ARTIGOS
Ideologia e prática do planejamento durante o estado novo*
Octavio Ianni
Livre-docente pela Universidade de São Paulo e membro do CEBRAP - Centro de Análise e Planejamento
É muito provável que a técnica de planejamento, enquanto instrumento de política econômica estatal, tenha começado a ser incorporada pelo poder público, no Brasil, durante a segunda guerra mundial (1939-45). Ao menos, foi nessa época que a planificação passou a fazer parte do pensamento e da prática dos governantes, como técnica mais racional de organização das informações, análise de problemas, tomada de decisões e contrôle da execução de politicas econômico-financeiras. De fato, nesses anos discutiram-se (em âmbito governamental e empresarial, em têrmos técnico-científicos e políticos) a conveniência, os limites e os riscos da adoção dessa técnica. Analisaram-se, então, os argumentos relacionados com questões tais como as seguintes: a crescente interferência estatal nas decisões sôbre assuntos econ6micofinanceiros; a adoção e a elaboração da política econômica governamental planificada; o papel do poder público na criação de condições (financeiras, técnicas, jurídicas, etc.) para a expansão e a diversificação do setor privado da economia do país; as novas exigências econômicas da defesa nacional. Não se pense, todavia, que êsses problemas foram propostos de uma só vez e em nível teórico. Ao contrário, êles se colocaram de modo desordenado e em função de dilemas práticos.
A verdade é que medidas de tipo intervencionista já eram adotadas pelos governantes brasileiros nas décadas anteriores a 1930. Desde o princípio do século vinte, o poder público passara a adotar diretrizes cada vez mais elaboradas e tecnicamente mais .rigorosas para fazer face a problemas, tais como os seguintes: proteger ou estimular os setores econômicos já instalados da economia nacional; formalizar o mercado de fatôres da produção; e. também, controlar as relações sociais de produção. Nessa linha de atuação, foram postas em prática, com maior ou menor sucesso, as seguintes políticas governamentais: plano de recuperação econômico-financeira, do govêrno Campos Salles (1898- 1902), conduzido por seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho; plano de defesa e valorização do café, segundo os têrmos do Convênio de Taubaté (1906), formulado pelos governos dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo; vários planos de obras contra as sêcas, realizados principalmente pelos governos federais, desde o princípio do século vinte; legislação trabalhista, para disciplinar, controlar e reprimir as reivindicações econômicas, sociais' e políticas do nascente proletariado. Além dessas atividades, os governantes brasileiros solicitaram (ou aceitaram) as missões inglêsas chefiadas por Edwin Montagu (1923) e Otto E. Niemeyer (1931), as quais analisaram a situação econômico- financeira do Brasil e fizeram recomendações de política orçamentária, financeira e econômica. Em boa parte, tratava-se de salvaguardar os interêsses inglêses no comércio com o Brasil. Aliás, paralelamente às realizações do poder público brasileiro, já vinham sendo debatidos, também, o protecionismo alfandegário, para o nascente parque manufatureiro, e o intervencionismo estatal. Em outros têrmos, desde o comêço do século vinte debatiam-se e combatiam-se as políticas econômicas governamentais inspiradas ou influenciadas pela doutrina liberal. 1
Essa foi a experiência acumulada nas décadas anteriores à revolução de 1930. Não se pense, todavia, que as relações entre o estado e a economia alteraram-se de modo repentino e completo. Houve marchas e contramarchas, nos anos que se sucederam à revolução. Entretanto, a despeito das ambigüidades ideológicas e práticas de governantes, empresários e técnicos (responsáveis pela formulação, execução e contrôle da política econômica governamental), o poder público foi levado a participar de modo cada vez mais amplo e sistemático na economia do país. É o que transparece também nas constituições brasileiras de 1934 e 1937.
