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AUDIODESCRIÇÃO SEM PUDORES: ACESSIBILIDADE APLICADA A CENAS ERÓTICAS E SENSUAIS DO FILME PRAIA DO FUTURO

SHAMELESS AUDIO DESCRIPTION: ACCESSIBILITY APPLIED TO EROTIC SCENES OF THE MOVIE FUTURE BEACH

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar os desafios encontrados na elaboração de roteiro de ADs para cenas de filmes brasileiros que possuem situações de erotismo vivenciadas pelos seus protagonistas. Faremos um estudo de caso de duas cenas do filme Praia do Futuro (dirigido por Karim Aïnouz, 2014). O artigo está dividido em duas partes iniciais, com apresentação de conteúdo teórico sobre as temáticas da obscenidade e do erotismo na área de tradução audiovisual, e alguns conceitos fundamentais sobre audiodescrição. Na terceira parte, apresentaremos o estudo de caso da AD de duas cenas eróticas e sensuais do filme Praia do Futuro e, por último, concluiremos com algumas reflexões sobre os desafios do processo de AD.

Palavras-chave:
audiodescrição; Praia do Futuro; tradução audiovisual

ABSTRACT

The aim of this paper is to present the challenges encountered during the elaboration of scripts for ADs in scenes of Brazilian movies, which have erotic situations played by its main characters. We will study the case of two scenes of the movie Future Beach (directed by Karim Aïnouz, 2014). The work is divided into two initial parts with the presentation of theoretical content covering the themes of obscenity and eroticism in the area of audiovisual translation and over some fundamental concepts related to audio description. In the third part, we will show the AD case study of two erotic and sensual scenes of the movie Future Beach and conclude with some reflections about the challenges of the AD process.

Keywords:
audio description; audiovisual translation; Future Beach

TRADUÇÃO AUDIOVISUAL E LINGUAGEM OBSCENA

A Tradução Audiovisual é uma área dos Estudos da Tradução definida pelo pesquisador Díaz-Cintas (apud ARAÚJO; FRANCO, 2011ARAÚJO, V. S., FRANCO, E. P. C. (2011). Questões terminológico-conceituais no campo da tradução audiovisual (TAV). Tradução em Revista 11, v. 2, p. 1-23. , p.3) da seguinte maneira:

Na sua acepção primária, a TAV foi usada para encapsular práticas de tradução diferentes usadas na mídia audiovisual - cinema, televisão, VHS - nas quais há a transferência de uma língua-fonte para uma língua-meta. A dublagem e a legendagem são as mais populares na profissão e as mais conhecidas pelo público, mas há também outras tais como voice-over, dublagem parcial, narração e interpretação. A tradução para o espetáculo ao vivo foi adicionada a essa taxonomia num estágio posterior e foi assim que a supra-legendagem [surtitling] para a ópera e o teatro também foi incluída. A mudança de língua que acontece em todos esses casos foi um fator decisivo para nomear essas práticas como tradução. (ARAÚJO, FRANCO, p.3)

Além das modalidades mais conhecidas e mencionadas por Díaz-Cintas, como dublagem, legendagem, voice over etc, a TAV também abrange alguns gêneros que auxiliam a inclusão da pessoa com deficiência no contexto de entretenimento, como audiodescrição (AD) e legendagem para surdos e ensurdecidos (LSE). Normalmente a AD e a LSE são feitas de forma intralinguística, ou seja, os filmes estão em uma determinada língua (português, por exemplo) e as ADs e as LSEs também são feitas nesse idioma.

Como escolhemos o recurso da AD aplicados em filmes nacionais como tema deste artigo, lançaremos mão de conceitos de autores que abordam em suas pesquisas especificamente a AD.

Araújo e Franco (2011ARAÚJO, V. S., FRANCO, E. P. C. (2011). Questões terminológico-conceituais no campo da tradução audiovisual (TAV). Tradução em Revista 11, v. 2, p. 1-23. , p.17) definem da seguinte maneira a AD:

A audiodescrição (audiodescription) é a tradução em palavras das impressões visuais de um objeto, seja ele um filme, uma obra de arte, uma peça de teatro, um espetáculo de dança ou um evento esportivo. O recurso tem o objetivo de tornar esses produtos acessíveis a pessoas com deficiência visual. A AD pode ser pré-gravada ou ao vivo. A AD pré-gravada é geralmente usada em filmes, programas de TV e obras de arte, enquanto a AD ao vivo é acontece em eventos e no teatro.

