Acessibilidade / Reportar erro

A saúde coletiva nos cursos de graduação em Educação Física

Public health in Physical Education undergraduate courses

Resumos

Este artigo sistematiza as concepções relacionadas à formação em saúde, em nível de graduação, de professores de educação física na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com esta pesquisa, a Saúde Coletiva é uma perspectiva marginalizada nos cursos; está isolada em disciplinas com pequena carga horária e enormes dificuldades em estabelecer contatos com a prática profissional. Embora constitua elemento de dissenso dentro de um programa pedagógico conservador, as disciplinas específicas, em ambas as faculdades, parecem não ter densidade suficiente para produzir superações curriculares que permitam o desenvolvimento da própria Saúde Coletiva.

Formação de Recursos Humanos; Saúde Pública; Sistema Único de Saúde (SUS)


The article systematizes the concepts related to Health education, at the undergraduate level, of physical education professors in Universidade de São Paulo (USP - University of São Paulo) and Universidade Estadual de Campinas (Unicamp - Campinas State University). According to this research study, Public Health is a marginalized perspective in courses. It is isolated in subjects that have a small number of hours and it has great difficulty in establishing contacts with the professional practice. Although it is an element of dissent within the conservative educational program, the specific disciplines, in both universities, seem not to have enough density to produce a curriculum that enables the development of Public Health.

Human Resources Education; Public Health; Sistema Único de Saúde (Brazil's National Health System)


PARTE I - ARTIGOS

A saúde coletiva nos cursos de graduação em Educação Física

Public health in Physical Education undergraduate courses

Heitor Martins Pasquim

Professor de Educação Física. Núcleo de Apoio à Saúde da Família São Paulo. Mestrando em Saúde Coletiva pela Escola de Enfermagem da USP. Endereço: Av. Jaguaré, 325, Bl 8, Ap. 31, CEP 05346-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: heitor.pasquim@usp.br

RESUMO

Este artigo sistematiza as concepções relacionadas à formação em saúde, em nível de graduação, de professores de educação física na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). De acordo com esta pesquisa, a Saúde Coletiva é uma perspectiva marginalizada nos cursos; está isolada em disciplinas com pequena carga horária e enormes dificuldades em estabelecer contatos com a prática profissional. Embora constitua elemento de dissenso dentro de um programa pedagógico conservador, as disciplinas específicas, em ambas as faculdades, parecem não ter densidade suficiente para produzir superações curriculares que permitam o desenvolvimento da própria Saúde Coletiva.

Palavras-chave: Formação de Recursos Humanos; Saúde Pública; Sistema Único de Saúde (SUS).

ABSTRACT

The article systematizes the concepts related to Health education, at the undergraduate level, of physical education professors in Universidade de São Paulo (USP - University of São Paulo) and Universidade Estadual de Campinas (Unicamp - Campinas State University). According to this research study, Public Health is a marginalized perspective in courses. It is isolated in subjects that have a small number of hours and it has great difficulty in establishing contacts with the professional practice. Although it is an element of dissent within the conservative educational program, the specific disciplines, in both universities, seem not to have enough density to produce a curriculum that enables the development of Public Health.

Keywords: Human Resources Education; Public Health; Sistema Único de Saúde (Brazil's National Health System).

Introdução

Um amigo contou ao sr. Keuner que se sentia melhor de saúde, depois de colher, no outono, todas as cerejas de uma grande cerejeira do jardim. Ele tinha se arrastado, disse, até as pontas dos galhos, e os movimentos diversos, gestos de agarrar em cima e em volta, deviam ter-lhe feito bem."Você comeu as cerejas?", perguntou o sr. Keuner, e, de posse de uma resposta afirmativa, disse: "Então esses são exercícios corporais que eu também me permitiria"

(Brecht, 2006, p. 66)

O curso de graduação em educação física é um dos maiores, em número de cursos, da área da saúde, com 893 cursos/habilitações em todo o Brasil. Sua distribuição pelos estados é bastante heterogênea, ocorrendo uma concentração significativa na região sudeste, particularmente no estado de São Paulo, com 231 cursos/habilitações, predominantemente em instituições privadas (INEP, 2009). Atualmente, a abertura de novos cursos de educação física não passa por avaliação do Conselho Nacional de Saúde (CNS), apesar de a resolução nº 350, de 9 de junho de 2005, estabelecer que a abertura de cursos na área de saúde deva seguir uma série de critérios de necessidade social, projeto político pedagógico e relevância social.

