjetivos. Isso, entretanto, não implica no comprometimento com uma semântica baseada em graus, ou seja, em assumir que graus sejam primitivos semânticos, como são os indivíduos, e que expressões linguísticas como os adjetivos graduais denotem funções construídas a partir de um domínio de graus. Entra aqui a distinção entre o que se pode chamar de gradação conceitual em oposição à gradação gramatical.9 8 Além disso, estamos ignorando fatores adicionais, como a evidente subjetividade atrelada a adjetivos de gosto pessoal, como bom.

Concretamente, comparemos as denotações abaixo para o adjetivo gradual quente:

(60) [[quente1]] = λx. µtemp(x)

(61) [[quente2]] = λx. µtemp(x) dC

Note que em (60), temos o que já havíamos visto mais acima, uma função de indivíduos em graus (lembre-se que µ é uma função que retorna graus como valores). Há, portanto, um domínio semântico de graus (D d ) e o correspondente tipo semântico d. A denotação em questão é de tipo <e,d>, sendo e o tipo semântico dos indivíduos. É o que estamos chamando de gradação gramatical. Já em (61), temos um predicado de indivíduos, sendo a denotação uma função de indivíduos em valores de verdade, com o tipo semântico <e,t>. Graus aparecem exclusivamente na especificação do significado (estrutura conceitual). É o que se pode chamar de gradação (exclusivamente) conceitual.

Pensando apenas em orações simples com os adjetivos graduais desacompanhados e em posição predicativa, como em a sopa está quente não há como pender para um ou outro lado. Uma eventual vantagem de se assumir a gradação gramatical e uma semântica baseada em graus vem da relativa naturalidade em se obter composicionalmente o sentido de construções mais complexas, mas morfossintaticamente derivadas das formas simples dos adjetivos, como é o caso das comparativas:

(62) [[mais quente que]] = λx. λy. [[quente]](y) > [[quente]](x)

[ [ m a i s q u e n t e q u e ] ] = λ x . λ y . µ t e m p ( y ) > µ t e m p ( x )

Algo semelhante não seria possível de maneira tao direta em uma semântica sem graus, ainda que essa seja uma questão controversa. Mas gostaríamos de enfatizar que a decisão por uma ou outra semântica é uma questão empírica, podendo haver inclusive variação intra e trans-linguística entre expressões aparentemente sinônimas (cf. Bochnak 2015BOCHNAK, Ryan. 2015. The degree semantics parameter and cross-linguistic variation. Semantics and Pragmatics 8: 1-48.).

Para a nossa discussão sobre verbos modais, em geral, e o verbo modal dever do português, em particular, o fato de que esse verbo não soa impecável em construções tipicamente graduais serve de indício de que talvez ele não seja, no final das contas, um predicado gramaticalmente gradual. Isso, entretanto, não implica que seu significado não invoque alguma noção ou conceito gradual. É exatamente sobre isso que discorreremos a seguir.

6. Kratzer e a gradação sem graus

Os trabalhos seminais na semântica formal dos verbos modais são os de Angelika Kratzer, em particular Kratzer (1981KRATZER, Angelika. 1981. The notional category of modality. In: H.J. Eikmeyer & H. Rieser. Eds. Words, Worlds, and Contexts. Berlim: de Gruyter.,1991______. 1991. Modality. In: Arnim von Stechow & Dieter Wunderlich. Eds. Semantik/Semantics: An International Handbook of Contemporary Research. Berlim: de Gruyter.). Seu ponto de partida é o mesmo com que começamos este artigo: uma semântica baseada em mundos possíveis, com a força modal codificada lexicalmente, mas cabendo ao contexto a especificação do sabor ou tipo da modalidade. Entretanto, essa especificação da modalidade não se dá na forma direta de uma relação de acessibilidade definida sobre o conjunto dos mundos possíveis. Kratzer, ao contrário, assume dois parâmetros, denominados base modal e fonte de ordenação. Juntos, eles determinam o conjunto de mundos possíveis sobre os quais o argumento (prejacente) do verbo modal é avaliado. Ilustramos com um exemplo do português:

(63) João tem que pagar uma multa.

