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Reformas do ensino e de currículos e o ensino das doenças infecciosas e parasitárias no Brasil

Introdução

O ensino médico no Brasil vem sofrendo sucessivas reformas a partir da nova legis­ lação de 1832 que institucionalizou as duas Escolas Médicas existentes no país, a da Bahia e a do Rio de Janeiro, criadas, respectivamente, em fevereiro e novembro de 19084(4) LOBO, F.B. - O ensino da Medicina no Rio de Janeiro, 1964-1969. 5v.

Embora a reforma Cruz Jobim, aprovada em Lei de 3 de outubro de 1832, inspirada em proposta da recém criada Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (mais tarde Academia Imperial e Nacional de Medicina), tivesse a intenção de infundir um maior sentido científico nas escolas de Medicina, dedicadas até então ao ensino sintomático e prático das doenças, a forte tradição clínica do modelo francês perdurou durante mais de um século e ainda hoje tem os seus profundos reflexos nos nossos currículos de ensino médico.

Numerosas gerações de médicos foram formadas e deformadas de acordo com o modismo importando em cada época, segundo a evolução dos conhecimentos europeus, de rápida transmissão pelo contacto constante dos nossos mestres da clínica, mas de transformação e adaptação lentas por falta de uma pesquisa de desenvolvimento autóctone em nosso país.

A pesquisa e o ensino das cadeiras básicas foram sempre relegados a um plano secundário ou completamente marginalizados em nossas instituições de ensino médico, apesar, muitas vezes, de manifestações isoladas e de relatórios profundamente contundentes como o de Nuno de Andrade em 1879, que deu origem às reformas sob a direção do Visconde de Saboia, com melhoria do aspecto físico dos laboratórios6(6) SCHWARTZMAN, S. - Formação da comunidade científica no Brasil. Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), Rio de Janeiro, 1979. 481p.), (9(9) STEPAN, N. - Gênese e Evolução da Ciência Brasileira. Rio de Janeiro, Arte Nova, 1979. 188p.

Somente em 1901 foi criada por lei a cadeira de microbiologia e a obrigatoriedade da freqüência às aulas práticas de laboratório. Entretanto, a precaridade de equipamentos era de tal monta que o relatório de 1904 referente à nossa Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro relatava que o professor de microbiologia tentava ensinar a 150 alunos com apenas um microscópio.9(9) STEPAN, N. - Gênese e Evolução da Ciência Brasileira. Rio de Janeiro, Arte Nova, 1979. 188p.

Em conseqüência da falta de apoio e de interesse, a pesquisa médica e experimental no Brasil surgiu fora da Escola Médica e antecipando-se a ela, como no caso da chamada Escola Tropicalista Bahiana, movimento científico organizado em tomo de 1850 cujos integrantes pioneiros não pertenciam à Faculdade de Medicina da Bahia, embora ela já existisse havia mais de 40 anos, bem como o Instituto Bacteriológico e o Butantã de São Paulo, criados respectivamente em 1893 e 1899 e o Instituto de Medicina Experimental de Manguinhos, hoje Instituto Oswaldo Cruz, criado em 1900 sem a participação da Faculdade de Medicina.6(6) SCHWARTZMAN, S. - Formação da comunidade científica no Brasil. Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), Rio de Janeiro, 1979. 481p.

As grandes epidemias do fim do século passado e início deste século encontraram as nossas Escolas Médicas despreparadas, em plena época pasteuriana, para oferecer as respostas reclamadas pela sociedade, que teve de ser socorrida pela criação de Institutos especiais. O mesmo não ocorreu em relação aos conhecimentos clínicos, de forte tradição em nosso meio, ombreando em alguns campos com as mais adiantadas escolas do mundo.

A crescente influência dos Estados Unidos , sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial com a decadência temporária dos países europeus, tem nos levado à adoção de modelos de ensino e de assistência médica, em movimentos pendulares de imitação ab-solutamente ridículos e atentatórios à nossa inteligência: formação do superespecialista, hospitais verticalizados, departamentos com os mesmos nomes (mal traduzidos) mas sem nenhum apoio, currículos por créditos mas que não funcionam, modelo de pós-graduação “sensu stricto”, “campi” universitários distantes dos centros urbanos mas sem infra-estrutura e sem transporte, divisão entre ciclo básico e ciclo profissional, para agora, em movimento contraditório e confuso, tentar copiar de forma ambivalente: a formação do médico de família, o hospital verticalizado desenvolvendo cuidados primários, os departamentos substituídos por coordenações, a integração de currículos, mas, ainda assim por créditos, pós-graduação sem pesquisa, “campi” avançados para “medicina comunitária”, tentativas frustradas de coordenação entre o ciclo básico e profissional, divisão da assistência médica em cuidados progressivos, substituição da liderança do saber e da experiência pela chamada “participação” e finalmente a transferência do poder decisório para os especialistas do ensino médico que muitas vezes não participam diretamente desse ensino.

