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Fatores infecciosos causadores de encefalopatias crônicas da infância

Fatores infecciosos causadores de encefalopatias crônicas da infância

Antonio B. Lefèvre

Professor de Neurologia Clínica Infantil na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

É grande ainda, apesar da abundante literatura acumulada, o desconhecimento quanto aos fatores pré-natais capazes de provocar distúrbios neurológicos. Critérios diversos têm sido usdos para estabelecer correlações determinantes.

O critério retrospectivo, que procura reconhecer fatores patogênicos no passado de um grupo selecionado de doentes, é sujeito às maiores críticas pois exclui, por princípio, todos os indivíduos normais que foram submetidos ao mesmo agente patogênico. Quando dizemos que em determinado grupo de crianças encefalopatas asiladas, uma percentagem X teve sífilis no passado, Y teve toxoplasmose, Z teve rubéola ou outra virose, estamos fazendo uma afirmação que pode ser verdadeira, mas não abrange o problema em toda a sua complexidade, pois continuamos sem saber por que motivo uma criança teve seu sistema nervoso atingido, enquanto outra, que foi submetida ao mesmo agente patogênico e na mesma época, não apresentou encefalopatia.

Por outro lado, o critério prospectivo, por maiores que sejam seus méritos, encontra também obstáculos intransponíveis. Dentro de 10 anos, quando o grande inquérito colaborativo prospectivo norte-americano36 estiver terminado, poderemos dizer que conhecemos a responsabilidade da toxoplasmose, diagnosticada na gestante, como fator determinante de encefalopatia no produto da gestação? Seguramente não pois não é possível deixar evoluir, sem tratamento, uma doença, para observar o que vai ocorrer no futuro. Da mesma forma este inquérito não fornecerá conhecimentos seguros sobre o futuro neurológico dos recém-nascidos que sofreram asfixia perinatal, pois certo número de recursos terapêuticos está sendo empregado para reduzir os efeitos da anóxia e de acidóse pós-asfíxica. Em que pesem estas limitações, o método de estudo prospectivo é o que tem a possibilidade de fornecer informações mais seguras. É bastante lembrar a quantidade de conhecimentos obtidos com o seguimento prospectivo das gestantes contaminadas por rubéola durante a grande epidemia norte-americana de 1964-65.

Os conhecimentos que dispomos sobre os fatores pré-natais causadores de encefalopatías infantis estão se acumulando em alguns campos isolados.

Focalisando o tema sob o ângulo visado neste relatório — fatores infecciosos pré-natais — podemos afirmar que as encefalopatías decorrentes da rubéola, da toxopalsmose, da varíola, do vírus da citomegalia e da sífilis são hoje bastante conhecidos em muitos de seus aspectos. A neuropediatria brasileira, com o trabalho de G. Machado de Almeida22, contribuiu decisivamente para o conhecimento de uma delas, a decorrente de infecção pelo vírus da varíola. Entretanto, o médico prático esbarra ainda com obstáculos para esclarecer a etiologia de muitas encefalopatías. Sirva de comprovação para esta afirmativa, o trabalho apresentado por Ivanainem 17 no 18.° Congresso Escandinávico de Neurologia, em 1967. Este autor procurou estudar a etiologia de 624 casos de encefalopatías infantis crônicas, chegando a conclusão que 255 delas estavam ligadas a fatores pré-natais. Apesar de terem sido autopsiadas 52 destas 255 pacientes, só foi possível apurar a etiologia em 37 casos, dos quais 20 decorriam de fatores tóxicos, 12 de fatores infecciosos, um de traumatismo físico, sendo 4 conseqüentes a mais de uma causa. Causados por agentes infecciosos foram encontrados 5 casos de sífilis, 3 de toxoplasmose, 2 de rubéola e 2 de infecções não determinadas.

Não é possível falar sobre fatores pré-natais sem recordar alguns aspectos relacionados com a gestação. É do conhecimento geral que a vida pré-natal é dividida em dois períodos, o embrionário e o fetal, embora Ballantyne, citado por Benda4, destaque a importância de um período intermediário, o néo-fetal, correspondente ao tempo decorrido entre a 7.ª e a 12.» semanas, responsável por grande número de malformações em virtude de modificações que ocorrem, neste momento, na circulação materno-fetal. Lembremos que, grosseiramente, pode-se considerar o periodo embrionário como morfogênico ou organogenético, ou seja, o período em que se forma a maior parte dos órgãos embora o crescimento do embrião seja tão pequeno que, no final da 8.ª semana, ainda mede apenas 25 mm. Se observarmos um embrião com esta dimensão, causa espanto a verificação de que êle tem sua superfície externa muito semelhante à que vai ter no final da vida fetal. Os dedos da mão e do pé já estão divididos, as orelhas e os olhos já assumiram, aproximadamente, sua situação definitiva. Não obstante, o desenvolvimento do sistema nervoso central ainda é extremamente incipiente, no que diverge muito, dos demais órgãos.

O embriologista, ao procurar descobrir a época em que um agente patogênico atuou, tem que levar em conta a "patologia do desenvolvimento". Sabe-se que o desenvolvimento pode ser interrompido em determinada etapa e que pode haver mesmo a destruição de estruturas já formadas. O que não pode ocorrer é a reversão a etapas já superadas. Estando os dedos do pé e da mão já separados entre a sétima e a oitava semana de vida embrionária, não é mais possível que um agente patogênico atuando neste momento produza, entre outras conseqüências, a sindactilia. O mesmo pode-se dizer para o hipertelorismo, a ciclopia, os defeitos na situação das orelhas, pois neste momento (8.ª semana) a topografia dos olhos e orelhas já é a definitiva. Esta lei do sincronismo é muito importante para que se conheça o momento em que o fator patogênico atuou sobre o embrião, pois, apesar de ser muito curto o período morfogênico, êle é de intensa atividade organogenética. Apenas para citar um exemplo, o embrião de 7 semanas, com 17 mm, ainda tem hipertelorismo, sindactilia e a abertura da orelha está situada abaixo da boca. Em uma semana apenas, com o crescimento de 8 mm, processa-se a separação dos dedos e a mudança de posição dos olhos e das orelhas. O conhecimento da embriogenese dos vários órgãos permitirá deduzir o momento, quase exato, em que o vírus da rubéola, por exemplo, exerceu sua atividade teratogênica.

