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O trabalho no Brasil e nos Estados Unidos: aproximações

Labor in Brazil and the United States: Approximations

SILVA, Fernando Teixeira; FORTES, Alexandre. (Orgs.). Trabalho & labor: histórias compartilhadas (Brasil e Estados Unidos, século XX). Salvador: Sagga, 2020. 303 pp.

O livro Trabalho & labor: histórias compartilhadas (Brasil e Estados Unidos, século XX) é uma coletânea de capítulos de história social do trabalho organizada pelos historiadores Fernando Teixeira da Silva e Alexandre Fortes, especialistas no campo. É um dos resultados de um seminário realizado no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (CECULT), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em agosto de 2017. Desde então, os textos debatidos foram aprimorados para a publicação. Seus nove capítulos são divididos em três partes temático-cronológicas: “Imigração, trabalho e feminismo”, referente ao período que vai do final do século XIX até as vésperas da Segunda Guerra Mundial; “New Deal, Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial”, relativo às décadas de 1930 e 1940; e “Guerra Fria, sindicalismo e trabalhadores rurais”, cujo recorte inicia-se no pós-guerra e conclui-se na década de 1970.

Com a coletânea, os organizadores propõem superar a visão dicotômica sobre a história do trabalho nos Estados Unidos e no Brasil. Esta perspectiva, arraigada no senso comum vigente na imprensa e na produção acadêmica, assume que “as experiências históricas dos trabalhadores norte-americanos e brasileiros expressam realidades absolutamente distintas” (Silva; Fortes, 2020SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (Orgs.). Trabalho & labor: histórias compartilhadas (Brasil e Estados Unidos, século XX). Salvador: Sagga, 2020., p. 11). Os organizadores não realizam a revisão sistemática das tradições intelectuais que fundam e sustentam esta dicotomia, pois assumem que sua onipresença no debate público e acadêmico dispensa uma abordagem do tipo. Contudo, o livro contém referências a ela em várias passagens. Assim, Oliveira Viana, figura marcante para a reflexão social brasileira do século XX, é apresentado como exemplo significativo de pensador que demarca as diferenças entre o solidarismo anglo-saxão e a falta de solidariedade na América portuguesa e, a seguir, no Brasil1 1 Ver, a este respeito, a nota 2 da Apresentação da coletânea de Silva e Fortes. De fato, em Populações meridionais do Brasil, Viana compara explicitamente os Estados Unidos e o Brasil ao discutir a separação entre o poder público e os indivíduos que o exercem. Lá, os agentes do poder não se confundiriam com o poder, exercido “na sua impersonalidade formidável” (Viana, 2010, p. 365). Entre os brasileiros, todavia, tal distinção não existiria, pois os agentes do poder seriam confundidos com o próprio poder, do que derivariam os males da vida política, com “feição de anarquia permanente” (Viana, 2010, p. 365). Ver, ainda, argumentos sobre a distância entre a cultura política no Brasil e nos Estados Unidos em Instituições políticas brasileiras (Viana, 1999). .

Todavia, o que os organizadores fazem é buscar entender como essa dicotomia é replicada nas abordagens sobre a participação política ou, mais especificamente, nas relações entre Estado e classe trabalhadora. Haveria diferenças entre um arranjo corporativista (ou populista), no qual o Estado é o ator organizador das relações entre patrões e empregados, e outro liberal e democrático, fundado na livre negociação entre as partes? Como o movimento operário é apresentado no Brasil e nos Estados Unidos? A dicotomia é evidenciada pela análise das duas vias regulatórias das relações entre patrões e empregados: a da autonomia coletiva e a da regulamentação pública. A primeira, fundada na tradição liberal, na qual se enquadrariam os Estados Unidos e a Inglaterra, seria governada pela vontade dos contratantes, livres e iguais em direitos, na celebração de acordos coletivos privados. A segunda, tida como parte da tradição corporativista, seria marcada pela imposição do estatuto, ou seja, da norma publicamente regulada, contra a livre negociação entre as partes. O Brasil, lugar em que fincaram pé as instituições do Direito do Trabalho, seria um exemplo típico desta tradição. Assim, entre juristas brasileiros e entre dirigentes sindicais norte-americanos “prevalece a tendência a cravar uma oposição binária em que um modelo é irredutível ao outro” (Silva, 2016SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do Golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016., p. 67); enquanto, para acadêmicos brasileiros, a diferença é mantida como um pressuposto tácito (Silva, 2016SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do Golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016.). Ademais, a perspectiva dicotômica entre o trabalho no Brasil e nos Estados Unidos repercute ainda em debates envolvendo sindicalistas e acadêmicos norte-americanos 2 2 Os principais pontos da controvérsia entre Stanley Arthur Gacek e Tamara Lothian estão resumidos em Silva; Corrêa, 2016, pp. 11-12. .

