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Concepções de mulheres negras sobre autocuidado em saúde reprodutiva

Conceptions of black women about self-care in reproductive health

Resumo

Neste trabalho se buscou identificar as concepções de mulheres negras em vulnerabilidade socioeconômica de um bairro da Zona Noroeste do município de Santos sobre saúde e autocuidado em saúde reprodutiva. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada por meio de entrevista semiestruturada com 19 mulheres autodeclaradas negras. Os dados qualitativos foram submetidos à Análise de Conteúdo. Os resultados revelaram concepções acerca da saúde e do autocuidado que envolvem não apenas o aspecto biomédico, mas também a percepção de saúde integral. Concluiu-se que as mulheres consideram a saúde e o autocuidado como algo de grande importância, entretanto, atribuem ao profissional de medicina papel relevante na manutenção desse autocuidado, desconsiderando as práticas diárias que realizam de forma autônoma.

Palavras-chave:
Mulher Negra; Saúde Reprodutiva; Interseccionalidade; Autocuidado; Saúde da Mulher

Abstract

This work sought to identify the conceptions of black women in socioeconomic vulnerability in a neighborhood in the Northwest Zone of the municipality of Santos about health and self-care in reproductive health. This is a qualitative research carried out via semi-structured interviews with 19 self-declared black women. Qualitative data were submitted to Content Analysis. The results revealed conceptions about health and self-care that involve the biomedical aspect and a perception of integral health. In conclusion, women consider health and self-care very important; however, they attribute to the medical professional a relevant role in maintaining this self-care, disregarding the daily practices carried out autonomously.

Keywords:
Black Woman; Reproductive Health; Intersectionality; Self-Care; Woman Health

Introdução

As mulheres negras encontram-se no grupo das minorias sociais, o que as coloca em posição de inferioridade na sociedade brasileira, com baixos níveis de qualidade de vida e bem-estar social/físico/mental, o que, por sua vez, provoca a situação de desigualdade em saúde (Lima; Volpato, 2014LIMA, A. S. G.; VOLPATO, L. M. B. Saúde da mulher negra e os determinantes: racismo, questão de gênero e classe econômica. In: ETIC: 2014: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 1., 2014, Presidente Prudente. Anais […]. Presidente Prudente: Toledo Prudente Centro Universitário, 2014.).

Dessa forma, é importante considerar os recortes sociais dos quais essas mulheres fazem parte e como sua interseccionalidade implica sofrimento, uma vez que as mulheres negras estão inseridas minimamente nos recortes de raça, gênero e, comumente, classe econômica. Nesse sentido, faz-se necessário ponderar sobre as demandas dessas mulheres não apenas a partir do gênero, mas de todas as especificidades que definem o que é pertencer a esse grupo social, de modo a adotar práticas diversas em saúde que englobem tais especificidades (Carneiro, 2003CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS & TAKANO CIDADANIA (Org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.; Lima; Volpato, 2014LIMA, A. S. G.; VOLPATO, L. M. B. Saúde da mulher negra e os determinantes: racismo, questão de gênero e classe econômica. In: ETIC: 2014: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 1., 2014, Presidente Prudente. Anais […]. Presidente Prudente: Toledo Prudente Centro Universitário, 2014.).

Por interseccionalidade, adota-se a concepção de Crenshaw (2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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) e Collins (2015COLLINS, P. H. Intersectionality’s definitional dilemmas. Annual Review of Sociology, [s. l.] v. 41, n. 1, p. 1-20, 2015. DOI: 10.1146/annurev-soc-073014-112142
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) de fenômeno complexo, conceituação que analisa as dinâmicas estruturais de interação entre diferentes eixos de subordinação que são promotoras e geradoras de desigualdades e iniquidades, a exemplo, discriminação racial e discriminação de gênero, que atuam em conjunto para limitar o sucesso de mulheres negras. Ressalta-se que, apesar do constante uso dos recortes sociais de raça, gênero e classe social, a interseccionalidade também engloba outros recortes, como idade, cultura, religião, deficiência, entre outros.

A interseccionalidade não aponta a soma ou hierarquia das diferenças e sim uma sobreposição entre elas, o que, no caso das mulheres negras, ilustra como estas estão na base, no sustento de uma pirâmide social, cujas intersecções as colocam em posição de subserviência ao próximo. Dessa forma, em vista de enfrentar as iniquidades em saúde às quais as mulheres negras estão expostas, são necessárias ações dirigidas a essa população em situação de vulnerabilidade, a fim de reduzir disparidades entre grupos e promover medidas de saúde amplas para toda a população, levando em consideração a equidade (Azarias, 2016AZARIAS, E. A. Kurialuka: webdocumentário sobre o autocuidado entre mulheres negras. 2016. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2016.; Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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; Werneck, 2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. DOI: 10.1590/s0104-129020162610
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).

