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Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana

Black people’s right to the city: from a racist sociospatial formation toward a lefebvrian utopia

Resumo

O direito à cidade se manifesta como forma superior de direitos na participação e apropriação dos espaços urbanos. No presente texto, argumentamos que a população negra, tanto homens como mulheres, enquanto indivíduos e coletividade com uma cidadania mutilada, manifesta desvantagens cumulativas que a impede de exercer uma cidadania plena e disputar a cidade. Tal situação não aparece como fatalismo, uma vez que a resistência do povo negro é amplamente discutida na literatura de movimentos sociais. O objetivo deste artigo é propor desdobramentos entre o direito à cidade de Henri Lefebvre e a questão racial. Para tanto, apresentamos tópicos em que tratamos de direito à cidade e utopia, raça e interseccionalidade no contexto brasileiro e racialização do direito à cidade no Brasil. Concluímos que considerar a dimensão de raça, e sua intersecção com classe e gênero, no direito à cidade é espacializar a questão racial, uma vez que contemplar uma cidade lida a partir do viés racial apresenta não apenas relevância do ponto de vista acadêmico, mas enquanto exercício de desvelamento de realidades opressoras e parte do próprio contraespaço que é o direito à cidade.

Palavras-chave:
Raça; Interseccionalidade; Direito à cidade; Formação socioespacial

Abstract

The right to the city manifests itself as a superior form of rights in the participation and appropriation of urban spaces. In the present text, we argue that the black population, as individuals and collectives with mutilated citizenship, manifests cumulative disadvantages that prevent them from exercising full citizenship and disputing the city. This situation does not appear as fatalism, since the resistance of black people is widely discussed in the literature of social movements. The objective of this article is to propose developments between Henri Lefebvre's right to the city and the racial issue. To this end, we present topics dealing with race and segregation, right to the city and utopia, and racialization of the right to the city. We conclude that to consider the dimension of race in the right to the city is to spatialize the racial issue, since to contemplate a city read from a racial perspective is not only relevant from an academic point of view, but also as an exercise in unveiling oppressive realities and as part of the very counter-space that is the right to the city.

Keywords:
Race; Intersectionality; Right to the City; Sociospatial Formation

Introdução

O direito à cidade representa uma demanda por uma urbe renovada, o qual tem estado presente como elemento de destaque de políticas públicas e diretrizes globais para cidades mais equânimes e justas (Harvey, 2014Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. ). O direito à cidade como uma forma superior de direitos (Lefebvre, 2001Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade (1a ed.). São Paulo: Centauro.) se dá a partir de seu entendimento de direito à participação, à obra, assim como a apropriação do espaço social (Purcell, 2003Purcell, M. (2003). Citizenship and the Right to the Global City: Reimagining the Capitalist World Order. International Journal of Urban and Regional Research, 27(3), 564-590. http://dx.doi.org/10.1111/1468-2427.00467.
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). Esse conceito, advindo da obra homônima de 1968 de Henri Lefebvre (Lefebvre, 2001Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade (1a ed.). São Paulo: Centauro.), demonstra severa crítica aos processos de urbanização da França a partir da década de 1960, marcadamente tecnocráticos e funcionalistas.

Harvey (2014)Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. nos indica que o ressurgimento do direito à cidade no novo milênio não parte necessariamente da leitura da obra de Lefebvre, mas de uma leitura do contexto social, político e econômico, com profundas injustiças sociais e espaciais, exercício semelhante àquele proposto por Lefebvre na França da década de 1960. Cabe destacar, todavia, que a obra do filósofo marxista francês representa uma potente lente teórica para se pensar processos de dominação nas cidades, assim como as resistências que se operam na vida cotidiana.

Conforme nos esclarece McCann (1999)McCann, E. J. (1999). Race, protest, and public space: contextualizing Lefebvre in the U. S. City. Antipode, 31(2), 163-184. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8330.00098.
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, teorias sociais como o direito à cidade de Lefebvre relacionam-se a circunstâncias materiais da vida cotidiana e devem ser transportadas de um contexto para outro com cuidado e sensibilidade. Em acordo com McCann (1999)McCann, E. J. (1999). Race, protest, and public space: contextualizing Lefebvre in the U. S. City. Antipode, 31(2), 163-184. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8330.00098.
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, consideramos que a formação socioespacial de Lefebvre deve considerar os espaços racializados das cidades brasileiras, levando em conta a interseccionalidade, nos feixes de opressão combinados de classe, raça e gênero (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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, 2015Crenshaw, K. (2015). Why intersectionality can’t wait. Washington DC: The Washington Post. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154&utm_
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). Isso não quer dizer que a obra de Lefebvre não possa contribuir com o desvelamento da realidade opressora presente nas urbes brasileiras, mas que estas apresentam elementos de constituição diversos, os quais são centrais para se entender como a dialética entre opressão e resistência se dá. Além disso, a obra lefebvriana considera o papel crítico do imaginário, das utopias e das representações para se entender a produção do espaço (McCann, 1999McCann, E. J. (1999). Race, protest, and public space: contextualizing Lefebvre in the U. S. City. Antipode, 31(2), 163-184. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8330.00098.
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).

No Brasil, entendemos que as identidades raciais, de gênero e de classe são fundamentais para se pensar o fazer cidade, na participação e apropriação que resumem o direito à cidade. Isso não significa negar as contribuições do materialismo histórico presentes na proposta de formação socioespacial de Henri Lefebvre, mas atualizá-la às especificidades da América Latina e do Brasil, conforme nos alerta McCann (1999)McCann, E. J. (1999). Race, protest, and public space: contextualizing Lefebvre in the U. S. City. Antipode, 31(2), 163-184. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8330.00098.
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, de modo que não apenas as estruturas de opressão de classe se manifestam em nossa sociedade, mas também de raça e gênero.

Cabe destacar que o materialismo histórico, sobre o qual se baseia o direito à cidade de Lefebvre e a interseccionalidade, não são necessariamente excludentes entre si (Táboas, 2021Táboas, I. D. M. Z. (2021). Apontamentos materialistas à interseccionalidade. Revista Estudos Feministas, 29(1), 1-10. http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176725.
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). O materialismo histórico, enquanto teoria política, sociológica e econômica elaborada por Marx e Engels, considerava a existência de um movimento histórico de lutas de classes, condicionada pela produção material de cada sociedade. Conforme indicado por Táboas (2021, pTáboas, I. D. M. Z. (2021). Apontamentos materialistas à interseccionalidade. Revista Estudos Feministas, 29(1), 1-10. http://dx.doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n176725.
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. 6), o entendimento de uma totalidade concreta das relações sociais, “[...] como processo social, dinâmico e contraditório, dialético e histórico”, contribui para o esclarecer as relações sociais que determinam o ser social: “[...] relações de classe social, de raça/etnia e de gênero/sexo”. Desse modo, as contradições existentes nas relações raciais, concomitantemente às de classe e gênero, são de elevada importância para a compreensão da produção do espaço urbano brasileiro, já que, como aponta Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. , cada sociedade, além de estabelecer seus meios de produção, também produz o seu espaço social.