O resultado destas histórias nacionais únicas e excepcionais seria, em resumo, a conformação de supostas características inerentes a cada um dos países: democracia vs. autoritarismo; sociedade contratualista vs. corporativista; individualismo pluralista vs. solidariedade de clã; liberalismo vs. estatismo; movimento operário livre e autônomo vs. atado a leis, a sindicatos oficiais, a partidos políticos e a políticos demagogos. Contra tal visão binária, os organizadores argumentam que há aproximações históricas decisivas na formação da classe trabalhadora em ambos os países. Tanto um quanto o outro foram marcados pela escravidão, pelo racismo, pela imigração transoceânica, pela urbanização acelerada e por fortes desigualdades regionais. Em termos políticos, os dois incorporaram os trabalhadores à participação por caminhos distintos do modelo da social-democracia europeia. Estas balizas orientaram os organizadores a propor a análise cruzada do trabalho em ambos os países no século XX. O livro, portanto, explora algumas daquelas questões e visa contribuir para aproximar a análise das experiências dos trabalhadores dos dois países.

A primeira impressão deixada pela obra diz respeito ao seu equilíbrio, esperado de uma coletânea que se propõe a abarcar o trabalho e os trabalhadores nos dois maiores países do continente americano. Tal marca é evidente, por um lado, na escolha dos participantes. Além do prefácio de Barbara Weinstein (New York University) e do posfácio de Leon Fink (University of Illinois at Chicago), a coletânea é composta por textos de dez historiadores: cinco brasileiros e cinco norte-americanos. Dentre eles, há profissionais com longa experiência ao lado de competentes pesquisadores formados na última década. O equilíbrio aparece igualmente na abordagem dos temas de pesquisa. Não se trata apenas de brasileiros e brasilianistas estudando o trabalho e os trabalhadores no Brasil; há também análises de brasileiros sobre as mesmas questões nos Estados Unidos - em certos momentos, a história brasileira ajuda a explicar o que ocorreu nos Estados Unidos e vice-versa. Além disso, alguns capítulos colocam os mesmos problemas para ambos os países, por meio de uma história comparada simétrica e assimétrica. Outros abordam o trabalho no Norte ou no Sul, considerando as conexões entre as relações trabalhistas em um país (geralmente no Brasil) e a política externa do outro (geralmente dos Estados Unidos). Neste caso, são evidenciadas a circulação de intelectuais, ideias e propostas políticas para o mundo do trabalho nos dois sentidos.

No primeiro capítulo, Michael Hall, pesquisador, dentre outros temas, da imigração italiana estimulada pelos fazendeiros paulistas, apresenta as várias matizes da experiência dos trabalhadores italianos e seus descendentes nos Estados Unidos e em São Paulo. A princípio a comparação entre um país e um estado pode parecer estranha, mas o autor contorna o problema explicando a opção pela comparação assimétrica e deixando claro seu objetivo: compreender a relação entre as identidades étnica e classista entre os imigrantes italianos nos dois contextos. O autor organiza e sistematiza parte dos argumentos já apresentados suscintamente em uma entrevista (Fontes; Macedo, 2016FONTES, Paulo; MACEDO, Francisco. Entrevista com Michael Hall. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 59, pp. 813-846, 2016.). Ele explica a importância do local de procedência dos imigrantes (sua origem geralmente rural, no Sul ou no Norte da Itália), da organização familiar, dos seus objetivos pessoais, da qualificação profissional e da experiência prévia de militância política. Destaca ainda as situações encontradas nas sociedades receptoras, referentes ao nível de industrialização de cada país e à composição étnica das comunidades mais abrangentes. Ressalta a principal diferença entre as experiências dos italianos em cada país, relativa ao grau de preconceito e discriminação, e o seu impacto sobre a formação de identidades mais étnicas ou mais classistas em cada contexto. Em seguida, encerra o capítulo explicando os efeitos daquela diferença sobre a militância operária.