Destarte, é importante avaliar as ações em saúde reprodutiva a partir do recorte de raça, uma vez que as mulheres negras podem estar sujeitas a condições diferentes e desiguais, devido à intersecção entre gênero, raça e classe. Em documento do Ministério da Saúde (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2013.) sobre saúde reprodutiva e sexual para a atenção básica, ressalta-se a necessidade de considerar como o racismo afeta essa população mesmo após conquistas institucionais visando a sua erradicação. A discriminação e o racismo contribuem para um perfil epidemiológico marcado pela desigualdade, evidenciada principalmente na alta taxa de mortalidade materna, causa essa que é a primeira de morte no Brasil e mais frequente entre as mulheres negras.

A temática da Saúde Reprodutiva é ampla e envolve aspectos importantes da saúde e do bem-estar das mulheres, por isso, a educação nessa temática é importante para auxiliar na prevenção de complicações e doenças que podem piorar sua qualidade de vida e levá-las ao óbito, além de promover melhor acesso e acolhimento dessas mulheres aos serviços de saúde.

No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, as Nações Unidas (1995) definem a temática para além da ausência de doença, alinhando-se à definição mais atual de saúde e buscando contemplar o bem-estar físico, mental e social em todos os temas relacionados ao sistema reprodutivo.

Desse modo, podemos compreender a saúde sexual como parte da saúde reprodutiva, inserida na Política de Saúde da Mulher com objetivos que envolvem seu sistema reprodutivo e sua sexualidade para além da reprodução, enfatizando o acolhimento e orientação dessas pacientes mesmo que não busquem o serviço por motivo de gestação. E, segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2013.), objetiva-se alcançar um olhar integral que considere as interseccionalidades, com ações que analisem como a discriminação por raça poderá afetar a saúde reprodutiva de mulheres negras, bem como seu acesso à saúde, que é deficitário, com mulheres negras apresentando menor acesso de qualidade aos serviços de saúde, à atenção ginecológica e à assistência obstétrica, tanto no pré-natal, quanto parto ou puerpério.

Nesse sentido, ainda se encontram disparidades relacionadas à raça e classe quando falamos em Saúde Reprodutiva, assim como encontrado por Goes et al. (2020GOES, E. F. et al. Vulnerabilidade racial e barreiras individuais de mulheres em busca do primeiro atendimento pós-aborto. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 36, n. 1, p. 2-13, 2020. DOI: 10.1590/0102-311x00189618
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) em pesquisa realizada em Salvador (BA), Recife (PE) e São Luís (MA), com 2.640 usuárias internadas em hospitais públicos, com objetivo de “identificar as barreiras individuais das mulheres na busca do primeiro atendimento por cuidado pós-aborto em condições inseguras, adotando uma perspectiva racial”. O trabalho identificou a repercussão do fator raça ou cor preta/parda como obstáculo na busca do primeiro atendimento pós-aborto, o que coloca essas mulheres em situação de maior vulnerabilidade e risco de complicações do aborto, dificultando a redução da morbimortalidade materna.

Já em pesquisa de Berquó e Largo (2016BERQUÓ, E.; LAGO, T. G. Atenção em saúde reprodutiva no Brasil: eventuais diferenciais étnico-raciais. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 550-560, 2016. DOI: 10.1590/s0104-129020162568
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) objetivando a comparação entre indicadores de atenção à saúde reprodutiva de mulheres negras e brancas, realizada com 14.625 mulheres brancas e negras entre 15 e 49 anos, foram encontradas diferenças que desfavoreciam as mulheres negras de diversas formas: quanto ao número mínimo de consultas durante o pré-natal, parto cesáreo, recebimento de anestesia no parto vaginal, presença do companheiro e realização de consulta no puerpério.

Resultados semelhantes, que ressaltam disparidades no acesso à saúde da mulher negra, são apontados por Mittelbach e Souza (2021), que encontraram maior proibição pelas instituições de acompanhante no momento do parto para mulheres negras, em estudo conduzido com 18 mulheres puérperas entrevistadas, sendo 44% autodeclaradas brancas, 50% negras (11% pretas e 39% pardas) e 6% indígenas. Das entrevistadas, 86% das mulheres brancas puderam ter acompanhante em algum momento da internação, enquanto apenas 33% das mulheres negras tiveram o direito ao acompanhante respeitado.