Já a interseccionalidade pode ser entendida como uma sensibilidade analítica ao se pensar as identidades e como estas se relacionam com o poder. Ainda que inicialmente articulada em favor das mulheres negras, por Kimberlé Crenshaw, o apagamento interseccional ocorre em outros contextos, com variadas pessoas. Ainda que foquemos no presente artigo o sexismo e a opressão de classe estruturadas no racismo, outras opressões existem e também ocorrem nas cidades, dentre elas a transfobia e o capacitismo (Crenshaw, 2015Crenshaw, K. (2015). Why intersectionality can’t wait. Washington DC: The Washington Post. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154&utm_
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).

De acordo com Santos (2014a), aSantos, M. (2014a). Da totalidade ao lugar (1a ed., Vol. 3). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. urbanização brasileira, análoga àquela dos países do Terceiro Mundo, ocorreu de forma distinta da França, acentuando-se a partir da década de 1960 em um número considerável de grandes centros e um pequeno número de cidades de médio porte, ainda que tal situação tenha se modificado recentemente em um processo de desconcentração regional (IBGE, 2011Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2011). Censo Demográfico - 2010. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
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). Outro fator ainda mais marcante e central da urbanização brasileira é a segregação racial existente nas cidades, que também remonta à instauração do Brasil República, que objetivou se afastar daquela sociedade colonial ao priorizar cidades com valores modernizantes e republicanos.

O que aconteceu em todas as cidades símbolos da modernidade foi uma adesão ao processo de urbanização que não significou ruptura com o passado, uma vez que o mundo social continuou hierarquizado (Arrais, 2009Arrais, C. A. (2009). Belo Horizonte, a La Plata brasileira: entre a política e o urbanismo moderno. Revista UFG, 11(6), 63-76. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48232
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), em um novo regime que se propunha “[...] libertário, branco, fraternal, igualitário e, portanto, civilizado como a Europa” (Costa & Arguelhes, 2008, pCosta, A. C. S., & Arguelhes, D. O. (2008). A higienização social através do planejamento urbano de Belo Horizonte nos primeiros anos do século XX. Universitas Humanas, 5(1), 109-137. http://dx.doi.org/10.5102/univhum.v5i1.878.
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. 111). A população pobre, que no Brasil não coincidentemente se confunde com a população negra, não “combinava” com as novas cidades e com esse discurso se justificou o caráter elitista, segregacionista e utópico dessas que buscaram de todas as formas excluir do seu espaço urbano as camadas mais populares (Costa & Arguelhes, 2008Costa, A. C. S., & Arguelhes, D. O. (2008). A higienização social através do planejamento urbano de Belo Horizonte nos primeiros anos do século XX. Universitas Humanas, 5(1), 109-137. http://dx.doi.org/10.5102/univhum.v5i1.878.
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).

Desse modo, a raça e sua intersecção com classe e gênero revelam uma série de opressões e desvantagens estruturais para a população negra, afetando não só os homens, mas também mulheres negras. Crenshaw (2002, pCrenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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. 173) explica que analisar o racismo a partir da incorporação do gênero “[...] não apenas traz à tona a discriminação racial contra as mulheres, mas também permite um entendimento mais profundo das formas específicas pelas quais o gênero configura a discriminação também enfrentada pelos homens”. Ademais, para além de raça e gênero, existem outros eixos de subordinação, tais como o patriarcalismo, opressão de classe e outros sistemas discriminatórios, que ao se interseccionarem geram opressões (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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). Tais fatores levam ao questionamento de: quem são as pessoas negras enquanto sujeitos/cidadãos?

Na discussão de direito à cidade, a atuação de sujeitos democráticos com poder democrático em pleno exercício de sua cidadania é, para Harvey (2014)Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. , ponto central. Cabe considerar, no contexto social brasileiro, quem são os sujeitos democráticos e quem são os cidadãos. Santos (2014b, pSantos, M. (2014b). O espaço do cidadão (7a ed., Vol. 2). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.. 19) favorece a reflexão das particularidades do Brasil: “[...] quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que não o são? [...] E finalmente, os negros neste país são cidadãos?” (Santos, 1996/1997, pSantos, M. (1996/1997). As cidadanias mutiladas. In J. Lerner, Preconceito (1a ed.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado.. 133).

Para o geógrafo, a consagração da cidadania se dá no respeito ao indivíduo, em sua dignidade. Ela é um estado de espírito enraizado na cultura, mas também necessita ser inscrita no ordenamento político, jurídico e social, uma conquista a ser mantida e protegida, da própria ação estatal e do mercado. Tal estado de espírito, na sua manifestação na realidade concreta brasileira, é negada à população negra; a esse respeito, Santos (1996/1997)Santos, M. (1996/1997). As cidadanias mutiladas. In J. Lerner, Preconceito (1a ed.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. versa sobre cidadania mutilada. O autor afirma que no Brasil é possível identificarmos cidadania mutilada no trabalho, por conta das oportunidades de ingresso negadas; cidadania mutilada na remuneração, enquanto uns ganham muito mais do que outros; cidadania mutilada nas oportunidades de promoção; cidadania mutilada na localização dos homens em relação à moradia; ou até mesmo a cidadania mutilada na circulação, uma vez que esse direito de ir e vir muitas vezes é tolhido para uma parte significativa da população. A cidadania é também mutilada na educação, na saúde, nos novos direitos advindos da evolução técnica contemporânea, como o direito à imagem e ao livre exercício da individualidade. Ademais, não se pode esquecer os comportamentos da polícia e da justiça, que escolhem como tratar as pessoas em função do que elas parecem ser.

Dessa forma, ao levar em conta a existência de indivíduos com uma cidadania mutilada, é necessário um olhar interseccional para a cidade e a produção do espaço urbano, uma vez que não apenas os fatores econômicos determinam como se dará os usos e limitações de uso de determinado espaço social: para além da classe, raça e gênero passam a ser também dimensões centrais para se pensar a produção do espaço. A partir desses elementos, procuramos responder ao seguinte questionamento: como operar a interseccionalidade no direito à cidade contribui para o desvelamento de opressões? O objetivo deste artigo é propor desdobramentos entre o direito à cidade de Henri Lefebvre e as categorias racismo, sexismo e opressão de classe, indicando a relevância em se pensar uma cidade interseccional.

O artigo é organizado a partir da discussão teórica da questão racial e a perspectiva interseccional e do direito à cidade, seguidas das implicações da racialização e interseccionalidade ao direito à cidade. Em sequência, são apresentadas as considerações finais, enfocando uma breve agenda de pesquisas suscitada pela presente discussão.