Gláucia Cristina Candian Fraccaro analisa o trânsito de Bertha Lutz, figura central na história do feminismo brasileiro, entre os diferentes feminismos durante a formulação da legislação sobre as mulheres no Brasil (entre 1917 e 1937), bem como o intercâmbio estabelecido com feministas reformistas nos Estados Unidos, na discussão sobre o trabalho das mulheres. Em suma, os dois feminismos com que Lutz dialogou possuíam propostas antagônicas. Um propunha a absoluta equidade de direitos entre mulheres e homens, enquanto outro defendia a criação de uma legislação específica para as mulheres, ancorada nas diferenças entre os sexos. Essa dicotomia, marcante no feminismo dos Estados Unidos e da Europa, contudo, não explica a trajetória de Lutz, que soube transitar de uma postura a outra. Influenciada pelos debates travados na Organização Internacional do Trabalho, relativas ao trabalho das mulheres, Lutz deixa transparecer seu “feminismo tático” quando toma assento nas discussões voltadas à elaboração da Constituição de 1934 e do Estatuto da Mulher3 3 Para saber mais sobre o assunto, ver o livro da autora: Fraccaro, 2018. .

No terceiro capítulo, Fernando Teixeira da Silva desenvolve a proposta central do livro: superar a dicotomia entre os mundos do trabalho nos Estados Unidos e no Brasil. O alicerce historiográfico referente à relação entre os trabalhadores e o Estado brasileiro, que, aliás, conta com muitas contribuições suas4 4 A título de exemplo, ver Silva; Costa, 2010. , embasa a identificação do New Deal americano como uma verdadeira política corporativista, vigente nas décadas de 1930 e 19405 5 O debate deriva de pesquisas prévias do autor em torno das origens supostamente fascistas da Consolidação das Leis do Trabalho brasileiras. Além de verificar que as influências sobre a CLT foram muito mais plurais do que se supunha, o autor constatou que, mesmo em países tomados como exemplos de ausência de regulação do trabalho, como os Estados Unidos, havia diversos mecanismos públicos voltados à mediação da relação entre patrões e trabalhadores. Sobre o assunto, ver a parte 1 de seu último livro: Silva, 2016. . O autor mergulha na bibliografia daquele país e constata que o desenho e a prática corporativistas estiveram bastantes presentes naquelas décadas. A representação de interesses de grupos foi organizada pelo Estado na forma de arranjos institucionais tripartites, com o objetivo de promoção da paz social. Os sindicatos foram reconhecidos oficialmente como legítimos interlocutores da classe trabalhadora no concerto tripartite, algo diferente do que ocorreu no Brasil durante o primeiro governo Vargas, quando os sindicatos não atuaram efetivamente como interlocutores na definição de políticas oficiais. Para promover os sindicatos nos Estados Unidos, inaugurou-se uma política inédita de proteção contra as tradicionais práticas patronais de combate à independência sindical. Assim, demonstra-se como a experiência sindical das décadas predecessoras foi fundamental para a construção do corporativismo americano. Os resultados políticos foram o avanço da sindicalização, das greves por direitos e do apoio ao Presidente da República em sucessivas eleições democráticas. Esse avanço dos trabalhadores é, contudo, devidamente matizado pelo autor, sobretudo quanto aos limites das conquistas sociais para os negros, trabalhadores domésticos e rurais. Ainda assim, o New Deal não deixa de se configurar como uma política estatal de regulação do trabalho que contou com adesão massiva dos trabalhadores. Após a leitura do capítulo, torna-se difícil compactuar com a tese de que, nos Estados Unidos, sempre existiu uma classe trabalhadora completamente autônoma, afastada do Estado.