Já foram realizadas algumas pesquisas sobre a AD de cenas eróticas no Brasil, tais como a de Franco e Monteiro (2013FRANCO, E.P.C., MONTEIRO, A.M. (2013). A audiodescrição de cenas de sexo em O Signo da Cidade. In: ARAÚJO, V.L.S., ADERALDO, M.F (Orgs.). Os novos rumos da pesquisa em audiodescrição no Brasil. 1. ed. Curitiba: CRV, 2013. v. 1. p. 169-183.) sobre a AD de cenas de sexo no filme O Signo da Cidade e a de Nóbrega Silva (2015SILVA, A.N.A. (2015). A audiodescrição de cenas eróticas: uma proposta para o curta pernambucano “Sob a Pele”. Monografia. (Aperfeiçoamento/Especialização em Audiodescrição) - Universidade Federal de Juiz de Fora. ), com enfoque no curta metragem Sob a Pele. A temática, porém, ainda desperta interesse pelo fato de haver grande receio de que a menção a obscenidades e termos eróticos nos roteiros de AD seja considerada um ato interpretativo do audiodescritor.

Encontramos também pesquisas brasileiras sobre tradução de legendas envolvendo palavrões e obscenidades que serão úteis para auxiliar nossa análise crítica.

Algumas autoras brasileiras que já realizaram pesquisas sobre tradução e legendagem de palavrões e termos obscenos são Collet (2011COLLET, T. (2011). A tradução de palavrões constantes das legendas do filme americano Gran Torino. Anais do SILEL. v.2, nº. 2. Uberlândia: EDUFU. Disponível em http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/edicao_volume_2_numero _2.php. Acesso em 20 abr. 2017.
http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/...
), Orsi e Zavaglia (2007ORSI, V. R; ZAVAGLIA, C. (2007). Léxico erótico-obsceno em italiano e português: algumas considerações. Tradução & Comunicação, v. 16, p. 38-45.).

Em A tradução de palavrões constantes das legendas do filme americano Gran Torino, Collet (2011COLLET, T. (2011). A tradução de palavrões constantes das legendas do filme americano Gran Torino. Anais do SILEL. v.2, nº. 2. Uberlândia: EDUFU. Disponível em http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/edicao_volume_2_numero _2.php. Acesso em 20 abr. 2017.
http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/...
) apresenta sua pesquisa sobre a comparação entre original e tradução de uma cena do filme Gran Torino (2008), de Clint Eastwood. Na cena analisada no artigo de Collet, dos 26 palavrões analisados dois foram traduzidos por equivalentes, 16 por uma palavra mais neutra e oito omitidos. Tais resultados demonstram que, no geral, há uma tendência a minimizar o teor dos palavrões no processo de tradução para legendas. Tal postura não é adotada pela simples escolha do tradutor, mas normalmente pelas diretrizes dadas pelas empresas que contratam tradutores e que, por sua vez, são representantes dos distribuidores de filmes estrangeiros no Brasil.

A tradução apresentada nas legendas reflete o pudor do público que assiste a tais filmes. Como a legenda é uma representação escrita de um discurso oralizado, há nessa transição uma tendência ao uso de palavras mais formais ou tradicionais em vez da opção por termos chulos que são comuns no discurso oral.

No artigo Léxico erótico-obsceno em italiano e português: algumas considerações, Orsi e Zavaglia (2007ORSI, V. R; ZAVAGLIA, C. (2007). Léxico erótico-obsceno em italiano e português: algumas considerações. Tradução & Comunicação, v. 16, p. 38-45.) apresentam a pesquisa lexicográfica de 80 entradas de uma proposta de vocabulário bilíngue italiano-português/português-italiano no contexto erótico-obsceno.