O periodo final da vida pré-natal, o fetal, além de ser aquele em que se dá a maturação funcional dos órgãos, é caracterizado por intenso crescimento, pois se nos primeiros 2 meses o embrião atingiu apenas 25 mm, no final da gestação terá, em média, 50 cm. Neste período os órgãos que constituem o sistema nervoso se distinguem dos demais que têm o período morfogênico muito curto, de tal maneira que, no final do sexto mês, o cérebro ainda é muito indiferenciado e a fissuração está apenas começando a modificar a superfície lisa do manto cortical. A diferenciação do cérebro e da medula prossegue no feto por todo o período pré-natal, não estando ainda terminada no momento do nascimento. É por este motivo que as malformações dos outros órgãos são muito mais raras que as do sistema nervoso. Gilbert Mellin24, analisando a incidência de malformações nos casos de morte fetal (peso inferior a 500 g) e neo-natal (peso superior a 500 g) encontrou, em 204 casos, 46 malformações dentre as quais 18 correspondendo à morte fetal e 28 à neo-natal. Dentre as 18 mortes fetais foram anotadas 12 malformações do sistema nervoso: anencefalias (6), craniorraquisquises (3), craniosquise (1), hidrocefalia (1) e meningoencefalocele (1). Dentre os 28 casos de morte neo-natal havia 15 malformações do sistema nrvoso, a saber: raquisquises (3), anencefalias (2), hidrocefalias (2), meningomieloceles (2), craniosquise (1), craniorraquisquise (1), escoliose (1), disostose craniofacial (1), cranio-lacunar (1) e malformação de Klippel-Feil (1). Se aceitarmos, com Klemetti20, que 1 a 3% das crianças são reconhecidamente malformadas (e que este número aumenta quando são feitas necropsias), pode-se imaginar quão grande é o número de malformações do sistema nervoso.

A responsabilidade das infecções no período pré-natal como causadoras de malformações do sistema nervoso é reconhecida não apenas pelos estudos prospectivos, como também pode ser sugerida pela distribuição geográfica ou sazonal de algumas malformações. Assim é que Klemetti20 relaciona malformações com infecção, destacando o fato de que na Inglaterra foi verificado nítido aumento dos casos de anencefalia nas crianças nascidas no inverno. Por outro lado, Penrose mostrou a grande raridade da anencefalia nos países do leste.

A morte fetal tem sido relacionada com infecções, principalmente a vírus, o que é bastante lógico se atentarmos para a freqüência com que a morte fetal e malformações coesistem. Procurando verificar quais os vírus que têm maior ação letal sobre o feto, Siegel e col. 34, compararam prospectivamente um grupo de 826 mulheres que tiveram rubéola, sarampo, parotidite, varicela e hepatite durante a gravidez com um grupo controle de 826 gestantes sadias, verificando que a rubéola, a hepatite e a parotidite determinavam substancial aumento das mortes fetais, o mesmo não acontecendo com as demais viroses estudadas. A rubéola determina maior número de mortes quando a infecção ocorre no começo da gestação por acometimento direto, enquanto a hepatite atinge mais o feto no final da gestação. Interessante verificação foi a de que a parotidite determina a morte fetal, não por infecção direta, mas em virtude de alterações hormonais e placentárias, o que propõe um outro tipo de patogenia. Tal fato merece maior destaque se recordarmos que os trabalhos mais dignos de crédito afirmam que a parotidite durante a gestação não determina malformações.

Vamos procurar estudar os agentes infecciosos que podem atuar durante a gestação, destacando os mais importantes e que oferecem interesse prático, fazendo apenas referências sumárias àqueles cuja responsabilidade é pequena ou duvidosa. Para ordem da exposição vamos considerar as infecções por vírus, por toxoplasma, pela sífilis, pela doença de Chagas, por infecções bacterianas e micóticas.

Infecções por vírus

A responsabilidade do vírus da rubéola destaca-se consoante as vultosas referências bibliográficas. A generalidade dos autores salienta a improcedência das análises retrospectivas que trouxeram grande confusão também neste terreno. Em 1950 o Ministério da Saúde Pública na Inglaterra planejou importante investigação 18 destinada a estudar prospectivamente um grupo de 1681 mulheres que tiveram viroses em diversos períodos da gravidez, comparando com um grupo de controle de 5717 gestantes normais. As crianças sobreviventes foram examinadas com 1 a 2 anos de idade. A distribuição das viroses foi a seguinte: rubéola (578 casos); parotidite (501); varicela (298); influenza (168); sarampo (103); poliomielite (33). Em síntese o risco foi calculado para a rubéola, a mais importante das viroses no que diz respeito à capacidade teratogênica, de maneira a permitir um cálculo de "porcentagem", assim exposto: a rubéola materna incidindo no período de gestação, entre 0 a 12 semanas, determinou 5,0% de abortamentos e 4,5% de natimortos; entre as crianças que nasceram vivas, 6,9% faleceram antes dos 2 anos de idade, 13,0% sobreviveram com graves defeitos e 70% sobrevivem sem graves defeitos.

Ao fazer o estudo da embriopatia pelo vírus da rubéola veremos que a aceitação deste grupo rotulado como "sem graves defeitos" em crianças com 1 a 2 anos de idade é sujeito a críticas pois, não raro, o déficit mental se manifesta mais tarde e os distúrbios da audição nem sempre podem ser observados em crianças jovens sem exame apurado. Por outro lado, a existência destes 70% de crianças com potencial bastante favorável traz um sério problema para o clínico ante a indicação do aborto terapêutico nos casos de gestantes com rubéola.

