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A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena

RESENHAS

Christophe Charle, A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. 400 pp.

Rafael do Nascimento Cesar

Mestrando em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Num golpe de vista, a leitura do título poderia remeter sub-repticiamente ao aforístico A sociedade do espetáculo, em que Guy Debord diagnostica o infortúnio de um tempo histórico em que o caráter fetichista da mercadoria parecia ter alcançado todas as dimensões da vida. "Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação" (Debord, 1997), afirmou ele. Como quimera do capitalismo, o espetáculo duplica o mundo em sua dimensão visível e expõe homens e mulheres a uma fruição que é alienante por ser apenas ótica. É uma não vida.

De fato, há uma relação entre a incendiária obra do epítome do situacionismo francês e o livro de Christophe Charle, mas ela é mais de ruptura do que de continuidade. A audaciosa proposta de investigar a "gênese" da sociedade do espetáculo a partir do teatro na virada do século xix para o xx implica uma incursão histórica densa que, de saída, colocaria problemas à tese de Debord, tão colada aos eventos de Maio de 1968. Delimitando um escopo comparativo entre quatro grandes cidades - Paris, Londres, Viena e Berlim -, o historiador atina para a dimensão sociológica da produção cultural em contextos estritamente urbanos de países nos quais a doutrina liberal já começava a transformar o habitus de seus cidadãos.

"Espetáculo" é, portanto, o efeito sistêmico de diversos "atores" sociais - o duplo sentido é importante -, cujos esforços combinados produzem "uma sociedade completa" (p. 19), composta de empresários, diretores, atores, dramaturgos, funcionários de toda espécie e um público difuso e estratificado. Dar atenção a todo esse contingente - os célebres e os perdedores, as estrelas e os "carregadores de piano" - e não simplesmente se deixar ofuscar pelo brilho canônico do grand théâtre faz da obra de Charle um gesto a favor da história social da cultura e da arte. Os documentos analisados assustam pelo volume e intrigam pelos fenômenos que ajudam a observar (por exemplo, a concentração dos teatros franceses nos primeiros arrondissements de Paris e a presença da censura na dramaturgia londrina até 1966!). É o tratamento minucioso do período que impede que o leitor tome o fenômeno dramático simplesmente pela metonímia do "sucesso".

Em linhas gerais, A gênese da sociedade do espetáculo aposta no caráter "experimental" que as artes cênicas adquiriram nos palcos europeus do fin de siécle enquanto "laboratório voluntário e compulsório" da modernidade. Dado seu alcance - uma audiência que se contava às centenas de milhares - o teatro fez as vezes de interlocutor privilegiado das mudanças de comportamento que se insinuavam tanto nas coxias quanto na plateia. Os valores tradicionais de sociedades ainda calcadas num modo de viver aristocrático foram sendo expostos no desencanto satírico próprio de jovens atrizes e atores burgueses em narrativas igualmente burguesas. O velho cedia lugar ao novo, ao gosto de Augier, Sardou e Alexandre Dumas filho.

O livro está dividido em duas partes. Na primeira, "As sociedades do espetáculo", Charle apreende o fenômeno teatral a partir da morfologia social dos grupos envolvidos nessa empreitada dos palcos e da geografia social das salas de teatro, isto é, seu lugar e significado dentro da cidade. O trabalho morfológico implica, nesse caso, um procedimento comparativo que visa a identificar propriedades comuns nos grupos das quatro capitais selecionadas e um esquadrinhamento das origens sociais e atividades desses grupos. Obviamente, trata-se de uma redução analítica cuidadosa que respeita a disponibilidade de documentos relevantes - sempre desigual num lugar e noutro, conforme os contextos sociopolíticos nos quais os indivíduos estão inseridos, como o papel do Estado em cada nação - e é de fundamental importância para dimensionarmos corretamente as proporções daquilo denominado "espetáculo" quando em correlação com o desenvolvimento urbano.

É, portanto, na relação triangular entre diretores, atores/atrizes e autores que Charle embasa sua análise sobre a sociogênese do espetáculo. E longe de restringi-la aos nomes bem-sucedidos, tantas vezes citados na história do teatro, ele busca estabelecer um quadro amplo o suficiente para evitar generalizações brutais. Para tanto, o autor faz uso da análise prosopográfica, na qual trabalha com diversos dados biográficos de forma articulada, para melhor determinar os limites do grupo de profissionais em questão. Isso leva a elucidações interessantes. Não, a carreira de ator não era uma promessa de êxito já cumprida de antemão, assim como não era a alternativa romântica de jovens sem condições materiais recém-chegados às cidades. Como profissão liberal, sujeita às intempéries da oferta e da demanda, a carreira nas artes cênicas exigia de seus aspirantes um cabedal e uma expertise dificilmente acumuláveis fora do próprio campo teatral. Por isso o alto grau de "endogamia" entre esses profissionais: filhos de atores tinham, de fato, mais chances de se estabelecerem no teatro do que os aspirantes de outros setores da sociedade.