Raça e o recorte interseccional no contexto brasileiro

Munanga (2004)Munanga, K. (2004). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra (5a ed.). Belo Horizonte: Autêntica. explica que raça é um conceito advindo da botânica e zoologia, que passou a ser usado, em 1684, para classificar a diversidade humana. Essa ciência estava a serviço dos colonizadores que buscavam legitimar sua superioridade em relação aos povos colonizados, naturalizando as diferenças de tratamentos entre brancos, negros e indígenas, como afirmam Teixeira et al. (2020)Teixeira, J. C., Oliveira, J. S., & Carrieri, A. P. (2020). Por que falar sobre raça nos Estudos Organizacionais no Brasil? Da discussão biológica à dimensão política. Perspectivas Contemporâneas, 15(1), 46-70. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revista2.grupointegrado.br/revista/index.php/perspectivascontemporaneas/article/view/2958#:~:text=Como%20contribui%C3%A7%C3%A3o%20aos%20Estudos%20Organizacionais,mitos%20sobre%20diversidade%20nas%20organiza%C3%A7%C3%B5es
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. De acordo com os autores, apesar do conceito de raça ser combatido em termos biológicos, observa-se que discursivamente esse conceito é usado (até os dias de hoje) para justificar segregação e desigualdade, ou seja, essa noção ideológica de raça ainda se propagada em seu sentido simbólico, colocando vários sujeitos em uma condição de marginalização social. É nesse cenário que Munanga (2004)Munanga, K. (2004). Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra (5a ed.). Belo Horizonte: Autêntica. afirma que a ideia vinculada ao conceito de raça, que dá suporte à hierarquização dos sujeitos, tem relação com a construção da categoria raça como uma categoria social de relações de poder, dominação e exclusão.

Com o advento da modernização e urbanização do país, o regime colonial que dava fôlego à escravização de pessoas negras não conseguiria sobreviver. Nesse contexto, em 1889, o Brasil foi transformado em República, mas o fim do trabalho escravizado não aconteceu de imediato; essa transição foi lenta, além de não significar uma superação da hierarquia racial, uma vez que, apesar de homens e mulheres negras terem deixado de serem escravizados, pelo menos legalmente, suas imagens e corpos continuavam sob o controle de um padrão de dominação pautado na raça (Quijano & Wallerstein, 1992Quijano, A., & Wallerstein, I. (1992). Americanity as a concept, or the Americas in the modern world. International Social Science Journal, 134, 549-557. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.javeriana.edu.co/blogs/syie/files/Quijano-and-Wallerstein-Americanity-as-a-Concept.pdf
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) e também em outros eixos de subordinação, como classe e gênero (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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).

Moura (2019, pMoura, C. (2019). A sociologia do negro brasileiro (2a ed.). São Paulo: Perspectiva. . 46) argumenta que “[...] como a estrutura da sociedade brasileira, na passagem do trabalho escravo para o livre, permaneceu basicamente a mesma, os mecanismos de dominação, inclusive ideológicos, foram mantidos e aperfeiçoados” e, para agravar a situação, os negros, agora livres, foram submetidos às leis que os impediam de estar oficialmente no mercado de trabalho. Segundo Prudente (1988), aPrudente, E. A. J. (1988). O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito, 83, 135-149. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119
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Lei nº 3.535, de 13 de maio de 1888, mais conhecida como Lei Áurea, aboliu a escravização dando ao negro brasileiro a condição de titular de direitos e obrigações. Entretanto, “[...] tal titularidade constitui mera formalidade, uma vez que não será recebido como trabalhador livre no mercado de trabalho. Prefere-se o imigrante” (Prudente, 1988, pPrudente, E. A. J. (1988). O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito, 83, 135-149. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119
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. 141).

Percebe-se que nessa nova ordem jurídica brasileira, mais do que deixados à própria sorte, foram implantadas ações práticas para que os negros e negras fossem mantidos à margem, como o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que em seu primeiro artigo dispunha: “[...] é inteiramente livre a entrada, por portões da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho [...] excetuados os indígenas da Ásia e da África” (Prudente, 1988, pPrudente, E. A. J. (1988). O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito, 83, 135-149. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67119
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. 141). Negar aos negros o direito ao trabalho remunerado, considerando que eles, nessa nova ordem social, só possuíam a sua força de trabalho para oferecer à sociedade, é também negar a eles outros direitos sociais fundamentais, tais como acesso à saúde e educação, por exemplo.

No pós-abolição, conforme destaca Borges (2019), oBorges, J. (2019). Encarceramento em massa (1a ed.). São Paulo: Pólen. negro posicionar-se como classe trabalhadora foi uma situação problemática, uma vez que, anteriormente, ele era mercadoria, a própria força de trabalho, e não um vendedor de força de trabalho: buscar direitos significaria ser considerado um sujeito de direitos, para um ser humano que teve negada sua própria humanidade, naquilo que Campos (2012)Campos, A. (2012). Do quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado” no Rio de Janeiro (5a ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. destaca: os negros estavam libertos, porém subalternos. Quando se termina a prática escravocrata, a intenção era ter trabalhadores aos quais era justo pagar pelo serviço prestado – trabalhadores humanos –, ou seja, brancos (Viana, 2019Viana, M. R. (2019). Decolonizando afetos: A presença do colonialismo na construção de afetos da população negra e a decolonialidade do ser. Textos Graduados, 5(1), 69-84. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://periodicos.unb.br/index.php/tg/article/view/22499
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). Ao se negar o trabalho, nega-se também as possíveis oportunidades de mobilidade social que os negros poderiam encontrar, além de que “[...] o acesso ao emprego e ao trabalho é condição primordial para a reprodução da vida, e sua exclusãoé também a primeira forma de negação desse direito básico da cidadania” (Carneiro, 2011, pCarneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (1a ed.). São Paulo: Selo Negro Edições. . 111). Por outro lado, essa dinâmica fica ainda mais perversa quando se recorre à interseccionalidade. De acordo com Crenshaw (1990)Crenshaw, K. (1990). Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43(6), 1241-1299. http://dx.doi.org/10.2307/1229039.
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, esse conceito é usado para se referir às várias maneiras pelas quais raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências de mulheres negras. A autora afirma ainda que, assim como a categoria raça, a de gênero também é construída socialmente, mas isso não significa que ela não tenha significado em nosso mundo, ou seja, tanto a categoria raça como a gênero carregam consigo um grande e contínuo projeto para pessoas subordinadas ao possuírem “[...] valores particulares que lhes são inerentes e a forma como esses valores promovem e criam hierarquias sociais” (Crenshaw, 1990, pCrenshaw, K. (1990). Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43(6), 1241-1299. http://dx.doi.org/10.2307/1229039.
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. 1297, tradução nossa).

Embora as mulheres brancas e os homens negros também sofram discriminação, muitas vezes suas experiências são tomadas como o único ponto de partida para todas as conversas sobre discriminação (Crenshaw, 2015Crenshaw, K. (2015). Why intersectionality can’t wait. Washington DC: The Washington Post. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154&utm_
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). Assim sendo, a discriminação interseccional coloca em primeiro plano as dimensões raciais ou de gênero, que são parte da estrutura, como fatores que contribuem para a produção da subordinação.

Ainda que o termo “interseccionalidade” tenha sido articulado em nome das mulheres negras e originalmente utilizado para descrever como raça e gênero podem se cruzar como formas de opressão, ele foi ampliado para abranger uma série de fatores sociais adicionais, tais como orientação sexual, nacionalidade, classe, deficiência e outros (Emba, 2015Emba, C. (2015). Intersectionality. Washington DC: The Washington Post. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/21/intersectionality-a-primer/
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). Nesse sentido, Crenshaw (2015)Crenshaw, K. (2015). Why intersectionality can’t wait. Washington DC: The Washington Post. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154&utm_
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reforça que a interseccionalidade tem sido a bandeira sob a qual muitas demandas de inclusão foram feitas, uma vez que ela é uma forma de pensar a identidade e sua relação com o poder (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002...
).