Segundo dados do Ministério da Saúde (Brasil, 2007), existiam mais de 137 mil profissionais formados em educação física no país, desses quase 51 mil só no estado de São Paulo. O Ministério da Saúde (Brasil, 2006) observa, ainda, que o mercado que mais absorve essa força de trabalho é o ensino escolar.

A educação física é reconhecida como profissão da saúde de nível superior pela resolução nº 287/98 do CNS. É identificada também pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior (Capes) e Conselho Nacional de Educação (CNE) como profissão da saúde.

Infelizmente, a consulta ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) revela uma distribuição dos cadastros dos professores de educação física em várias classificações diferentes, o que dificulta o acompanhamento de sua inserção no SUS.

Existe de fato uma má identificação da educação física na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), para a qual não existe uma orientação geral para cadastro no SUS. A recente orientação para cadastro das equipes NASF relaciona o profissional de educação física à família de classificação 2241 (Portaria n° 409, de 23 de julho de 2008).

No estado de São Paulo existem 158 profissionais nessa família de classificação, sendo: 105 cadastros em Avaliador físico, 36 em Técnico de desporto individual e coletivo (exceto futebol), 13 em Preparador físico, três em Ludomotricista, e um em Técnico de laboratório e fiscalização desportiva.

De fato, nos últimos anos, a educação física tem ganhado destaque no SUS e isso pode ser sentido em diversas iniciativas que vêm sendo adotadas pelo poder público, como, por exemplo, a Política Nacional de Promoção da Saúde, publicada em 2006 e a criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), criado em 2008, que guardaram com especial importância intervenções na área temática das "Práticas Corporais/ Atividade Física". Esses, entre outros, contribuíram para uma crescente expectativa de inclusão do professor de educação física no SUS, deixando em evidência a necessidade de pensar a formação em saúde.

Entretanto, Ceccim e Bilibio (2002) afirmam que os estudos sobre o SUS e a Saúde Coletiva ocupam lugar de pouco prestígio nas grades curriculares. A demanda crescente por profissionais aptos ao trabalho no SUS não efetivou uma formação interdisciplinar e voltada às necessidades de saúde. Araújo e colaboradores (2007) observam que há uma cisão entre os problemas da realidade e a organização disciplinar do conhecimento que orienta a formação dos profissionais de saúde. Os currículos na graduação são tradicionalmente organizados de modo a pouco contribuir para a resolução das questões concretas e cotidianas.

Segundo González e Almeida (2008), os professores também devem mudar para que ocorra qualquer alteração na formação superior da área da saúde. Educar não é domesticar; a falta de espaços de criação faz com que o sujeito se torne apenas um instrumento.

Carvalho e Ceccim (2006) apontam como um dos motivos para a fragilidade da formação em saúde, o privilégio corporativo das especialidades e o controle burocrático das instituições de ensino. Aprisiona-se o conhecimento historicamente produzido em grades justificadas por reservas de mercado e atos privativos.

Os apontamentos de Carvalho, Y. M. (2001) são bastante atuais para os estudos em saúde especificamente na área da educação física. Para a autora os estudos partem quase sempre da prerrogativa de aumento do gasto de energia, assumindo uma relação de causa e efeito positivo para o estado de saúde, sobretudo com base em dois aspectos: descrever fatores de risco e formular ações que visem a aumentar a adesão e a aderência a programas que propõem atividades físicas, restaurando supostas normalidades de saúde e de corpo.

Essa racionalidade concentra seu olhar na doença, seja na cura ou na prevenção, e associa-se às visões de mundo que colocam os hábitos e comportamentos considerados não saudáveis ligados à ideia de pecado, à violação de regras que levam prejuízos para a pessoa e para outros (Bagrichevsky e col., 2007).

Esse olhar característico na educação física se relaciona com a Nova Saúde Pública, que valoriza um padrão de normalidade inalcançável para a maioria da população, estimula a medicalização de situações sociais comuns ao cotidiano, reproduzindo um modelo de saúde sem sujeitos. Segundo Carvalho, S. R. (2004), a promoção da saúde volta-se, em geral, para o disciplinamento da vida social, para o controle social.

Afirma-se a influência das condições de vida para os níveis de saúde, embora não sejam estimulados os estudos sobre como a reprodução social da vida é determinada pelo modo de produzir a riqueza em uma formação social concreta (Breilh, 2006). Se é inquestionável a associação do processo de saúde às políticas relativas à moradia, ao ambiente, ao transporte, à alimentação, à educação, à cultura, passam-se à margem os interesses que se colocam como obstáculo para que essas sejam cumpridas em benefício da maioria da população.