Segundo as autoras,

O exame da linguagem erótica abrange áreas sobre as quais se tem preferido calar - apesar de serem extremamente populares e correntes - como, por exemplo, a dos vocábulos obscenos/palavrões, das blasfêmias, da gíria, do discurso malicioso. (ORSI; ZAVAGLIA, 2007ORSI, V. R; ZAVAGLIA, C. (2007). Léxico erótico-obsceno em italiano e português: algumas considerações. Tradução & Comunicação, v. 16, p. 38-45., p. 39)

Seguem alguns exemplos de unidades lexicais referentes aos órgãos genitais femininos e masculinos apresentados na pesquisa de Orsi e Zavaglia (2007ORSI, V. R; ZAVAGLIA, C. (2007). Léxico erótico-obsceno em italiano e português: algumas considerações. Tradução & Comunicação, v. 16, p. 38-45., p.41):

Tabela 1
Levantamento das unidades lexicais referentes aos órgãos genitais masculinos e femininos. (ORSI; ZAVAGLIA, 2007ORSI, V. R; ZAVAGLIA, C. (2007). Léxico erótico-obsceno em italiano e português: algumas considerações. Tradução & Comunicação, v. 16, p. 38-45., p. 41)

Verificamos nos exemplos que há um número grande de metáforas nesse contexto de órgãos genitais tanto femininos quanto masculinos. Muitas vezes o uso da metáfora ameniza a apresentação mais crua e direta de um elemento que aparece na cena ou que é mencionado pelos atores em diálogos.

AUDIODESCRIÇÃO: CONCEITOS E APLICAÇÕES NO CONTEXTO CINEMATOGRÁFICO

Como já mencionado anteriormente, a audiodescrição é uma das modalidades de TAV. Segundo nosso ponto de vista sobre qualquer forma de tradução, suas definições sempre devem ser concebidas dentro da visão de tradução como processo autoral. Ela é considerada um recurso que permite à pessoa com deficiência visual o acesso à descrição, ao vivo ou gravada em áudio, de elementos verbais apresentados em diversos formatos e situações: vídeo, fotografia, encenações, cenas estáticas ou em movimento, escultura, eventos rotineiros (casamentos, partos, competições esportivas etc.), além de diversos produtos artísticos e de entretenimento.

De acordo com a pesquisadora Lívia Motta:

A audiodescrição é uma atividade de mediação linguística, uma modalidade de tradução intersemiótica, que transforma o visual em verbal, abrindo possibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para a inclusão cultural, social e escolar. Além das pessoas com deficiência visual, a audiodescrição amplia também o entendimento de pessoas com deficiência intelectual, idosos e disléxicos.

(http:www.vercompalavras.com.br/definicoes)

Segundo nossa concepção e experiência desde 2012, o leque de situações e produtos que permitem a inserção da AD é tão imenso quanto a quantidade de signos verbais existentes, ou seja, todo e qualquer signo verbal pode ser audiodescrito.

No contexto de pesquisa de produtos audiovisuais, tais como materiais disponibilizados em vídeos, filmes, seriados, videoclipes etc., tomamos como suporte teórico algumas das definições do audiodescritor alemão Bernd Benecke.

De acordo com Benecke (2004BENECKE, B. (2004). Audio-description. In: GAMBIER, Y. (Ed.), Meta: journal de traducteurs. v. 49, n.1, p. 78-80. , p.78), a audiodescrição pode ser definida como:

[…] a técnica usada para tornar acessíveis peças de teatro, filmes e programas de TV para cegos e para pessoas com deficiência visual: uma narração adicional descreve a ação, a linguagem corporal, as expressões faciais, o cenário e o figurino. A descrição se encaixa entre o diálogo e não interfere nos efeitos sonoros e musicais importantes.1 1 […] the technique used for making theatre, movies and TV programmes accessible to blind and visually impaired people: an additional narration describes the action, body language, facial expressions, scenery and costumes. The description fits in between the dialogue and does not interfere with important sound and music effects.

Para que ocorra a inserção da AD em produtos audiovisuais, devem-se analisar suas cenas, o enredo, e escolher com precisão em quais intervalos serão inseridas as descrições, segundo critérios de priorização de alguns elementos em detrimento de outros.

Tanto Benecke (2004BENECKE, B. (2004). Audio-description. In: GAMBIER, Y. (Ed.), Meta: journal de traducteurs. v. 49, n.1, p. 78-80. ) como outros pesquisadores da área de audiodescrição defendem que o processo de roteirização de AD deve sempre ser feito em equipe, com consultor que possua deficiência visual, para que atenda de forma eficaz o público-alvo. Ele menciona algumas etapas desse processo: a) escolha dos programas televisivos adequados (alguns possuem diálogos muito rápidos, fator que dificulta a inserção de AD); b) elaboração de um roteiro provisório; c) ajuste do nível do áudio do programa.