Saúde do cuidado ao autocuidado

A discussão do tema saúde da mulher negra envolve a compreensão da concepção de cuidado. O cuidado em saúde ou cuidado de saúde, geralmente, remete ao pensamento de senso comum que o considera apenas como um conjunto de procedimentos que têm em vista o êxito de determinado tratamento, entretanto, para Ayres (2009AYRES, J. R. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva, 2009., p. 22), deve-se considerar o cuidado como um constructo filosófico simultâneo à atitude prática, “uma interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade”.

Coadunando com o autor, deve-se considerar o cuidado como ontológico ao ser humano, parte de sua essência e natureza, sendo característica singular do ser humano colocar o cuidado em tudo o que projeta e faz. Destaca-se, aqui, a categoria do cuidado de si como uma obrigação do ser humano, por ser livre e racional, e como uma atividade para além da solidão, uma verdadeira prática social (Boff, 1999BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.; Foucault; 1985FOUCAULT, M. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.).

Foucault (2006FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) retrata o cuidado a partir do termo grego epiméleia heautoû, ou o cuidado de si mesmo, em uma ênfase filosófica que quer dizer ocupar-se de si mesmo, de forma que se ocupa com a alma. Ao ocupar-se com a alma, cuida-se de si, e para tal é preciso conhecer a si. Novamente, o cuidado e autocuidado surgem como ferramentas que vão além da concepção limitada ao modelo de prevenção de doença.

Orem (2003OREM, D. Validity in theory: a therapeutic self-care demand for nursing practice (1976). In: MCLAUGHLIN, K.; TAYLOR, S. G. (Ed.). Self-care theory in nursing: selected papers of Dorothea Orem. New York: Springer, 2003.), na área da Enfermagem, propõe a Teoria do Autocuidado de Enfermagem, que adota o conceito dos sujeitos como agentes de cuidado de si (individuals as care agents of self). A autora pontua três teorias dentro de sua teoria geral: teoria de autocuidado, teoria de déficit de autocuidado e teoria dos sistemas de enfermagem, as quais estão inter-relacionadas. Assim, o indivíduo possui o poder de cumprir seu papel como agência de autocuidado e agência de cuidado dos seus dependentes.

Destaca-se a proposta de Orem (2003OREM, D. Validity in theory: a therapeutic self-care demand for nursing practice (1976). In: MCLAUGHLIN, K.; TAYLOR, S. G. (Ed.). Self-care theory in nursing: selected papers of Dorothea Orem. New York: Springer, 2003.) na qual o Autocuidado é entendido como uma ação para o Eu, a partir dos “atos de autocuidado”, definidos como ações de nível simples, emocional, de prazer ou alívio da dor; são atos rotineiros e habituais cuja realização passa despercebida e responde às necessidades humanas básicas.

Dentre as diferentes teorias, uma constante é evidente: a importância do autocuidado para a saúde do indivíduo em um contexto integral, que vai além da ausência de doença e da percepção de desordem física.

Se analisamos o autocuidado sob a perspectiva das mulheres negras, podemos supor que a necessidade de autocuidado se acentua não apenas pela vulnerabilidade às doenças de maior ocorrência na população negra, mas também por estarem na base da pirâmide social, mais sujeitas à pobreza e ao nível inferior de escolaridade, além de outras formas de desigualdade por sua cor de pele (Barata, 2009BARATA, R. B. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.; Lima; Volpato, 2014LIMA, A. S. G.; VOLPATO, L. M. B. Saúde da mulher negra e os determinantes: racismo, questão de gênero e classe econômica. In: ETIC: 2014: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 1., 2014, Presidente Prudente. Anais […]. Presidente Prudente: Toledo Prudente Centro Universitário, 2014.). Dessa forma, torna-se necessária uma análise acerca da saúde da mulher negra e seu autocuidado.

Metodologia

Este trabalho apresentou como objetivo identificar concepções de mulheres negras em vulnerabilidade socioeconômica de um bairro da Zona Noroeste de Santos sobre saúde e autocuidado em saúde reprodutiva. Para tal, adotou-se a pesquisa qualitativa, com a realização de entrevistas semiestruturadas com 19 mulheres acima de 18 anos que se autodeclararam negras (pretas ou pardas). Os dados coletados por meio de seleção intencional foram analisados a partir da técnica de análise de conteúdo, que se utiliza de procedimentos temáticos e objetivos para descrever os conteúdos das mensagens e obter indicadores que permitam inferências de conhecimentos relativos às condições de produção dessas mensagens, conforme sistematizado por Bardin (2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009.).

