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Democratização das relações de trabalho na empresa

NOTAS E COMENTÁRIOS

Democratização das relações de trabalho na empresa

Graziela de Oliveira

Professora do Departamento de Economia da UFPB, e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Bielefeld, Alemanha

RESUMO

A democratização das relações de trabalho, objetivada pelos programas participativos de iniciativa empresarial, como o CCQ, o da Qualidade de Vida no Trabalho e outros, parte de uma perspectiva que limita a atuação do trabalhador.

Este limite é dado pelo fato de que todos os programas introduzidos pela gerência negam ao trabalhador uma participação na tomada de decisões na empresa.

Em contraste com os programas de iniciativa empresarial, os de iniciativa do trabalhador dão prova de que apenas através de sua participação em todos os níveis da organização do trabalho os trabalhadores têm oportunidade de adquirir visão global do processo de trabalho e, desta forma, introduzir verdadeira democracia na empresa.

Palavras-chave: Programas participativos, democracia na empresa, relações de trabalho.

ABSTRACT

The democratization of labor relations sought by management by means of partnership programs, like Quality Circles, Quality of Work Life and the like, sets limits to workers' partnership. The limitations are given by the fact that these programs, conceived by management, keep workers out of the decision areas of the firm.

Compared to these programs conceived by management, those thought of by the working people themselves show that only through their involvement at all levels of the work organization, do they have the opportunity to acquire a global view of the labor process and, henceforth, to introduce real democracy at the firm.

Key words: Participation programs, labor relations, democracy at the firm.

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INTRODUÇÃO

A preocupação básica com o desenvolvimento de C&T recai sobre os efeitos esperados no desenvolvimento da economia.

Partindo-se do suposto de que é o desenvolvimento econômico que serve de base para o bem estar da sociedade, tanto o governo quanto as empresas priorizam o investimento no desenvolvimento de métodos e processos de produção com o objetivo de aumentar a produtividade do trabalho e reduzir os custos de produção.

Contudo, a literatura tem mostrado que, muito embora estes objetivos possam ser atingidos, eles não repercutem necessariamente sobre a sociedade de modo a lhe provocar desenvolvimento social mais igualitário.

Quando as empresas optam pela introdução de novas técnicas de produção, aqueles que as aplicam e operam diretamente - os trabalhadores - na maior parte dos casos são impactados apenas por seus efeitos adversos, como o desemprego, a desqualificação, a redução salarial, as novas doenças do trabalho, entre outras conseqüências.

A literatura também demonstra, contudo, que as novas tecnologias (NT) de produção não exercem efeito unilateral sobre o trabalho e os trabalhadores. Elas também apresentam aspectos positivos, que poderiam ser dinamizados e aprofundados, como a aquisição de um novo conhecimento de trabalho e a redução da fadiga física, por exemplo.

A difusão dos aspectos positivos das NT para o trabalhador é uma hipótese que fica na dependência das políticas de recursos humanos e de mudanças técnicas da empresa e da política de C&T governamental. Tais políticas deveriam se orientar para o bem estar da sociedade e dos trabalhadores como meta e não como efeito fortuito do desenvolvimento econômico. Isto implicaria numa mudança no sentido de se colocar o social como fim em si mesmo das mudanças tecnológicas, através da democratização das políticas de C&T ao nível macrossocietal e de sua implementação dentro das empresas.

CARACTERÍSTICAS BÁSICAS DO TRABALHO NA EMPRESA

A sociedade capitalista engendrou o aprofundamento da divisão do trabalho, com a separação gradual mas decisiva entre trabalho manual e trabalho mental.

Frederick Taylor estudou a forma de sistematização desta separação, atribuindo à "gerência científica" a tarefa de pensar o trabalho, enquanto ao trabalhador passou a caber somente aquelas de operação mundial.

A separação rígida entre trabalho manual e trabalho mental, objetivada na divisão entre operação e gerência, embora contribua para o aumento da produtividade, através da especialização da tarefa e da economia de tempo da passagem de uma tarefa a outra (A. Smith), redundou no aumento da insatisfação do trabalhador com as condições de trabalho.

A irracionalidade da divisão hierárquica do trabalho entre gerência e operação tornouse manifesta através da reação operária que colocou em risco a produtividade e os custos de produção, por meio de greves, absenteísmo e sabotagem, entre outras formas de reação.