Ainda na concepção de Benecke (2004BENECKE, B. (2004). Audio-description. In: GAMBIER, Y. (Ed.), Meta: journal de traducteurs. v. 49, n.1, p. 78-80. ), ao produzirmos roteiros de audiodescrição, há a necessidade de nos colocarmos na perspectiva das pessoas com deficiência visual para melhor adequarmos o roteiro.

Uma das etapas essenciais no processo de AD é a locução, etapa que nem sempre é realizada pela mesma pessoa que faz o roteiro de AD. Benecke (2004BENECKE, B. (2004). Audio-description. In: GAMBIER, Y. (Ed.), Meta: journal de traducteurs. v. 49, n.1, p. 78-80. ) defende que a locução seja mais discreta para dar destaque às falas originais e não ao conteúdo audiodescrito, enquanto Snyder (2008) propõe que a relevância da entonação da fala do audiodescritor/locutor seja de acordo com o conteúdo que está sendo audiodescrito, fazendo com que o espectador seja capaz de entender a carga dramática da obra.

Consideramos que mesmo que a audiodescrição seja apresentada sem juízos de valor explícitos, na sua locução deve haver a entonação adequada a cada assunto abordado.

Kemi Oshiro Zardo, pesquisadora e audiodescritora profissional, também defende que o processo de AD é composto por várias etapas e por equipes distintas.

Estudos já estabelecem, e a prática da audiodescrição aceita e utiliza, três funções básicas para esse processo: o roteirista, audiodescritor que produzirá o texto descritivo de determinado produto; o consultor, audiodescritor com deficiência visual que analisa e revisa o roteiro; e o narrador, audiodescritor que faz a leitura (ao vivo ou gravada) do roteiro de audiodescrição. (ZARDO, 2017ZARDO, K.O. (2017). Produzir com qualidade: o papel do produtor em audiodescrição. In: VILLELA, L.M. (Org.), Acessibilidade audiovisual: produção inclusiva nos contextos acadêmicos, culturais e nas plataformas web. Bauru: Canal 6 Editora, p.13-28. , p.14)

Assim como Benecke (2004BENECKE, B. (2004). Audio-description. In: GAMBIER, Y. (Ed.), Meta: journal de traducteurs. v. 49, n.1, p. 78-80. ), Zardo (2017ZARDO, K.O. (2017). Produzir com qualidade: o papel do produtor em audiodescrição. In: VILLELA, L.M. (Org.), Acessibilidade audiovisual: produção inclusiva nos contextos acadêmicos, culturais e nas plataformas web. Bauru: Canal 6 Editora, p.13-28. ) enfatiza em sua pesquisa que a AD eficaz só será realizada se forem respeitadas as divisões de tarefas. Muitas vezes o roteirista da AD desempenhará também a função do narrador, mas isso não é uma regra. Há várias empresas que trabalham com profissionais diferentes. De qualquer forma, no Brasil já temos profissionais formados em AD que podem atuar nas duas funções.

Como mencionado anteriormente, já há pesquisas no Brasil sobre nossa temática. Em um artigo publicado por Franco e Monteiro (2013FRANCO, E.P.C., MONTEIRO, A.M. (2013). A audiodescrição de cenas de sexo em O Signo da Cidade. In: ARAÚJO, V.L.S., ADERALDO, M.F (Orgs.). Os novos rumos da pesquisa em audiodescrição no Brasil. 1. ed. Curitiba: CRV, 2013. v. 1. p. 169-183.) sobre as cenas de sexo do filme O Signo da Cidade, as autoras apresentam diversas questões relevantes sobre a questão do erotismo no processo de AD. Um dos tópicos mencionados no artigo está relacionado com as normas e com a censura que muitas vezes são impostas pelas distribuidoras dos filmes ou mesmo pelos próprios audiodescritores, que se sentem desconfortáveis em roteirizar ou fazer a locução de termos eróticos.