Todas as participantes selecionadas são residentes do bairro há ao menos dois anos e frequentam o serviço de saúde pública local. A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Santos sob o parecer nº 2.648.293.

Aspectos sociodemográficos

O bairro Jardim São Manoel, no qual realizou-se a pesquisa, está localizado na região da Zona Noroeste, em Santos, que conta com 12 bairros e cerca de 100 mil habitantes. Trata-se de um bairro em situação de vulnerabilidade social, com território que inclui ruas asfaltadas e residências de alvenaria, mas também vielas com pontes de madeira e habitações de madeirite construídas sobre a água (palafitas).

A pesquisa contou com 19 participantes de idades entre 22 e 59 anos, das quais 13 declararam-se pretas e seis declaram-se pardas, todas agrupadas neste estudo como negras. Destaca-se que as entrevistadas apresentaram percepção acerca da influência da raça no acesso ao atendimento em saúde, relatando diferenças quanto ao atendimento do profissional de saúde, como ilustrado nas seguintes passagens:

Quando a gente vai no hospital as brancas são melhores atendidas que nós, as negras, acho que devemos ser tratadas melhor. (E18, preta)

Muita coisa errada, muita gente sofrendo principalmente da nossa raça, gente branca tem mais facilidade, é igual quando você vai no médico, e se o branco tiver uma amizade você vai ficar pra trás. […] Então a gente tem que seguir em frente, se olhar pra trás fica deprimido, porque é diferenciado e tudo por conta da cor. Não importa se é amarelo ou azul, o branco sempre leva vantagem em tudo. (E03, parda)

Tais trechos demonstram a importância de se discutir questões de raça quando se fala em saúde, além de condizerem com os achados em outras pesquisas já citadas, que demonstram disparidades desfavorecendo as mulheres negras quanto à saúde reprodutiva (Berquó; Lago, 2016BERQUÓ, E.; LAGO, T. G. Atenção em saúde reprodutiva no Brasil: eventuais diferenciais étnico-raciais. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 550-560, 2016. DOI: 10.1590/s0104-129020162568
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).

Outros determinantes sociodemográficos coletados foram Escolaridade, ao que 10 das entrevistadas possuíam Ensino Médio completo (uma cursava o ensino superior), cinco cursaram o Ensino Fundamental incompleto, duas o Ensino Fundamental completo e duas o Ensino Médio incompleto. Destaca-se que o marcador social raça exerce influência na escolaridade, sendo ambos fatores importantes em saúde, com estudos que mostram diferenças significantes quando se compara raça/cor com baixa escolaridade. Ressalta-se, assim, como o indicador raça é, entre outros, determinante do estado de saúde de populações (Pacheco et al., 2018PACHECO, V. C. et al. As influências da raça/cor nos desfechos obstétricos e neonatais desfavoráveis. Saúde em Debate, São Paulo, v. 42, n. 116, p. 125-137, 2018. DOI: 10.1590/0103-1104201811610.
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).

Resultados e discussão

Percepção de Saúde

A questão da saúde apareceu em grande parte na fala das mulheres como sinônimo de ausência de doença. Apesar de considerar-se saúde, de forma ampla, como um estado de bem-estar em todos os âmbitos da vida, muitas das entrevistadas associaram a saúde ao oposto de doença, concluindo que, se alguém não tem doença, tem saúde: “[Saúde é] Não ter doença, nem uma perebinha no corpo” (E7, preta).

Esse entendimento de saúde como ausência de doença é uma concepção largamente difundida pelo senso comum, mas não restrita a este. Por outro lado, atualmente, possuímos uma nova promoção de saúde, com ênfase no pensamento do processo saúde-doença, em busca da superação do modelo biomédico unicausal e da adoção de um modelo que envolva os aspectos sociais (Bastitella, 2007BATISTELLA, C. Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. In: Fonseca, A. F.; Corbo, A. D. (Org.). O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV, 2007. p. 51-86.; Pettres; Da Ros, 2018PETTRES, A. A.; DA ROS, M. A. A determinação social da saúde e a promoção da saúde. Arquivos Catarinenses de Medicina, Florianópolis, v. 47, n. 3, p. 183-196, 2018.).