O vírus do sarampo também foi considerado capaz de produzir defeitos congênitos pois, nos 103 casos de sarampo, foram encontrados 7,3% de produtos anormais comparado com 2,3% no grupo de controles. Foi também observado que o sarampo, incidindo nas 12 primeiras semanas de gestação, é mais danoso, embora possa produzir defeitos durante toda a gestação. A experiência colhida com os 33 casos de poliomielite demonstrou que esta virose é altamente responsável por abortos, natimortos e morte precoce mas não é responsável por malformações. A influenza também mostrou elevada capacidade de produzir a morte nos 2 primeiros anos de vida porém não aumentou o número de malformações de acordo com a pesquisa feita na Inglaterra; entretanto, alguns autores, citados por Jackson 18 afirmam haver um risco maior de anencefalia quando a gestante sofreu a "influenza asiática". A parotidite e a varicela durante a gestação mostraram-se livres de risco.

Vistos assim estes dados gerais sobre os riscos decorrentes das infecções por vírus durante a gestação, descreveremos as principais viroses em particular.

Rubéola — É de todas a mais estudada. Os dados colhidos na literatura são controvertidos em vista dos diversos critérios seguidos, bem como de provável variação das sequelas verificadas de uma para outra epidemia. Assim é que, nos 92 casos seguidos por Plotkin e col. 30, foram encontrados 42% de pacientes deficientes mentais enquanto que Manson e col. citados por Plotkin e col.30, encontraram apenas 10%. Deixemos desde já assinalado que é muito difícil tirar conclusão segura sobre a real incidência dos defeitos congênitos. Trabalhos comparativos de Forbes 14 mostraram que as cifras indicativas de incidência de defeitos congênitos variou, entre vários autores, de 15,9% até 59%.

A epidemia de rubéola de 1964-65 nos Estados Unidos da América do Norte deu margem a numerosos trabalhos prospectivos. O grupo da Johns Hopkins 27 observou a evolução de 1086 mulheres das quais 613 não tiveram contacto com rubéola durante a gestação, 434 tiveram contacto mas não tiveram sinais clínicos da doença e 39 apresentaram quadro clínico em vários períodos da gestação. Em seu conjunto este grupo de 39 casos não apenas teve um maior número de mortes e de recém-nascidos com peso inferior, como o número de malformações congênitas foi significativamente maior (25%) comparativamente aos dois outros grupos (2,5%). Estes 39 casos foram analisados separadamente16 conforme a rubéola tivesse ocorrido no 1.°, 2.° ou 3.° trimestre da gestação, sob os pontos de vista clínico e virulógico. O grupo do 1.° trimestre constava de 13 gestantes, 7 das quais tiveram filhos considerados normais na época do nascimento sendo que de um deles foi recolhido o vírus da garganta; nos casos das 6 crianças doentes foi recolhido o vírus da garganta e/ou placenta em 3. O grupo do 2.° trimestre constou de 19 casos dos quais 4 apresentaram malformações congênitas; de dois deles foi recolhido o vírus, um da garganta e um da placenta. O grupo do 3.° trimestre constou de 5 gestantes que tiveram filhos normais nos quais não foi colhido vírus. Nos 2 casos restantes a rubéola ocorreu no mês que antecedeu a concepção: é importante assinalar que uma das gestantes teve um aborto espontâneo e a outra um natimorto de 725 g depois de deslocamento prematuro de placenta. Apesar de serem pequenos estes grupos em que foram feitos estudos virulógicos, os resultados confirmaram um ponto de vista unânime no que diz respeito à maior responsabilidade da doença ocorrida no primeiro trimestre.

Os resultados obtidos com os trabalhos em que tem sido visado o isolamento do vírus já estão permitindo uma visão mais objetiva do problema. Schiff e col. 33 observaram um fato surpreendente: o vírus foi recolhido de 14% (43/300) das crianças nascidas de mulheres expostas a uma epidemia de rubéola durante o primeiro trimestre da gestação; 33 destas 43 crianças vírus-positivas não somente não tinham qualquer defeito congênito como também durante sua gestação não tinha havido qualquer evidência clínica de rubéola na gestante. Deduz-se daí que grande número de casos de rubéola congênita (no sentido laboratorial) pode passar despercebido, se a pesquisa do vírus se limitar às crianças nascidas com defeitos congênitos ou às que tenham tido história de rubéola materna. Apenas em 3 destes 43 casos havia uma história de rubéola materna durante o primeiro trimestre o que indica que mais de 90% da rubéola materna foi subclínica neste grupo. Por outro lado o material de Schiff e col. 33 (300 casos de Cincinatti e 35 de Dayton) demonstra que a rubéola subclínica é responsável por grande número de defeitos congênitos. Entre 16 crianças que tiveram defeitos congênitos foi recolhido o vírus de 9. O grande número de infecções subclínicas 3 está demonstrando que há necessidade de seguimento das gestantes com testes sorológicos 31. Outra verificação importante é que os recém-nascidos com rubéola congênita podem transmitir a doença para os que se encarregam dos seus cuidados. Embora o número de casos que recebeu gamaglobulina 33 seja pequeno, eles indicam que os estudos devem ser ampliados pois há indícios de que o medicamento dado na dose de 20 ml pode exercer proteção.

Qual o quadro clínico de rubéola congênita? Qual a incidência de distúrbios do sistema nervoso em comparação com os outros distúrbios que caracterizam o quadro clínico da rubéola congênita? Hardy e col.16 estudaram 33 crianças com rubéola congênita tendo isolado o vírus em 21. A importância deste trabalho é que foram comparadas as observações feitas no grupo virus-positivo e vírus-negativo. Apenas 6 dos pacientes vírus-positivos tinham peso superior a 2.600 g ao nascer, enquanto que o peso médio do grupo de vírus-negativo era 2.811 g Lesão cardíaca estava presente em 16/21 dos virus-positivo e em 1/12 dos vírus-negativo. Anormalidade ocular foi encontrada em 20 das 33 crianças, sem diferença significativa entre os dois grupos. Distúrbios da audição foram encontrados em 17/33 dos casos, também sem diferença notável. O deficiente crescimento pondero-estatural também foi encontrado em 17/33, sem diferenças entre os dois grupos. Anemia e trombocitopenia foram observados transitoriamente em 8/21 e 1/12. Distúrbios neurológicos foram observados em 7/21 e 1/12, sendo que um dos pacientes apresentou convulsões incontroláveis aos 3 meses de idade. Pleocitose e hiperproteinorraquia foram observados em 6 casos. Em 4 casos foi obtido o vírus no líquido cefalloraqueano. Microcefalia foi notada em 3 casos sendo que 2 pacientes apresentavam retardo psicomotor.