Imaginemos um cenário em que João seja um inquilino, que ele não tenha depositado o aluguel de seu apartamento na data do vencimento e que o contrato estipule o pagamento de uma multa sobre o valor normal do aluguel. Neste cenário, (63) parece verdadeira. Intuitivamente, a verdade dessa sentença depende de dois aspectos do mundo real: de certas circunstâncias envolvendo João (assinou ou não um contrato, pagou ou não o aluguel em dia, etc.) e do que a lei, no caso, o contrato, prescreve (forma e dia de pagamento, punições em caso de atraso, etc.). Falamos nesse caso em uma base modal circunstancial, que restringe inicialmente a quantificação a mundos que compartilham com o mundo real certas circunstâncias (fatos) e uma fonte de ordenação deôntica, que estabelece um ideal que permite ranquear os mundos previamente selecionados pela base modal de acordo com esse ideal. A modalização opera sobre esse ranqueamento. No caso de (63), dado que João não pagou o aluguel, o melhor em termos legais é que ele pague a multa. Caso contrário, uma outra cláusula do contrato seria violada, afastando-se ainda mais do ideal em questão.10 9 Cf. Bochnak (2015) e Lassiter (2017) para discussões particularmente esclarecedoras.

Em termos mais formais, uma base modal f é uma função que leva mundos possíveis em conjuntos de proposições. A base modal circunstancial que descrevemos acima, por exemplo, leva um mundo w ao conjunto de proposições correspondentes a certos dados biográficos recentes do João em w:

(64) Exemplo de base modal para (63), avaliada em um mundo w:

f ( w ) = w | J o ã o m o r a e m a p a r t a m e n t o e m w , w | o a p a r t a m e n t o d o J o ã o é a l u g a d o e m w , w | J o ã o n ã o p a g o u o a l u g u e l e m w , . . .

A partir disso, podemos formar o conjunto ∩ f(w) que é a intersecção de todas as proposições em f(w) ou seja, uma proposição correspondente a esses fatos recentes a respeito do João. Esses serão os mundos ranqueados pela fonte de ordenação:

(65) f(w) = {w | João mora em apartamento em w & o apartamento do João é alugado em w & João não pagou o aluguel em w & ... }

Uma fonte de ordenação g é também uma função de mundos possíveis em conjuntos de proposições. No nosso exemplo, g(w) é o conjunto de proposições correspondentes às cláusulas do contrato de locação em w. O ideal previsto por g(w) são mundos em que todas essas proposições são verdadeiras, ou seja, mundos em que todas as cláusulas são obedecidas. Em linhas gerais, o desobedecimento de cláusulas em um mundo afasta esse mundo daquele ideal.

O conjunto de mundos fornecido pela base modal e o conjunto de proposições fornecido pela fonte de ordenação estão no cerne da noção de gradação modal empregada nos trabalhos de Kratzer. Vejamos os detalhes, começando pela seguinte definição geral:11 10 O outro tipo de base modal proposta por Kratzer é a epistêmica, que, como já vimos, leva em conta o que se sabe ou que se tem disponível como evidência. Outras fontes de ordenação incluem fontes teleológicas (relativas a metas a serem alcançadas), buléticas (relativas aos desejos de alguém) e estereotípicas (relativas ao que se entende por curso normal dos eventos). Em todos os casos, diferentes mundos podem estar mais próximos ou afastados dos ideais em questão. A determinação tanto da base modal quanto da fonte de ordenação é sempre sensível ao contexto de fala, conforme ilustrado fartamente nos trabalhos de Kratzer.

(66) Pré-ordem modal:

Dados um conjunto P de proposições e um conjunto M de mundos possíveis, ≤p é uma pré-ordem (parcial) especificada da seguinte forma: w,w M[w p w {p | p P & w p} {p | p P & w p}

Ou seja, w p w indica que toda proposição em P que é verdadeira em w’ também é verdadeira em w, podendo, entretanto, haver proposições em P que são verdadeiras em w e que não são verdadeiras em w’. Em outros termos, podemos pensar que w está pelo menos tão próximo do ideal de P quanto w’.