Ao rebater a postura censora sobre o processo de elaboração de AD de filmes que possuem cenas de sexo ou de violência, as autoras mencionam um trecho da norma americana de AD (Audio Description Coalition, 2008): “Audiodescritores que censuram informação por conta do seu próprio desconforto falham para com seus ouvintes” (In: FRANCO e MONTEIRO, 2013FRANCO, E.P.C., MONTEIRO, A.M. (2013). A audiodescrição de cenas de sexo em O Signo da Cidade. In: ARAÚJO, V.L.S., ADERALDO, M.F (Orgs.). Os novos rumos da pesquisa em audiodescrição no Brasil. 1. ed. Curitiba: CRV, 2013. v. 1. p. 169-183., p.172).

Tomando como base as normas de AD inglesa, americana e alemã, as autoras analisam duas cenas do longa O Signo da Cidade (2007) e elaboraram quadros com o roteiro da AD e com comentários bastante detalhados. Nas duas cenas, segundo as pesquisadoras, há certo pudor dos audiodescritores que tinham tempo disponível para inserir detalhes das cenas eróticas, mas preferiram resumir as descrições ou omitir informações relevantes para a pessoa com deficiência visual.

Uma das conclusões de Franco e Monteiro (2013FRANCO, E.P.C., MONTEIRO, A.M. (2013). A audiodescrição de cenas de sexo em O Signo da Cidade. In: ARAÚJO, V.L.S., ADERALDO, M.F (Orgs.). Os novos rumos da pesquisa em audiodescrição no Brasil. 1. ed. Curitiba: CRV, 2013. v. 1. p. 169-183.) é que as cenas audiodescritas continuaram sendo cenas de sexo, mas não mantiveram a característica erótica, tão evidente no filme. Verificaremos a seguir que no filme Praia do Futuro a omissão mencionada não ocorre e as ADs conseguem manter o erotismo presente nas cenas analisadas.

ESTUDO DE CASO: AUDIODESCRIÇÃO DE CENAS SENSUAIS E ERÓTICAS DO FILME PRAIA DO FUTURO

De Aquaman para Speed Racer:

Porque há dois tipos de medo e de coragem, Speed:

O meu é de quem finge que nada é perigoso.

O seu é de quem sabe que tudo é perigoso nesse mar imenso

(Donato- Aquaman. Praia do Futuro, 01h38min.)

Apresentamos a seguir duas análises de ADs de cenas do filme brasileiro Praia do Futuro, dirigido por Karim Aïnouz, 2014. A escolha desses dois exemplos ocorreu devido à qualidade de suas descrições, locução de AD, e por terem conseguido apresentar às pessoas com deficiência visual detalhes que são de extrema relevância em cenas sensuais.

A história apresentada em Praia do Futuro tem como foco a relação de três homens: Donato (Wagner Moura), que trabalha como salva-vidas em Fortaleza; seu irmão caçula, Ayrton (Jesuita Barbosa), que tem grande admiração por ele devido à coragem demonstrada ao se atirar no mar para resgatar desconhecidos; e Konrad (Clemens Schick), um alemão de olhos azuis que muda por completo a vida de Donato, após ser salvo por ele na Praia do Futuro. Após mais de uma década, Ayrton, querendo reencontrar o irmão, parte em sua busca na fria Berlim.

O filme é divido em três partes “O abraço do afogado”, “Um herói partido ao meio” e “Um fantasma que fala alemão”.

O filme foi lançado em 2014 e sua audiodescrição foi produzida pela empresa Mais Diferenças, com roteiros elaborados por Ana Rosa Bordin Rabello e Raissa Gregori. Vale destacar que à época do lançamento do filme em São Paulo, a AD foi apresentada por meio do aplicativo Whatscine e houve sessões acessíveis (LIBRAS, audiodescrição e legendas para surdos e ensurdecidos) nas salas de cinema do Espaço Itaú Frei Caneca (http://www.maisdiferencas.org.br/site/noticias/?id=101).

A cena apresentada a seguir encontra-se na primeira parte do filme, “O abraço do afogado”. Após tentar salvar um rapaz na Praia do Futuro, Donato é encarregado de comunicar ao “alemão” a fatalidade. Konrad possuía uma relação afetiva com a vítima de afogamento. Ao sair do hospital, Donato oferece carona ao alemão, ele aceita e os dois fazem sexo no carro de Donato, à beira da estrada de Fortaleza.