INTOCABILIDADE DO PODER DA GERÊNCIA

Para atenuar os conflitos de interesse entre a gerência e os trabalhadores, aquela tentou reorganizar o processo de trabalho através de mudanças periféricas, como os sistemas de rodízio, alargamento e enriquecimento da tarefa.

Essas mudanças deixaram intactas a rígida separação entre quem comanda e quem é comandado; apenas reduziram a monotonia do trabalho, na medida em que agruparam diversas tarefas num mesmo posto de trabalho.

A partir da última década, programas participativos de iniciativa empresarial, visando a dar ao trabalhador maior grau de satisfação com o trabalho, como o CCQ, passaram a ser difundidos.

Dos anos 50, quando surgiram, aos dias de hoje, todas as tentativas de reorganização do trabalho oriundas da iniciativa empresarial deixaram intocável o poder de decisão na empresa.

Aos trabalhadores são proporcionadas experiências de (re)organização do trabalho, que objetivam aumentar seu grau de satisfação com o trabalho, como subproduto das políticas de aumento da rentabilidade da empresa.

Com esses programas participativos, porém, a gerência não permite que surja um questionamento do seu poder de decisão na empresa.

No bojo da intocabilidade do poder de decisão na empresa, está a política de introdução de NT. A gerência toma decisões sobre NT tendo em vista, primeiramente, os objetivos econômicos de competitividade que incluem a qualidade do produto, o custo de produção e a maximização dos lucros. Num segundo momento, apenas, é que se busca uma adaptação dos recursos humanos da empresa àqueles objetivos previamente estabelecidos.

A adaptação dos recursos humanos (R.H.) é feita por meio de cursos de treinamento, palestras e sistemas participativos, assim como pelo deslocamento e demissão de trabalhadores.

O monopólio do poder de decisão na empresa por parte da gerência exclui a possibilidade de que, quando da introdução de NT, o trabalhador manifeste a sua visão de como ela deve ser implementada e sob que forma de organização do trabalho.

O princípio taylorista de que o trabalhador não precisa pensar, pois isto é tarefa da gerência, não aponta apenas para a falta de democracia no ambiente de trabalho. Ele é um limite à própria eficiência da empresa e ao desenvolvimento da força de trabalho física e intelectual do trabalhador.

Se ao trabalhador é interditado o acesso às informações fundamentais sobre a tecnologia de produção, ele fica incapacitado de interferir no processo num momento de emergência, o que é negativo para a eficiência da empresa.

EXTENSÃO DA PARTICIPAÇÃO À ESFERA DA DECISÃO

A necessidade de democratização das políticas da empresa é exortada pelos trabalhadores quando eles tentam, através de suas instituições, adquirir os direitos de informação e de voz sobre a política de NT da empresa.

A democratização das políticas da empresa quanto às relações trabalhistas pode e deve ser garantida por dispositivos legais, aliados à luta sindical, que prevejam o direito do trabalhador à informação sobre a política de pessoal da empresa, os planos de introdução de NT e seus possíveis efeitos sobre os trabalhadores.

O significado de democracia na empresa, para os trabalhadores, prevê que eles saibam o porquê e para quê das mudanças técnicas no trabalho: que eles participem da tomada de decisões quanto à organização do trabalho e ao uso de NT. A democracia, portanto, não se limita ao aumento do grau de satisfação dos trabalhadores com as condições de trabalho ditadas pela gerência ou à chance de dar sugestões de como melhorar as condições de trabalho, como ocorre nas reuniões de CCQ.

Democracia na empresa significa, para os trabalhadores, a garantia de que suas sugestões serão acatadas pela empresa, pois resultam de uma reivindicação dos que produzem aos que administram a riqueza da empresa, baseada na experiência e no conhecimento que os trabalhadores têm das condições de trabalho e de produção.

Democratizar os programas participativos na empresa significa, para os trabalhadores, que eles podem sugerir a pauta de discussão, trazer à tona problemas que eles percebem na empresa e, não, somente discutir os programas participativos de iniciativa empresarial.

CONDIÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

A organização de programas participativos de iniciativa dos trabalhadores tem por objetivo alcançar e manter a democracia na empresa.

É nesta perspectiva que os sindicatos de trabalhadores na Escandinávia decidiram por organizar estudos próprios sobre C&T. Desta forma, os trabalhadores ficam capacitados para adquirir conhecimentos sobre a tecnologia de produção e de organização que lhes permite discutir em nível de igualdade com a gerência e exercer, de fato, o direito de informação e de voz nas decisões que as empresas tomam sobre a introdução de NT no local de trabalho.