O capítulo seguinte, de Eduardo Terra Romero, dialoga com a proposta analítica do capítulo anterior e sintetiza a história da mediação das relações de trabalho nos Estados Unidos, com foco em uma instituição corporativista específica, o National War Labor Board. O autor apresenta os antecedentes da mediação dos conflitos trabalhistas no país, destacando o papel da arbitragem privada nas décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial. A entrada do país na conflagração mundial e a necessidade de se evitarem paradas na produção por causa de conflitos trabalhistas conduziram à celebração de um pacto nacional em torno da necessidade de se manter a paz social, bem como à criação de mecanismos para promovê-la. O Labor Board adotou um modelo compulsório de mediação, embora os sujeitos do período o compreendessem como voluntário.

Ainda no contexto da Segunda Guerra Mundial, Alexandre Fortes explora uma documentação inédita, produzida pelo corpo diplomático e pela inteligência norte-americanos, referente ao trabalho e aos trabalhadores no Brasil. O autor evidencia o abismo existente entre a propaganda pública positiva feita pelos norte-americanos sobre as virtudes do país, seu novo aliado no início da década de 1940, e as descrições secretas pouco elogiosas do regime político ditatorial e de seu povo. A “classe baixa”, sobretudo do Nordeste, região militar estratégica para uma eventual ocupação, foi vista como racialmente inferior e ineficiente, quando comparada com os trabalhadores dos Estados Unidos. Assim, para os norte-americanos, na divisão internacional e racial das tarefas do esforço de guerra, o Brasil poderia contribuir apenas com a oferta de matérias-primas e de trabalho não especializado e semiespecializado.

Rebecca Herman apresenta mais uma análise que tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial e o complicado jogo das relações internacionais e da soberania nacional em momentos de conflito. A autora apresenta os resultados de uma pesquisa instigante sobre os conflitos trabalhistas, mediados pela Justiça do Trabalho, derivados da construção de bases áreas pela Pan American Airlines para o Departamento de Guerra dos Estados Unidos nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Com foco na documentação de Belém, no Pará, ela apresenta as principais reclamações dos trabalhadores e os efeitos que os resultados dos julgamentos geralmente favoráveis a eles geraram nas relações diplomáticas entre Estados Unidos e Brasil. Seu estudo evidencia como nem sempre a Justiça consegue manter-se imune a pressões políticas externas. Como as autoridades sabem que é importante manter as aparências de imparcialidade nos julgamentos, condição prévia para eficácia das leis (Thompson, 1997THOMPSON, E. P. Senhores & caçadores: a origem da Lei Negra. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997., p. 354), tais informações ficam restritas aos caminhos sigilosos da diplomacia internacional.

Inaugurando a análise do período da Guerra Fria, Larissa Rosa Corrêa, pesquisadora da ingerência dos Estados Unidos nos sindicatos brasileiros durante a última ditadura (Corrêa, 2017CORRÊA, Larissa Rosa. Disseram que voltei americanizado: relações sindicais Brasil-Estados Unidos na Ditadura Militar. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.), acompanha de perto o intelectual e militante Robert J. Alexander. Contribuindo para a grande central sindical norte-americana do pós-guerra, a AFL-CIO, entidade que colaborou para a intervenção que levou à queda do presidente João Goulart, ele foi um dedicado estudioso do movimento sindical latino-americano e apresentou propostas para um sindicalismo “democrático” e anticomunista no sul do continente. Suas múltiplas ideias sobre sindicalismo e corporativismo disseminaram interpretações ainda vigentes nas universidades e na militância política brasileira. Uma destas, fácil de encontrar em algumas vertentes da academia, identifica na origem rural da classe trabalhadora o empecilho para a formação de uma clara noção de seu papel como operariado industrial. Outros mitos presentes em suas reflexões são a tese da outorga de direitos trabalhistas ao povo por Getúlio Vargas; a compreensão do corporativismo como característica de regimes totalitários (tese que contribuiu para a construção da dicotomia anunciada pelos organizadores da coletânea); a suposta ausência de conflitos sociais e a passividade e a falta de colaboração entre os brasileiros.