Tendo essa noção de ordenação como pano de fundo, Kratzer elenca uma série de noções modais graduais, todas elas construídas a partir dos dois parâmetros mencionados acima: a base modal (f) e a fonte de ordenação (g). Vejamos aquelas que nos interessam mais de perto, começando pela de necessidade:

(67) Uma proposição p é uma necessidade em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, a seguinte condição for satisfeita: para todo u f(w), existe um v f(w) tal que v gw u e para todo zf(w): se z gw v, então z p.

O que a noção de necessidade requer é que ao aproximar-se do ideal estabelecido pela fonte de ordenação, chegue-se sempre a um ponto a partir do qual só há mundos em que a proposição em questão é verdadeira. Já para a noção de possibilidade, tem-se o seguinte:

(68) Uma proposição p é uma possibilidade em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, ¬p não for uma necessidade em w em relação a f e g.

Note que necessidade e possibilidade continuam sendo duais, como na lógica modal clássica que já discutimos. Note também que, fixados os parâmetros f e g, se p é uma necessidade em w, então p também é uma possibilidade em w. Já o contrário não é válido, ou seja, p pode ser uma possibilidade sem que seja também uma necessidade em um mundo w. Essa relação assimétrica de força nos permite sugerir que os modais ter que e poder do português são bons candidatos para veicular essas novas noções de necessidade e possibilidade, respectivamente.

Mas o que nos interessa mais de perto nesse artigo é a noção de necessidade fraca definida por Kratzer. Essa noção, por sua vez, é construída sobre duas outras noções de possibilidade comparativa. Vejamos:

(69) Uma proposição p é uma possibilidade tão boa quanto uma proposição q em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, para todo u tal que uf(w) e uq, existe um vf(w) tal que v gw u e vp.

(70) Uma proposição p é uma possibilidade melhor que uma proposição q em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, p é uma possibilidade tão boa quanto q, mas q não é uma possibilidade tão boa quanto p em w em relação a f e g.

(71) Uma proposição p é uma necessidade fraca em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, p for uma possibilidade melhor que ¬p em w em relação a f e g.

O fato crucial aqui é que necessidade fraca é uma noção de força modal intermediária entre necessidade e possibilidade. Fixados w, f e g, se p é uma necessidade, então p é também uma necessidade fraca. E se p é uma necessidade fraca, então p também é uma possibilidade. O inverso, entretanto, não é verdadeiro. Em particular, p pode ser uma necessidade fraca sem ser uma necessidade. Essas considerações, claro, são um convite a atribuir ao modal dever do português a semântica de um operador de necessidade fraca.

Antes de prosseguir, um ponto relevante. A noção de necessidade adotada por Kratzer é particularmente complicada. Isso se deve ao fato de a autora não assumir o que se convencionou chamar de assunção do limite (limit assumption). Como já notamos mais acima, a noção de necessidade requer que a aproximação ao ideal estabelecido pela fonte de ordenação sempre atinja um limiar a partir do qual a proposição modalizada seja verdadeira. Mas essa aproximação pode ser infinitamente longa, ou seja, pode não haver um topo no ranqueamento de mundos. Com isso, não ficamos comprometidos com a existência de mundos w’ selecionados por f(w) que sejam os melhores (ou mais bem ranqueados) de acordo com a fonte de ordenação. Caso assumíssemos a existência de tais mundos, poderíamos nos referir a eles como BEST g(w)(∩f(w)) e definir necessidade e possibilidade da seguinte forma:

(72) Uma proposição p é uma necessidade‘ em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, w BESTgw(f(w)) [ w p ].

(73) Uma proposição p é uma possibilidade‘ em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, w BESTgw(f(w)) [ w p ].

(74) BESTP(M)=wM|¬wM[w<Pw]

O problema que se põe é que com a assunção do limite as noções kratzerianas de necessidade e necessidade fraca se tornam indistinguíveis. Se entre os melhores mundos, houver ao menos um que não pertença a p, então p não será nem uma necessidade, nem uma necessidade fraca. Se, por outro lado, todos os melhores mundos pertencerem a p, p será tanto uma necessidade quanto uma necessidade fraca. Perderíamos, assim, a distinção entre os dois tipos de modalidade e, por conseguinte, não poderíamos atribuir a pares como ter que e dever a semântica que sugerimos acima.