A voz da AD é masculina e é incluída nos intervalos entre a cena, que é bastante curta, 48 segundos (00:12:17 até 00:13:05). Não há diálogos entre os personagens, os dois aparecem nus e fazendo sexo desde o início da cena.

Segue o trecho da AD.

Cena. Donato e alemão no carro

00:12:24-00:12:35

NO CARRO, OS DOIS TRANSAM DE UMA FORMA QUASE VIOLENTA.

O ALEMÃO ESTÁ POR CIMA DE DONATO.

COM FORÇA, OS BRAÇOS TATUADOS DO ALEMÃO SE APOIAM NO AMANTE E COM UMA DAS MÃOS TENTA ALCANÇAR SEU ROSTO.

00:12:53- 00:12:57

DONATO DEMONSTRA SATISFAÇÃO E CANSAÇO.

Utilizamos caixa alta no trecho acima, pois algumas produtoras adotam esse procedimento para facilitar a leitura do roteiro nas cabines em que ficam os narradores-audiodescritores em sessões acessíveis de cinema ou teatro.

Podemos perceber que as roteiristas da AD demonstram suas interpretações da cena que é bastante intensa, pois ela ocorre horas após de uma morte trágica que envolve os dois personagens. O trecho “os dois transam de uma forma quase violenta” traz uma interpretação necessária para a pessoa que não enxerga, ela entenderá que não há intimidade ou afeto na relação sexual dos dois personagens. A escolha do verbo “transar” é bastante relevante, pois não camufla o que a cena realmente apresenta.

Encontramos no mesmo trecho de AD as expressões: “com força” e a frase “Donato demonstra satisfação e cansaço”. Somente com essa AD, fica bastante evidente que a transa dos dois quase desconhecidos foi prazerosa, mas bruta.

Vale ressaltar também que como a cena ocorre no início do filme e o nome de Konrad ainda não fora mencionado na trama, as audiodescritoras o nomeiam apenas como “alemão”.

Concordamos com as escolhas das roteiristas da AD que adotaram verbos, substantivos e adjetivos que demonstram erotismo sem camuflar o que ocorre entre os dois amantes. Tal descrição torna-se ainda mais representativa quando a comparamos com a próxima cena erótica de Donato e Konrad que ocorre na segunda parte do filme, “Um herói partido ao meio”.

Os dois já estão morando juntos em Berlim, são namorados e estão ouvindo a música francesa Aline (Daniel Georges Jacques Bevilacqua/Christophe, 1965). Ao contrário do que ocorre na cena do carro, há um jogo de sedução que é extremamente visual, entre brincadeiras, danças e gestos feitos pelo casal.

Ao longo do filme há quatro cenas explicitamente eróticas. A primeira ocorre entre Donato e Konrad em Fortaleza (cena analisada anteriormente), as demais ocorrem em Berlim. Duas no apartamento de Konrad e, quase no final do filme, há uma cena bem curta envolvendo Ayrton e uma moça alemã.

Todas as cenas possuem ADs que seguem o mesmo estilo: descrição bastante evidente dos gestos dos casais, menção às partes dos corpos dos envolvidos e, quando foi possível, léxicos que demonstram as expressões faciais, sorrisos, intimidade etc.

Segue a AD do trecho.

Cena no apartamento 00:35:16s até 00:38:14s.

EM CASA, NA PAREDE, NA ALTURA DA CABEÇA DO ALEMÃO, UM QUADRO COM UM ROSTO DE UMA MENINA QUE COM ELE NA FRENTE PARECE EMOLDURADO.

ELE DANÇA.

ERGUE OS BRAÇOS, SENSUALIZA.

DRAMATIZA.

NO QUADRO, A MENINA SORRI.

ELE GINGA SUAVE.

COMEÇA A TIRAR O CASACO, DONATO SE APROXIMA, TIRANDO O CASACO TAMBÉM.

CASACOS DE COURO VÃO AO CHÃO.

OLHAM-SE COM DESEJO.

DONATO USA CAMISETA VERMELHA DE MANGA COMPRIDA. ELE PEGA O QUADRO DA PAREDE E PÕE EM CIMA DE SEU ROSTO

DE FRENTE UM PARA O OUTRO

SEDUZEM-SE, SE ABRAÇAM.

TESTA COM TESTA, LÁBIOS QUASE SE TOCAM.

DANÇAM COM OS BRAÇOS TOCANDO O AR.

