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Transpondo limites com doadores falecidos: transplantes bem-sucedidos com rins de doador com creatinina sérica igual a 13,1 mg/dL

Resumos

Doadores falecidos não limítrofes com insuficiência renal aguda podem ser uma opção segura para aumentar a oferta de rins para transplante. A avaliação histológica é fundamental para o estabelecimento do prognóstico funcional desses enxertos. Dois transplantes renais foram realizados com rins provenientes de um doador falecido jovem com insuficiência renal aguda severa sem comprometimento estrutural do parênquima renal. Ambos os enxertos apresentaram atraso de funcionamento no período pós-operatório, embora um deles com boa diurese inicial não tenha necessitado diálise. Função renal adequada foi observada a partir do 30º dia após o transplante. A insuficiência renal aguda severa no doador falecido não é fator de risco independente para a evolução em curto prazo do enxerto renal e não deve ser considerada contra-indicação absoluta para a realização do transplante.

doadores de tecidos; insuficiência renal aguda; transplante renal; relatos de casos


Non-expanded deceased donors with acute kidney failure can be a safe option to increase the number of kidneys for transplantation. Histological evaluation is fundamental to establish the functional prognosis of those grafts. Two kidney transplantations were performed from a young deceased donor with severe acute kidney failure and no structural change in the renal parenchyma. Both patients had postoperative delayed graft function, but one of them, who had good initial urinary volume, required no dialysis. Adequate renal function was present at day 30 after transplantation. Severe acute kidney failure in deceased donors is not an independent risk factor for short-term outcome of renal graft and should not be considered an absolute contraindication for transplantation.

tissue donors; acute kidney failure; kidney transplantation; case reports


RELATO DE CASO

Transpondo limites com doadores falecidos: transplantes bem-sucedidos com rins de doador com creatinina sérica igual a 13,1 mg/dL

Rodrigo KleinI; Nelson Zocoler GalanteI; Marcello FrancoII; Maurício Costa Manso de AlmeidaIII; Mário Nogueira JúniorIII; Hélio Tedesco Silva-JúniorI; José O. Medina PestanaI

IDepartamento de Medicina, Disciplina de Nefrologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

IIDepartamento de Patologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

IIIDepartamento de Cirurgia, Disciplina de Urologia, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

Correspondência para Correspondência para: José O. Medina Pestana Hospital do Rim e Hipertensão Rua Borges Lagoa 960, 11º andar, Vila Clementino São Paulo - SP, Brasil, CEP: 04038-002 Tel: (11) 5087-8056, Fax: (11) 5087-8008 E-mail: medina@hrim.com.br

RESUMO

Doadores falecidos não limítrofes com insuficiência renal aguda podem ser uma opção segura para aumentar a oferta de rins para transplante. A avaliação histológica é fundamental para o estabelecimento do prognóstico funcional desses enxertos. Dois transplantes renais foram realizados com rins provenientes de um doador falecido jovem com insuficiência renal aguda severa sem comprometimento estrutural do parênquima renal. Ambos os enxertos apresentaram atraso de funcionamento no período pós-operatório, embora um deles com boa diurese inicial não tenha necessitado diálise. Função renal adequada foi observada a partir do 30º dia após o transplante. A insuficiência renal aguda severa no doador falecido não é fator de risco independente para a evolução em curto prazo do enxerto renal e não deve ser considerada contra-indicação absoluta para a realização do transplante.

Palavras-chave: doadores de tecidos, insuficiência renal aguda, transplante renal, relatos de casos.

INTRODUÇÃO

A demanda crescente pelo transplante renal e o desafio frente ao insuficiente número de doadores estimulam o desenvolvimento de novas estratégias para aumentar a oferta de rins para transplante.1 Acompanhando a tendência de maior utilização de rins de doadores vivos sem relação de parentesco com os receptores, o emprego de rins de doadores falecidos com critérios de doação menos restritivos é também crescente na prática clínica atual.2 Nos Estados Unidos da América, o número de pacientes em fila de espera aumenta em 20% a cada ano, enquanto a média dos incrementos anuais no número de transplantes dos últimos cinco anos foi de apenas 3,1%.3 Atualmente, a necessidade estimada de transplantes renais no Brasil é de 10 mil por ano. Em 2008 foram realizados 3.780 transplantes renais, pouco mais de um terço do necessário. Destes, 2.033 transplantes ocorream com doadores falecidos.4