Em grupo de 376 casos, Cooper e col. 5, notaram os seguintes defeitos : em 252, distúrbios da audição; em 82, doenças cardíacas; em 58, catarata bilateral; em 50, catarata unilateral; em 12, glaucoma; em 147, retinopatias; em 170, retardo psicomotor; em 85, púrpura trombocitopênica. Em 46 casos foi observado típico quadro de paralisia cerebral. Depois de 4 anos de seguimento havia 70 normais e 85 mortos. Lesões ósseas muito semelhantes às da sífilis congênita, que desapareciam com cerca de 2 meses, foram observadas. A disacusia foi a mais freqüente e pode ser a única manifestação se a rubéola ocorre depois da 8.ª semana, constituindo déficit neuro-sensorial permanente, de severidade variável, podendo ser uni ou bilateral. Dentre 140 casos em que foi estudada, a função vestibular estava alterada em 48%.

Dentre as manifestações de tipo inflamatorio, podemos referir meningencefalite crônica, documentada mediante necropsias.

Desmond e col.9 estudaram detalhadamente os disturbios neurológicos mostrando que o sistema nervoso central pode ser envolvido de várias maneiras e em suas diversas estruturas. O vírus interfere no crescimento celular, produz meningites, encefalites, vasculites e retardos da mielinização. Em muitos casos acrescentam-se às malformações os efeitos da anóxia perinatal. Em 81/100 casos seguidos por Desmond e col. foram notados defeitos no sistema nervoso central: letargia, fontanelas abauladas, irritabilidade, distúrbios do sono, pleocitose e hiperproteinorraquia são observados precocemente; distúrbios do sono, irritabilidade e disfagia são mais freqüentes nos primeiros meses; com 18 meses a lista de perturbações é maior (hiperatividade, "falta de parada", convulsões, defeitos na postura, movimentos estereotipados, hipodesenvolvimento pondero-estadural). O desenvolvimento psicomotor é menor quando há diminuição do perímetro craniano, hipercitose, hiperproteinorraquia e convulsões. No diagnóstico de desenvolvimento de Gesell pioras foram assinaladas à medida que o tempo passava. Com 3 anos o déficit da fala era predominante, sendo atribuível à interferência da disacusia.

Plotkin e col.30, estudaram o prognóstico tardio da rubéola congênita observando um grupo de 109 crianças afetadas. Deram ênfase à pesquisa de vírus tardiamente e à titulagem de anticorpos, concluindo que um título superior a 1/4 no teste de neutralização em crianças maiores do que 6 meses é indicativo, em 94% dos casos, de infecção intrauterina. O vírus foi recolhido do cristalino de crianças até os 18 meses. Sintomas foram encontrados em cerca de metade dos casos: distúrbios oculares (catarata, glaucoma e coreorretinite) em 53%, doença cardíaca em 57%, surdez em 51% e deficiência mental em 42%. Microcefalia foi encontrada em 21% do total, o que representa 49% dos casos que apresentaram deficiência mental.

Recentemente tive oportunidade de atender duas crianças, com 7 e 9 meses de idade, com rubéola congênita cuja única sintomatologia era intensa disacusia registrada pela audiometria cortical; o interessante destes casos, além do registro precoce de disacusia, é que a mãe de um tinha tido a rubéola no segundo trimestre (como é comum nestes casos oligosintomáticos) enquanto que a outra tinha tido a rubéola no meio do segundo mês de gestação, época em que se instalam graves embriopatias polissintomáticas.

Curiosa observação no que diz respeito ao prognóstico tardio foi feita por Menser e col.25 revendo, depois de 25 anos, os primeiros 50 casos bem documentados na Austrália onde, em 1941, Norman Mc Alister Gregg, citado por Forbes 14, descreveu a síndrome da rubéola congênita. Em 48 casos havia hipoacusia o que, provavelmente, vem mostrar que este defeito é muito mais freqüente que o relatado nos trabalhos feitos com crianças pelos métodos tradicionais, nas quais a audição é dificilmente testável; defeitos oculares foram encontrados em 28 casos, deficiência pondero-estatural em 25, defeitos esqueléticos em 20, anormalidades cardio-vasculares em 14 e deficiência mental em 5 apenas, o que revela a diferença de critério com que este distúrbio tem sido avaliado. Estes 50 pacientes (ainda bastante jovens) tinham tido 8 fi- lhos dos quais 7 normais e um, por extraordinária coincidência, portador de rubéola congênita, permitindo ao autor uma série de cogitações sobre as hipóteses que poderiam explicar o fato de uma mulher que apresentava a síndrome de rubéola congênita ter uma filha com a mesma doença.

Ainda há bastante a se conhecer sobre a rubéola congênita. Os estudos prosseguem, já tendo sido conseguida a transmissão experimental em macacas grávidas29, o que abre campo para a pesquisa de vários fatores que podem interferir no desencadeamento do quadro, particularmente levando em conta os recentes progressos dos recursos laboratoriais 31> 23, que permitem o diagnóstico seguro sem a dispendiosa utilização dos métodos de cultura de vírus.

Citomegalia — A citomegalia, ou doença de inclusão citomegálica, é extremamente difundida em crianças. Em nosso meio Veronesi, citado por Faria 12, mostrou que 60% das crianças da cidade de São Paulo, aos 4 anos de idade, dão demonstração serológica de infecção prévia. Como há uma forma aguda da moléstia que acomete crianças nos 3 primeiros meses de vida, é necessário muito cuidado para firmar o diagnóstico das formas congênitas. Tal como na rubéola, é necessário recorrer aos trabalhos prospectivos para fazer um julgamento seguro sobre o vírus da doença citomegálica como agente causador de malformações congênitas.