A contradição criada por todos os fatos apresentados é de tal ordem que custa a acreditar que seja ela presidida por uma elite intelectual.

As Recentes Reformas do Ensino e dos Currículos e seus Reflexos Negativos

A chamada reforma universitária, implementada a partir de J968 com a aplicação da Lei no 5.540, ensejou o aumento da contradição existente pela vazão das mais diversas tendências dos “reformadores”, cada um interpretando a Lei à sua maneira.

Em algumas Escolas Médicas, tradicionais mas de bom padrão, houve urna completa destruição de sua estrutura, desestímulo dos seus professores mais competentes, com subversão da hierarquia acadêmica, levando-as a um verdadeiro caos.

Outras, porém, entendendo a transitoriedade e falta de amadurecimento da “reforma”, aplicaram-na de forma econômica, na­ quilo que era essencial ao cumprimento da Lei.

O primeiro dilema criado pela reforma universitária foi a separação do ciclo básico do ciclo profissional, visando concentrar o ensino básico das diversas Escolas em grandes Institutos para a “economia de meios”.

Em realidade isto não ocorreu na maioria dos casos. Pelo contrário, houve um nivelamento do ensino por baixo, pela enorme concentração de alunos de um lado e duplicação de meios de outro, para suporte aos cursos profissionais ou estes sofreram grande comprometimento em sua qualidade quando não houve essa duplicação.

A própria Lei, reconhecendo a dicotomia criada com a separação dos dois ciclos, propõe como mecanismos de correção a criação do Colegiado dos Cursos, coordenação que jamais pôde e poderá substituir com eficácia o Conselho Departamental e a Congregação das Unidades, pelo seu próprio distanciamento dos setores executivos específicos.

Numerosos trabalhos, seminários e até congressos têm sido realizados, tendo como tema central a integração do ciclo básico e profissional, e quase doze anos depois de sua “desintegração” por lei, ainda não se encontrou um caminho adequado para reintegrá-los, como demonstra o recente seminário promovido em 1979 pela Associação Brasileira de Educação Médica, em Maceió.5(5) SEMINÁRIO REGIONAL DA ABEM, Maceió, 10-11 de agosto de 1979. In: Revista Brasileira de Educação Médica, 3:45-94, 1979.

Mesmo a utilização de um verdadeiro jogo de palavras bem coordenadas como a própria coordenação, integração, articulação, inter-relação, flexibilidade, abrangência, etc., entre outras, utilizadas quase como chavões nos trabalhos e exposições sobre o assunto, não consegue esconder a dicotomia e os prejuízos causados ao ensino por essa reforma realizada sem prévia experiência e imposta de forma inadequada.

Agora alguns teóricos da educação médica investem contra os Departamentos e as Disciplinas por serem no seu entender necessariamente rígidos e permanentes e defendem as Coordenações que julgam, em sua visão unilateral, serem flexíveis e reajustáveis. Em nossa opinião a coordenação é necessária em qualquer tipo de atividade, para reajustes e adaptações, mas jamais poderá assumir o controle das atividades dos Departamentos, sem o risco de comprometer seriamente a estrutura e hierarquia acadêmicas, levando-as ao caos e com elas todo o ensino médico.

O conflito administrativo que se esboça entre a estrutura legítima e democrática dos Departamentos, com a sua direção eleita pelos seus representantes mais experientes

(Professores Titulares e Adjuntos) e representantes de todas as categorias docentes e discentes, acusados de serem rígidos, em contraste com as coordenações nomeadas, em geral ocupadas por docentes de categorias iniciais, parece-me um tanto pueril senão de conotação estritamente política.