PEITOS NUS, BEIJAM-SE.

DONATO EMPURRA O ALEMÃO.

ELE ABAIXA AS CALÇAS, DONATO SE APROXIMA.

CALÇAS ABAIXADAS, O ALEMÃO AGARRA A BUNDA DE DONATO, SE PEGAM COM VIGOR, INTENSIDADE.

Antes da análise da cena e de sua AD, vale destacar que a música Aline é um elemento de extrema relevância nesse trecho do filme e, como os personagens Donato e Konrad cantam juntamente com o intérprete, a AD só é incluída quando se fazia realmente imprescindível.

No roteiro, a presença do verbo “seduzir” aparece duas vezes, outros verbos como dançar, dramatizar, abraçar-se e beijar-se também demonstram a intimidade do casal.

No final da cena, já depois de vários segundos de movimentos de sedução, o casal inicia a transa e as audiodescritoras usam o termo “bunda” (AGARRA A BUNDA DE DONATO) sem recorrer a termos menos explícitos como “bumbum” ou “traseiro”.

Tal como a mudança de atos ocorrida no filme (de “O abraço do afogado” para “Um herói partido ao meio”), os roteiros de AD devem ser mudados e a pessoa com deficiência visual só perceberá a transição entre a violência (cena da transa no carro) e a sedução (cena em Berlim) das duas cenas de sexo, se houver a riqueza de detalhes que é necessária e imprescindível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo a produtora de cinema Lara Pozzobon Costa (2013COSTA, L.V. P. (2013). Audiodescrição como tradução - A aventura da primeira experiência. Anais do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência - SEDPcD/Diversitas/USP Legal - São Paulo. Disponível em http://www. memorialdainclusao.sp.gov.br/ebook/#. Acesso em 20 abr. 2017.
http://www. memorialdainclusao.sp.gov.br...
, p.2),

Como tradução entre signos diferentes, a audiodescrição se insere em um contexto amplo, que tem como pressuposto as características próprias do processo de tradução e, como especificidade, os elementos próprios do audiovisual, especialmente o elemento temporal da duração.

No texto da autora e nos exemplos que apresentamos neste artigo, a audiodescrição é pensada como um recurso para imagens em movimento, nas quais “a duração é um elemento fundamental para definir as possibilidades e os limites dessa forma de tradução” (COSTA, 2013COSTA, L.V. P. (2013). Audiodescrição como tradução - A aventura da primeira experiência. Anais do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência - SEDPcD/Diversitas/USP Legal - São Paulo. Disponível em http://www. memorialdainclusao.sp.gov.br/ebook/#. Acesso em 20 abr. 2017.
http://www. memorialdainclusao.sp.gov.br...
, p.2).

No filme Praia do Futuro, a duração das cenas determina as emoções de cada personagem. O tempo, da mesma maneira que separa dois irmãos, une dois amantes. Dessa forma, a AD tem que apresentar ao espectador com deficiência visual as mesmas sensações que o vidente tem ao assistir cenas que trazem brutalidade, prazer, sensualidade e, sobretudo, emoções.

Costa (2013COSTA, L.V. P. (2013). Audiodescrição como tradução - A aventura da primeira experiência. Anais do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência - SEDPcD/Diversitas/USP Legal - São Paulo. Disponível em http://www. memorialdainclusao.sp.gov.br/ebook/#. Acesso em 20 abr. 2017.
http://www. memorialdainclusao.sp.gov.br...
) alerta em seu trabalho que as normas de AD têm que ser permanentemente relativizadas e reavaliadas em cada caso. Nos nossos exemplos, não há como o audiodescritor ser “objetivo”, norma amplamente divulgada em alguns cursos e treinamentos de audiodescrição.

A crueza e sensualidade das cenas eróticas demandam uma audiodescrição (tradução) autoral, rasgada e subjetiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Filme analisado

  • PRAIA do Futuro. Direção: Karim Ainouz. California Filmes, 2014. 1 DVD. 109 min. NTSC, colorido.
  • 1
    […] the technique used for making theatre, movies and TV programmes accessible to blind and visually impaired people: an additional narration describes the action, body language, facial expressions, scenery and costumes. The description fits in between the dialogue and does not interfere with important sound and music effects.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2017
  • Aceito
    23 Ago 2017
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