A utilização de rins de doadores falecidos com insuficiência renal aguda (IRA) é assunto controverso, embora a casuística Transpondo limites com doadores falecidos de Kumar et al., do ano de 2006, envolvendo 55 receptores, tenha demonstrado que é possível obter sobrevida e função desses enxertos comparáveis àsdos rins de doadores sem IRA.5 Neste trabalho são apresentados os resultados de dois transplantes renais bem-sucedidos realizados com enxertos obtidos de doadores falecidos com IRA severa, ressaltando a importância da avaliação histológica durante a seleção desses potenciais doadores.

Apresentação dos casos

Doador

Homem de 37 anos de idade, de cor branca, encaminhado ao hospital após mal- estar súbito acompanhado de perda de consciência. Estava desidratado, com pressão arterial periférica medida em ambos os membros superiores inferior a 120/80 mmHg e sem apresentar abertura ocular espontânea, resposta verbal ou motora frente a estímulos verbais e dolorosos (escala de coma de Glasgow igual a 3). Não apresentava patologias prévias. A tomografia de crânio evidenciou hemorragia subaracnóidea no território cortical adjacente às fissuras silvianas, na região inter-hemisférica e também em ventrículos cerebrais. Sete dias após a admissão hospitalar foi diagnosticada morte encefálica. Durante o acompanhamento na unidade de terapia intensiva recebeu antibioticoterapia com ceftriaxona e clindamicina empíricos para tratamento de infecção pulmonar. O monitoramento clínico e laboratorial diário indicou perda progressiva de função renal (Figura 1), sem redução do volume de diurese. Não houve instabilidade hemodinâmica significativa, necessidade de administração de drogas vasoativas ou parada cardíaca até o momento da retirada dos órgãos doados (coração, fígado e rins). A biópsia renal evidenciou necrose tubular aguda grave com glomérulos, vasos e interstício sem anormalidades (Figura 2). A avaliação laboratorial complementar realizada no momento da remoção dos órgãos foi indicativa de presença de rabdomiólise, e nefrotoxicidade induzida por mioglobinúria foi considerada como um possível fator etiológico relacionado à insuficiência renal aguda (Tabela 1).



Receptores

Um dos transplantes foi realizado em um receptor de 50 anos de idade, do sexo masculino, caucasiano, portador de insuficiência renal crônica atribuída a glomerulosclerose segmentar e focal, há dois anos recebendo tratamento com hemodiálise. A avaliação pré-operatória mostrou sangue do tipo B, sorologias não reagentes para HIV, CMV e hepatites B e C, prova cruzada negativa, reatividade nula contra painel de células e HLA A 24,68, B 51,35 e DR 1,15. O tempo de isquemia fria foi de 26 horas e 23 minutos. A imunossupressão consistiu em indução com basiliximab (20 mg EV no primeiro e no quarto dias após o transplante), prednisona (0,3 mg/Kg/dia reduzida a 0,25 mg/Kg/dia ao final do primeiro mês e a 0,1 mg/Kg/dia ao final do terceiro mês), micofenolato sódico (2,16 g/ dia) e tacrolimo (0,12 mg/Kg/dia) iniciado no 11º dia. Evoluiu com rejeição aguda celular Banff IA, diagnosticada no nono dia após o transplante e tratada com cinco doses diárias de metilprednisolona 500 mg EV. Os volumes de diurese no primeiro, terceirto e quinto dias após o transplante foram, respectivamente, 2 L, 5,6 L e 4,8 L. Não houve necessidade de tratamento com hemodiálise após o transplante. Recebeu alta hospitalar no 14º dia após o transplante.

O outro transplante foi realizado em um receptor de 43 anos de idade, do sexo masculino, afro-descendente, portador de insuficiência renal crônica deetiologia indeterminada, há dois anos recebendo tratamento com hemodiálise. A avaliação pré-operatória mostrou sangue do tipo B, sorologias não reagentes para HIV, CMV e hepatites B e C, prova cruzada negativa, reatividade nula contra painel de células e HLA A 1,24, B 35,0 e DR 8,14. O tempo de isquemia fria foi de 27 horas e 55 minutos. A imunossupressão foi semelhante à utilizada no outro receptor, exceto pela introdução do tacrolimo no quarto dia após o transplante. Evoluiu sem rejeição aguda. Os volumes de diurese no primeiro, terceiro e quinto dias após o transplante foram, respectivamente, 1,5 L, 0,8 L e 0,5 L Houve necessidade de tratamento com hemodiálise até o 11º dia após o transplante. Recebeu alta hospitalar no 15º dia após o transplante.