Apenas quando estão a par do desenvolvimento de C&T, a nível da economia nacional e internacional, e estão informados sobre os efeitos de NT sobre a classe trabalhadora, é que os trabalhadores podem questionar, a nível da empresa, o controle que a gerência exerce sobre suas condições de trabalho e de vida, ao tomar sozinha as decisões sobre NT na empresa.

Para tomarem a decisão de fazerem eles mesmos estudos sobre C&T e sobre os efeitos de NT sobre a classe trabalhadora, os trabalhadores escandinavos tiveram que perceber que a tecnologia não é neutra, que ela tem um caráter político, que se manifesta no domínio exclusivo que a gerência quer ter sobre o trabalho e os trabalhadores.

A partir deste conhecimento, os trabalhadores reivindicaram direitos que estão garantidos na legislação trabalhista. Na Escandinávia, os trabalhadores têm o direito de influenciar a mudança técnica ainda em sua fase de desenvolvimento, o que lhes foi garantido através de suas lutas sindicais.

Na Suécia, por exemplo, desde 1977 a lei garante aos trabalhadores o direito de co-determinação, o que foi conseguido através das lutas sindicais e, também, do apoio parlamentar.

O Ato de Co-determinação estabelece o dever do empregador de negociar e fornecer informações aos empregados e garante o veto sindical em certos casos.1 1 . MINISTRY of Labour (Arbetsmarknadsdepartementet), Stockholm, Jan. 1985. Os acordos coletivos de trabalho restringem o direito do empregador de decisão sobre a administração e alocação do trabalho.2 2 . Idem, ibidem.

Através do dever de negociação, os empregados podem influir nas decisões do empregador. Para ser capaz de exercer o direito de participar no processo de decisão na empresa, os empregados devem ser mantidos informados sobre as atividades do empregador.3 3 . Idem, ibidem.

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Na medida em que adquirem voz e voto nas decisões que a empresa toma sobre a organização do trabalho e sobre as NT, os trabalhadores garantem a realização da democracia na empresa. E a democracia que lhes proporciona adquirir e expandir conhecimentos de trabalho.

Na medida em que obtêm o direito ao retreinamento para poderem trabalhar com as NT, os trabalhadores garantem, em parte, seu local de trabalho, além de manterem qualificação compatível com as mudanças tecnológicas.

Portanto, esta é uma situação contrária àquela objetivada e conseguida pela organização taylorista do trabalho, que nega ao trabalhador a chance de aprofundar e expandir conhecimento sobre o trabalho.

O CASO DO BRASIL

No Brasil, as comissões de fábrica são uma forma que os trabalhadores encontraram para se contrapor, organizadamente, à onipotência da gerência nas decisões que afetam suas condições de trabalho.

Embora as comissões de fábrica não tenham direito à voz e voto sobre as decisões que a empresa toma a respeito das NT e da organização do trabalho, e legalmente as empresas não sejam obrigadas a fornecer informações aos trabalhadores sobre seus planos de investimento e de reorganização do trabalho, algumas comissões conseguiram melhorar o relacionamento com a gerência.

Uma comissão da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, conseguiu, por exemplo, celebrar um acordo com a empresa, no sentido de receber informações sobre medidas técnicas de impacto sobre o efetivo de trabalhadores.4 4 . BOLETIM do DIEESE, fev.1986, p. 43.

No Brasil, as tentativas sindicais de exercer certo controle sobre as NT e de co-participar nas decisões gerenciais sempre foram rechaçadas pela gerência, quando não pelo Estado.

Nos dispositivos da Lei de Informática de 03.10.1984, foi vetado, entre outros itens, a "constituição de comissões paritárias no nível da empresa, para analisar os projetos de automação dentro da ótica de preservação do emprego".5 5 . Idem, jul. 1986, p. 35.

Apesar da expansão de programas participativos de iniciativa empresarial nas empresas brasileiras, a gerência ainda entende que as decisões capitais sobre a organização do trabalho e sobre a forma de implantação de NT é uma prerrogativa sua. O trabalhador pode e deve "participar" na empresa, desde que entenda que a gerência tem o direito à última palavra.

As características da classe trabalhadora brasileira - baixo grau de escolaridade, acesso limitado às informações sobre o estado da C&T aplicada à produção e das lutas travadas pela classe trabalhadora a nível internacional - abadas ao fato de que as organizações da classe concentram as lutas e as reivindicações em questões necessárias porém imediatas, como as do emprego e salário, limitam a sua percepção de que uma verdadeira democratização das políticas de recursos humanos na empresa só será possível com a sua luta pelo direito de voz e voto nas decisões tomadas pela gerência.