6.1. Restringindo necessidades

Von Fintel e Iatridou (2004______ & Sabine Iatridou. 2004. How to say ought in foreign: the composition of weak necessity modals. In: Jacqueline Guéron & Jacqueline Lecarme. Eds. Time and Modality. Berlim: Springer.) propõem uma visão diferente sobre a necessidade fraca e que se mostra compatível com a assunção do limite. Uma maneira interessante de ilustrar a proposta é fazendo uma outra analogia envolvendo modais de necessidade (forte) e fraca, como ter que e dever e quantificação universal restrita no domínio nominal. Eis o paralelo:

(75) dever : ter que

Todo [NP+Mod]: Todo NP

(76) a. Todo cachorro late ⇒ Todo cachorro peludo late

b. Todo cachorro peludo late /⇒ Todo cachorro late

Como se nota, quanto mais limitada for a restrição X do quantificador universal todo, mais fraca será a sentença da forma [todo X Y], em que Y é um predicado qualquer.

De volta a von Fintel e Iatridou (2004______ & Sabine Iatridou. 2004. How to say ought in foreign: the composition of weak necessity modals. In: Jacqueline Guéron & Jacqueline Lecarme. Eds. Time and Modality. Berlim: Springer.), a ideia básica é justamente que o restritor de um modal de necessidade fraca é mais exigente que o de um modal de necessidade forte. Mais concretamente, os autores propõem uma definição diferente de necessidade fraca, ainda dentro do quadro kratzeriano, mas com quantificação universal e duas fontes de ordenação (além da assunção do limite). Já a necessidade forte, empregaria apenas uma fonte de ordenação. Posto de outra forma, temos quantificação universal nos dois casos, mas os mundos sobre os quais um operador de necessidade fraca quantifica é um subconjunto daquele sobre os quais um operador de necessidade forte quantifica. Enquanto necessidade forte seleciona os melhores mundos, necessidade fraca seleciona os melhores dos melhores. Daí, essa última noção ser mais fraca que a primeira, generalizando sobre uma classe mais restrita de mundos. Formalmente, temos o seguinte:

(77) Uma proposição p é uma necessidade fraca‘ em um mundo w em relação a uma base modal f e duas fontes de ordenação g 1 e g 2 se, e somente se, a seguinte condição for satisfeita:

w B E S T g 2 ( w ) ( B E S T g 1 ( w ) ( f ( w ) ) ) [ w p ]

(78) Uma proposição p é uma necessidade‘ em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g 1 se, e somente se, a seguinte condição for satisfeita:

w B E S T g 1 ( w ) ( f ( w ) ) [ w p ]

Uma objeção conceitual que se pode levantar diz respeito ao caráter estipulativo da presença de duas fontes de ordenação. Que noções estariam por trás dessa distinção? Rubinstein (2012RUBINSTEIN, Aynat. 2012. Roots of Modality. Tese de doutorado. University of Massachusetts at Amherst.) sugere uma saída, propondo que a diferença entre as fontes de ordenação se relaciona ao que é tratado como não-negociável (fonte primária) e negociável (fonte secundária). Para um caso de modalidade teleológica, por exemplo, poderíamos ilustrar da seguinte forma:

(79) Você tem que pegar um táxi (para chegar a seu destino).

Para que você chegue a seu destino, é necessário que você pegue um taxi.

(80) Você deve pegar um táxi (para chegar a seu destino).

Para que você chegue a seu destino com conforto e rapidez, é necessário que você pegue um taxi.

Como se vê pelas paráfrases, (79) acarreta (80), mas não o contrário. Seja como for, tanto a análise kratzeriana (sem a assunção do limite), quanto a análise de von Fintel e Iatridou (com a assunção do limite), conseguem modelar a assimetria de força entre modais como ter que e dever (além de poder). Além disso, ambas abrem caminho para outras noções graduais, sem lançar mão de uma semântica baseada em graus. Posto de outra forma, o que queremos ressaltar nesse ponto é que a gradação ou escala ascendente de força em questão - poder < dever < ter que - foi obtida sem apelo à noção de graus na semântica. Diferentemente de adjetivos graduais, não se está postulando que tais verbos tomem um argumento de grau, nem que acionem uma escala dimensionada, paralela ao que se tem com altura, temperatura, satisfação, ou mesmo probabilidade.