Diante do exposto, destacamos que apesar de a teoria interseccional discutir, sobretudo, a questão de raça, gênero e classe, Crenshaw (2015)Crenshaw, K. (2015). Why intersectionality can’t wait. Washington DC: The Washington Post. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154&utm_
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nos alerta que as rasuras interseccionais não são exclusivas das mulheres negras ao trazer à tona a invisibilidade de muitos outros grupos. Entretanto, para pensar raça e o recorte interseccional no contexto brasileiro, recorremos ao conceito em seu uso original para evidenciar como que, no Brasil, ser negra e mulher lhe garante os mais altos níveis de opressão (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano (1a ed.). Rio de Janeiro: Zahar. ).

Apesar de a questão racial recair sobre homens e mulheres negras, é importante ressaltar que “[...] a conjunção do racismo com o sexismo produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida [...]” (Carneiro, 2011, pCarneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (1a ed.). São Paulo: Selo Negro Edições. . 127). Ao falar de todas as dimensões da vida, a autora também se refere ao trabalho. Para as mulheres negras restam, de forma esmagadora, as ocupações de menor prestígio e remuneração, como o trabalho doméstico.

De acordo com Teixeira (2021)Teixeira, J. (2021). Trabalho doméstico (1a ed.). São Paulo: Editora Jandaíra., é preciso reconhecer que a história do trabalho doméstico está ligada à história escravocrata do Brasil e, consequentemente, aos efeitos do racismo estrutural, enquanto os homens negros estão em maior proporção no setor da construção civil. Nesses setores, a ausência de proteção social é maior, as jornadas são mais extensas e, no caso da construção civil, a rotatividade é elevada (Dieese, 2008Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese (2008). Os negros no mercado de trabalho da Região Metropolitana de Salvador. São Paulo: Dieese. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.dieese.org.br/analiseped/2008/2008pednegrosssa.pdf
https://www.dieese.org.br/analiseped/200...
). A subalternidade no mundo do trabalho impacta diretamente na diferença dos rendimentos entre homens e mulheres brancas e homens e mulheres negras (Dieese, 2019Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese (2019). A inserção da população negra no mercado de trabalho. São Paulo: Dieese. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.dieese.org.br/analiseped/2019/2019pednegrosbsb.html
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), ou seja, existem gaps salariais identificados a partir dos recortes de raça e gênero (Fonseca & Jorge, 2021Fonseca, E. S., & Jorge, M. A. (2021). A discriminação da mulher negra no mercado de trabalho: uma análise comparativa do rendimento no trabalho de Bahia versus Brasil, nos anos de 2001 e 2015. Em Ipea (Editor). Planejamento e Políticas Públicas (pp. 265-302). Brasília, DF: Ipea.). Além das discrepâncias salariais, as mulheres negras sofrem também com as elevadas taxas de desemprego (Dieese, 2019Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese (2019). A inserção da população negra no mercado de trabalho. São Paulo: Dieese. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.dieese.org.br/analiseped/2019/2019pednegrosbsb.html
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). Em relação aos indicadores de violência e encarceramento, os negros e negras também são os mais afetados (Ipea, 2020Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea (2020). Atlas da Violência 2020. Brasília: Ipea. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/24/atlas-da-violencia-2020
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/d...
).

Diante do exposto, dá-se o reconhecimento das negras e dos negros brasileiros como sujeitos com características específicas e desvantajosas em termos de inserção social no país e, portanto, desautorizam as ideias consagradas em nossa sociedade sobre a inexistência de um problema racial (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (1a ed.). São Paulo: Selo Negro Edições. ), confirmando o que Almeida (2020)Almeida, S. L. (2020). Racismo estrutural (1a ed.). São Paulo: Jandaíra. defende ao dizer que o racismo estrutural também deve ser pensado enquanto processo político, isto é, todo processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade é político. Seja político ou histórico, o que se tem são condições sociais próprias para identificar determinados grupos a partir da raça, o que propicia discriminações sistemáticas. O racismo estrutural, portanto, é definido como um racismo decorrente da própria estrutura social, na qual o racismo é regra e não exceção (Almeida, 2020Almeida, S. L. (2020). Racismo estrutural (1a ed.). São Paulo: Jandaíra.).

Direito à cidade

O objetivo deste tópico é apresentar as ideias centrais e conceitos-chave relacionados ao direito à cidade, inicialmente proposto por Henri Lefebvre, filósofo e sociólogo francês, em sua obra homônima de 1968 (Lefebvre, 2001Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade (1a ed.). São Paulo: Centauro.). Essa discussão não esgota de forma alguma a extensa produção do autor, mas direciona a leitura para aspectos centrais, amplamente discutidos na literatura. Inicialmente, cabe destacar que o direito à cidade, mesmo que resgatado nas discussões sobre urbanidade nas sociedades ocidentais nos anos recentes, como indicado por Harvey (2014)Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. , deve-se ter cuidado ao se transportar o arcabouço teórico de Lefebvre de um contexto para outro. Dessa forma, neste primeiro tópico é apresentado o pensamento lefebvriano a partir do próprio autor e de seus interlocutores, indicando sua importância e pioneirismo para entender as opressões vinculadas à produção do espaço urbano e como é produzida a resistência. Em seguida, é feita uma contextualização desse conceito na realidade urbana brasileira, item indispensável para se utilizar essa teoria no Brasil.

Dadas as opressões, segregações e violências presentes em um espaço abstrato, como se pode pensar uma mudança nas relações de poder no espaço social da cidade? Argumentamos aqui que o direito à cidade, como discutido por Lefebvre (2001)Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade (1a ed.). São Paulo: Centauro. e Harvey (2014)Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. , é uma possibilidade de saída; em sua disputa por uma urbe renovada, o direito à cidade relaciona-se a um contraespaço (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. ), ou seja, um espaço surgido das resistências, do resgate dos valores de uso na complexa interação cotidiana daqueles que habitam a cidade. Para compreender tal conceito, é necessário considerar que o espaço, não apenas material, mas também social e representacional, é produto e produtor de relações sociais nas cidades (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. ). Segundo o conceito original de Lefebvre (2001)Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade (1a ed.). São Paulo: Centauro.:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade (p. 134).