Trata-se de uma mudança necessária, ainda mais ao tratar-se de saúde de mulheres negras, cujo contexto requer um olhar interseccional, a partir de uma compreensão de promoção de saúde que integre as demandas e recursos pessoais, sociais, coletivos, entre outros, para a formulação de uma saúde integral (Prestes, 2018PRESTES, C. R. S. Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver. 2018. 206 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.).

Destaca-se que a saúde aparece como algo central para as mulheres, de grande importância, sendo definida de forma instantânea como “tudo” para 10 das entrevistadas, com suas definições mais ampliadas envolvendo o caráter preventivo, de buscar manter-se saudável, cuidar do corpo, cuidar-se como pessoa, arrumar-se, entre outros.

Isso demonstrou o interesse das participantes na manutenção da saúde e no conhecimento sobre aspectos que vão além do bem-estar físico, com a menção de hábitos saudáveis e necessidade de cuidado, sendo referida também a saúde mental, o que se observa na fala adiante:

mulher é de fases, mulher tem problemas ginecológicos, tem que estar com a saúde mental boa, é um conjunto de coisas. […] tipo assim, relacionamento com o parceiro, se a mulher não tiver bem mentalmente, não vai ficar bem com o marido ou namorado. (E2, preta)

Achados semelhantes quanto à concepção de saúde foram encontrados em outras pesquisas, que englobam as categorias de bem-estar, bem-viver, qualidade de vida, hábitos saudáveis, sentir-se bem (que envolve autoestima e relações familiares e de amizade), autocuidado, além de cuidados com a saúde, que envolvem práticas preventivas (Fertonani; Pires, 2010; Souza et al., 2019SOUZA, A. S. et al. Percepção de saúde e felicidade entre trabalhadores da Estratégia Saúde da Família de um município do sul do Brasil. Aletheia, Canoas, v. 52, n. 2, p. 108-121, 2019.).

Em associação ao reconhecimento da saúde de maneira integral, as participantes trouxeram a importância da prevenção como forma de manutenção da saúde. Entretanto, destaca-se que a prevenção não deve ser entendida apenas como “evitação da doença”, opta-se por considerar o conceito de Prevenção primária, no qual o enfoque está nos grupos e não apenas nos indivíduos isoladamente. Dessa forma, as ações coletivas de prevenção objetivam interferir positivamente na vida das pessoas (JÚNIOR E GUZZO, 2005): “acho que a mulher tem que se cuidar e se prevenir, né” (E19, preta).

As maneiras pelas quais as mulheres entrevistadas realizam essa prevenção em saúde dizem respeito principalmente à evitação de doenças, mas envolvem também a prevenção à violência doméstica, e a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), além de aspectos relacionados à saúde reprodutiva.

Prevenção, prevenção do colo do útero, prevenção, como é que se fala?, sobre o câncer de mama, prevenção sobre o abuso do homem sobre a mulher, e o abuso que as mulheres sofrem com seus companheiros, namorado. Isso, é pras mulheres se prevenirem mais sobre isso. (E11, preta)

Se cuidar, se prevenir de várias doenças. Não quer ter filho se previne usa preservativo, operação, tem o DIU, tem também aquele chip de coloca na pele, se previne. Tem como a gente tá correndo atrás de médico referente ao corpo, a gente mesmo se tocando se ver qualquer coisa diferente corre no médico pra se prevenir de várias formas, mesmo com um companheiro fixo, não sabe como é lá fora, como tem vários casos de marido que trai a mulher não sabe se ele usou preservativo, a pessoa pode estar com alguma doença e acaba passando pra companheira do lar, essas coisas assim. (E14, preta)

Destaca-se nos trechos apresentados o fato de a prevenção estar associada majoritariamente à relação biomédica com o corpo e carregar questões de saúde reprodutiva, mesmo sem que tenha sido feito o direcionamento para essa temática.

Levando em consideração a definição da saúde como algo central para as mulheres e a concepção de uma prevenção mais voltada ao corpo, podem-se levantar algumas hipóteses para explicar o porquê de a saúde surgir como central. A saúde surge como “tudo”, uma vez que essas mulheres - muitas chefes do lar, mães e mantenedoras da família - possuem grandes responsabilidades que não lhes permitem interromper suas rotinas para se cuidarem quando acometidas por doença. Como pontuado por Azarias (2016AZARIAS, E. A. Kurialuka: webdocumentário sobre o autocuidado entre mulheres negras. 2016. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2016.) e Akotirene (2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.), as mulheres negras encontram-se na base da pirâmide social, colocadas em situação de subserviência, vitimizadas pela coalizão múltipla de opressões decorrentes do racismo, cisheteropatriarcado e imperialismo, entre outros, o que torna necessária a luta diária pelo sustento de suas comunidades.