Note-se que as constituições de 1891 e 1926 eram bastante influenciadas pela doutrina liberal, tanto cem referência à noção de democracia representativa como quanto às relações entre o poder público e as atividades econômicas. Assim, por exemplo, a Constituição de 1891 estabelecia que "as minas pertencem aos proprietários do solo" (art. 72, § 17). Na Constituição de 1926, no entanto, já se introduz uma restrição. Continua válido o princípio de que as minas pertencem ao proprietário do solo, mas fica estabelecido que "as minas e jazidas minerais necessárias à segurança e defesa nacionais e as terras onde existirem não podem ser transferidas a estrangeiros" (art. 72, § 17). Na Constituição de 1934, por seu lado, adotaram-se explicitamente os princípios nacionalista e intervencionista, em contraposição à orientação liberal das constituições anteriores.
"O aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, bem como das águas e energia hidráulica, ainda que de propriedade privada, depende da autorização ou concessão federal, na forma da lei.
§ 1º As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros ou a emprêsas organizadas no Brasil, ressalvada ao proprietário preferência na exploração ou co-participação nos lucros. (...) § 4º A lei regulará a nacionalização progressiva das minas, jazidas minerais e quedas d'água ou outras fontes de energia hidráulicas, julgadas básicas ou essenciais à defesa economica ou militar do pais. (Constituição de 1934, art. 119).
A Constituição de 1937, por fim, outorgada pela ditadura institulda com o Estado Nôvo, sob Getúlio Vargas, manteve as mesmas diretrizes nacionalista e intervencionista. Foi, entretanto, mais expllcita, ao enunciar a possibilidade de atuação do poder público em qualquer esfera da economia.
"A intervenção do estado no domínio economico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatôres da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jôgo das competições individuais o pensamento dos interêsses da nação, representados pelo estado.
A intervenção no domínio economico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do contrôle, do estímulo ou da gestão direta." (Constituição de 1937, art. 135).
Como se depreende dêsse texto constitucional, em 1937 o estado estava sendo preparado para assumir funções economicas mais complexas e ativas. 2 Note-se a referência expllcita aos seguintes problemas: a possibilidade de gestão direta, por parte do poder público; as "razões de estado" impondo-se sobre os conflitos entre capital e trabalho, para defender os interêsses superiores da nação; e a necessidade de estabelecerem-se as normas adequadas ao funcionamento mais
eficiente do mercado de capital e fôrça de trabalho, isto é, os fatôres da produção. Essas foram, em boa parte, as razões que inspiraram a criação do Conselho da Economia Nacional, no âmbito da própria Constituíção de 1937. Isto é, o mesmo govêrno que conferira novas funções econômicas ao estado, criara um órgão destinado a cothêr dados, realizar estudos, emitir pareceres sôbre projetos de iniciativa governamental e apresentar recomendações para as políticas agrícola, industrial, comercial, de transportes, financeira, administrativa, trabalhista e educacional. Composto por representantes dos vários ramos da produção (empregadores e empregados), o Conselho da Economia Nacional tinha ainda como atribuição:
"Organizar, por iniciativa própria ou proposta do govêrno, inquérito sôbre as condições do trabalho, da agricultura, da indústria, do comércio, dos transportes e do crédito, com o fim de incrementar, coordenar e aperfeiçoar a produção nacional." (Art. 61).
A verdade é que o estado era levado a atuar sempre que surgiam as crises econômicas, financeiras e trabalhistas. À medida que se expandiam o setor terciário urbano e a Industrialização incipiente, aumentava a 'classe média, o proletariado e a burguesia industrial. Em conseqüência, surgiam novos interêsses eccnõrnlcos, sociais e políticos. Conforme se intensificava a divisão social do trabalho e diversificava-se a sociedade urbana, o estado era levado a defrontar-se com problemas e dilemas novos e, muitas vêzes, mais complexos.
Essas relações e correspondências entre as transformações da sociedade e do eetado (como componentes do mesmo sistema global) manifestavam-se de modo aberto nas situações de crise. E a segunda guerra mundial produziu uma crise particularmente profunda no conjunto do sistema econômico e político.