A pesquisa aqui exposta coincide com a realização das reformas curriculares nas faculdades de educação física da USP e da Unicamp, proporcionando uma oportunidade institucional de mudanças. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para cursos de graduação em educação física, resolução nº 7, do CNE, foram promulgadas em 2004 e complementadas pela resolução nº 4 do CNE, em 2009, que dispõe sobre a carga horária mínima e os procedimentos relativos à integração e duração dos cursos de graduação em educação física.

As Diretrizes Curriculares preveem que o egresso do curso é responsável pela "prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde". Afirmação que se repete várias vezes no documento, mas que surge aparentemente apenas como reserva de mercado, tentando-se garantir, assim, um espaço no SUS. Essa reserva não impôs a priori nenhuma alteração na intervenção ou na formação profissional.

O processo aligeirado de definição de diretrizes curriculares, sob a política do Ministério da Educação (MEC), orientado por comissões de especialistas da Secretaria de Educação Superior (SESu) e dentro das Instituições de Ensino Superior (IES) (direções/burocracia), apresenta-se na leitura crítica de Taffarel e colaboradores (2006), com características de "assalto às consciências e amoldamento subjetivo". Ainda segundo os autores, o enfoque no currículo mínimo, universal, pretensamente cabível em todas as regiões, a ênfase na competência, nas habilidades, na adaptação ao mercado e a organização do conhecimento de forma etapista podem provocar um rebaixamento dos cursos, sendo incapaz de se tornar uma diretriz com alteridade e ousadia.

O objetivo desta pesquisa ajudar na compreensão de como está sendo realizado o ensino de Saúde Coletiva nos cursos de graduação de educação física em duas importantes instituições públicas de ensino do estado de São Paulo. O trabalho tem ainda como finalidade contribuir para o processo de reformas curriculares necessárias a esses cursos sob o ponto de vista de um sistema público e único de saúde.

Métodos

Trata-se de uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa que se valeu das técnicas de análise documental e entrevista. As escolas selecionadas foram a USP e a Unicamp, como representantes da esfera pública do ensino de graduação em educação física do estado de São Paulo.

A Escola de Educação Física e Esporte (EEFE), da USP, foi criada em 1931. É a primeira escola de educação física em caráter civil instituída no Brasil e conta com três distintos cursos de graduação: Bacharelado em Esporte, Bacharelado em Educação Física e Licenciatura em Educação Física. A Faculdade de Educação Física (FEF), da Unicamp, foi criada apenas em 1985 e foi a primeira do país a introduzir o bacharelado entre os cursos de educação física. Atualmente possui curso diurno e noturno com as modalidades de Bacharelado em Treinamento em Esportes e Licenciatura.

Os sujeitos entrevistados nesta pesquisa foram os responsáveis pelas disciplinas que desenvolviam conteúdos de Saúde Coletiva/Saúde Pública. As disciplinas são HSP0144 Fundamentos de Saúde Pública em Educação Física, na EEFE/USP, EF532 (antiga MH607) Saúde Coletiva e Performance Humana e EF215 (antiga MH210) Saúde Coletiva e Atividade Física, na FEF/Unicamp. Foram realizadas duas entrevistas, uma na USP com o docente responsável pela disciplina e outra na Unicamp com o docente e dois pós-graduandos integrantes do grupo de pesquisa também responsáveis pela disciplina. No caso da Unicamp foram os próprios entrevistados que optaram pela entrevista coletiva.

Foram utilizadas siglas para identificar os sujeitos nas falas transcritas nos resultados. Dusp para o docente da USP; Dunicamp para o docente da Unicamp; e Eunicamp1 e Eunicamp2 para os pós-graduandos da Unicamp.

As entrevistas ocorreram entre o segundo semestre de 2004 e o primeiro semestre de 2005, com roteiro semiestruturado. As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente validadas pelos entrevistados. As perguntas utilizadas foram: Quais são as características da disciplina? Como ela se relaciona com o resto do curso?

Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, expressando concordância para que o material pudesse ser utilizado na pesquisa, atendendo à Resolução nº 196/96.

Além das entrevistas, coletamos as ementas de todas as três disciplinas. A análise e a sistematização dos dados resultantes foram realizadas de acordo com as considerações de Bardin (1977) e Triviños (1987), que tomam como base metodológica de interpretação a corrente dialética, enfatizando o potencial qualitativo da análise de conteúdo.

Os resultados das entrevistas e da análise documental serão apresentados conjuntamente.

Resultados

Pelo estudo dos programas das disciplinas, observamos transformações na nomenclatura, podendo se destacar superações de paradigmas da saúde e da própria educação física.