Purcell (2003)Purcell, M. (2003). Citizenship and the Right to the Global City: Reimagining the Capitalist World Order. International Journal of Urban and Regional Research, 27(3), 564-590. http://dx.doi.org/10.1111/1468-2427.00467.
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considera que o direito à cidade se ramifica em dois direitos: o direito à participação e o direito à apropriação. Este último trata-se não da posse privada, mas do “[...] uso completo do espaço urbano para suas vidas cotidianas”: viver, ter lazer, trabalhar, representar, caracterizar e ocupar o espaço urbano, de modo a maximizar o valor de uso deste. O direito à participação, por sua vez, retrata a possibilidade dos habitantes das cidades de tomarem um papel central na tomada de decisão que envolve a produção do espaço urbano, tanto sob o auspício do Estado (decisão política) quanto de capital (decisões de investimento) (Purcell, 2003Purcell, M. (2003). Citizenship and the Right to the Global City: Reimagining the Capitalist World Order. International Journal of Urban and Regional Research, 27(3), 564-590. http://dx.doi.org/10.1111/1468-2427.00467.
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). Dikec (2001)Dikec, M. (2001). Justice and the spatial imagination. Environment & Planning A, 33(10), 1785-1805. http://dx.doi.org/10.1068/a3467.
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esclarece que o direito à cidade implica participação não apenas na vida social urbana, mas ativa participação na vida política, gestão e administração da cidade.

Esse direito é visto como devir ou possibilidade de construção de cidades e cotidianos alternativos, diferentes da cidade neoliberal (que também é uma cidade racista), marcada por apagamentos, disrupções, segregação e especulação, ou seja, é um direito que ainda não existe, intrinsecamente ligado a mudanças qualitativas não apenas no substrato material, mas nas relações sociais, representações e disputas de poder. A utopia do direito à cidade, enquanto espaço diferencial, já existe enquanto símbolos e imaginário (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. ). Para Lefebvre (2001), oLefebvre, H. (2001). O direito à cidade (1a ed.). São Paulo: Centauro. utópico é real e está no coração da realidade urbana.

A retomada do direito à cidade e as discussões de espaço social fazem parte de um movimento amplo das Ciências Sociais. Frehse & O’Donnell (2019)Frehse, F., & O’Donnell, J. (2019). Quando espaços e tempos revelam cidades. Tempo Social, 31(1), 1-9. http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.153111.
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mostram que existe uma tendência atual da virada espacial: “[...] uma tendência internacional recente das Ciências Sociais sobre a cidade: o enfoque investigativo sobre a dimensão espacial das práticas sociais, que frequentemente tem adentrado os estudos urbanos internacionais sob o rótulo de spatial turn” (Frehse & O’Donnell, 2019, pFrehse, F., & O’Donnell, J. (2019). Quando espaços e tempos revelam cidades. Tempo Social, 31(1), 1-9. http://dx.doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.153111.
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. 2). Frehse (2013, pFrehse, F. (2013). O espaço na vida social: uma introdução. Estudos Avançados, 27(79), 69-74. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142013000300006.
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. 69) coloca que o “[...] interesse cognitivo pela dimensão espacial das relações e práticas sociais, com base no pressuposto de que o espaço nem se restringe a substrato físico da pesquisa empírica, nem é mera abstração metafórica da reflexão teórica”. O presente artigo se insere nesse contexto.

No Brasil, Sociologia, Geografia Urbana, Direito e Ciência Política têm bebido da fonte da spatial turn. No que diz respeito aos diálogos entre raça e direito à cidade, estão presentes em áreas do conhecimento em que a virada espacial se manifestou há mais tempo, como Geografia e Sociologia. Dentre esses estudos, destacam-se aqueles que relacionam espaço social e raça (Ferreira & Ratts, 2016Ferreira, D. C., & Ratts, A. (2016). Geografia da diferença: diferenciações socioespaciais e raciais. Revista GeoAmazônia, 4(7), 97-105. http://dx.doi.org/10.17551/2358-1778/geoamazonia.v4n7p97-105.
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; Nogueira, 2018Nogueira, A. M. R. (2018). A construção conceitual e espacial dos territórios negros no Brasil. Revija za Geografijo, 35(1), 204-218. http://dx.doi.org/10.51359/2238-6211.2018.234423.
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; Panta, 2020Panta, M. (2020). População negra e o direito à cidade: interfaces entre raça e espaço urbano no Brasil. Acervo, 33(1), 79-100. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1521
https://revista.an.gov.br/index.php/revi...
; Pereira, 2019Pereira, G. L. (2019). Direito à cidade e questões raciais. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.coletiva.org/direito-a-cidade-e-questoes-raciais
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), que tratam de racismo e direito à cidade em localidades específicas, como Salvador (Cruz & Santana-Filho, 2020Cruz, C. D. S., & Santana-Filho, D. M. (2020). Racismo e direito à cidade: uma análise sobre a Cidade de Salvador. Opará Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, 8(12), 1-15. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.revistas.uneb.br/index.php/opara/article/view/10749
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) e Londrina (Panta & Silva, 2020Panta, M., & Silva, M. N. (2020). Cidade, branqueamento e colonialidade: a construção dos matizes da identidade de Londrina e os impactos sobre a população negra. Crítica e Sociedade: Revista de Cultura Política, 10(1), 28-49. http://dx.doi.org/10.14393/RCS-v10n1-2020-57754.
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), assim como gênero, raça e cidade (Correia et al., 2018Correia, A., Coelho, C., & Salles, L. (2018). Cidade interseccional: o direito à cidade nas perspectivas de gênero e raça. São Paulo: Observatório das Metrópoles. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/o-direito-cidade-nas-perspectivas-de-genero-e-raca/
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; Raul, 2015Raul, J. M. (2015). Mulheres negras, movimentos sociais e direito à cidade: uma perspectiva para as políticas públicas. Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais, 22(6), 46-53. Recuperado em 31 de julho de 2022, de http://emetropolis.net/artigo/171?name=mulheres-negras-movimentos-sociais-e-direito-a-cidade-uma-perspectiva-para-as-politicas-publicas
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). Já no presente artigo propomos operar a interseccionalidade no direito à cidade a fim de espacializar a questão racial de gênero e de classe, uma vez que contemplar uma cidade lida a partir dessas dimensões contribui para o desvelamento de realidades opressoras e parte do próprio contraespaço que é o direito à cidade. Além disso, o presente artigo traz avanços no sentido que sistematiza a discussão de interseccionalidade e suas principais autoras, algo que nos textos anteriormente citados ainda não foi feito.

A racialização no direito à cidade: em direção à cidade interseccional

Aqui argumentamos que as relações raciais, em sua intersecção com gênero e classe, são fatores indispensáveis para se pensar a produção e reprodução das cidades. Conforme discutido por McCann (1999)McCann, E. J. (1999). Race, protest, and public space: contextualizing Lefebvre in the U. S. City. Antipode, 31(2), 163-184. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8330.00098.
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, é necessário contextualizar a teoria lefebvriana para a realidade analisada, guardados seus fatores históricos de desenvolvimento. No caso brasileiro, a apropriação dos espaços urbanos pela população negra é seriamente afetada, e essa situação se agrava ao pensarmos nas mulheres negras e pobres. Inicialmente, considerando que o espaço social é produtor e produto de relações sociais, nos parece que no caso brasileiro, as relações raciais e racistas e suas imbricações com outros eixos de opressões estão conectadas com o tecido social, em sua manifestação social, mas também em sua materialidade. O primeiro ponto que temos que nos atentar é a produção histórica de um espaço elitizado e segregado, fundado no racismo como elemento estruturante. Para analisar as formas pelas quais a dimensão racial se espacializa nos processos urbanos com a diferenciação socioespacial, é necessário entender como a dimensão racial se manifesta historicamente. Desse modo, Pereira (2019)Pereira, G. L. (2019). Direito à cidade e questões raciais. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.coletiva.org/direito-a-cidade-e-questoes-raciais
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assevera que:

A escravidão atlântica teve na vida urbana e semi-urbana [sic] seu lugar privilegiado de realização. Sociedades urbanas escravistas, como a do Brasil, foram forjadas a partir dos deslocamentos e trânsitos transatlânticos, calcado no refazimento de relações, arranjos sociais e espaciais, a partir de movimentos próprios, singulares, cujas vinculações identitárias e étnico-raciais nem sempre são óbvias ou estanques, mas que abarcam múltiplas dimensões do fazer cidade (s.p.).