No nível do sistema econômico e financeiro, a guerra mundial de 1939-45 colocou o Brasil diante de problemas tais como os seguintes: a) caíram repentinamente as exportações de café, cacau, madeira, laranja, banana, etc., devido ao isolamento dos mercados externos mais importantes. Em conseqüência, cresceram desmedidamente os estoques e baixaram os preços; b) tornaram-se escassos os produtos importados, tais como carvão, gasolina, óleo combustlvel, máquinas, metais etc.; c) cresceu ràpidamente a demanda de material bélico ou importante para a mobilização militar; d) verificou-se uma onda inflacionária, com o agravamento da situação econômica e social dos assalariados urbanos, particularmente o proletariado. Essa inflação foi impulsionada pelo crescimento das despesas governamentais e pelo acúmulo de divisos provenientes das exportações de suprimentos de guerra para os Estados Unidos e a Inglaterra. Em regime de contrôle cambial (numa época em que a importação não compensava a exportação) o govêrno brasileiro era obrigado a transferir grandes quantidades de moeda nacional aos exportadores. Em conseqüência, crescia mais que proporcionalmente a demanda no mercado interno. 3
Esses foram alguns dos principais problemas diante dos quais os governantes e os grupos econômicos interessados precisaram agir com rapidez. A guerra mundial criara, também no Brasil, uma economia de guer· ra. A queda e transformação do comércio internacional geraram problemas econômicos, financeiros, tecnológicos, organizacionais, sociais e políticos, diante dos quais o estado foi levado a atuar de modo mais ou menos profundo, conforme o caso.
Esse foi o contexto em que se criou, em 1942, a Coordenação da Mobilização Econômica. Durante os anos da guerra, êsse órgão governamental teve (não só formalmente) o caráter de um verdadeiro superministério. Por seu intermédio, o govêrno coordenava assuntos econômicos, financeiros, tecnológicos e organizacionais da economia nacional, considerada como a economia de um pais em estado de guerra. Por isso a Coordenação absorveu boa parte das atribuições do Conselho Federal de Comércio exterior. Para têrmos uma idéia da amplitude das atribuições e prerrogativas do coordenador da Mobilização Econômica (uma espécie de superministro), vejamos o que se estabelecia no decreto-lei que instituiu o órgão.
"Ao coordenador da Mobilização Econômica, como delegado do presidente da República, competem, em geral, as atribuições de coordenação indispensável para: 1. orientar a mineração, a agricultura, a pecuária e a indústria em geral, no sentido de habilitá-las a produzir, com a máxima eficiência, os materiais e produtos mais necessários e urgentes; 2. controlar, através da Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil, a importação e a exportação de matérias-primas, produtos semimanufaturados e manufaturados, atentendo às conveniências e necessidades das fôrças armadas, do serviço público e do povo em geral; 3. coordenar os transportes no território nacional. e para o exterior; 4. planejar, dirigir e fiscalizar o racionamento de combustrveis e energia; 5. intervir no mercado do trabalho, determinando a utilização de mão-de-obra, no tempo e no lugar próprios; 6. investigar o custo, os preços e os lucros das mercadorias, materiais e serviços; 7. fixar os preços máximos, mrnimos e básicos, ou os limites de preço pelos quais as mercadorias ou materiais devem ser vendIdos ou os serviços devem ser cobrados; 8. proibir a compra, venda ou fornecimento em base diferente dos preços fixados; 9. determinar as condições de venda de mercadorias; 10. exigir dos produtores, fabricantes e demais negociantes e fornecedores de mercadorias as licenças que se fizerem necessárias; 11. fixar ou limitar a quantidade de qualquer mercadoria a ser vendida, fornecida ou distribuída ao consumo público, bem como dos serviços a serem prestados; 12. levantar e coordenar dados estatfsticosrelativos a preços, custos e estoques de mercadorias; 13. estudar e propor qualquer medida tendente a assegurar a defesa da economia da nação." 4
Em seguida, o coordenador, João Alberto Lins de Barros, tomou as medidas indispensáveis para que se concretizassem as finalidades e as funções da Coordenação da Mobilização Econômica. Assim, dentre os setores em que atuou êsse órgão, incluiu-se tanto a mobtlização de trabalhadores para os seringais da Amazônia como a fixação do salário mfnimo, para as diferentes regiões do país. 5 Dentre os órgãos criados pela Coordenação, cabe uma referência especial ao Setor da Produção Industrial (S. P.1.). Conforme se depreende dos têrmos com que se definiram as suas atribuições, tratava-se de um órgão destinado a planejar o funcionamento e a expansão do setor manufatureiro.