Com referência à integração curricular, entendo que seja necessária e até mesmo indispensável, entretanto ela deve ser feita entre disciplinas homogêneas em conteúdo, como por exemplo, a Clínica Médica como a Radiologia e a Patologia, mas nunca forçada e com prejuízo e absorção da outra área como tem sido, algumas vezes, proposto. A individualidade de determinadas disciplinas que utilizam técnicas e métodos de trabalho bem definidos deve ser mantida, até mesmo como forma de preservação de sua qualidade.2(2) COURA, J.R. - Relevância do Ensino da Medicina Preventiva na Formação do Profissional de Saúde - Rev. Soc. Bras. Med. Trop. 6:105-113, 1972.

A abrangência excessiva é de todo prejudicial, sobretudo quando engloba áreas extensas e heterogêneas3(3) COMISSÃO DE ASSESSORAMENTO DO CURSO - Anteprojeto de Organização Curricular para o Curso Médico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Documento Mimeografado, 10p., 1979.),(7(7) SIQUEIRA, B.P. - Experiência curricular de formação de médicos. Uma análise do processo de desenvolvimento curricular da FMUFMG, 1979. 8p. 1979., que ao invés de melhorar a qualidade do ensino, contribui para a sua desintegração através do desestímu­lo de professores e alunos. As superdisci-plinas (disciplinas multidepartamentais) ou superdepartamentos têm se mostrado pro-fundamente desagregadores.

Por outro lado, a flexibilidade de um currículo não deve ser tão grande e mutável como vem ocorrendo em algumas Faculdades de Medicina, que a cada 2 ou 3 anos esteja sendo modificado, com sérios prejuízos e desorientação dos al unos e professores. Uma modificação de currículo deve ser muito bem pensada e aplicada progressiva e cautelosamente, com a durabilidade de pelo menos a formação de uma turma e a avaliação do seu desempenho imediato, a fim de que represente uma experiência válida. Qualquer modificação do currículo deve ser cuidadosamente discutida e aceita pelos Departamentos executores do programa, a fim de que possa ser incorporada e bem sucedida.

É de estarrecer a análise de determina­ das propostas de modificação curricular, extinguindo, misturando, questionando e até distorcendo a existência de determinadas disciplinas e departamentos, absolutamente indispensáveis como unidades didáticas individualizadas em nosso país. Dir-se-ia, se não fossem conhecidos os verdadeiros propósitos das modificações propostas, que uma verdadeira onda de falta do senso comum invade as fronteiras de algumas de nossas melhores Escolas Médicas, que deixarão de ser em breve as melhores, se não reagirmos adequadamente às tentativas desintegradoras.

Invariavelmente os que desejam “quebrar os padrões tradicionais” sob a forma de propostas de modificações curriculares destrutivas acusam os que se opõem de temerem a perda do poder.

Não creio em reformas que destroem tudo para começar do nada, que desprezam a experiência vivida para aplicar teorias não provadas, mesmo que muito ambiciosas, ou quaisquer outras que esqueçam as perspectivas históricas, porque certamente estarão fadadas ao fracasso.

Importância do Ensino das Doenças Infecciosas e Parasitárias no Brasil como Disciplina Individualizada

Os conhecimentos sobre as doenças infecciosas e parasitárias no Brasil datam do século XVI quando foram feitas as primeiras descrições de epidemias entre os aborígenes, negros e colonizadores, destacando-se o “Tratado Único da Constituição Pestilencial de Pernambuco”, de autoria de João Ferreira da Rosa, que descreve a epidemia de febre amarela ocorrida no Nordeste entre 1680 e 1694, com elevada mortalidade da população.

Epidemias de varíola principalmente entre aborígenes foram descritas pelos missionários catequistas e algumas doenças isola­ das como o “bicho do pé” (Tunga penetrans) pareciam freqüentes entre os escravos em época posterior. As descrições, entretanto, eram raras, dado ao maior interesse dos naturalistas e “físicos” pela descrição da fauna e da flora como a publicação em 1648 da “Historia Naturalis Brasiliae” de autoria de George Marcgraff e Guilherme de Piso, integrantes da missão do Conde Maurício de Nassau.

A primeira organização de estudo sistemático das doenças ocorrentes no Brasil, de caráter científico e investigativo, surgiu com a chamada Escola Tropicalista Bahiana em torno de 1850, portanto mais de 40 anos depois de criadas as Escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, respectivamente em fevereiro e novembro de 1908, dirigidas para o ensino prático e sintomático da medicina e cirurgia.