7. Sobre Certas Lacunas

Mais recentemente, a própria Kratzer (ver Kratzer 2012______. 2012. Modals and Conditionals: New and Revised Perspectives. Oxford: Oxford University Press.) levantou um tipo de objeção conceitual mais geral contra a ideia de que certos predicados modais codificam necessidade fraca. Trata-se da ausência sistemática de formas duais desses predicados nas línguas que os instanciam. Assim como modais de necessidade co-existem com modais de possibilidade em diversas línguas, era de se esperar que modais de necessidade fraca co-existissem com o que se poderia chamar de modais de possibilidade forte, definidos em relação àqueles, como os de possibilidade foram definidos em relação aos de necessidade:

(81) Uma proposição p é uma possibilidade forte em um mundo w em relação a uma base modal f e uma fonte de ordenação g se, e somente se, ¬p não for uma necessidade fraca em w em relação a f e g.

Tal noção se coloca em posição intermediária em termos de força quantificacional entre a mera possibilidade e a própria necessidade fraca. Kratzer chega a sugerir que tal lacuna seja sugestiva de que os predicados que se tem chamado de modais de necessidade fraca sejam, na verdade, predicados de grau, como já discutimos anteriormente, e que, portanto, sejam de natureza diferente de genuínos quantificadores modais que codificam possibilidade e necessidade.

Trata-se, sem dúvida, de uma questão intrigante, e de um princípio de explicação interessante. Já vimos anteriormente prós e contras a respeito de uma semântica de graus para modais como dever e eventuais assemelhados em outras línguas. Entretanto, a própria Kratzer argumenta que uma objeção paralela à da ausência de duais se apresenta de imediato no caso da análise com graus: predicados típicos de grau, como quente e alto são frequentemente acompanhados de formas antônimas, como frio e baixo. Até onde se sabe, supostos modais de necessidade fraca não se apresentam aos pares com formas que poderiam corresponder a tais antônimos.

8. Homogeneidade

Soma-se às questões que já discutimos uma outra, relacionada ao comportamento de tais modais em alguns ambientes negativos ou de acarretamento descendente (downward entailing). Em tais ambientes, supostos modais de necessidade fraca se comportam de maneira semelhante a modais de possibilidade e não a modais de necessidade. Tal semelhança está em franca oposição ao que se nota em outros ambientes, em que os modais em questão se assemelham aos modais de necessidade e não aos de possibilidade. Tudo isso pode ser claramente ilustrado com o verbo dever (cf. Kratzer et al. 2014______; Roberta Pires de Oliveira & Ana Pessotto. 2014. Talking about modality - an interview with Angelika Kratzer. ReVEL, especial 8. ):

(82) a. Os presos têm que permanecer nas celas durante a noite.

b. Os presos devem permanecer nas celas durante a noite.

c. Os presos podem permanecer nas celas durante a noite.

(83) a. Os presos não têm que permanecer nas celas durante a noite.

b. Os presos não devem permanecer nas celas durante a noite.

c. Os presos não podem permanecer nas celas durante a noite.

(84) a. Nenhum preso tem que permanecer nas celas durante a noite.

b. Nenhum preso deve permanecer nas celas durante a noite.

c. Nenhum preso pode permanecer nas celas durante a noite.

O ponto relevante é que em (82), os exemplos (a) e (b) expressam, ambos, algum tipo de obrigação, enquanto o exemplo em (c) expressa permissão. Nesse caso, ter que e dever se aproximam, afastando-se de poder. Já em (83) e (84), os exemplos em (a) negam uma obrigação, sendo inclusive compatíveis com uma permissão. Em contraste, os exemplos em (b) e (c) expressam uma proibição, ou seja, negam uma permissão. Disso tudo, resultam os contrastes abaixo:12 11 Matematicamente, uma pré-ordem é uma relação binária, reflexiva e transitiva. A qualificação de parcial indica que nem todos os elementos do domínio da relação precisam estar relacionados uns com os outros.

(85) Os presos não têm que permanecer nas celas durante a noite, mas eles podem.