O monitoramento das concentrações séricas de creatinina realizada em ambos os receptores é mostrado na Figura 3.


DISCUSSÃO

A decisão de utilizar rins de doadores falecidos envolve a determinação de seu prognóstico funcional após o transplante. A aceitação de rins de doadores falecidos com critérios de doação menos restritivos é atualmente considerada como o método mais eficiente para aumentar o número de transplantes em curto-prazo. Embora não exista uma definição universalmente aceita sobre quais condições devam ser consideradas limítrofes para a doação, os doadores com idades acima de 60 anos ou entre 50 e 59 anos que apresentem dois ou três fatores de risco adicionais (óbito causado por acidente cerebrovascular, antecedente de hipertensão arterial sistêmica e creatinina sérica acima de 1,5 mg/dL) têm risco de perda do enxerto 70% superior.6 Estas condições são atualmente consideradas como critérios expandidos para doação1. A utilização de enxertos renais provenientes de doadores nestas condições é sempre baseada no julgamento clinico de cada caso e na experiência da equipe de transplante, mediante o consentimento informado do receptor.

A IRA no doador falecido com idade inferior a 50 anos é condição relativamente frequente associada com reduzida utilização destes doadores. Embora seja bastante intuitivo não aceitar rins de doadores com IRA, os resultados do transplante renal realizado com doadores nesta condição podem ser satisfatórios. Dois estudos avaliaram os efeitos da utilização de rins de doadores com creatinina sérica > 2mg/dL no momento da doação. Uma análise multivariada do registro norte americano SRTR (Scientific Registry of Transplant Recipients) demonstrou que apesar de a utilização de rins de doadores falecidos com creatinina sérica > 1,5mg/dL ter sido associada com risco de perda do enxerto 10% maior e independente da idade do doador e dos antecedentes de hipertensão ou morte encefálica por acidente cerebrovascular, valores de creatinina sérica > 2mg/dL não acrescentaram risco adicional de perda do enxerto.6 Além disso, no estudo de Ugarte et al. envolvendo uma análise retrospectiva de 262 transplantes renais com doadores falecidos não limítrofes, foi observado que a insuficiência renal aguda não modificou as incidências de retardo de função do enxerto e de rejeição aguda e nem mesmo reduziu as sobrevidas do enxerto e do paciente, avaliadas seis anos após o transplante.7

A caracterização do doador falecido limítrofe é atualmente realizada utilizando apenas características clínicas, sem incorporar sistematicamente indicadores histológicos de integridade estrutural do tecido renal. Nesse sentido, o benefício da realização de biópsias renais antes da implantação do enxerto é questionado e foi inicialmente sugerido após a observação de que rins de doadores falecidos com idades entre 60 e 75 anos que apresentavam esclerose em menos de 15% dos glomérulos obtinham sobrevida de um ano após o transplante, semelhante à de rins de doadores com idade inferior a 60 anos e melhor que a de doadores de mesma idade, quando selecionados apenas utilizando critérios clínicos.8 Mais recentemente, as observações de Remuzzi et al. também confirmaram que a avaliação histológica prediz significativamente a sobrevida em longo prazo de rins de doadores limítrofes.9

A avaliação histológica tem sido também utilizada para a seleção de rins de doadores falecidos não limítrofes com IRA. No ano de 2006, Kumar et al. demonstraram que enxertos de doadores falecidos de até 50 anos de idade com insuficiência renal aguda e comprovação histológica de preservação da estrutura renal apresentam sobrevida do enxerto semelhante às apresentadas por doadores não limítrofes sem IRA.5 A creatinina sérica no momento da remoção no grupo de doadores com IRA analisado por esses autores foi de 4,6 ± 4,2 mg/dL. No presente estudo, rins de doador com IRA severa (creatinina sérica igual a 13,1 mg/ dL) foram aceitos após a confirmação histológica de que os compartimentos glomerular, vascular e intersticial do tecido renal apresentavam integridade anatômica. Apesar da ocorrência de retardo de função do enxerto, ambos os receptores obtiveram função renal satisfatória a partir do primeiro mês de acompanhamento. Esses resultados sugerem que a severidade da insuficiência renal aguda não é fator de risco independente para a evolução em curto prazo do enxerto.