A citomegalia, cujo nome deriva do aumento de volume das células invadidas pelo vírus, é encontrada nas glândulas salivares em 10% das necropsias de crianças 12, sendo que em 1% das necropsias é encontrada esta infecção generalizada a vários órgãos. Couvreur6 considera que a forma generalizada é encontrada em 1 a 2% das necropsias sendo que, em 32% dos natimortos, pode ser encontrado este tipo de infecção. A doença é freqüentemente sub-clínica no adulto e é demonstrada quando se pesquisa deliberadamente o vírus. Feldman13 examinou a urina de 185 mulheres grávidas, na primeira consulta em clínica obstétrica, encontrando o vírus em 6 delas. Estas gestantes foram seguidas tendo sido encontrado o vírus durante toda a gestação, no momento do parto e mesmo depois deste; nenhuma delas teve qualquer manifestação clínica da doença, tendo o vírus sido identificado pela primeira vez entre a 15.ª e a 26.ª semana. Dois dos filhos tinham também vírus e todos eram normais sob os pontos de vista clínico geral e neurológico. Estes dados vêm mostrar que a infecção é muito difundida e que, quando ela ocorre durante a gestação, deve ser bem analisada antes de considerar a indução de aborto terapêutico.

O quadro clínico da doença citomegálica congênita foi estudado por Mc Cracken23 que acompanhou longitudinalmente 20 casos, dos quais 2 duvidosamente congênitos pois havia a hipótese de terem recebido o vírus em transfusão de sangue feita no período neonatal. Este autor discute a epidemiologia da doença, apresentando cifras tão contraditórias que se conclui pela falta de trabalhos prospectivos com casuística suficientemente numerosa. A manifestação clínica mais freqüente é a hepatoesplenomegalia, encontrada em quase todos os casos, com icterícia não explicada pelas etiologias habituais. A sequela mais severa é a encefalite necrotisante. Os 15 sobreviventes do material clínico de Mc Cracken (5 morreram de infecções diversas) foram seguidos até os 5 a 9 anos de idade, sendo encontradas em 7, uma ou mais das seguintes manifestações neurológicas: microcefalia, calcificações cerebrais, retardo mental e problemas de comportamento. Aos 7-8 anos de idade 4 eram normais; os 4 restantes não puderam ser seguidos por tempo suficiente. O autor cita Hanshaw que encontrou comprometimento do sistema nervoso central em 34/42 casos de doença citomegálica. Os estudos clínicos-neurológicos de doença citomegálica mostram muitos aspectos comuns com a rubéola, toxoplasmose e sífilis, embora existam divergências quanto à freqüência dos achados. Assim é que, no material de Mc Cracken, havia apenas um caso com microcefalia e coreorretinite, tão freqüentes na toxoplasmose.

Herpes — Se bem que as manifestações dos herpes neonatal se façam presentes depois de um intervalo livre de 5 a 9 dias, segundo Couvreur6, as observações anátomo-patológicas de natimortos mostram que esta infecção pode ocorrer intra-útero indicando a transmissão transplacentária do vírus. Mais de metade dos casos clínicos nascem prematuramente. O diagnóstico se baseia em: 1) lesões cutâneas eritemato-escamosas sem o aspecto típico das vesículas herpéticas, freqüentemente com infecções secundária; 2) lesões mucosas (boca, narinas, olhos) graves, de tipo mutilantes; 3) icterícia e síndrome hemorrágica; 4) sinais neurológicos como convulsões, opistótono, hipotonia e distúrbios da deglutição. A evolução se faz para a morte na maioria dos casos. Os estudos anátomo-patológicos mostram, no sistema nervoso central, lesões de tipo necrótico sem reação inflamatória periférica, sendo encontradas células com inclusões intranucleares acidófilas bastante características. O diagnóstico pré-natal pode ser sugerido pela infecção herpética da gestante ou pela história de herpes recurrente. Há, entretanto, formas clínicas com quadro infeccioso inteiramente inespecífico.

Varíola — De grande importância em países subdesenvolvidos onde ainda ocorre como doença endêmica, a varíola é virose fetal sobre a qual a literatura é muito pobre e incompleta. Em São Paulo, G. Machado de Almeida 22, embora fazendo a ressalva de que não há trabalhos prospectivos que autorizem uma justa avaliação da responsabilidade do vírus da varíola como causador de malformações, descreveu 15 casos de graves encefalopatías. Todas as gestantes tiveram a infecção depois do 1.° trimestre, sendo maior a incidência no 7.° mês. Houve apenas um parto prematuro. Em 8 crianças doentes foram encontradas cicatrizes de varíola no tegumento externo, sendo que uma delas nasceu com lesão cutânea de caráter agudo. O quadro neurológico era o de hidrocefalia com acentuado retardo no desenvolvimento psicomotor. Em 3 casos havia coriorretinite, um tinha microftalmia tendo sido encontrada coriorretinite na necropsia. O exame de líquido cefalorraqueano mostrou hipercitose em dois casos, o que indicava persistência de processo inflamatório. Foi obtido líquido cefalorraqueano hemorrágico em 4 casos, o que foi atribuído a traumatism de parto. Em todos os casos com menos de 3 meses (6 ao todo) havia hiperproteinorraquia. Foi feita necropsia de dois casos: um permitiu o diagnóstico de encefalite pregressa, havendo hidrocefalia por bloqueio do aqueduto de Silvius, gliose subependimária e calcificações periventriculares; no outro caso também existiam alterações compatíveis como diagnóstico de encefalite pregressa e de provável oclusão do aqueduto de Silvius.