(86) # Os presos não devem permanecer nas celas durante a noite, mas eles podem.

(87) # Os presos não podem permanecer nas celas durante a noite, mas eles podem.

Esse comportamento do verbo dever sob operadores negativos como não e ninguém traz à tona uma propriedade que, em outros domínios, foi chamada de homogeneidade (Löbner 2000______. 2000. Polarity in natural language: predication, quantification and negation in particular and characterizing sentences. Linguistics and Philosophy 23: 213-308., Gajewski 2005GAJEWSKI, Jon. 2005. Neg-raising: Polarity and Presupposition. Tese de doutorado. Massachusetts Institute of Technology., von Fintel 1997VON FINTEL, Kai. 1997. Bare plurals, bare conditionals, and only. Journal of Semantics 14: 1-56., Copley 2002COPLEY, Bridget. 2002. The Semantics of the Future. Tese de Doutorado. Massachusetts Institute of Technology.). O caso mais conhecido é o das descrições definidas plurais:

(88) a. João leu os livros que eu recomendei.

b. João não leu os livros que eu recomendei.

Enquanto (88)a implica que João leu todos os livros recomendados, (88)b implica que ele não leu nenhum dos livros e não apenas que ele não leu a totalidade. Note, nesse caso, o contraste entre os e todos:

(89) a. João leu todos os livros que eu recomendei.

b. João não leu todos os livros que eu recomendei.

Nesse caso, (89)b é a mera negação de (89)a, não implicando, portanto, que João não tenha lido nenhum livro.

A analogia que emerge desse comportamento é a seguinte:

(90) dever : ter que

os NP : todo(s) (os) NP

A especificação da natureza da inferência de homogeneidade (se pressuposição, implicatura ou acarretamento) e de seu desencadeador (se o artigo definido, a predicação plural ou uma competição entre formas) tem sido objeto de controvérsia e é uma questão ainda em aberto. Não iremos, neste artigo, nos aprofundar neste ponto. Gostaríamos, entretanto, de apresentar outras expressões mais diretamente relacionadas ao que estamos discutindo. No domínio intensional, a homogeneidade se revela no comportamento de certos verbos de atitude proposicional, como querer, por exemplo, no fenômeno conhecido como neg-raising (ver Gajewski 2005GAJEWSKI, Jon. 2005. Neg-raising: Polarity and Presupposition. Tese de doutorado. Massachusetts Institute of Technology., e as referências lá citadas):

(91) a. João quer casar.

b. João não quer casar.

Enquanto (91)a expressa o desejo de casar por parte de João, a versão negativa em (91)b expressa o desejo contrário, ou seja, o de não casar (permanecer solteiro). Posto de outra forma, (91)b não parece compatível com uma posição de neutralidade em relação ao casamento, algo que a mera negação de um desejo levaria a esperar. Algo semelhante e digno de nota no contexto deste artigo é o comportamento de predicados adjetivais formados como sufixo -vel em português:

(92) Não é recomendável/aconselhável permanecer no prédio.

Aqui também a negativa não é compatível com uma postura de neutralidade. Ao contrário, o que (92) veicula é o mesmo que (93) a seguir:

(93) É recomendável/aconselhável sair (não permanecer) no prédio.

Note aqui o nítido paralelo com o uso do modal dever no sentido de recomendação ou aconselhamento:

(94) Você não deve permanecer no prédio (= você deve sair do prédio).

A investigação dos efeitos de homogeneidade nos parece um caminho promissor rumo ao esclarecimento da semântica de predicados modais como o verbo dever. Cumpre notar, entretanto, que mesmo assumida em alguma forma, a homogeneidade não determina essa semântica. Como vimos acima, em contextos afirmativos, o plural definido se comporta como um universal, mas em contextos negativos, o comportamento é de um existencial. Qual seria então a semântica de base que se deve atribuir a tais definidos?