Gillian McGillivray e Thomas D. Rogers analisam o agitado mundo do trabalho canavieiro nordestino entre 1955 e 1964. O foco recai sobre a mobilização política dos trabalhadores rurais da Zona da Mata e sobre a forma como as autoridades norte-americanas, receosas de uma reprodução da Revolução Cubana, reagiram. Como introito à discussão, os autores percorrem a historiografia e comparam o caso brasileiro com outras realidades, como a do Sul dos Estados Unidos. Eles ainda retomam temas clássicos da discussão sobre a questão social no campo no Brasil, em torno dos conceitos de feudalismo e capitalismo. Finalmente, apresentam em detalhes o receio crescente das autoridades norte-americanas com a aproximação entre a liderança das Ligas Camponesas, na figura de Francisco Julião, e o governo revolucionário cubano. E concluem o capítulo apontando para o giro na luta política na Zona da Mata, quando, por influência do advento do Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e do avanço da sindicalização, as demandas dos trabalhadores passam a priorizar a conquista de direitos do trabalho em detrimento da bandeira da reforma agrária.

No capítulo derradeiro, Clifford Andrew Welch retoma o método comparativo que inaugura o livro e apresenta a luta por direitos no campo em dois estados, um brasileiro e outro americano, a partir de meados do século XX. O autor utiliza como fio condutor a análise das trajetórias políticas de lideranças imersas em campanhas por regulamentação de direitos do trabalho no meio rural, atuantes nas regiões de Ribeirão Preto e do Vale Central, nos ricos e populosos estados de São Paulo e da Califórnia. Sincronizando os eventos, o autor consegue identificar os elementos similares e particulares dos dois contextos. Em ambos estão presentes os conflitos com as empresas rurais, a atuação destacada dos trabalhadores assalariados, a busca por direitos, a influência da Igreja Católica, a demanda por apoio de políticos e a intervenção de partidos. Quanto às particularidades, em São Paulo o agronegócio estava em processo de formação; a luta política envolveu pequenos produtores, parceiros e assalariados temporários e permanentes; a luta por direitos possuía uma base mais ampla; a Igreja Católica concorreu com os comunistas pela direção dos sindicatos; e o único partido que estabeleceu relações com os camponeses foi o clandestino PCB. Na Califórnia, o agronegócio já estava estabelecido em meados do século; a luta política envolveu, sobretudo, trabalhadores assalariados, em geral volantes; a Igreja Católica deu suporte e motivou a luta dos trabalhadores; e alguns políticos do importante Partido Democrata apoiaram as demandas por direitos trabalhistas.

Como é evidente, a coletânea apresenta estudos inovadores e executa uma proposta inédita: aborda, em perspectiva comparada, conectada ou transnacional, a história social do trabalho nos Estados Unidos e no Brasil no século XX. Para isso, supera enormes desafios institucionais e articula profícuos pesquisadores de ambos os países, sintonizados com as abordagens mais recentes que primam pelas potencialidades de uma história não restrita a um Estado nacional. Embora os organizadores não classifiquem o livro como parte de uma história global do trabalho, é inegável reconhecer que contribuem sobremaneira para esta vertente historiográfica6 6 Sobre os desafios para a articulação de uma história global do trabalho a partir do sul, ver Lima, 2018. . Ao comparar os dois países, o livro rompe deliberadamente com a hierarquia Norte-Sul (Hofmeester; Linden, 2018HOFMEESTER, Karin; LINDEN, Marcel van der (Eds.). Handbook Global History of Work. München; Wien: De Gruyter Oldenbourg, 2018.) e permite que as interpretações de uma e outra realidade se atravessem e renovem as possibilidades de colocação de perguntas.