Tal reflexão não é nova na discussão acerca das mulheres negras: Lélia Gonzalez, ainda em 1984 (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020.), pontua o local das mulheres negras na base da prestação de serviços, cuidando das demandas familiares praticamente sozinhas, sendo essa uma realidade que se reproduz até os dias atuais e que, possivelmente, leva ao entendimento da saúde como aspecto integral e de cuidado, visando ao bem-estar, a fim de manter a produtividade, a casa e a família.

Em contrapartida, percebe-se na fala das entrevistadas, apesar de qualquer adversidade a que estejam sujeitas, um tom otimista em suas concepções, com o pensamento de colocar saúde como a necessidade de se arrumar e cuidar não só do próprio corpo, o que pode ser considerado um caráter protetivo.

Autocuidado em saúde reprodutiva

O aspecto do autocuidado em saúde reprodutiva surgiu na fala das entrevistadas através da ‘necessidade de autocuidado’, podendo se dar por meio da manutenção de hábitos saudáveis e do uso de chás/banhos com folhas naturais. É, portanto, considerado “essencial, se cuidar” (E13, preta).

Novamente o aspecto biomédico se fez presente nas falas, mas não se limitou a tal, com outros aspectos da vida sendo considerados importantes: cuidar-se como mulher, como pessoa e aprender a se amar. Esses direcionamentos do cuidado podem ser entendidos como técnicas de autocuidado, ou, como Foucault (2006FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.) coloca, Cuidado de Si, sendo necessário cuidar da alma e não somente do corpo, com o objetivo de cuidar de si, por si mesmo, sendo essa uma atividade contínua, para toda a vida.

A união entre o cuidado com o corpo e o cuidado com a alma também aparece dentre os resultados de pesquisa bibliográfica realizada por Prestes (2018PRESTES, C. R. S. Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver. 2018. 206 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.), os quais apontam a compreensão de saúde, bem como a ressignificação de si e o cuidado compartilhado como importantes no processo de saúde, como é possível observar parcialmente na fala da entrevistada E16:

[Sobre o cuidado recebido durante o pré-natal] acho que é isso, mais cuidado e orientação que a gente não recebe dentro de casa, então recebe o apoio das psicólogas na casa da gestante […] ao corpo e ao psicológico, são um misto, saúde física e saúde mental. (E16, preta)

As práticas utilizadas pelas entrevistadas envolvem o uso de chás/banhos, categorias que, apesar de não serem mencionadas de forma direta, podem ser observadas em seus relatos.

Converso muito com a minha mãe. Às vezes ela ensina coisa de cabeça. As ervas, banho, chá, essas coisas que ela faz pra gente. (E13, preta)

Tomo chá. Qualquer chá, todo tipo de chá, me cuido de chá, tomo barbatimão pra inflamação, carqueja, eu tomo chá, melhor do que comprimido, não fico intoxicada com comprimido. (E07, preta)

Tais práticas surgiram não só como caráter preventivo, mas também como alternativa ao uso de medicamentos farmacológicos, assim ilustrada na fala da entrevistada E03 (parda): “É melhor do que tomar comprimido, chá de picão é pra várias coisas, bom pra infecção na urina, hepatite.

As práticas integrativas de cuidado, assim como colocado pelo Ministério da Saúde na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS em 2006 (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: PNPIC-SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006.), são fortemente ligadas à cultura de suas praticantes e muitas vezes transmitidas de maneira intergeracional, passadas de mãe para filha, como indicam as próprias entrevistadas. Em sua maioria, os ensinamentos quanto a banhos e chás provêm de suas mães e avós, passados adiante para as filhas - que, de acordo com os relatos, são mais resistentes ao uso e preferem os medicamentos farmacêuticos.