A esse respeito, é digno de nota o que se tem no domínio nominal, com o qual fizemos uma analogia mais acima, via descrições definidas plurais, e no qual os efeitos de homogeneidade são mais bem conhecidos. A visão mais tradicional é que um definido plural denota uma soma mereológica obtida via algum tipo de operação de junção ou maximização (ver Link 1984LINK, Godehard. 1983. The logical analysis of plurals and mass terms: a lattice theoretical approach. In: R. Bauerle, C. Schwartze & A. von Stechow. Eds. Meaning, Use and Interpretation in Language. Berlim: Mouton de Gruyter., Sharvy 1980SHARVY, Richard. 1980. A more general theory of definite descriptions. The Philosophical Review 89: 607-624. , inter alia). Em contextos de predicação distributiva, costuma-se invocar um operador distributivo, que introduz quantificação universal sobre partes, o que faz o definido plural se aproximar de um universal. Isso, mais a assunção de homogeneidade, leva aos resultados atestados:

(95) João leu os livros

Asserção: para todo livro x, João leu x.

Homogeneidade: ou para todo livro x, João leu x; ou para todo livro x, João não leu x.

Ass+Homog: para todo livro x, João leu x.

(96) João não leu os livros

Asserção: é falso que para todo livro x, João leu x.

Homogeneidade: ou para todo livro x, João leu x; ou para todo livro x, João não leu x.

Ass+Homog: para todo livro x, João não leu x.

Mas há também propostas como a de Magri (2014MAGRI, Georgi. 2014. An account for the homogeneity effects triggered by plural definites and conjunction based on double strengthening. In: Salvatore Pistoia Reda. Ed. Pragmatics, Semantics and the Case of Scalar Implicatures. Palgrave Macmillan.) que trata tais plurais como indefinidos, obtendo a leitura universal via mecanismos complexos de implicaturas de várias ordens.13 12 É importante, aqui, manter o mesmo sabor modal (deôntico, nos casos em questão) para todos os verbos. Nessa linha, é interessante notar que Pessotto (2014PESSOTTO, Ana. 2014. Epistemic and gradable modality in Brazilian Portuguese: a comparative analysis of poder, dever and ter que. ReVEL especial 8: 8-20.) sugere que dever seja um modal de possibilidade, ainda que não trace conexões com a noção de homogeneidade e nem com as ideias de Magri.

Resta, ainda, a possibilidade de se pensar em uma força quantificacional indeterminada, cabendo ao contexto a especificação, resultando na alternância entre força existencial indicando possibilidade ou força universal indicando necessidade.14 13 Remetemos o leitor ao texto de Magri para os detalhes. A dificuldade para esse tipo de proposta é explicar a correlação universal/existencial com os ambientes de acarretamento (não-descendente).

9. Conclusão

Vimos neste artigo que o significado do verbo dever nos leva muito além das noções simples de possibilidade e necessidade da lógica modal proposicional clássica. O desafio colocado pela aparente força modal intermediária desse verbo nos levou a um sinuoso percurso passando por noções como cardinalidade, probabilidade, gradação e homogeneidade. Ao mesmo tempo, levantamos analogias com outros domínios gramaticais como os dos determinantes quantificadores, dos adjetivos graduais, das restrições nominais e dos definidos plurais. Elencamos algumas objeções empíricas e conceituais que ainda desafiam uma análise unificadora que incorpore todos os insights que cada uma delas traz, numa clara demostração da complexidade semântica que esse verbo aparentemente simples nos coloca. Desnecessário dizer, fiemos apenas uma crítica panorâmica ao que se tem discutido mais recentemente neste domínio, apontando controvérsias e indeterminações. Controvérsias e indeterminações à parte, uma conclusão nos parece inquestionável nesse domínio: mais trabalho, empírico e teórico, é (?muito) necessário!

