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Comentário a “Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático”

O trabalho de Adilson Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.), professor de Filosofia da Universidade do Vale dos Sinos (UNISINOS), captura com maestria a discussão que aborda o aristocratismo presente na filosofia nietzschiana, ao mesmo tempo que se utiliza desse elemento para remeter a uma identidade apurada entre Friedrich Nietzsche e sua recepção na Dinamarca. Na verdade, Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.) sai do lugar comum que normalmente circunda tal assunto, pois desenvolve seu trabalho, ao absorver o elemento da aristocracia mais enquanto uma ferramenta de transformação psicológica, caracterizada pela radicalidade, do que enquanto um modo de assoberbamento social - como geralmente tratada. Eis que entra a figura do segundo grande nome desse trabalho, a do historiador e crítico literário Georg Brandes, responsável pela divulgação do filósofo alemão, em terras danesas. Através de ambas as personalidades, é encontrada a marca da ruptura com o pensamento socialmente estabelecido, seja na Alemanha, seja na Dinamarca, o que reserva lugares especiais tanto a Nietzsche quanto a Brandes, enquanto vetores de respiro intelectual, impulsionados pela correspondência mantida entre si.

O artigo desenvolvido por Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.), dividido em três seções, resgata magistralmente a filosofia nietzschiana, ao tocar em seus pontos centrais, de modo a demonstrar ao leitor, didaticamente, a grandiosidade da contribuição de Nietzsche à crítica filosófica - influência que se estende, de forma ampliada, no decorrer do século XX, principalmente em pensadores como Martin Heidegger e Michel Foucault. Nisso se percebe que Nietzsche, através da ruptura, deixa seu legado tanto aos seus conterrâneos quanto àqueles que partiam de raízes filosóficas distintas. O caso da Dinamarca, explorado no artigo, é um bom - e não tão comum - exemplo.

A primeira parte do artigo de Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.) circunda a expressão Radicalismo Aristocrático [aristokratischer Radikalismus], cunhada por Brandes, de modo a se referir ao pensamento de Nietzsche. Resgata-se uma série de terminações nietzschianas - como vontade de potência, transvaloração dos valores, degenerescência, entre outras - em vias de sintetizá-las no radicalismo aristocrático representado por Nietzsche, o qual, em última instância, propõe uma nova concepção de vida. Sobre essa ideia, é interessante notar a forma com a qual Nietzsche rompe com a tradição filosófica do idealismo alemão - amplamente criticada por ele, como é possível ver, de modo dedicado, no Crepúsculo dos ídolos2 2 Título geralmente traduzido ao português da obra Götzen-Dämmerung: oder Wie man mit dem Hammer philosophiert, originalmente publicada em 1889. (NIETZSCHE, 2016NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung: oder Wie man mit dem Hammer philosophiert. Berlin: Hofenberg Verlag, 2016.).

Em termos de comparação, na filosofia hegeliana (possivelmente o mais bem acabado sistema da tradição supracitada), percebe-se a concepção de vida enquanto necessidade à realização da ideia do Conceito [Begriff]. No último volume da Ciência da Lógica [Wissenschaft der Logik], Hegel (2018HEGEL, Georg W. F. Ciência da lógica: 3. A doutrina do Conceito. Petrópolis: Vozes, 2018.) apresenta a vida como estágio anterior ao desenvolvimento da ideia absoluta, teleologia da própria Lógica. Há um contraste em Nietzsche (2015NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Martin Claret, 2015.), quando este aponta à vida enquanto uma forma de afeto [Form des Affektes], elevada através da vontade de potência - a qual tem uma das suas maneiras de expressão no radicalismo aristocrático. Interessante notar como Hegel (2018HEGEL, Georg W. F. Ciência da lógica: 3. A doutrina do Conceito. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 245) argumenta que uma dimensão psicológica na hermenêutica da vida se mostra meramente enquanto aparecimento, carente de Conceito. Assim, é possível apontar que, na filosofia anterior, há uma vinculação entre vida-verdade, rompida por Nietzsche em prol da manifestação dos afetos como expressão da vida.

Outra interessante comparação surge da noção de espírito [Geist]. Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.) dedica a segunda seção de seu artigo a explorar a relação entre espírito e aristocracia; uma passagem citada de Nietzsche (apudFEILER, 2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022., p. 24) traz:

[...] não podemos deixar de levar em conta o que precisamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais, em todo o decurso da história, tiveram de sofrer por serem sempre sentidos como os maus e perigosos [...] Sob o domínio da eticidade do costume a originalidade de toda espécie adquiriu má consciência.