Tal dificuldade corresponde à relativa falta de instituições de formação nessas quatro capitais. À parte de Paris e seu Conservatoire, responsável pelo treinamento de mais da metade dos atores e atrizes empregados e mediador fundamental no processo de recrutamento desses mesmos homens e mulheres para os grandes palcos, Londres, Berlim e Viena careciam de espaços onde sistematicamente se "ensinasse" teatro. O caso londrino é, nesse sentido, paradoxal: a lógica liberal parecia florescer mais livremente às margens do Tamisa do que no Sena, no Danúbio ou no Spree, o que proporcionava aos profissionais ingleses carreiras mais lucrativas, porém, muito mais instáveis do que a de seus colegas franceses. Como em Londres inexistiam instituições de formação prestigiosas como o Conservatoire, o recrutamento e o treinamento de atrizes e atores ocorriam muito mais pelo autodidatismo, fosse ele inspirado pela família ou não.

Outro ponto sensível aos olhos de Charle e presente em quase todo o livro é a questão de gênero subjacente à prática cênica. Em vez de tomar como um dado objetivo os percentuais de homens e mulheres atuando no teatro e sua relativa paridade, o autor persegue as condições sociais e históricas que possibilitaram ao sexo feminino uma participação muito expressiva nos palcos (algumas vezes até superior à masculina). Se comparado a outras atividades liberais como o direito e a medicina, em que a presença de mulheres não só era difícil como dificultada, o teatro possuía uma configuração inegavelmente mista, embora isso não o livrasse de fortes valores hierárquicos constitutivos de sua dinâmica. Não só a diferença na remuneração entre atores e atrizes fazia com que estas sentissem mais o vibrar da corda bamba do espetáculo, mas também os efeitos do tempo e da idade eram mais cruelmente marcados e sentidos por elas. "Essa igualdade numérica entre os sexos mascara, de fato, a desigualdade de tratamento estrutural do qual as mulheres são vítimas. O envelhecimento, problema crucial à atividade, afeta os dois sexos de modo desigual" (p. 127). Se as jovens atrizes arrancavam suspiros e aplausos da plateia devido ao vigor de seus atributos físicos (um certo ideal de beleza e potência vocal), esse mesmo furor arrefecia conforme o corpo fenecia e a voz enrouquecia.

Entretanto, tomar as relações de gênero como dimensão explicativa do campo teatral, ou melhor, da estrutura de oportunidade e expectativas sociais dos agentes dentro desse campo, exige um aprofundamento de fôlego, atento aos diferentes processos de inscrição das assimetrias de poder no habitus de homens e mulheres. De fato, Christophe Charle tange essa problemática, mas não chega a conferir-lhe um papel de destaque. Ao trazer os dados que assinalam as desigualdades entre atores e atrizes e investigar as condições históricas que propiciaram a emergência das mulheres nos palcos, o autor dá um passo valioso na elaboração de uma hipótese sobre a carreira nos teatros com base nas desigualdades de gênero. Poderia, porém, ter dado mais passos se tivesse em mente o próprio teatro na condição de um fazer artístico generificado : a arte teatral engendra significados que são delineados por uma corporalidade que tem gênero. Ou ainda: o teatro produz um corpo capaz de (re)encenar convenções de gênero e até mesmo burlá-las1 1 . Heloisa Pontes em Intérpretes da metrópole (2011) propõe e desenvolve aquilo que chama de mecanismo de burla das convenções de gênero, no qual o corpo da atriz é capaz de subverter as inscrições corporais de gênero (e também idade) a partir da dinâmica da encenação teatral. . A obra de Charle, muito vigorosa no levantamento de documentação e na elaboração de argumentos sociológicos de médio alcance, não empalma questões de ordem mais antropológica, essenciais no estudo das formas expressivas.

Também as carreiras de diretor e autor dramático não eram uma alternativa garantida àqueles homens avessos à herança familiar burguesa no comércio ou demais atividades liberais. Conforme o teatro galga a condição de negócio e torna-se cioso da qualidade dos espetáculos que deve proporcionar à sociedade, a competitividade entre as casas aumenta, assim como aumenta a proporção de falências e bancarrotas. Em 1829 é criada a Société des Auteurs et Compositeurs Dramatiques, atestando tanto a presença de um certo clima de corporativismo entre os autores teatrais como advogando uma política de seleção dos novos aspirantes a essa tarefa. O árduo processo de acúmulo de prestígio social para um jovem dramaturgo ou diretor estava colocado, em certa medida, pela legitimidade cultural chancelada pelos lugares dedicados à sua atividade: os bulevares. Longe de constituírem um espaço homogêneo, os bulevares eram estratificados conforme o público que os frequentava, seu capital cultural e financeiro, e a localização do próprio bulevar em relação ao espaço social global.