Outros vírus — Têm sido descritos6, raramente, quadros de encefalites fetais devidos a vírus da encefalite equina ocidental e da coriomeningite linfocitária. Não foram demonstrados casos de infecção transplacentária pelo vírus coxsackie B ou da encefalomiocardite. O trabalho prospectivo atraz referido feito na Inglaterra 1S mostrou que a gripe, embora capaz de aumentar consideravelmente o número de mortes fetais e interrupções da gestação, não aumenta o número de malformações. Delascio7 cita pesquisa na qual, ao contrário, foi asinalado "notório aumento de malformações" embora não sejam referidas para o lado do sistema nervoso central. O vírus do sarampo 18 seria capaz de produzir malformações mas o número de casos é pequeno e não permite conclusões seguras. A vacinação não produz aumento de malformações de acordo com autores citados por Delascio7, que fizeram observações por ocasião de vacinação em massa (5 milhões de pessoas) realizada em New York. Mac Arthur11 pensa de maneira diferente, admitindo que a vacinação contra a varíola, realizada no primeiro trimestre acarreta considerável efeito teratogênico. Assim é que, em 34 mulheres vacinadas neste período de gestação, foi observada a presença de malformações em 16 produtos enquanto que, em 169 mulheres vacinadas a partir do 4.° mês, fora observada anormalidade em apenas 4 crianças. Já referimos 19 que o vírus da parotidite não acarreta aumento do número de malformações.

O vírus da hepatite pode produzir infecções transplancentárias, determinando hepatites fetais responsáveis por icterícia neonatal. O seguimento6 de 91 gestantes afetadas durante os dois últimos trimestres da gestação mostrou 2 casos de malformação, 2 de morte intrauterina, 3 prematuros e 3 abortos. De enorme importância, embora esteja aguardando confirmações de outras procedências, é o trabalho de Stoller e Coliman35 realizado na Austrália. Estes autores estudando a incidência anual da síndrome de Down notaram picos periódicos correspondentes aos da hepatite infecciosa. Foram capazes, em 1957, de prever um pico de mongolismo que ocorreu nos anos de 1962 e 1963 com base na epidemiologia da hepatite, inclusive prevendo a distribuição dos casos nas zonas urbana e rural. Levantam a hipótese de serem os cromosomas do óvulo afetados na época da concepção ou mesmo antes.

Toxoplasmose

Trata-se de uma das parasitoses mais difundidadas sobre a qual já se acumulou enorme literatura tanto sob os aspectos clínicos como laboratoriais. Miller e col. 26 admitem que a incidência nos Estados Unidos da América é de 1 para 4.000 nascimentos, ao passo que o trabalho 36 colaborativo prospectivo norte-americano com base no acompanhamento de 40 mil gestantes não selecionadas encontrou incidência mais alta, ou seja, 1 criança afetada para 1.000 ou 2.000 nascidas. Talhamer37 pesquisando a etiologia de encefalopatias infantis crônicas verificou que, em 17% dos casos, os testes laboratoriais eram sugestivos de toxoplasmose congênita; este mesmo autor acredita que 6 crianças entre cada 1.000 nascidas na Áustria são afetadas pela toxoplasmose. Estas cifras, discordantes das norte-americanas, são tmbém discordantes das verificadas em outros países da Europa. Estes números devem ser interpretados com cautela pois a infecção é muito difundida e o diagnóstico não é de notificação compulsória.

O quadro clínico da toxoplasmose congênita é descrito como constituído pela triade sintomática — hidrocefalia, coreorretinite e calcificações intracranianas — embora sejam também encontradas microcefalias e outras alterações oculares. Embora se trate de doença congênita as manifestações clínicas podem aparecer tardiamente, com gravidade tão grande como aquela que se manifesta logo após o nascimento; daí a importância do diagnóstico precoce que permite uma possibilidade de tratamento antes que sequelas irreversíveis possam se instalar.

A toxoplasmose historicamente ligada ao Brasil, graças aos trabalhos pioneiros de Splendore e Magarino Torres, tem sido amplamente estudada em São Paulo por Delascio8 que publicou, em 1956, alentada monografia e, mais tarde, em colaboração com Veronese8a, realizou revisão do quadro clínico, salientando os elementos para o diagnóstico diferencial com a rubéola congênita.

A anatomo-patologia da toxoplasmose congênita tem sido bastante estudada e fornece dados para a interpretação dos quadros clínicos. O toxoplasma tem sido encontrado em qualquer tecido ou órgão, com acentuada predileção pelo sistema nervoso, donde a forma de encefalomielite difusa, freqüentemente encontrada na clínica. No tecido nervoso têm sido assinalados granulomas miliares, focos de necrose, áreas inflamatorias e zonas de calcificação. O caráter necrosante e não supurativo distingue a toxoplasmose da maioria das infecções que podem atingir o sistema nervoso central. A difusão das lesões deve-se à fácil disseminação hematogênica do parasita.

A freqüência da infecção pelo toxoplasma é grande; em São Paulo, Nussenzweig, citado por Delascio e Veronese8a, demonstrou 71% de reações positivas entre 370 doadores de sangue. Os casos de toxoplasmose são relativamente raros se comparados com as enormes cifras atingidas pela infecção. O trabalho prospectivo de Desmonts e col.10 trouxe importantes elementos para avaliação numérica, embora não tenha contribuído para o conhecimento da patogenia dos casos clínicos de toxoplasmose congênita. Foram examinadas, no início da gestação, 14.826 mulheres, sendo verificado que 12.404 (83,6%) tinham reações positivas, indicando que já haviam sofrido infecção; as demais (16,3%) expostas à infecção durante a gestação foram reexaminadas mais tarde. Foi possível acompanhar 813 gestantes desprovidas de anti-corpos no 3.° mês, sendo verificado que 57 delas vieram a sofrer infecção durante os 6 últimos meses da gestação. Destes 57 casos, 21 foram considerados duvidosos, por várias razões, restando 36 casos seguros de infecção durante a gestação. O seguimento destas gestantes mostrou vá- rios fatos importantes: 1) não foi notado caso algum de toxoplasmose clínica nas crianças nascidas de mães que sofreram a infecção antes da gestação, sendo assinalado um único caso com diagnóstico laboratorial aos 17 meses de idade, sem, entretanto, apresentar qualquer sinal clínico; 2) foram estudados os produtos de 24 mulheres que adquiriram a toxoplasmose durante a gestação (dois prematuros morreram logo após o nascimento sem que pudessem ser examinados anatomopatològicamente; 12 casos apresentaram anticorpos transmitidos que desapareceram com a idade de 6 a 7 meses; 10 crianças conservaram as reações positivas as quais evoluíram como nos casos de toxoplasmose congênita). Estas 22 crianças eram clinicamente normais com exceção apenas de uma que apresentou pequena lesão de coreorretinite em um dos olhos.