Por fim, deve-se ressaltar que a coletânea contempla mais do que os interesses dos estudiosos de história social do trabalho. Ela contribui para as pesquisas de história das relações internacionais, do direito do trabalho, das migrações, do feminismo e das mulheres, da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, da Guerra Fria, dos intelectuais, do racismo e da etnicidade.

REFERÊNCIAS

  • CORRÊA, Larissa Rosa. Disseram que voltei americanizado: relações sindicais Brasil-Estados Unidos na Ditadura Militar. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.
  • FONTES, Paulo; MACEDO, Francisco. Entrevista com Michael Hall. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 29, n. 59, pp. 813-846, 2016.
  • FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.
  • HOFMEESTER, Karin; LINDEN, Marcel van der (Eds.). Handbook Global History of Work. München; Wien: De Gruyter Oldenbourg, 2018.
  • LIMA, Henrique Espada. História Global do Trabalho: um olhar desde o Brasil. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 10, n. 19, pp. 59-70, 2018.
  • SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do Golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016.
  • SILVA, Fernando Teixeira da; COSTA, Hélio da. Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp. 205-271.
  • SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (Orgs.). Trabalho & labor: histórias compartilhadas (Brasil e Estados Unidos, século XX). Salvador: Sagga, 2020.
  • SILVA, Fernando Teixeira da; CORRÊA, Larissa Rosa. The Politics of Justice: Rethinking Brazil’s Corporatist Labor Movement. Labor: Studies in Working-Class History of the Americas, v. 13, n. 2, pp. 11-31, 2016.
  • THOMPSON, E. P. Senhores & caçadores: a origem da Lei Negra. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
  • VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999.
  • VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2010.
  • 1
    Ver, a este respeito, a nota 2 da Apresentação da coletânea de Silva e Fortes. De fato, em Populações meridionais do Brasil, Viana compara explicitamente os Estados Unidos e o Brasil ao discutir a separação entre o poder público e os indivíduos que o exercem. Lá, os agentes do poder não se confundiriam com o poder, exercido “na sua impersonalidade formidável” (Viana, 2010VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2010., p. 365). Entre os brasileiros, todavia, tal distinção não existiria, pois os agentes do poder seriam confundidos com o próprio poder, do que derivariam os males da vida política, com “feição de anarquia permanente” (Viana, 2010VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2010., p. 365). Ver, ainda, argumentos sobre a distância entre a cultura política no Brasil e nos Estados Unidos em Instituições políticas brasileiras (Viana, 1999VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999.).
  • 2
    Os principais pontos da controvérsia entre Stanley Arthur Gacek e Tamara Lothian estão resumidos em Silva; Corrêa, 2016SILVA, Fernando Teixeira da; CORRÊA, Larissa Rosa. The Politics of Justice: Rethinking Brazil’s Corporatist Labor Movement. Labor: Studies in Working-Class History of the Americas, v. 13, n. 2, pp. 11-31, 2016. , pp. 11-12.
  • 3
    Para saber mais sobre o assunto, ver o livro da autora: Fraccaro, 2018FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018..
  • 4
    A título de exemplo, ver Silva; Costa, 2010SILVA, Fernando Teixeira da; COSTA, Hélio da. Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp. 205-271..
  • 5
    O debate deriva de pesquisas prévias do autor em torno das origens supostamente fascistas da Consolidação das Leis do Trabalho brasileiras. Além de verificar que as influências sobre a CLT foram muito mais plurais do que se supunha, o autor constatou que, mesmo em países tomados como exemplos de ausência de regulação do trabalho, como os Estados Unidos, havia diversos mecanismos públicos voltados à mediação da relação entre patrões e trabalhadores. Sobre o assunto, ver a parte 1 de seu último livro: Silva, 2016SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do Golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016..
  • 6
    Sobre os desafios para a articulação de uma história global do trabalho a partir do sul, ver Lima, 2018LIMA, Henrique Espada. História Global do Trabalho: um olhar desde o Brasil. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 10, n. 19, pp. 59-70, 2018..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2021
  • Aceito
    12 Jul 2021
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