Referências

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  • YALCIN, Seth. 2010. Probability operators. Philosophy Compass 5: 916-37
  • 2
    Gostaria de agradecer aos pareceristas anônimos da revista pelas valiosas críticas e sugestões. Agradeço ainda ao CNPq pelo auxílio financeiro na forma de bolsa de produtividade em pesquisa.
  • 3
    Ver Portner (2009PORTNER, Paul. 2009. Modality. Oxford: Oxford University Press .), Yalcin (2010YALCIN, Seth. 2010. Probability operators. Philosophy Compass 5: 916-37), Katz et al. (2012KATZ, Graham, Paul Portner & Aynat Rubinstein. 2012. Ordering combination for modal comparison. In: Anca Chereches. Ed. The Proceedings of SALT 22.), Klecha (2014KLECHA, Peter. 2014. Bridging the Divide: Scalarity and Modality. Tese de Doutorado. University of Chicago.), Portner e Rubinstein (2016______ and Aynat Rubinstein. 2016. Extreme and Non-Extreme Deontic Modals. In: N. Charlow & M. Chrisman. Eds. Deontic Modality. Oxford: Oxford University Press.), Lassiter (2017LASSITER, Daniel. 2017. Graded Modality. Oxford: Oxford University Press .), Silk (2017SILK, Alex. 2017. Modality, Weights and Inconsistent Premise Sets. Journal of Semantics 34: 683-707.), inter alia. Para o português brasileiro, ver, em especial, Pessotto (2014PESSOTTO, Ana. 2014. Epistemic and gradable modality in Brazilian Portuguese: a comparative analysis of poder, dever and ter que. ReVEL especial 8: 8-20.) e a entrevista de Angelika Kratzer a Roberta Pires de Oliveira e Ana Pessotto (Kratzer et. al 2014______; Roberta Pires de Oliveira & Ana Pessotto. 2014. Talking about modality - an interview with Angelika Kratzer. ReVEL, especial 8. ).
  • 4
    Ignoramos aqui questões morfossintáticas, ligadas a gênero e número gramaticais, bem como certas questões semântico-pragmáticas, relacionadas a pressuposições existenciais (a de que existem crianças, nos exemplos em questão).
  • 5
    Assumindo, nesse caso, que a denotação do NP menino(s) seja não-vazia.
  • 6
    Para uma introdução aos aspectos básicos da noção de infinitude na teoria dos conjuntos, cf. Partee et al. (1990PARTEE, Barbara, Alice ter Meulen & Robert Wall. 1990. Mathematical Methods in Linguistics. Dordrecht: Kluwer Academic Press.).
  • 7
    Aproximamo-nos, aqui, do conceito de utilidade esperada da teoria das decisões.
  • 8
    Além disso, estamos ignorando fatores adicionais, como a evidente subjetividade atrelada a adjetivos de gosto pessoal, como bom.
  • 9
    Cf. Bochnak (2015BOCHNAK, Ryan. 2015. The degree semantics parameter and cross-linguistic variation. Semantics and Pragmatics 8: 1-48.) e Lassiter (2017LASSITER, Daniel. 2017. Graded Modality. Oxford: Oxford University Press .) para discussões particularmente esclarecedoras.
  • 10
    O outro tipo de base modal proposta por Kratzer é a epistêmica, que, como já vimos, leva em conta o que se sabe ou que se tem disponível como evidência. Outras fontes de ordenação incluem fontes teleológicas (relativas a metas a serem alcançadas), buléticas (relativas aos desejos de alguém) e estereotípicas (relativas ao que se entende por curso normal dos eventos). Em todos os casos, diferentes mundos podem estar mais próximos ou afastados dos ideais em questão. A determinação tanto da base modal quanto da fonte de ordenação é sempre sensível ao contexto de fala, conforme ilustrado fartamente nos trabalhos de Kratzer.
  • 11
    Matematicamente, uma pré-ordem é uma relação binária, reflexiva e transitiva. A qualificação de parcial indica que nem todos os elementos do domínio da relação precisam estar relacionados uns com os outros.
  • 12
    É importante, aqui, manter o mesmo sabor modal (deôntico, nos casos em questão) para todos os verbos.
  • 13
    Remetemos o leitor ao texto de Magri para os detalhes.
  • 14
    Ver, nessa linha, trabalhos em línguas não indo-europeias, como os de Peterson (2012PETERSON, T. 2012. The Role of the Ordering Source in Gitksan Modals. In: Proceedings of Semantics of Under-Represented Languages in the Americas 6, Amherst: GLSA. ), Deal (2010DEAL, Amy Rose. 2010. Topics in the Nez Perce verb. Tese de Doutorado. University of Massachusetts at Amherst.) e Rullmann et al. (2008RULLMANN, Hotze & Lisa Matthewson. 2008. Modals as distributive indefinites. Natural Language Semantics 16: 317-357.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2019
  • Aceito
    05 Mar 2020
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