No final do século XIX e começo do século XX, um projeto de nação foi posto pelo Estado brasileiro, baseado na ideologia do branqueamento: a título de progresso foi incentivada a vinda de milhares de europeus para o Brasil para branquear física e culturalmente a população do país (Panta, 2020Panta, M. (2020). População negra e o direito à cidade: interfaces entre raça e espaço urbano no Brasil. Acervo, 33(1), 79-100. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1521
https://revista.an.gov.br/index.php/revi...
; Panta & Silva, 2020Panta, M., & Silva, M. N. (2020). Cidade, branqueamento e colonialidade: a construção dos matizes da identidade de Londrina e os impactos sobre a população negra. Crítica e Sociedade: Revista de Cultura Política, 10(1), 28-49. http://dx.doi.org/10.14393/RCS-v10n1-2020-57754.
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); essa mestiçagem com os europeus, que serviriam de mão de obra na sociedade pós-abolicionista, garantiria a regeneração do povo brasileiro. Além disso, o negro, o qual construíra a riqueza do país e dela não tomou parte, foi considerado elemento central de atraso da sociedade brasileira, muitas vezes removido à força de áreas centrais que foram ocupadas por cidadãos mais equalizados à proposta de nação, ou seja, brancos (Rolnik, 1989Rolnik, R. (1989). Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em São Paulo e Rio de Janeiro. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2013/04/territc3b3rios-negros.pdf
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).

As cidades brasileiras possuem singularidades quanto à construção do urbano. Aquelas que foram planejadas apresentam características específicas que as tornam relevantes para pensar como o planejamento urbano, notadamente marcado pela europeização e pelo higienismo, constitui um ideário libertário e desenvolvimentista que promove o apagamento das diferenças e a subalternização de classes populares, em especial a população negra.

Nas cidades que passaram por renovações urbanísticas, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, a população pobre, que era em grande parte negra, foi excluída desse novo espaço em construção. Em Belo Horizonte, ocorreu um processo de silenciamento acerca da presença negra no fazer cidade no fim do século XIX e início do século XX, sendo que as narrativas sobre a construção da cidade privilegiam o imigrante europeu, principalmente o italiano, ocorrendo uma imposição de uma história oficial que relega ao negro um papel coadjuvante, quando é elemento central dessa história (Pereira, 2020, sPereira, J. A. (2020). A eloquência dos silêncios: racismo e produção de esquecimento sobre a população negra em narrativas das cidades. Revista da ABNP, 12(34), 439-462. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/1145
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.d.). No Rio de Janeiro, porém, buscou-se não excluir totalmente a presença das camadas populares. Mesmo de maneira conservadora, estimulou-se a participação da população mais carente no centro urbano, apesar de ela ter sido forçada a deixar o centro da cidade durante a reforma de Pereira Passos, em direção aos subúrbios e aos morros adjacentes. O então prefeito do Rio de Janeiro acreditava que era possível levar civilização ao subúrbio à medida que os populares frequentassem o centro, a trabalho ou a lazer, e levassem de volta ao seu local de moradia a civilidade, a ética urbana e a educação estética necessária, disseminando a “civilização” por toda a cidade. Já em São Paulo, cidade bem menos planejada do que Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o processo de urbanização se deu de maneira mais caótica, em virtude do progresso do comércio cafeeiro. Entretanto, tal dinâmica não impossibilitou o Poder Público de controlar a população mais carente, principalmente com medidas sanitaristas e de vigília (Passos, 2016Passos, D. A. (2016). Formação do espaço urbano da cidade de Belo Horizonte: um estudo de caso à luz de comparações com as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Mediações: Revista de Ciências Sociais, 21(2), 332-358. http://dx.doi.org/10.5433/2176-6665.2016v21n2p332.
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).

Percebe-se, portanto, que esse urbano não é para todos/as e, de fato, é profundamente segregado étnica e racialmente, à medida que o processo de construção de novas cidades envolveu um discurso de superação que buscava sobrepujar um passado retrógrado (escravocrata) e atrasado (colonial e senhorial).

Nesse ínterim, apenas o aspecto econômico, manifesto nas classes sociais, não é suficiente para expressar a desigualdade socioespacial (Nogueira, 2018Nogueira, A. M. R. (2018). A construção conceitual e espacial dos territórios negros no Brasil. Revija za Geografijo, 35(1), 204-218. http://dx.doi.org/10.51359/2238-6211.2018.234423.
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): naturalizando as desigualdades raciais e a forma como os mecanismos que as mantêm atuam na sociedade. Dessa maneira, faz-se necessário o debate que considera, para além da classe, a raça e o gênero como variáveis dessa desigualdade, considerando, como Milton Santos afirmou, que cada indivíduo “[...] vale pelo lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no território” (Nogueira, 2018, pNogueira, A. M. R. (2018). A construção conceitual e espacial dos territórios negros no Brasil. Revija za Geografijo, 35(1), 204-218. http://dx.doi.org/10.51359/2238-6211.2018.234423.
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. 205).

Nogueira (2018)Nogueira, A. M. R. (2018). A construção conceitual e espacial dos territórios negros no Brasil. Revija za Geografijo, 35(1), 204-218. http://dx.doi.org/10.51359/2238-6211.2018.234423.
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ainda reforça que apoiar a tese de que apenas classe é suficiente para explicar a desigualdade é ser permissivo com o racismo. O pensamento de que os problemas das pessoas negras no Brasil são mais vinculados à pobreza do que à racialização é bastante comum em virtude da falsa ideia de que o intenso processo de miscigenação vivido no país teve como resultado o surgimento de uma sociedade mais heterogênea e, por consequência, mais tolerante (Munanga, 2010Munanga, K. (2010). Teoria social e relações raciais no Brasil contemporâneo. Cadernos Penesb, 12, 169-203. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.mprj.mp.br/documents/20184/172682/teoria_social_relacoes_sociais_brasil_contemporaneo.pdf
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). Porém, não se pode desconsiderar que, no Brasil, a questão do preconceito e da discriminação está implicada na associação entre a raça e classe, sendo possível afirmar que no país a pobreza tem cor (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (1a ed.). São Paulo: Selo Negro Edições. ). Ademais, como Sansone (1996)Sansone, L. (1996). Nem somente preto ou negro: o sistema de classificação racial no Brasil que muda. Afro-Ásia, 18(2), 165-187. http://dx.doi.org/10.9771/aa.v0i18.20904.
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bem pontua, geralmente existe uma preferência somática pelo branco, mesmo entre os pobres.