John Paterson, Otto Wucherer, Silva Lima e mais tarde Pires Caldas, Virgílio Damazio e Pacífico Pereira desenvolveram em meados do século passado, na Bahia, um verdadeiro Centro de Estudos de Medicina Tropical, fundando posteriormente a Gazeta Médica da Bahia. Antes porém, em 1829, Soares de Meirelles, Vicente de Simon, José Francisco Sigaud, Cruz Jobim, Jean Maurice Faivre, Pereira Reis e Mariano da Silva, fundavam no Rio de Janeiro a Sociedade de Medicina, precursora da Academia Imperial, hoje Academia Nacional de Medicina, importante forum de estudos e de aconselhamento governamental, sobre os problemas de saúde pública, destacando-se entre eles as doenças endêmicas que assolavam o nosso país, como registram os Annaes da Academia Imperial de Medicina.

As grandes epidemias do fim do século passado e início deste século, como já nos referimos, encontraram as Escolas Médicas despreparadas para enfrentá-las, por falta de tradição dos conhecimentos básicos de microbiologia e de saúde pública e até pelo contrário, a forte tradição clínica inibia o desenvolvimento e o crédito na medicina experimental. Vários episódios confirmaram essa afirmação; entre estes destaca-se o diagnóstico bacteriológico da febre tifóide e da cólera desenvolvido por Adolfo Lutz entre 1894-1895, com forte oposição da Sociedade Médica e Cirúrgica de São Paulo, que insistia no diagnóstico clínico através de sinais e sintomas imprecisos. O mesmo ocorreu com Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro no princípio deste século e até mesmo com Carlos Chagas já na década de 1920, quando se procurou contestar na Academia Nacional de Medicina a sua descoberta.

Aqueles episódios marcaram de forma contundente, a forte oposição da medicina tradicional com a medicina científica, tendo ainda hoje os seus reflexos quando se deseja extinguir ou incorporar a Medicina Tropical como um simples conteúdo currricular da medicina clínica, ignorando-se a importante atividade daquela área para o nosso país nos campos da saúde pública e da medicina experimental.

A criação da cadeira de Medicina Tropical na Faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1925, e a entrega dos seus destinos a um homem do prestígio científico de Carlos Chagas, na época Diretor do Instituto Oswaldo Cruz, parecia revelar uma tendência da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para uma posição de maior valorização científica1(1) CHAGAS, C. & CHAGAS, E. - Manual de Doenças Tropicais e Infectuosas. Vol. I, Livraria Editora Freitas Bastos, 190p., 1935.. Entre­ tanto, a entrega da cadeira a um clínico geral, sem a formação básica e de saúde pública, logo depois da morte de Carlos Chagas, em detrimento do aproveitamento de Evandro Chagas, um verdadeiro tropicalista, representou um atraso de mais de 20 anos na Medicina Tropical brasileira.

Em 1958 José Rodrigues da Silva, ao assumir a cátedra de Doenças Tropicais e Infectuosas como era chamada na então Universidade do Brasil, retoma as linhas traçadas por Carlos Chagas, forma um grupo de jovens professores e pesquisadores com a visão de saúde pública necessária e funda a Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, hoje com mais de mil participantes efetivos, reabilitando assim a Medicina Tropical no Brasil, de forma que quando de sua morte prematura em 1968 não tivemos dificuldade em continuar o seu trabalho. Organizamos, a partir de 1970, um curso de pós-graduação “stricto sensu”, pioneiro em nosso país e já agora com um grande prestígio nacional e internacional, pelas qualidades dos professores formados.

Com profunda decepção vemos agora a administração de ensino da nossa Faculdade de Medicina retroceder ao passado, propondo a diluição da Disciplina de Doenças Infectuosas e Parasitárias em conteúdo exclusivamente clínico, cm uma proposta de reforma de currículo que, se concretizada, será profundamente destrutiva para a Medicina Tropical brasileira, desde que a nossa Escola tem sido um modelo para várias outras no país nos últimos 20 anos.

É estranho que países como os Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França, Bélgica, Suíça, Holanda, Japão e países escandinavos, entre outros, estimulem a criação de Institutos de Medicina Tropical e Divisões de Doenças Infecciosas pela sua importância, como por exemplo os pujantes Departamentos de “Tropical Public Health” da Harvard University, dirigido por um prêmio Nobel, da Tulane, da Louisiana State University, da Cornell, da Universidade da Califórnia e de tantas outras nos Estados Unidos e países mencionados e que o Brasil - com os seus problemas da patologia tropical agravados com a grande freqüência das doenças infecciosas e endêmicas, a recente invasão da febre amarela humana em Goiás e a reinvasão do Aedes egypti em toda a costa brasileira, inclusive no Rio de Janeiro - se omita mais uma vez pela inércia e incompreensão de suas Universidades que deveriam, ao contrário, ser pioneiras na proposta de solução dos grandes problemas nacionais.