"Ao S.P.I. cabe: a) elaborar a planificação industrial do país, de modo a atender às suas necessidades militares e civis e possibilitar a sua colaboração no esforço de guerra dos oetses aliados; b) orientar, dirigir e controlar o programa de produção industrial do país, para isso determinando, quando necessário, a instalação, mobilização, transformação e adaptação de fábricas; c) estudar e fixar as prioridades na distribuição para a indústria de combustíveis, energia elétrica, matérias-primas, transportes e mão-de-obra; d) estudar e organizar a produção em série de produtos, e bem assim a sua slmplifloação e padronização quando forem julgadae necessárias; e) realizar pesquisas e estudos técnicos e ecônomicos que forem julgados necessários; f) promovera formação de técnicos especializados para a indústria; g) dar assistência técnica à indústria e realizar o contrôle de sua eficiência quando julgar necessário." 6
Como vemos, pouco a pouco a idéia e a prática da planificação são incorporadas à política econômica governamental. Isto é, pouco a pouco criaram-se novas oondições para a formação e o desenvolvimento de uma espécie de tecnoestrutura estatal no Brasil. 7 A verdade é que as mesmas crises e transformações que afetavam o sistema econômico-social e político (as quais puseram em evidência as limitações do subsistema capitalista brasileiro) criaram também as condições para a elaboração de novas, técnicas de ação. Aliás, o próprio debate adquiriu novos conteúdos. Passou-se inclusive a formular e discutir estratégias políticas em relação com os problemas do desênvolvimento econômico. Colocou-se na ordem do dia, por exemplo, o problema da democratização, em relação com a economia e o esfôrço de guerra. Ou seja, recolooou-se a problemática das relações entre o poder político e o poder econômico
Foi nessa sequência de acontecimentos e idéias que se propuseram as teses e os debates do I Congresso Brasileiro de Economia, realizado em 1943, no Rio de Janeiro. Nesse congresso, cuja presidência de honra coube ao ditador Getúlio Vargas, reuniram-se comerciantes, industriais, banqueiros, agricultores, economistas, funcionários do govêrno, professôres universitários e técnicos. 8 Conforme lembrou na ocasião o presidente efetivo do congresso, João Daudt d'Oliveira, todos deviam reconhecer que "a política e a economia são interdependentes". E acrescentou:
"Não é somente participando das honrosas posições de govêrno que os comerciantes, os industriais, os agricultores, edificam a riqueza da nação.
Êles verificam que por tôda a parte os postos de direção em grande escala lhes estão sendo confiados, por um conjunto de circunstâncias a que se curvam os governos bem inspirados.
O caráter social da função comercial acarretou uma nova situação para todo aquêle que de uma mesa de trabalho dirige fábricas, planeja operações agrícolas ou encabeça transações: tornou-o parte de uma grande ação política - a política econômica do seu país.
Aos governos cabe coordenar, de um plano superior, os elementos. dispersos dessa obra, e nisso está justificada a necessidade da participação dos representantes da produção em seus conselhos e gabinetes técnicos.
Será impossível, porém, qualquer intervenção construtiva no terreno econômico, na esfera de ação privada, se não houver um sentido comum dominando espiritualmente as atividades de cada chefe -de emprêsa. É imprescindível a existência Ele uma política econômica na consciência de todos, que represente a última decisão para os seus conflitos de interêsses, e também o maior dos Interêsses em meio às suas decisões.
