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Transtornos da identidade de gênero: o que o ginecologista precisa saber sobre transexualismo

Gender identity disorders: what the gynecologist must know about transsexualism

EDITORIAL

Transtornos da identidade de gênero: o que o ginecologista precisa saber sobre transexualismo

Gender identity disorders: what the gynecologist must know about transsexualism

Lucia Alves da Silva LaraI; Carmita Helena Najar AbdoII; Adriana Peterson M Salata RomãoI

IAmbulatório de Estudos em Sexualidade Humana, Setor de Reprodução Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil

IIDepartamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo - USP - São Paulo (SP), Brasil

Correspondência Correspondência Setor de Reprodução Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da FMUSP Avenida Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre CEP: 14049-900 Ribeirão Preto (SP), Brasil

O indivíduo com transexualismo (CID-10)1 ou transtorno da identidade de gênero - tipo transexual (DSM-IV-TR)2 apresenta desejo irreversível de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto (ou insistência de que é do sexo oposto), acompanhado por um sentimento persistente de grande mal-estar e de inadequação em relação ao próprio sexo anatômico. Há profundo desconforto com o sexo designado (genitália e caracteres sexuais secundários), bem como com o papel de gênero atribuído pela sociedade para esse sexo. Tal condição, que geralmente se inicia na infância, é acompanhada por sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional, ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. Por identificar-se com o outro sexo e não com aquele que lhe foi designado ao nascimento, o transexual deseja submeter-se a uma intervenção cirúrgica e tratamento hormonal, a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado1,2. Assim, chama a atenção para a possibilidade de transexualismo aquele meninos que expressam repulsa pelo pênis e testículos, afirmação de que estes desaparecerão, aversão a brincadeiras rudes e rejeição a brinquedos, jogos e atividades estereotipicamente masculinos. Em meninas, a rejeição a urinar sentada, afirmação de que desenvolverá um pênis, afirmação de que não deseja desenvolver seios ou menstruar ou acentuada aversão a roupas caracteristicamente femininas, falam a favor de transexualimo. Nos adolescentes e adultos, a crença de ter nascido com o sexo errado, busca por livrar-se das características sexuais primárias ou secundárias através de hormônios, cirurgia ou outros procedimentos para simular o sexo oposto, são fortemente indicativas de transexualismo.

A prevalência desta condição é pouco conhecida, mas estima-se que seja da ordem de 1 transexual masculino (homem para mulher) a cada 12.000 homens e 1 transexual feminino (mulher para homem) a cada 30.000 mulheres, em média3-6, numa proporção de 2:13.

A etiologia do transexualismo ainda não foi totalmente esclarecida. Com base no conhecimento atual, há indícios de que sua origem seja neurobiológica7. Estudos post-mortem do cérebro de transexuais evidenciam características anatômicas cerebrais diferentes do padrão esperado para homens e mulheres não transexuais. O número de neurônios do bed nucleus da estria terminal de transexuais homem para mulher, apresenta um padrão similar ao feminino enquanto o número de neurônios do transexual mulher para homem é parecido com o padrão masculino8. Esta situação também foi identificada em outras áreas do cérebro. O 3º núcleo intersticial do hipotálamo (INAH-3) dos transexuais homem para mulher tem o volume e o número de células similares ao feminino9. O giro lingual esquerdo desse transexual tem grande similaridade funcional com a mulher não transexual10. Estas alterações não são encontradas em adultos submetidos à terapia hormonal e não dependem da orientação sexual do indivíduo11. Outros estudos evidenciam modificações microestruturais na substância branca do cérebro de transexuais mulher para homem, sugerindo que alguns fascículos não completaram o processo de masculinização durante o desenvolvimento12. Estas alterações no sistema nervoso central dos transexuais reforçam a teoria de que o transexualismo está associado a modificações na diferenciação do cérebro ainda no ambiente intrauterino13,14.

As evidências atuais também apontam para a participação dos esteróides sexuais na identidade de gênero no cérebro ainda em desenvolvimento11. No segundo mês da vida intrauterina, um pico de testosterona masculinizaria o cérebro fetal masculino, enquanto a ausência deste pico resultaria em fetos com cérebro feminino13.

O diagnóstico de transtorno de identidade de gênero, tipo transexual, é essencialmente clínico, baseado em auto-relato do paciente e em critérios diagnósticos estabelecidos no DSM-IV-TR (Quadro 1). No CID-101, para que o diagnóstico seja feito, a identidade transexual deve ter estado presente persistentemente por pelo menos dois anos e não deve ser um sintoma de outro transtorno mental, tal como esquizofrenia, nem estar associada a qualquer anormalidade intersexual, genética ou do cromossomo sexual. No Brasil, o tratamento do transexualismo foi autorizado pela Resolução 1.482/97 (e atualizada pela Resolução CFM nº 1.955/2010)15, que prevê a avaliação do paciente por equipe multidisciplinar composta por: psiquiatra, psicólogo, assistente social, endocrinologista e cirurgião. Esta equipe é responsável pela formulação diagnóstica, avaliação psiquiátrica, apoio psicológico e psicoterapia, administração/correção do uso de hormônios, avaliações de condições familiares e sociais, preparação para a cirurgia, ato cirúrgico e acompanhamentos pós-operatórios (a curto e longo prazos).