Os resultados apresentados indicam que a determinação isolada da concentração sérica de creatinina não deve impedir a aceitação de rins de doadores falecidos não limítrofes com IRA. A análise histológica do tecido renal deve sempre ser realizada visando a afastar possível microangiopatia trombótica ou necrose cortical, situações em que a doação está absolutamente contraindicada. Outra recomendação é a de que esses enxertos devam ser destinados a pacientes que não apresentem riscos elevados de complicações cardiovasculares ou infecciosas, considerando a expectativa de evolução prolongada em IRA após o transplante.

REFERÊNCIAS

1. Rosengard B, Feng S, Alfrey E et al. Report of the Crystal City meeting to maximize the use of organs recovered from the cadaver donor. Am J Transplant 2002; 2:701-11.

2. Audard V, Matignon M, Dahan K et al. Renal transplantation from extended criteria cadaveric donors: problems and perspectives overview. Transpl Int 2008; 21:11-7.

3. Online National Data of Organ Procurement and Transplantation Network [Internet]. Rockville: Department of Health and Human Services, Health Resources and Services Administration, Healthcare Systems Bureau, Division of Transplantation. [cited 2009 August 3]. Available from: http://optn.transplant. hrsa.gov/.

4. ABTO. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Análise Comparativa Anual. Registro Brasileiro de Transplantes 2008; 14:1-33.

5. Kumar M, Khan S, Jaglan S et al. Successful transplantation of kidneys from deceased donors with acute renal failure: Three-year results. Transplantation 2006; 82:1640-5.

6. Port F, Bragg-Gresham J, Metzger R et al. Donor characteristics associated with reduced graft survival: an approach to expanding the pool of kidney donors. Transplantation 2002; 74:1281-6.

7. Ugarte R, Kraus E, Montgomery R et al. Excellent outcomes after transplantation of deceased donor kidneys with high terminal creatinine and mild pathologic lesions. Transplantation 2005; 80:794-800.

8. Andrés A, Morales J, Herrero J et al. Double versus single renal allografts from aged donors. Transplantation 2000; 69:2060-6.

9. Remuzzi G, Cravedi P, Perna A et al. Long-term outcome of renal transplantation from older donors. N Engl J Med 2006; 354:343-52.

Data de submissão: 04/08/2009

Data de aprovação: 28/10/2009

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse.

Este artigo foi modificado em 02/07/2010 em função de correções na terminologia, nos keywords e na estética da tabela.

  • 1. Rosengard B, Feng S, Alfrey E et al Report of the Crystal City meeting to maximize the use of organs recovered from the cadaver donor. Am J Transplant 2002; 2:701-11.
  • 2. Audard V, Matignon M, Dahan K et al Renal transplantation from extended criteria cadaveric donors: problems and perspectives overview. Transpl Int 2008; 21:11-7.
  • 4
    ABTO. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Análise Comparativa Anual. Registro Brasileiro de Transplantes 2008; 14:1-33.
  • 5. Kumar M, Khan S, Jaglan S et al Successful transplantation of kidneys from deceased donors with acute renal failure: Three-year results. Transplantation 2006; 82:1640-5.
  • 6. Port F, Bragg-Gresham J, Metzger R et al Donor characteristics associated with reduced graft survival: an approach to expanding the pool of kidney donors. Transplantation 2002; 74:1281-6.
  • 7. Ugarte R, Kraus E, Montgomery R et al Excellent outcomes after transplantation of deceased donor kidneys with high terminal creatinine and mild pathologic lesions. Transplantation 2005; 80:794-800.
  • 8. Andrés A, Morales J, Herrero J et al Double versus single renal allografts from aged donors. Transplantation 2000; 69:2060-6.
  • 9. Remuzzi G, Cravedi P, Perna A et al Long-term outcome of renal transplantation from older donors. N Engl J Med 2006; 354:343-52.
  • Correspondência para:
    José O. Medina Pestana
    Hospital do Rim e Hipertensão
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    São Paulo - SP, Brasil, CEP: 04038-002
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Recebido
      04 Ago 2009
    • Aceito
      28 Out 2009
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