A vantagem do pais está em que os fatos decorram dentro de uma certa harmonia relativa, onde os pequenos dissídios se acomodem continuamente, como se pequenas estruturas, sempre em formação, se acertassem dentro da grande estrutura nacional. Dessa constante acomodação surgirá um movimento de conjunto, cujo beneficio s,e poderá chamar de prosperidade coletiva, progresso nacional ou crescimento do nível econômico da vida." 9
A verdade é que empresários, governantes, economistas e técnicos estavam reunidos para fazer um balanço das condições e perspectivas da economia brasileira. Por um lado, tratava-se de estudar os dilemas criados com a própria economia de guerra. Ou melhor, tratava-se de aprimorar a consciência então posslvel dos limites e possibilidades evidenciados pelo drástico declínio e reorientação do comércio externo. Nesse sentido, Roberto Simonsen disse o seguinte, no mesmo congresso:
"A guerra veio pôr em destaque, de um lado, a interdependência econômica dos povos, e, de outro, a profunda diversidade da sua capacidade material de agir ou reagir, em função da relativa possança de seus aparelhamentos econômicos ( ... ). Hoje, a técnica, a ciência e a poUtica econômica já nos indicam os meios capazes de fixar os fatôres que nos conduzirão às. mais rápidas e apropriadas realizações, conducentes ao nlvel de grandeza que necessitamos atingir."
Por outro lado, tratava-se de delinear diretrizes para a política econômica das emprêsas e do govêrno. Os empresários, membros do govêrno, economistas e técnicos reunidos no congresso julgaram conveniente e necessário apelar ao poder público, para que êste se colocasse (de modo mais direto, amplo e ativo) no centro das decisões relativas à economia do país. Com êsse objetivo, formularam recomendações a propósito da economia brasileira em geral; bem como sôbre a indústria, agricultura. comércio, exportação, importação, finanças, câmbio, desequilíbrios regionais, salário, sindicalismo e bem-estar social. Quanto ao desenvolvimento industrial, por exemplo, as conclusões e recomendações dos congressistas foram claras. Assim, tendo em conta que os problemas e os desenvolvimentos da economia brasileira revelavam a necessidade e as vantagens de uma rápida e eficiente industrialização, recomendava- se:
"Que se intensifique, mediante uma definida política industrial, a industrialização do país, já iniciada sob tão favoráveis auspícios. (...) Que se sugira ao govêrno federal a conveniência de serem as indústrias básicas organizadas, na falta de iniciativas particulares, com a participação do estado, ou com o seu amparo. O estado, neste caso, participará da sua administração, ou tabelará os seus produtos, mediante fiscalização adequada, de modo que concilie o incentivo devido à produção com os interesses dos consumidores."
Êsse foi o contexto (aliás bastante desenvolvido pela situação de guerra) em que surgiram, mais agudas, as novas exigências de racionalização dos meios e técnicas de coleta de dados, sistematização, análise e decisão sôbre problemas de política econômica e administração. Em conseqüência, surgiu uma nova figura na esfera das organizações que se estavam elaborando, para fazer face às novas exigências da política econômica. Conforme análise realizada por Gabriel Cohn. sôbre a mesma problemática:
"A característica mais marcante dêsse período todo, ao lado do aumento geral de importância dos grupos sociais urbanos, é dada pela emergência de uma nova figura, que desempenharia papel de relêvo no esfôrço industrializante até o presente: o assessor
técnico
, tanto a serviço do govêrno quanto das entidadee privadas. Na realidade, a ação dêsses elementos se revelaria capaz de contrabalançar em boa medida o relativo fracasso das reformas do aparelho administrativo estatal encetadas na época."