É papel do psiquiatra fornecer o diagnóstico de transexualismo e o laudo autorizando (ou não) a cirurgia conforme a confirmação diagnóstica e o nível de preparo do paciente. É fundamental o acompanhamento psicológico, desde a definição diagnóstica até a pós-cirurgia de redesignação sexual. Além disso, é pré-requisito que o mínimo de dois anos de psicoterapia anteceda o ato cirúrgico.

A terapia hormonal (TH) deve anteceder a cirurgia de redesignação sexual, de modo a propiciar a aquisição de caracteres sexuais secundários relativos ao sexo almejado16. Para a aquisição de caracteres sexuais femininos no transexual homem para mulher, são empregadas doses até três vezes maior de estrogênio do que a utilizada para a reposição hormonal em mulheres na pós-menopausa. No caso do valerato de estradiol, são utilizados 2-6 mg/dia. O objetivo é manter níveis femininos para estrogênio sérico aproximadamente de 200 ng/mL e testosterona <50 ng/dL. Para o transexual mulher para homem, utiliza-se o Cipionato ou enatato de testosterona intramuscular na dose de 100-200 mg a cada 15 dias. Aqui, também deve-se manter os níveis hormonais (estrogênio e testosterona) correspondentes aos níveis masculinos. Se houver sangramento uterino, utilizar progesterona ou considerar a possibilidade de ablação do endométrio17,18.

Na Suécia, a aprovação da cirurgia de redesignação sexual se deu após a observação da impossibilidade de reverter a condição transexual pela psicoterapia. Desde então, em vários países houve a adoção da cirurgia de redesignação sexual desde que antecedida pela TH, visando a integridade dos pacientes transexuais19. Nesse sentido, a TH oferece uma abordagem reversível, anterior à gonadectomia, ou seja, uma janela de oportunidade para que o paciente possa avaliar sua decisão em relação à mudança de sexo, que é um procedimento irreversível20. A mudança das características sexuais resulta em satisfação para 87% dos transexuais homem para mulher e 97% dos transexuais mulher para homem, sendo o arrependimento referido em 1% dos pacientes tratados (WPATH)21-23.

A TH deve observar os cuidados com os efeitos adversos, considerando os riscos da terapia estrogênica (cardiovascular principalmente) para os transexuais homem para mulher, e androgênica (alterações hepáticas e lipídicas) para os transexuais mulher para homem24. Uma coorte de um ano que acompanhou 966 transexuais homem para mulher e 365 transexuais mulher para homem encontrou um incremento de 51% nas taxas de mortalidade entre transexuais homem para mulher em relação à população geral. Em transexuais mulher para homem, a testosterona está associada à maior incidência de doença metabólica25 bem como a um elevado risco de desenvolver câncer de mama e de endométrio e eritrocitose (hematócrito >50%). A utilização do etinilestradiol em transexuais homem para mulher foi associada a um risco três vezes maior de morte por doença cardiovascular26. Já a utilização do estradiol está associada a um risco muito elevado de tromboembolismo e risco moderado de desenvolver macroprolactinemia, disfunção hepática severa, câncer de mama, doença coronariana, doença cerebrovascular, migrania severa.

A The World Professional Association for Transgender Health (WPATH) elaborou um guia com recomendações para o manejo do paciente transexual22,27, baseando-se na experiência dos Estados Unidos e da Europa ocidental. Várias estratégias, entretanto, são tratadas como sugestões, dado que a complexidade da abordagem desta condição deve levar em conta também os hábitos e valores de cada cultura. Assim, alguns autores recomendam a supressão da puberdade no estágio 2 de Tanner28 por meio de análogos do GnRH, para impedir o aparecimento dos caracteres sexuais secundários e favorecer que haja tempo maior até a tomada a decisão sobre a indicação e o benefício da cirurgia de redesignação sexual do paciente29. Não obstante, o pequeno número de evidências sobre os riscos da supressão do eixo hipotálamo hipofisário, parece que os padrões relativos à densidade mineral óssea e à saúde mental são mantidos como demonstrado em estudo de longo follow-up30.

O crescente arsenal de conhecimento e de critérios diagnósticos e medidas terapêuticas já normatizadas, inclusive em nosso país, exigem que o ginecologista se interesse e se atualize sobre essas questões31, as quais farão cada vez mais parte do cotidiano da pratica profissional de várias especialidades. Mesmo que não haja interesse em acompanhar casos dessa natureza, é preciso saber reconhecer e encaminhar os pacientes. Entretanto, a literatura enfatiza o importante papel do ginecologista no seguimento destas pacientes após a cirurgia de redesignação sexual32, uma vez que a reposição hormonal será realizada durante toda a vida, é preciso estar atento para as complicações descritas acima e especialmente o risco aumentado para câncer de mama nos transexuais homem para mulher e câncer de endométrio nos transexuais mulher para homem33.

Recebido: 29/05/2013

Aceito com modificações: 17/06/2013

Trabalho realizado no Serviço de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - USP - Ribeirão Preto (SP), Brasil.

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  • Correspondência

    Setor de Reprodução Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da FMUSP
    Avenida Bandeirantes, 3900 - Monte Alegre
    CEP: 14049-900 Ribeirão Preto (SP), Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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