Resultados semelhantes foram encontrados por Lucena (2019LUCENA, T. S. Práticas de cuidado de puérperas quilombolas à luz da teoria transcultural. 2019. 96 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem e Farmácia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2019.) em sua dissertação, a qual procurou compreender as práticas de cuidado no puerpério de mulheres quilombolas. Tais práticas apresentavam forte identidade cultural e eram transmitidas por meio de gerações. Tendo isso em vista, aspectos culturais relacionados à nacionalidade precisam ser levados em consideração para uma análise interseccional, o que nem sempre ocorre, uma vez que se tende a utilizar a cosmovisão do olhar, prática ocidental, na qual o corpo negro é enxergado como Outro, apenas relevando sua cor, e tanto nacionalidade quanto território criam narrativas diferentes. Ao mesmo tempo que os achados desta pesquisa se aproximam dos achados de Lucena (2019)LUCENA, T. S. Práticas de cuidado de puérperas quilombolas à luz da teoria transcultural. 2019. 96 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem e Farmácia, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2019., também se distanciam, já que os trabalhos retratam diferentes territórios - que levam a diferentes concepções e práticas -, quais sejam, o quilombo e as periferias urbanas (Akotirene, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.; Collins, 2015COLLINS, P. H. Intersectionality’s definitional dilemmas. Annual Review of Sociology, [s. l.] v. 41, n. 1, p. 1-20, 2015. DOI: 10.1146/annurev-soc-073014-112142
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).

Pode-se relacionar a busca por estratégias de autocuidado a partir do uso de banhos de assento e chás com plantas medicinais, comumente advindas das religiões de matriz africana, ao arquétipo da mulher negra guerreira, forçada a ser forte, que causa influência nas técnicas de cuidado e autocuidado, uma vez que busca intervenções autônomas em estratégias novas, mas também ancestrais (Prestes, 2018PRESTES, C. R. S. Estratégias de promoção da saúde de mulheres negras: interseccionalidade e bem viver. 2018. 206 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.). Ao citar a necessidade de mudança de hábitos e quais hábitos saudáveis seguem, as entrevistadas demonstram o lado cotidiano do autocuidado, no qual as mulheres possuem papel ativo na manutenção de sua própria saúde - mesmo que elas não tenham reconhecido ativamente esses hábitos como técnicas de autocuidado.

Dentre os hábitos, pode-se citar “ter boa alimentação, fazer “exercícios […], tomar água […], higiene” (E6, preta). E ações adotadas para prevenir a piora de outros quadros, como a diabetes.

eu levava uma vida sedentária, até descobrir a diabetes, por conta da diabetes perdi dois filhos nascidos e mortos, então saúde pra mim é tudo, eu orno com exercícios e com uma vida mais saudável, nem sempre foi, mas hoje pra mim saúde é tudo. (E12, parda)

Os hábitos saudáveis surgiram como atividades realizadas pelas próprias mulheres para o cuidar de si (Foucault, 1985FOUCAULT, M. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.), e, de acordo com Orem (2003OREM, D. Validity in theory: a therapeutic self-care demand for nursing practice (1976). In: MCLAUGHLIN, K.; TAYLOR, S. G. (Ed.). Self-care theory in nursing: selected papers of Dorothea Orem. New York: Springer, 2003.), classificam-se como atos de autocuidado a partir do momento em que essas mulheres assumem o papel de agência de autocuidado. Todavia, ainda nas falas das entrevistadas, a estratégia de autocuidado foi associada diretamente à busca pelo cuidado do profissional de medicina, que ocupou uma posição social de importância nos relatos: “Não, só os médicos mesmo. Primeiramente Deus, depois os médicos” (E04, parda); “Eu passo no médico de seis em seis meses, peço remédio e ela me dá eu cuido em casa” (E18, preta).

A concepção do médico como pilar da manutenção de saúde não é acidental, principalmente quando se leva em consideração a construção do corpo feminino como objeto da medicina. A prática médica como saber científico é consolidada no século XIX em uma sociedade capitalista, na qual constitui-se o projeto de medicalização dos corpos. Dessa forma, a medicalização do corpo feminino está articulada a essa nova visão de prática médica, segundo a qual “existe um caráter específico na concepção de sua natureza, que está relacionada à questão da reprodução focalizada na mulher e na necessidade de controlar suas populações”, ressaltando que o viés adotado para a ideia de reprodução destoa quando se inclui a intersecção raça, observando-se um crescente interesse no controle do crescimento populacional (Carneiro, 2003CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS & TAKANO CIDADANIA (Org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.; Vieira, 2002VIEIRA, E. M. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.).

O médico passa a ser guardião da moral e dos costumes e, assim, o controle social se estende à sexualidade e reprodução, o que a autora (2002) ressalta que são duas questões que serão confundidas nesse processo de medicalização. À parte, vale dizer que isso ajuda a compreender por que a questão da saúde da mulher, ao menos para as entrevistadas, remete às questões reprodutivas e sexuais, dado que, para a mulheres negras, a discriminação racial e a discriminação de gênero operam em conjunto no controle dos corpos (Crenshaw, 2002CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. DOI: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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).