Mas o trabalho morfológico empreendido por Charle teria pouca utilidade se não fosse lido à luz da geografia social das salas de teatro. A necessidade de operar com esses dois eixos em relação se justifica na medida em que coloca a urbanização como questão central para o desenvolvimento do espetáculo. A região do West End, em Londres, e os primeiros arrondisements parisienses concentravam os melhores e mais tradicionais teatros, fato que deflagrava uma estratificação das audiências ou, ainda, um exclusivismo de certo público frequentador contumaz das regiões centrais e mais luxuosas da cidade. O surgimento de salas na periferia das quatro capitais analisadas, os recursos dos quais dispunham para pagar os empregados e contratar espetáculos e até o tipo de dramaturgia encenada também são indícios dessa estratificação. No entanto, se se achavam na penumbra dos holofotes e atendiam a uma população menor e mais humilde, tais salas ao menos gozavam de uma liberdade experimental impensável na Comédie Française ou no Britannia.

A segunda parte do livro, "Sociedades em representação(ões)", trata exclusivamente da experiência social e subjetiva do espetáculo, buscando circunscrevê-la na emergência de um novo habitus dos espectadores, só possível, por sua vez, em contextos de uma modernidade vicejante. Como apontou Heloisa Pontes na introdução à edição brasileira do livro: "Arte social, arte coletiva, arte da representação, o teatro é inseparável da vida urbana, da sociabilidade multifacetada, dos novos meios de transportes, dos deslocamentos das multidões, do aumento da circulação em escala internacional" (Pontes, 2012, p. 10). O espetáculo se ilumina com a eletricidade das ruas.

Nesse sentido, Charle pensa Paris como polo irradiador de um tipo específico de produzir e consumir teatro (que chegará no Brasil e aqui ficará por muitas décadas) e admite a cidade como capital teatral da Europa, em função, sobretudo, do teor das peças francesas, as quais mostravam uma sociedade plenamente burguesa e fruto de uma revolução bem-sucedida, que conseguira, a golpes de guilhotina, decepar os valores aristocráticos do Antigo Regime. "A presença, em Paris, de certo meio de atores, dramaturgos, diretores, jornalistas, instituições de formação e perenização de uma tradição não tem equivalente nas outras capitais para criar o prestígio e a emulação nesse campo de produção" (p. 207).

Objeto de deleite e imitação para muitos, esse tipo de teatro notabilizou-se pela façanha do coup de théâtre, jogo cênico que consistia na exposição "comedida" das tensões e dos conflitos sociais do momento: "[...] determinada maneira de tratar o adultério, as relações entre homens e mulheres, a mudança das relações entre gerações e o status do casamento" (p. 231) eram alguns dos temas que mais faziam sucesso. Da sociedade real à sociedade representada não havia, portanto, um reflexo mecânico que buscasse reproduzir fielmente o que acontecia fora dos palcos. O teatro era lugar de invenção, de encenação e reencenação; era um processo cultural aberto no qual recepção e produção interagiam entre si numa dialética do oculto e do exibido, cujos limites estavam sempre em negociação.

Talvez seja justamente esse potencial transformador do espetáculo, esse método de rearranjar as engrenagens da estrutura social a partir do imaginário das pessoas, que tenha feito da censura o algoz das artes dramáticas por tempo demais. De fato, se ela interditou inúmeras peças que feriam os "sentimentos estabelecidos" das classes dominantes, também estimulou nos dramaturgos a criação de inúmeros recursos dissimuladores capazes de dizer com o corpo e sem as palavras. Até que a censura cessasse de vez, autores, diretores e atores teriam de trabalhar numa perspectiva cifrada e repleta de deixas simbólicas, mas que nunca perderam seu poder enunciativo. O teatro é mesmo assim: faz do silêncio uma réplica protagonista.

Nota

  • Debord, Guy. (1997), A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto.
  • Pontes, Heloisa. (2012), "Sociedade em cena", introdução à edição brasileira. In: Charle, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo: teatro em Paris,Berlim, Londres e Viena São Paulo, Companhia das Letras.
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    . Heloisa Pontes em
    Intérpretes da metrópole (2011) propõe e desenvolve aquilo que chama de mecanismo de
    burla das convenções de gênero, no qual o corpo da atriz é capaz de subverter as inscrições corporais de gênero (e também idade) a partir da dinâmica da encenação teatral.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014
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