Racismo, tal qual se manifesta em nossa sociedade, não é irracional, desvio de caráter ou simples fruto da ignorância. Ele é elemento estruturante da hierarquização dos corpos (Ferreira & Ratts, 2016Ferreira, D. C., & Ratts, A. (2016). Geografia da diferença: diferenciações socioespaciais e raciais. Revista GeoAmazônia, 4(7), 97-105. http://dx.doi.org/10.17551/2358-1778/geoamazonia.v4n7p97-105.
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) e do lugar a eles relegados, ou seja, espacializa as relações raciais. Conforme discutido por Santos (1996/1997), aSantos, M. (1996/1997). As cidadanias mutiladas. In J. Lerner, Preconceito (1a ed.). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado. corporeidade é um elemento tão significativo do racismo quanto a individualidade, ainda mais quando consideramos que os negros são indivíduos com a cidadania mutilada:

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade. [...] (Santos, 2000, p. 3 apud Ferreira & Ratts, 2016, pFerreira, D. C., & Ratts, A. (2016). Geografia da diferença: diferenciações socioespaciais e raciais. Revista GeoAmazônia, 4(7), 97-105. http://dx.doi.org/10.17551/2358-1778/geoamazonia.v4n7p97-105.
http://dx.doi.org/10.17551/2358-1778/geo...
. 99, grifo nosso).

Panta (2020, pPanta, M. (2020). População negra e o direito à cidade: interfaces entre raça e espaço urbano no Brasil. Acervo, 33(1), 79-100. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1521
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. 85) nos esclarece que “[...] a presença massiva de negros em territórios marginalizados de diversas cidades brasileiras [...] tem suscitado outros olhares e debates sobre o fenômeno, além de estimular construções teóricas ajustadas aos problemas que precisam ser enfrentados”. Consideramos que a marginalização e segregação dos negros podem estar relacionados ao processo de abstração do espaço visto em Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. . Como nos informa esse autor, o espaço abstrato é político, fundado na violência e na guerra; por ser instituído pelo Estado, ele também é institucional. O espaço abstrato (que é o espaço predominante no urbano) parece homogêneo, mas na verdade ele serve a forças hegemônicas que fazem uma tabula rasa de qualquer coisa que fique em seu caminho ou ameace sua atuação, que são justamente as diferenças: diferentes modos de agir, diferentes projetos e usos do espaço.

Entendemos que, no caso brasileiro, as violências pautadas em classe, raça e gênero se complementam, e não é apenas a cidade que é tratada como mercadoria, mas as próprias pessoas: pessoas de baixa renda, principalmente negras, acessam espaços urbanos elitizados, com inúmeros equipamentos públicos, opções de lazer e cultura apenas como mão de obra ou prestadores de serviços de baixa remuneração, ou seja, aos marginalizados é permitida a ida ao centro apenas para venderem sua força de trabalho, reificada como seus próprios corpos.

Panta (2020)Panta, M. (2020). População negra e o direito à cidade: interfaces entre raça e espaço urbano no Brasil. Acervo, 33(1), 79-100. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1521
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nos esclarece que a segregação é uma realidade atual e reforço da continuidade de uma urbanização marginalizante, na qual o grupo mais preterido é o negro. O espaço abstrato fundado na violência (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. ), no Brasil, também é um espaço racializado, produto e produtor de racismo, fato evidenciado nas políticas eugenistas dos séculos XIX e XX, assim como na segregação racial presente nas cidades brasileiras, ocorrendo a definição de lugares e não lugares para os negros (Panta, 2020Panta, M. (2020). População negra e o direito à cidade: interfaces entre raça e espaço urbano no Brasil. Acervo, 33(1), 79-100. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/1521
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). Cruz & Santana-Filho (2020, pCruz, C. D. S., & Santana-Filho, D. M. (2020). Racismo e direito à cidade: uma análise sobre a Cidade de Salvador. Opará Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, 8(12), 1-15. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.revistas.uneb.br/index.php/opara/article/view/10749
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. 11) evidenciam que os reflexos de uma cidade organizada a partir de uma lógica racista se manifesta claramente: “[...] precarização de espaços e vias públicas, favelização, ocupações em encostas, assim como a ausência de infraestruturas e serviços básicos nos locais que o povo negro foi compelido”. Percebe-se o esforço para aniquilamento do corpo negro, que se reflete em condições históricas de precarização do direito à cidade e a usurpação de toda sorte de direitos, por meio do racismo que estrutura a sociedade e, consequentemente, a cidade.

Mastrodi & Batista (2018, pMastrodi, J., & Batista, W. M. (2018). O dever de cidades includentes em favor das mulheres negras. Revista de Direito da Cidade, 10(2), 862-886. http://dx.doi.org/10.12957/rdc.2018.31664.
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. 865) relatam que a segregação urbana ocasiona diferenças nos modos de viver na cidade, “[...] em que o acesso aos equipamentos públicos, ao mercado de trabalho e ao lazer não é igual para todos, de maneira que retroalimenta as desigualdades nas cidades”. De todos os pontos de inferiorização a que a população negra está submetida, a vulnerabilidade das mulheres negras, especificamente, é evidente, porque elas sofrem duplamente em razão da raça e do gênero, já que estão incluídas em dois grupos marginalizados (Mastrodi & Batista, 2018Mastrodi, J., & Batista, W. M. (2018). O dever de cidades includentes em favor das mulheres negras. Revista de Direito da Cidade, 10(2), 862-886. http://dx.doi.org/10.12957/rdc.2018.31664.
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): duplamente inferiorizada por ser mulher em uma sociedade machista e ser negra em uma sociedade racista.

Para Correia et al. (2018, s.p.), as desigualdades nas cidades brasileiras são gritantes e “[...] as dimensões de gênero, raça, orientação sexual e geração atravessam a nossa vivência do espaço urbano, proporcionam experimentações diversas e podem somar camadas de opressão que se combinam e entrecruzam”. Desse modo, considerar raça, gênero e classe na cidade torna-se relevante e urgente para apreender a condição de segregação espacial dos sujeitos: “[...] para que sejam superadas todas as opressões que historicamente são apresentadas a luta pelo direito à cidade deve ser uma luta que contemple a diversidade de corpos, vivências e necessidades (Correia et al., 2018, sCorreia, A., Coelho, C., & Salles, L. (2018). Cidade interseccional: o direito à cidade nas perspectivas de gênero e raça. São Paulo: Observatório das Metrópoles. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/o-direito-cidade-nas-perspectivas-de-genero-e-raca/
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.p.).