A figura do profissional de saúde como referência a quem as mulheres delegam o cuidado, e até mesmo o autocuidado, associa-se à ideia desses profissionais como o “outro eu”, que auxilia no cuidado do sujeito quando este, por algum motivo, não é capaz de cuidar-se. Apesar de as entrevistadas possuírem autonomia e até mesmo adotarem práticas diversas de autocuidado, estas não são reconhecidas por elas, uma vez que o autocuidado é, em suas falas, associado exclusivamente aos profissionais (Orem, 2003OREM, D. Validity in theory: a therapeutic self-care demand for nursing practice (1976). In: MCLAUGHLIN, K.; TAYLOR, S. G. (Ed.). Self-care theory in nursing: selected papers of Dorothea Orem. New York: Springer, 2003.). Percebe-se, então, como o entendimento de se cuidar assemelha-se ao de permitir que o outro cuide de si: “[Saúde é] Eu me cuidar bem e ter um bom acompanhamento na UBS” (E6, preta); “[Saúde é] Se cuidar. Assim, se cuidar, tratamento, passar no médico, coisas assim” (E09, preta); “Saúde de mulher, a gente se cuidar. Passar no médico, fazer exames de rotina” (E15, parda).

Pode-se sugerir que a dificuldade das mulheres em identificar atos que elas mesmas realizam para cuidar de si como atos de autocuidado conecta-se ao fato de essas ações para manutenção e funcionamento do Eu serem tão cotidianas e habituais que são vistas com maior simplicidade (Orem, 2003OREM, D. Validity in theory: a therapeutic self-care demand for nursing practice (1976). In: MCLAUGHLIN, K.; TAYLOR, S. G. (Ed.). Self-care theory in nursing: selected papers of Dorothea Orem. New York: Springer, 2003.).

Como observado, o uso de chás/banhos, prática tida como caseira, não foi considerado diretamente como autocuidado pelas entrevistadas, assim como a prática de hábitos saudáveis, muitas vezes concebida como algo simples e rotineiro.,. Ademais, a ideia do saber médico como superior favorece a concepção do profissional como único capaz de cuidar da saúde da mulher. Porém, isso não altera o fato de que as entrevistadas praticam autocuidado, o que ocorre é uma ausência de percepção de si como agente transformador.

Considerações finais

Após o exposto, chega-se a algumas conclusões acerca das concepções de saúde e autocuidado em saúde reprodutiva para as mulheres negras entrevistadas. A saúde surge como um aspecto de importância e relevância para a vida e o bem-estar das mulheres, com enfoque no aspecto de saúde reprodutiva mesmo antes de as perguntas serem direcionadas a tal aspecto.

A concepção de saúde envolve não apenas a ausência de doença, mas também a percepção da saúde integral e sua importância para o bem-estar e manutenção da qualidade de vida. Tal achado se mostra relevante por estar alinhado às concepções atuais acerca da saúde, mostrando a importância do cuidado integral para além do fisiológico.

As mulheres entrevistadas apresentavam atos de autocuidado que englobavam aspectos preventivos, saberes intergeracionais e práticas diárias, a fim de garantir não somente a ausência de doença, mas o bem-estar físico, emocional e psicológico. Entretanto, não atribuíam esses atos a uma estratégia de autocuidado, associando o autocuidado à consulta ao profissional de saúde. Com isso, ressaltamos a importância da propagação de informações, dos conhecimentos acerca da concepção de saúde e das práticas de cuidado e autocuidado, sob a análise pautada na interseccionalidade, evidenciando como essas mulheres podem ser protagonistas na manutenção do seu próprio bem-estar.

Por fim, apontam-se, neste estudo, perspectivas para investigações futuras, pois, no processo de seleção das entrevistadas, o acesso se restringiu àquelas mulheres que estão sendo cobertas e acompanhadas pelo Sistema Único de Saúde, por intermédio da Unidade Básica de Saúde, que se autodeclaram negras (pretas e pardas) e residem em um bairro urbano periférico. Assim, abre-se um precedente para a realização de mais pesquisas em maiores territórios, com diversidade sociorracial e étnica, e naqueles cujo acesso é restrito aos grandes centros, a fim de apreender novos saberes e propagar conhecimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2023
  • Aceito
    25 Ago 2023
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