O espírito, conforme o idealismo alemão, se desenvolveria em um sentido coletivo; resumidamente, através de um impulso moral que fundamentaria o direito (KANT, 2004KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes: princípios metafísicos da Doutrina do Direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004.), ou em uma comunidade ética que se estabeleceria por meio de diferentes esferas3 3 As três esferas da eticidade [Sittlichkeit] hegeliana são a família, a sociedade civil-burguesa e o Estado nacional. (HEGEL, 2010HEGEL, Georg W. F. Introdução à filosofia do direito. Tradução de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco et al. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.). Em Nietzsche, há uma clivagem, a ponto de indicar uma dimensão individual do espírito, sendo a própria individualidade a condição de desenvolvimento deste. O movimento coletivo na apreensão nietzschiana produz uma moral de rebanho, a qual representa justamente a degenerescência da vida, por sua natureza dócil - conceito bem explorado por Foucault (1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.). Se a paz é a intenção de Kant enquanto realização do espírito, a guerra, segundo, é a atividade espiritual mais alta em Nietzsche.4 4 Curiosamente, Hegel aqui se mostra mais próximo de Nietzsche do que de Kant, como é possível visualizar na última seção da Filosofia do Direito.

Sendo Hegel e Kant anteriores a Nietzsche - e tendo este já comentado criticamente ambos os autores -, entende-se que a intenção deste é justamente a de subverter o conhecimento anterior, sendo inovador, principalmente, em sentido epistemológico e axiológico. É justamente isso que interessa a Brandes, na recepção de Nietzsche, ao destacar o kantismo enquanto culpado do sacrifício das capacidades individuais em prol da lei e do dever; enfim, a moralidade [Moralität], a qual, com Hegel, se desenvolve em eticidade [Sittlichkeit]. Aqui entra o elemento da memória, caro ao desenvolvimento do trabalho de Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.). A memória, no sentido apresentado, é a própria condição de desenvolvimento de uma cultura aristocrática; os detalhes tornam-se o centro de uma memória capaz de individualizar, ao mesmo tempo que dá continuidade à formação aristocrática.

Na última seção de desenvolvimento do trabalho, Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.) aborda a dimensão psicológica do niilismo, dividida entre uma posição ativa ou passiva. A pessoa de Jesus é tomada como maneira de demonstrar como uma psicologia ativa - a de Cristo - pode ser falsificada e tornada passiva, o que foi realizado pelo cristianismo. A psicologia aristocrática é aquela ativa, mas que, ainda assim, demanda reflexão e isolamento; afastar-se do rebanho enquanto forma de elevação é uma máxima da filosofia nietzschiana. A figura de Zaratustra (NIETZSCHE, 2016NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) é o tipo-ideal dessa questão. Interessante notar que, aqui, Brandes demonstra um afastamento em relação a Nietzsche, pois o primeiro, ao trazer uma dimensão fisiológica, não considera que questões como a dor e o sofrimento podem resultar em elevação (FEILER, 2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.). De certo modo, percebe-se uma argumentação sobre o fato de o radicalismo aristocrático ser mais radical em Nietzsche do que em Brandes.

O texto de Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.) faz uma ótima reconstituição da filosofia nietzschiana, ao mesmo tempo que acrescenta a recepção desta por Brandes, no contexto dinamarquês. Trata-se de um texto filosófico de extremo vigor; ressalva-se apenas que o artigo poderia ser enriquecido se explicasse melhor o contexto dinamarquês da época, o qual não é possível compreender apenas pelas passagens do texto. Por configurar uma questão central - pois revela o próprio interesse de Brandes em Nietzsche -, dedicar parte do escrito a explorar o aspecto histórico-social sobre a conjuntura dinamarquesa seria uma ótima opção, porque auxiliaria o leitor a compreender melhor as motivações de Brandes. No texto de Feiler (2022FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.), é citada apenas a influência compartilhada entre Alemanha e Dinamarca, em relação ao pietismo protestante, entre alguns outros pontos aludidos de maneira superficial. Negligenciam-se, assim, as transformações políticas e econômicas vivenciadas pela Europa, no período em questão, especialmente, o nacionalismo dinamarquês e a Guerra do Schleswig, fatos importantes para o processo de unificação alemã (1871). Tendo em vista o conteúdo filosófico explanado, os pontos supracitados mostram-se importantes, contudo, sua ausência não prejudica o esforço do texto, o qual é fortemente recomendado à leitura.

Referências

  • FEILER, Adilson. Nietzsche e Brandes: a memória de um radicalismo aristocrático. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 13-38, 2022.
  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
  • HEGEL, Georg W. F. Introdução à filosofia do direito. Tradução de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco et al São Leopoldo: Editora Unisinos, 2010.
  • HEGEL, Georg W. F. Ciência da lógica: 3. A doutrina do Conceito. Petrópolis: Vozes, 2018.
  • KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes: princípios metafísicos da Doutrina do Direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Martin Claret, 2015.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung: oder Wie man mit dem Hammer philosophiert. Berlin: Hofenberg Verlag, 2016.
  • 2
    Título geralmente traduzido ao português da obra Götzen-Dämmerung: oder Wie man mit dem Hammer philosophiert, originalmente publicada em 1889.
  • 3
    As três esferas da eticidade [Sittlichkeit] hegeliana são a família, a sociedade civil-burguesa e o Estado nacional.
  • 4
    Curiosamente, Hegel aqui se mostra mais próximo de Nietzsche do que de Kant, como é possível visualizar na última seção da Filosofia do Direito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2022
  • Aceito
    31 Jan 2022
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