O ensino destacado das Doenças Infecciosas e Parasitárias no Brasil é importante pelos seguintes fatos:

  1. Dois terços da população mundial, destacadamente a dos países subdesenvolvidos, onde se inclui o Brasil, sofre de algum tipo de doença infecciosa ou parasitária;

  2. A primeira causa de mortalidade geral e infantil no Brasil é por doenças infecciosas ou parasitárias, requerendo, portanto, a maior prioridade na atenção pública;

  3. É ilusório pensar-se na formação do “médico generalista” sem professores que conheçam em campo as nossas prioridades;

  4. A diluição da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias como entidade exclusivamente clínica, significa a sua extinção a médio e longo prazo, absorvida pela “tradição clínica”;

  5. Os chamados tropicalistas (especialistas em D.I.P.) são clínicos de formação geral, que conhecem em campo os problemas de saúde pública e são capazes de fazer e ensinar o diagnóstico etiológico, o tratamento e o controle corretos de nossa nosologia predominante.

A Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, que congrega mais de 1200 membros em todo o Brasil, preocupada com as vicissitudes das recentes propostas e mudanças curriculares em algumas Faculdades de Medicina brasileiras, incoerentes com a nossa realidade, aprovou em sua última Assembléia7(7) SIQUEIRA, B.P. - Experiência curricular de formação de médicos. Uma análise do processo de desenvolvimento curricular da FMUFMG, 1979. 8p. 1979., de 6/2/1980,em Natal, Rio Grande do Norte, a seguinte proposta de sua Comissão de Ensino: “Considerando que:

  1. a elevada prevalência das doenças infecciosas e parasitárias responde por dois terços da morbo-letalidade em nosso país;

  2. a aplicação prática profissionalizante dos conhecimentos adquiridos pelos alunos do Curso de Medicina nas Disciplinas básicas de Microbiologia, imunologia e Parasitologia, e na de Epidemiologia faz-se na Disciplina de Doenças infecciosas e Parasitárias;

  3. a ocorrência das doenças infecciosas, mas sobretudo das doenças parasitárias, que constituem as grandes endemias rurais do Brasil, faz-se prevalentemente nas populações sócio-economicamente mais pobres, constituindo-se em problema social e comunitário de alta prevalência;

  4. tirante a Propedêutica Médica, que é comum para todas as doenças da patologia médica, a aplicação dos conhecimentos diagnósticos de parasitologia, de micro-biologia, de imunologia e de epidemiologia assume aspectos peculiares na clínica das doenças infecciosas e parasitárias;

  5. são amplas as inter-relações entre as doenças infecciosas e parasitárias e a epidemiologia e profilaxia das doenças, estudadas nas disciplinas de Epidemiologia e Profilaxia Médicas ou similares;

  6. a matéria “doenças infecciosas e parasitárias” consta do currículo mínimo do Curso de Medicina estabelecido pelo Parecer 509/69 do Conselho Federal de Educação e, assim sendo, deve ser representada no currículo pleno do Curso de Medicina por, pelo menos, urna Disciplina profissionalizante individualizada;

  7. a experiência até aqui adquirida, após a implantação da Reforma Universitária, pelos docentes da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias, debatida no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, realizada em Campinas (Estado de São Paulo) em fevereiro de 1979, quando se discutiu amplamente o ensino das Doenças Infecciosas e Parasitárias a nível de graduação e pós-graduação, permite concluir que a localização da Disciplina nos Departamentos de Medicina Preventiva, Saúde Comunitária ou Medicina Social (ou qualquer que seja o nome que se lhes dê) é a desejável no presente estágio do País, já que o englobamento da Disciplina nos Departamentos de Clínica Médica e de Medicina Interna não é ideal ao seu pleno desenvolvimento, bem como a pulverização do seu ensino em várias outras Disciplinas não integradas entre si (Clínica Médica I, II, III, ... etc.) e não afeitas ao diagnóstico e manuseio de pacientes infecto-contagiosos;

  8. as experiências em Escolas Médicas em que a Disciplina deixou de ser individualizada foram catastróficas para o ensino médico;