Essas preocupações com a técnica e a prática do planejamento, enquanto elemento da política econômica governamental, acentuam- se ainda mais no ano seguinte (1944), quando se tornou mais clara a perspectiva de término da guerra mundial. Então, os governantes e empresários propuseram-se esclarecer os seguintes problemas de estratégia de desenvolvimento:
"Se a nossa evolução econômica já estabeleceu princípios fundamentais que devam orientar o desenvolvimento industrial e comerciai do Brasil no futuro. Se é possível organizar uma classificação, em ordem decrescente, das indústrias merecedoras de proteção, em vista de suas possibilidades de êxito e permanência perante a concorrência estrangeira."
Em face dessa problemática, isto é, das perspectivas e dilemas criados com a segunda guerra mundial e a mobilização econômica do Brasil, Roberto Simonsen considerou que o setor privado não estava preparado para fazer face às novas exigências de capital, tecnologia, know-how, capacidade de organização, liderança etc. Por isso, as novas perspectivas de desenvolvimento econômico e, em especial, industrial exigiam a formulação e utilização de novos instrumentos de ação, incluindo-se o planejamento e o pensamento técnico-cientifico.
"Impõe-se, assim, a planificação da economia brasileira em moldes capazes de proporcionar os meios adequados para satisfazer as necessidades - essenciais de nossas populações e prover o pais de uma estruturação econômica e social, forte e estável, fornecendo à nação os recursos indispensávets à sua segurança e à sua colocação em lugar condigno, na esfera internacional. A ciência e a técnica modernas fornecem seguros elementos para o delineamento dessa planificação. Haja vista o que se fêz na Rússia e na Turquia, quanto -ao seu desenvolvimento material; considerem-se as planificações levadas a efeito pelos Estados Unidos, pela Inglatera e por outros países em luta, para organizar as suas produções, dentro de um programa de guerra total. (...) O grau de intervencionismo do estado deveria ser estudado com as várias entidades de classe, para que dentro do preceito constitucional fôsse utilizada, ao máximo, a iniciativa privada e não se prejudicassem as atividades já em funcionamento no país, com a instalação de novas iniciativas concorrentes. Proporcionar-se-iam, ao mesmo tempo, os meios indispensáveis à renovação do aparelhamento existente."
Diante dessas sugestões, apresentadas no Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, em 1944, houve uma reação imediata, de tipo liberal. Eugênio Gudin, que liderou essa reação, defendeu a privatização da economia, a livre participação do capital estrangeiro e a neutralidade do poder público. Isto é, que o estado deveria apenas "estabelecer as regras do jôgo" e não interferir nas atividades econômicas. Nessa linha de raciocínio, propugnou a privatização da indústria siderúgica estatal.
"Uma vez reduzido o capital da Companhia Siderúrgica Nacional a cifras compatíveis com sua produtividade, deverlamos tratar de vender ao público as ações de propriedade do govêrno, permitindo ao capital estrangeiro uma participação de 30 a 40%."
Mas êsse debate a propósito das funções do estado na economia nacional não se encerra nem nessa época nem nesse nível. Continuará nos anos posteriores. A verdade é que estava em jôgo uma nova fase da economia brasileira. E aquêle debate simbolizava as novas forças políticas e econômicas em confronto no país. O término da guerra e a chamada redemocratização do país estavam incluindo novos problemas e novos grupos sociais no debate relativo às estratégias políticas de desenvolvimento. Além disso, as próprias tarefas práticas do poder público exigiam decisões imediatas e, às vezes, inovadoras. E a experiência já acumulada, no campo das relações entre o poder público e as atividades econômicas, demonstrara a conveniência de maior coordenação da política econômica governamental. Por isso, em 1945, os empresários, membros do govêrno, economistas e-técnicos, novamente reunidos em conferência sobre as condições e perspectivas da economia brasileira, reconhecem no planejamento uma técnica de aceleração do desenvolvimento econômico.
"É sua opinião que o Brasil, necessitando urgentemente de recuperar o tempo perdido para atingir a renda nacional necessária a permitir a seu povo um melhor nível de vida, procure acelerar a evolução de sua economia por meio de técnicas que lhe assegurem rápida expansão. Para isso reconhecem a necessidade de um planejamento econômico que visa a aumentar a produtividade e desenvolver as riquezas naturais."