Este trabalho prospectivo veio confirmar alguns fatos já conhecidos e esclarecer outros. A alta incidência da infecção foi comprovada pela positividade das reações das gestantes no início da gravidez bem como pela verificação de que 8 em cada 1.000 gestantes, nas regiões da França compreendidas nesta pesquisa, são contaminadas pela toxoplasmose durante os 9 meses da gravidez. O acompanhamento destas mulheres demonstrou que a toxoplasmose durante a gestação, na grande maioria dos casos, é uma infecção subclínica que não determina danos no produto da gestação. A afirmação de Talhamer37 de que ela é a causa de 17% dos distúrbios cerebrais congênitos, tem grande importância para o conhecimento da etiologia das encefalopatías congênitas, embora nada informe sobre a percentagem de mães infectadas que irá ter filhos anormais. Esta pesquisa francesa põe mesmo em cheque as conclusões que se pode tirar de outro trabalho de Talhamer37 que propõe a profilaxia da toxoplasmose congênita, fazendo o tratamento das gestantes infectadas durante a gestação. No grupo de 24 mulheres francesas que sofreram esta infecção e não foram tratadas, excluindo-se os dois prematuros que morreram precocemente e não foram necropsiados, praticamente não foram encontrados sinais clínicos da toxoplasmose congênita.

Apesar destas dúvidas que restam para quem procura estudar a toxoplasmose congênita, esta doença representa, em nosso meio, uma causa importante de encefalopatías infantis. Estamos realizando a revisão de 221 casos de toxoplasmose congênita examinados entre 1962 e 1969. Esperamos com este trabalho esclarecer alguns aspectos do quadro clínico e da evolução da toxoplasmose congênita. Não podemos terminar esta exposição sem referir o original registro de Olavo Nery28 que relata a observação de duas irmãs, nascidas de gestações diferentes, ambas com indiscutível quadro clínico de toxoplasmose congênita; este mesmo autor cita outro registro semelhante, da patologista Aparecida Garcia que observou dois irmãos nascidos de partos sucessivos com diagnóstico de toxoplasmose congênita.

Sífilis

Até há poucos anos a infecção do feto pelo Treponema pallidum era considerada a causa mais importante das encefalopatías infantis. Não vai longe a época em que se sugeria, como diagnóstico diferencial entre as possíveis causas de uma encefalopatia crônica da criança, a prova terapêutica com medicamentos antiluéticos: se a criança reagisse bem ao tratamento a sífilis seria a etiologia, se reagisse mal dever-se-ia procurar outra causa. Convém lembrar que para ser firmado o diagnóstico da sífilis os clínicos de então não exigiam provas diretas de infecção. Era bastante que se encontrasse algum quadro "atribuível" à sífilis. Assim é que esta etiologia era considerada a mais importante para a surdez na criança, pois muitas vezes uma icterícia grave precedia a surdez. Esta icterícia grave, que hoje sabemos estar ligada, principalmente, à incompatibilidade sangüínea materno-fetal e à imaturidade hepática, era cnsiderada então "indicação segura" de sífilis congênita.

Relatório da Organização Mundial de Saúde, referido por Araujo Ramos 2, chama atenção para o fato de que em 76 países, sobre 105 analisados, houve recrudescência da sífilis após um declínio no período 1952-55. No Hospital das Clínicas da FMUSP a incidência da sífilis é relativamente pequena; no perodo de 1955 a 1960 foram registrados 51 casos de sífilis congênita dos quais 3 de neurolues; no período de janeiro de 1961 a janeiro de 1970 foram observados 86 casos de sífilis congênita, o que mantém, aproximadamente, a mesma média. A literatura40, entretanto, registra o perigo que decorre do "Laid ghost walks". Não nos parece interessante extender este relatório citando cifras de diversos países que mostram o cuidado com que os diagnósticos são compilados. Em nosso país não há qualquer possibilidade de levantar dados exatos sobre a incidência de uma doença não denunciada.

Devemos considerar dois tipos de sífilis congênita, a precoce em que as manifestações clínicas se apresentam logo após o nascimento e, a tardia, que se manifesta a partir do segundo ano de vida. A incidência das manifestações neurológicas da sífilis congênita varia muito em função das condições do atendimento de um país para outro. Jeans e Cooke, citados por Ford 15, encontraram, em 1930, reação de Wassermann positiva no líquido cefalorraqueano de 38% de crianças brancas com menos de 2 anos de idade nos quais havia evidências clínicas de neurolues. Naquelas com mais de 2 anos a reação de Wassermann no liquor era positiva apenas em 29% dos casos, porém 16% tinham sérias lesões do sistema nervoso. Em jovens com sífillis congênita o sistema nervoso é afetado em apenas 5% dos casos, sendo infrequente a neurolues assintomática. Estes mesmos autores afirmam nunca ter visto desenvolver a neurolues em pacientes que tivessem exame de líquido cefalorraqueano normal na primeira infância.

A sífilis congênita precoce se caracteriza por quadro exuberante com lesões cutâneo-mucosas e ósseas típicas e lesões de várias vísceras e do sistema nervoso. Importante verificação foi feita por Jeans e Cooke levando-os a afirmar que o comprometimento do sistema nervoso se manifesta em proporção inversa com o acometimento somático geral pois apenas 11,5% das crianças com neurolues ativa tem sintomas de sífilis ativa em outros órgãos.

O quadro neurológico da sífilis congênita precoce se caracteriza quase que exclusivamente por meningite, cujo diagnóstico é difícil de ser estabele- cido, pois faltam freqüentemente os sinais clínicos que levam a este diagnóstico nas crianças mais velhas e nos adultos. Segundo Araujo Ramos 2, excepcionalmente encontra-se abaulamento da fontanela e convulsões; Ford15, pelo contrário, cita a ocorrência freqüente de abaulamento da fontanela, rigidez de nuca e convulsões. O diagnóstico é, em geral, feito mediante exame do líquido cefalorraqueano, indicado em vista da sífilis materna. O prognóstico é bom quando a terapêutica é feita precocemente. Se o tratamento não é feito, ou é inadequado, o processo pode se tornar crônico sendo envolvidos vários nervos cranianos, inclusive o nervo óptico, instalando-se quadro de hipertensão intracraniana e, mesmo, lesões focais em conseqüência de arterites. A hidrocefalia congênita como conseqüência da sífilis é rara; quando ocorre é secundária ao processo inflamatório epêndimo-araenóideo, manifestando-se, em geral, depois do quarto mês.