  9. a tendência atual na organização do sistema de saúde e na integração dos diversos organismos prestadores de Assistência Médica preconiza a regionalização docente-assistencial com hierarquização dos cuidados progressivos em saúde, o que tem levado a uma crescente preocupação dos educadores médicos em incentivar os setores voltados para as ações básicas de saúde, vale dizer, aos cuidados em termos de doenças infecciosas e parasitárias e à atenção materno-infantil;

  10. a reforma curricular ora empreendida nas Universidades vem procurando adequar os currículos a esta nova realidade, enfatizando o ensino da Medicina Comunitária ou Preventiva com aproveitamento da rede de saúde existente e concentrando-se, sem descurar do ensino a nível hospitalar; nas atenções primárias a nível da comunidade, centros de saúde e unidades mistas, leva a educação médica a enfatizar a participação do estudante em ações de saúde no campo, em contato com a realidade nosológica prevalente, que sabemos ser de natureza infecciosa e parasitária;

  11. urge que as reformas curriculares que estão sendo empreendidas pelas Universidades estimulem a existência e a ampliação da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias, que, ao lado das Disciplinas voltadas para a atenção materno-infantil, constituem-se aquelas mais indicadas a promover a tão sonhada integração docente-assistencial com regionalização de serviços, tendo em vista que as atividades da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias se desenvolvem em três áreas distintas: hospitalar, laboratorial e de campo.

PROPÕE:

  1. a manutenção da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias como disciplina individualizada integrante dos Departamentos de Medicina Preventiva, Saúde Comunitária ou Medicina Social, pelas implicações de natureza sócio-econômica que ela encerra e pelas suas peculiares características de disciplina integradora das atividades docentes e discentes “intra” e “extra-muros”;

  2. a atividade do ensino da Disciplina naqueles cursos médicos nos quais ela não foi criada (burlando o Parecer 509/69 do Conselho Federal de Educação), ou naqueles em que ela foi extinta, inexplicavelmente;

  3. a ênfase no seu ensino em nossos Cursos Médicos, pelos motivos expostos nos “consideranda”, como Disciplina individualizada e não sob a forma de assuntos pulverizados, através do curso médico, em disciplinas outras;

  4. a reativação do ensino da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias naqueles cursos de Medicina em que ele foi desativado, como matéria constante que é do currículo mínimo do Curso de Medicina, no Parecer 509/69 do Conselho Federa) de Educação;

  5. a comunicação desta moção ao Ministério da Educação e Cultura, aos Diretores dos Cursos Médicos e à Associação Brasileira de Educação Médica.”

Em conclusão, parece por demais claro a importância do ensino das Doenças Infecciosas e Parasitárias no Brasil e a necessidade do seu destaque dentro do currículo médico. Urge que as Faculdades de Medicina e seus administradores de ensino reflitam sobre as ponderações apresentadas neste trabalho, que representam na realidade praticamente a unanimidade de pensamento e experiência daqueles que dedicaram a sua vida ao estudo dessas doenças no Brasil.

Referências Bibliográficas

  • (1)
    CHAGAS, C. & CHAGAS, E. - Manual de Doenças Tropicais e Infectuosas. Vol. I, Livraria Editora Freitas Bastos, 190p., 1935.
  • (2)
    COURA, J.R. - Relevância do Ensino da Medicina Preventiva na Formação do Profissional de Saúde - Rev. Soc. Bras. Med. Trop. 6:105-113, 1972.
  • (3)
    COMISSÃO DE ASSESSORAMENTO DO CURSO - Anteprojeto de Organização Curricular para o Curso Médico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Documento Mimeografado, 10p., 1979.
  • (4)
    LOBO, F.B. - O ensino da Medicina no Rio de Janeiro, 1964-1969. 5v.
  • (5)
    SEMINÁRIO REGIONAL DA ABEM, Maceió, 10-11 de agosto de 1979. In: Revista Brasileira de Educação Médica, 3:45-94, 1979.
  • (6)
    SCHWARTZMAN, S. - Formação da comunidade científica no Brasil. Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), Rio de Janeiro, 1979. 481p.
  • (7)
    SIQUEIRA, B.P. - Experiência curricular de formação de médicos. Uma análise do processo de desenvolvimento curricular da FMUFMG, 1979. 8p. 1979.
  • (8)
    SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA TROPICAL, Assembléia Geral, Natal, Rio Grande do Norte, 6/2/1980.
  • (9)
    STEPAN, N. - Gênese e Evolução da Ciência Brasileira. Rio de Janeiro, Arte Nova, 1979. 188p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1980
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