Foram essas, em síntese, as origens da ideologia e da prática do planejamento governamental no Brasil. Foi uma combinação privilegiada de condições (economia de guerra, perspectivas de desenvolvimento industrial, problemas de defesa nacional, reestruturação do poder político e do estado, nova constelação de classes sociais) que transformou a linguagem e a técnica do planejamento em um componente dinâmico do sistema político-administrativo. Ou melhor, a linguagem e a técnica do planejamento foram incorporadas de forma desigual e fragmentária, segundo as possibilidades apresentadas pelo sistema político-administrativo e os interesses predominantes do setor privado da economia. Esta é a razão por que, ao mesmo tempo que se ensaiava a política econômica governamental planificada, se desenvolvia a controvérsia sôbre os limites da participação estatal na economia.
"No Brasil, a fraqueza e a instabilidade econômica nos levaram à adoção de uma série de planejamentos parciais e intervencionismos de estado, sempre reclamados pelos produtores em dificuldades e, quase sempre, mais tarde, por êstes mesmos condenados."
Referências bibliográficas
- 1 Quanto às relações entre o poder público e o sistema econômico, durante a segunda metade do século dezenove, merece destaque especial a política imigratória levada a efeito sob a orientação do govêrno central, em cooperação com cafeicultores e governos provinciais (e estaduais, depois da Proclamação da República). Consultar: Prado Júnior, Calo. História econômica do Brasil. 3Ş ed., São Paulo, Editôra Braslliense, 1953, cap. 19;
- Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. 7Ş ed., Companhia Editôra Nacional, 1967, quarta parte;
- Octavio lanni, Sérgio Buarque de Holanda, Teresa Schorer Petrone e Carlos H. Oberacher Jr., na obra organizada por Buarque de Holanda, Sérgio. O Brasil monárquico. v. 3, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967.Livro Segundo;
- esp. primeira parte.
- 3 Prado Júnior, Caio. Op. cit. especialmente páginas 305-319; Economia de guerra no Brasil (O que fêz a Coordenação da Mobilização Econômica). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 6 v., editados nos anos de 1946 a 1948;
- A missão Cook no Brasil. Relatório dirigido ao presidente dos Estados Unidos da América pela Missão Técnica Americana enviada ao Brasil, traduzido e editado pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1949;
- Harris, Seymour E. Problemas econômicos da América Latina. Tradução de Adolfo Alvarez Buyila, México, Fondo de Cultura Econômica, 1945. esp. p. 292-323.
- 12 Cohn, Gabriel. Problemas da industrialização no século XX. Brasil em perspectiva, citado, p. 317-353; citação da p. 336. A propósito da mesma problemática, consultar: Cohn. Gabriel. Petróleo e nacionalismo. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968.
- 13 Marcondes Filho, Alexandre. Indicação n. 9, 5 de abril de 1944, apresentada ao Conselho Nacional de Politica Industrial e Comercial, do Ministério do Trabalho, indústria e Comércio. Cf. Conselho Nacional de Politica industrial e Comercial. A planificação da economia nacional. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945. p. 9-10.
- 14 Simonsen, Roberto C. O planejamento da economia brasileira (Réplica ao Sr, Eugênio Gudin; na Comissão de Planejamento Econômico). São Paulo, edição do autor, jun. de 1945. p. 95 e 98.
- 15 Gudin, Eugênio. Rumos da política econômica. Rio de Janeiro, 1945. p. 56.
- Cf. citação de Simonsen, Roberto. Op. cit. p. 40. Quanto a esse debate, consultar também: Almeida Magalhães, João Paulo de. Controvérsia brasileira sobre o desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro, Edição de Desenvolvimento & Conjuntura, 1961; Hoffmann, Helga. Como planejar nosso desenvolvimento? Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1963.
- 16 Conferência das Classes Produtoras do Brasil. Carta econômica de Teresópolis. Teresópolis. Estado do Rio de Janeiro, 1-6 de maio de 1945. p. 3 e 4.