A sífilis congênita tardia corresponde, em linhas gerais, à sífilis terciária do adulto, caracterizando-se por lesões gomosas ou parenquimatosas diversas, em geral conseqüentes à meningite. As lesões vasculares podem produzir hemiplegias, epilepsia e retardo psicomotor. Têm sido descritas, mais raramente, formas de tabes e paralisia geral. Quadros de meningomielite também fazem parte do extenso cortejo de sintomas desta grave infecção que pode atingir todo o sistema nervoso central por mais de uma forma de comprometimento. Ainda recentemente observamos, no Pronto Socorro do Hospital das Clínicas da FMUSP, o caso de uma criança de um ano de idade que apresentou subitamente um icto cerebral seguido de hemiplegia esquerda total e proporcionada; o exame do líquido cefalorraqueano mostrou discreta hipercitose e positividade das reações de Wassermann e Steinfeld; as reações sorológicas também resultaram positivas sendo, também, comprovada a sífilis materna. O caso evoluiu bem sob o ponto de vista clínico mas o paciente teve alta inalterado quanto à hemiplegia.

Doença de chagas

O acometimento do sistema nervoso central pelo Tripanozoma cruzi tem sido objeto de numerosos estudos por parte de pesquisadores brasileiros 1,21,38. Em relatório sobre os aspectos neurológicos da doença de chagas, Forjaz38 discute a possibilidade da infestação do sistema nervoso na vida pré-natal, citando vários autores, inclusive Chagas, que aceitaram esta hipótese para explicar certos casos crônicos cuja fase aguda não era identificada. Expõe Forjaz os argumentos bastante entusiastas daquelas que pretendiam filiar grande número de encefalopatías infantis à doença de Chagas adquirida em situação intrauterina, sendo que Austregésilo chegou mesmo a enumerar 5 tipos de formas neurológicas hoje incluídas dentro do quadro de sindrômico da paralisia cerebral. Forjaz discute criticamente os registros dos casos de encefalopatías infantis atribuíveis — sem documentação segura — a infecção intrauterina pelo tripanozoma, concluindo pela afirmação de que "torna-se, assim, extremamente difícil sair do campo fértil das simples suspeitas diagnosticas e penetrar no terreno sólido das demonstrações convincentes". Lem- bra principalmente o fato de que numerosos pesquisadores não têm conseguido demonstrar a presença do tripanozoma no sistema nervoso central de crianças encefalopatas congênitas crônicas, ao contrário daquilo que havia sido referido no passado. Não deixa de ser extranhável tal fato uma vez que o número de indivíduos afetados pela doença de Chagas ainda é muito grande em nosso país e que os meios de comprovação progrediram com o correr dos anos. Veronesi 39 cita um caso publicado por Jorg, na Argentina, de uma forma mortal de doença de Chagas observada em lactente com 17 dias.

Em nossa experiência clínica não temos um único caso de encefalopatia infantil atribuível ao T. Cruzi. O quadro clínico, pelo que se pode concluir pela revisão da literatura feita por For jaz 38 nada tem de peculiar: retardo psicomotor, epilepsia, paralisia espástica, quadros predominantemente extrapiramidais ou cerebelares têm sido observados.

Infecções bacterianas e micóticas

A infecção mais conhecida é a listeriose fetal devida à infecção septicêmica por um bacilo Gram-positivo, difundida por via transplacentária. Trata-se de um quadro extremamente grave com manifestações de meningence-falite, sendo o líquido cefalorraqueano muitas vezes hemorrágico, com hipercitose onde predominam mononucleares; o germe pode ser encontrado mediante cultura. O comprometimento multivisceral agrava consideravelmente a evolução. Um elemento clínico bastante sugestivo para levantar a suspeita diagnostica é a presença de granulomas faríngeos arredondados, salientes, amarelados. Não raro a infecção é adquirida no momento do parto. Quando o diagnóstico de listeriose é feito durante a gestação o tratamento com sulfamidas, eritromicina, e tetraciclinas tem sido realizado com sucesso, segundo Couvreur6. Há, entretanto, formas sub-clínicas na gestante que só se manifestam através da encefalopatia observada futuramente.

Existem outras infecções bacterianas por diversos germes que podem afetar o produto da concepção. Otites e meningites intrauterinas devidas a estreptococos hemolíticos, a estafilococos, a leptospiras e a meningococos podem produzir graves lesões do sistema nervoso central. Toda a septicemia fetal pode acarretar lesões neurológicas; mesmo que o agente bacteriano das septicemias da gestante não atravesse a placenta, as endotoxinas bacterianas são capazes de produzir lesões diversas como hemorragia, hidrocefalia e necroses do sistema nervoso, como foi demonstrado em estudos experimentais com embriões de galinhas. A imunidade é tanto mais baixa quanto mais cedo se der a infecção. A fraca taxa de gamaglobulina do sistema nervoso fetal explicaria a maior susceptibilidade do mesmo às infecções. Couvreur6 sugere que o tratamento de septicemia da gestante deva ser feito sempre com a associação de corticóides, com o que seriam menores as lesões do sistema nervoso fetal.

As fetopatias micóticas são extraordinariamente raras. Existe a possibilidade de histoplasmose e torulose pré-natais. Não temos qualquer expe- riência sobre este agente etiológico. O Professor Carlos da Silva Lacaz, em comunicação pessoal, nos informou desconhecer casos em que esteja demonstrada a etiologia micótica de malformações do sistema nervoso.

Clínica Neurológica — Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo — Caixa Postal 3461 — São Paulo, SP — Brasil.

Relatório apresentado ao IV Congresso Brasileiro de Neurologia (Porto Alegre, 5 a 9 de julho de 1970).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Set 1971
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