Considerando raça, gênero, classe e uma abstração do espaço marcada por violência contra a população negra, quais as implicações para a busca do direito à cidade? A exposição da situação dos negros no Brasil não teve por objetivo um desvelamento que levasse a um fatalismo, de que nada pode ser feito diante de um quadro de violência e segregação. Para Lefebvre (1991)Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. , as imposições de um espaço abstrato levam a uma reação, marcada como um contraespaço, em um movimento de resistência ao espaço abstrato:

A busca por um “contra-espaço” [sic] supera a distinção supostamente rígida entre “reforma” e “revolução”. Qualquer proposta neste sentido, mesmo a mais aparentemente insignificante, abala o espaço existente aos seus alicerces, juntamente com estratégias e objetivos [...] (Lefebvre, 1991, pLefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. . 383, tradução nossa).

Dessa forma, o espaço contraditório ou o contraespaço, que pode ser vinculado à busca pelo direito à cidade, é um processo, situado entre a reforma e a revolução (Lefebvre, 1991Lefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. ). Esse processo tem por objetivo um espaço diferencial, um espaço utópico em que são valorizadas as diferenças, diferentes usos, projetos, modos de agir; aqui consideramos também individualidades, corporeidades distintas, que não comprometam a cidadania daqueles que são historicamente excluídos. Na realidade brasileira, não se pode pensar em direito à cidade e espaço diferencial sem pensar na promoção da igualdade racial e de gênero.

Ainda que tratando de um contexto diferente, David Harvey (2014)Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. destaca a importância do engajamento dos cidadãos para mudanças significativas na cidade: “[...] a implicação é que nós, individual e coletivamente, fazemos nossa cidade através de nossas ações diárias e de nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos” (Harvey, 2014, pHarvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. . 29).

Movimentos sociais negros e a atuação da sociedade civil organizada, seja na micro (comunidades, bairros etc.) ou macropolítica (espaços institucionalizados de participação) podem ser catalizadores da ação coletiva para a promoção da igualdade racial e do direito dos negros à cidade. Associações comunitárias, grupos religiosos, coletivos artísticos, conselhos gestores de políticas de promoção da igualdade racial são exemplos de espaços, institucionalizados ou não, que podem promover mudanças significativas na cidade, na defesa de direitos e denúncia de opressão e segregação. “No Brasil, o corpo negro ganha visibilidade social na tensão entre adaptar-se, revoltar-se ou superar o pensamento racista que o toma por erótico, exótico e violento. Essa superação se dá mediante a publicização da questão racial como um direito” (Gomes, 2019, pGomes, N. L. (2019). O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação (1a ed.) Petrópolis: Editora Vozes Limitadas. . 93).

O que anima esses coletivos é uma utopia ou um não lugar: o direito à cidade, enquanto imaginação, desejo e também engajamento, funda-se em um projeto utópico de urbanidade renovada. Para Lefebvre (1991), oLefebvre, H. (1991). The Production of Space (1a ed.). Oxford: Blackwell Publishing. utópico é real e está no coração da cidade. Nessa direção, Harvey (2014)Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (1a ed.) São Paulo: Martins Fontes. considera que, apesar da conotação negativa atual, planos utópicos e ideias de justiça são indispensáveis para motivação e ação; a cidade em si é um objeto de desejo utópico. A igualdade racial encontra-se nessa seara, é um projeto utópico, ainda inexistente na realidade brasileira, mas que tem sido buscada por meio de múltiplas práticas urbanas que transbordam possibilidades de participação e apropriação do espaço urbano.

Racializar o direito à cidade implica espacializar a questão racial, desvelando opressão, especulação e segregação que tanto afeta negros e negras, mas também as formas como se busca transformar o espaço urbano, de modo que a igualdade racial deixe de ser uma utopia e passe a ser parte integrante da materialidade e sociabilidade do espaço urbano. Afinal, “[...] se nosso mundo urbano foi imaginado e criado, ele pode ser reimaginado e recriado” (Harvey, 2013, pHarvey, D. (2013). A liberdade da cidade. Geousp Espaço e Tempo, 26, 9-17. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2179-0892.geousp.2009.74124.
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. 941).

Considerações finais

“Ciclista negro abordado por PMs com armas apontadas se sentiu constrangido em parque: ‘não precisavam ter me algemado’. [...] O jovem contou ainda que os PMs alegaram que o abordaram porque o local é frequentado por traficantes” (Oliveira, 2021, sOliveira, D. (2021). Ciclista negro abordado por PMs com armas apontadas se sentiu constrangido em parque: ‘não precisavam ter me algemado’. Goiás: G1. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/05/30/ciclista-negro-abordado-por-pms-com-armas-apontadas-se-sentiu-constrangido-em-parque-nao-precisavam-ter-me-algemado.ghtml
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.p.). O ocorrido de 28 de maio de 2021, narrado por Oliveira (2021)Oliveira, D. (2021). Ciclista negro abordado por PMs com armas apontadas se sentiu constrangido em parque: ‘não precisavam ter me algemado’. Goiás: G1. Recuperado em 31 de julho de 2022, de https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/05/30/ciclista-negro-abordado-por-pms-com-armas-apontadas-se-sentiu-constrangido-em-parque-nao-precisavam-ter-me-algemado.ghtml
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, demonstra claramente a violência e violação de direitos a qual os negros estão sujeitos. Cabe destacar que, mais de um século atrás, o Código Penal dos Estados do Brazil (Brasil, 1890Brasil. (1890). Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Recuperado em 31 de julho de 2022, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm
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), em seu capítulo XIII, tratava dos “vadios e capoeiras”, decretando prisão de dois a seis meses para aqueles que “andassem em correria”, “provocassem tumultos e desordens” ou “incutissem temor de algum mal” (Decreto nº 847, de 1890).

Ainda que tenha sido revogado, o crime de vadiagem, feito para controlar o uso dos espaços públicos pela população negra, percebemos que essa prática ainda continua incutida na conduta de agentes do Estado. Tal fato demonstra que construções históricas, como a criminalização dos negros e, como exposto nos tópicos anteriores, o branqueamento da população persistem enquanto representações no espaço urbano marcadamente racista e na institucionalização da violência contra negros e negras, o que também se relaciona às categorias de classe e gênero, já que consideramos que a pobreza tem cor e que feixes de opressão de raça e gênero se combinam no caso das mulheres negras. O diálogo aqui proposto entre direito à cidade e raça, em suas interseções com gênero e classe, leva-nos a concluir que a virada espacial muito se beneficiaria se dialogasse com as dimensões de raça, gênero e classe, como já ocorre de maneira vestigial na Geografia Urbana e Sociologia, uma vez que essas dimensões, em suas espacialidades, demonstram a própria história da construção, segregação e exclusão das cidades brasileiras. Não podemos desconsiderar que a escravidão no Brasil durou mais de três séculos, de modo que essa mácula afeta profundamente as relações sociais e o modo como se produzem as cidades brasileiras. Assim, o entendimento de que raça é estrutural e estruturante para a compreensão das diversas discriminações presentes no espaço urbano é central para que possamos, ao desvelar opressões, pensar em cidades mais equânimes e justas.

  • Como citar: Rezende, A. F., & Andrade, L. F. S. (2022). Direito do Negro à Cidade: de uma Formação Socioespacial Racista à Utopia Lefebvriana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 14, e20210438. https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20210438

Referências

Editado por

Editor responsável: Rodrigo Firmino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2021
  • Aceito
    08 Jul 2022
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