Além de terem os direitos à democratização das relações de trabalho cerceados pela legislação, a própria classe trabalhadora se coloca limites ao desenvolvimento de um relacionamento menos hierárquico com a gerência.

Esses limites são o resultado de sua experiência de vida. Tendo sido educada para obedecer ordem e seguir regras, parte importante da classe trabalhadora não possui elementos de vivência que lhe possibilitem questionar a organização do trabalho na empresa. Muitos trabalhadores se julgam até privilegiados por terem um emprego, e não lhes ocorre sequer pensar na possibilidade de poder influenciar a forma de organização do trabalho.

Interrogado sobre a organização do trabalho na empresa, assim se expressou um trabalhador: "a atual forma é correta, não conheço outra, o supervisor é importante, senão vira bagunça, ninguém sabe qual a prioridade do trabalho".6 6 . OLIVEIRA, Graziela. A organização do trabalho na visão do trabalhador. Texto para discussão, nº 58, UFPB/CME, 1986.

E justamente a forma predominante de organização do trabalho que impede o trabalhador de formar uma visão conjunta do trabalho e, por isto, ele não sabe qual a tarefa prioritária na fábrica. A rígida divisão de competência e a desinformação sobre o conjunto do trabalho deixa o trabalhador com o sentimento de que ele não é capaz de controlar o trabalho, de que a presença do supervisor é indispensável para que o trabalho seja executado.

A visão limitada sobre os fundamentos político-econômicos do trabalho na empresa impede que o trabalhador se manifeste pela implantação de uma democracia na empresa. A ausência de democracia reitera a forma de divisão do trabalho que obstrui o desenvolvimento da potencialidade intelectual e leva muitos trabalhadores a afirmarem:

"A hierarquia é necessária, sem o engenheiro de produção, a gente não ia saber fazer nada; sem o supervisor vira bagunça... eu ia sair para fumar e passar um bocado de tempo, já que não havia ninguém para me vigiar". 7 7 . Idem, ibidem.

O fato do próprio trabalhador declarar que ele precisa de ser vigiado para poder trabalhar, e que ele nada sabe dá conta de sua insatisfação com o trabalho, ao mesmo tempo em que evidencia a aceitação de que o saber é monopólio dos engenheiros e gerentes.

Tendo em vista a realidade da classe trabalhadora brasileira, as comissões de fábrica, sindicatos e demais organizações dos trabalhadores têm diante de si uma tarefa complexa a desempenhar. Elas tanto precisam lutar para conquistar da gerência a implementação de políticas democráticas de RH e de NT, como ao mesmo tempo precisam mostrar à classe trabalhadora que ela não deve ser subalterna, mas que deve juntar esforços no sentido de adquirir conhecimentos do processo de trabalho. Só de posse de conhecimentos amplos e atualizados os trabalhadores poderão dividir com a gerência o controle e as decisões sobre o trabalho.

Diante do exposto, é de se esperar que uma mudança nas condições de vida da classe trabalhadora brasileira, que lhe facilite o acesso à educação e à cultura geral, é condição imprescindível para que ela não apenas possa desempenhar com eficiência as tarefas que lhe são ditadas pela gerência, mas venha a dividir com a gerência as decisões sobre a propriedade de mudanças na organização do trabalho e da introdução de NT.

Isto será possível se a democratização na empresa for entendida como um processo de aprendizagem, que permita ao trabalhador participar do controle e das decisões na empresa de acordo com a sua capacidade.

  • 4. BOLETIM do DIEESE, fev.1986, p. 43.
  • 6. OLIVEIRA, Graziela. A organização do trabalho na visão do trabalhador. Texto para discussão, nº 58, UFPB/CME, 1986.
  • 1
    . MINISTRY of Labour (Arbetsmarknadsdepartementet), Stockholm, Jan. 1985.
  • 2
    . Idem, ibidem.
  • 3
    . Idem, ibidem.
  • 4
    . BOLETIM do DIEESE, fev.1986, p. 43.
  • 5
    . Idem, jul. 1986, p. 35.
  • 6
    . OLIVEIRA, Graziela.
    A organização do trabalho na visão do trabalhador. Texto para discussão, nº 58, UFPB/CME, 1986.
  • 7
    . Idem, ibidem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1991
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