Na EEFE/USP, a disciplina HSP0115 existia desde 1992, tendo sido chamada primeiro de Higiene Aplicada à Educação Física e os Desportos e depois Saúde Pública e Atividade Física. Foi desativada definitivamente do sistema em 2001. Na FEF/Unicamp, segundo o Dunicamp, em 1985, foi criada a disciplina Noções de Higiene, mas apenas em 1997 foi introduzida, de forma pioneira, a disciplina de Saúde Coletiva, até hoje pouco comum nos currículos de educação física.

A diferença entre os termos utilizados nos nomes dados às disciplinas é muito significativa, na FEF/Unicamp, "Saúde Coletiva", na EEFE/USP, "Saúde Pública", e antes "Higiene" em ambas. Segundo Paim e Almeida Filho (2000), existe, desde os anos 1980, uma tendência à utilização da primeira, com a intenção de diferenciá-la de expressões historicamente marcadas pelo paradigma da prevenção de doença e modelo campanhista.

No caso da USP, a substituição do termo "Desporto" por um paradigma de novo tipo, a atividade física, acompanha a introdução tardia de uma concepção não mais centrada no desporto comunitário, característica de políticas e programas da década de 1970 no Brasil que propunham a massificação de modalidades, quase sempre olímpicas, vistas como naturalmente saudáveis e inclusivas (Castellani Filho, 2006).

A quantidade de créditos específicos para as disciplinas nas duas faculdades é pequena. Na EEFE/USP, a disciplina obrigatória Fundamentos de Saúde Pública em Educação Física tem ao todo apenas 30 das 4035 horas necessárias para o curso, sendo a menor carga horária de todas as disciplinas, apenas equiparada à disciplina de Socorros de Urgência. Na FEF/Unicamp, a carga horária é maior quando somamos as duas disciplinas, mas apenas a disciplina Saúde Coletiva e Atividade Física é obrigatória, com 30 das 3225 horas obrigatórias do curso. A disciplina Saúde Coletiva e Performance Humana, com 60 horas, é ministrada somente para os estudantes que a solicitarem ou que escolherem se especializar em Treinamento em Esportes.

Dusp observa ainda que simplesmente aumentar a carga horária não alteraria significativamente a formação do estudante. Uma mudança na concepção do curso deveria acontecer para que os objetivos de uma formação com referencial na Saúde Coletiva sejam alcançados.

Dunicamp relata a existência de um "distúrbio bipolar institucional", que fragmenta a formação em dois polos antagônicos nos cursos, o licenciado e sua visão restrita na escola e o bacharel e sua visão restrita no treinamento. Ele considera que a divisão desfavorece uma prática integral.

Acho que ela [a disciplina Fundamentos de Saúde Pública em Educação Física] poderia ser a base da formação, mas acho que ela contribui muito modestamente hoje. (Dusp.)

Como se relaciona com o resto do curso? Acho que a relação é essa. Bem esquizofrênica. (Dunicamp.)

Provavelmente, tentando ser "base" para o curso, as disciplinas estão localizadas no começo dos cursos de graduação e não apresentam pré-requisitos. Mas Dusp chama atenção para o não diálogo com outras disciplinas, tampouco com outros cursos de graduação, o que, no mínimo, produz um processo pobre de formação e não forma para uma atuação em equipe multidisciplinar.

É um contato eventual de um semestre, uma vez por semana. Era ideal que tivesse alguma atividade de extensão, por exemplo, que juntasse as duas Escolas [EEFE e Faculdade de Saúde Pública]. (Dusp.)

A preocupação em aproximar o ensino e o serviço parece uma tendência nos dois cursos. Aparentemente ainda é uma aproximação sem território, ou seja, uma formação incapaz de identificar os significados, as dinâmicas e as necessidades locais de saúde.

O ano passado eu coloquei vários grupos visitando Unidades Básicas de Saúde pra mostrar que existe SUS, o que é, o que é uma Unidade Básica. A maioria se espanta de conhecer uma Unidade Básica. (Dusp.)

Dusp relata que a sua intenção com a disciplina é utilizá-la como um espaço de sensibilização. E essa sensibilização seria voltada para levantar olhares e despertar interesses para o trabalho no sistema de saúde. Porém, esse aspecto padece quando o sistema público é marcado como aquele que não dá certo ou aquele para aonde vão os que querem fazer caridade.

Às vezes fica - Ah, Serviço Público é pra quem se interessar, pra algumas pessoas, e não é o melhor. Com essa mentalidade, você não forma pro Serviço Público de Saúde. (Dusp.)

Dunicamp corrobora esse aspecto afirmando o caráter estruturante do fenômeno, pois é justamente a não inclusão da educação física na equipe de saúde justificada pelo parco financiamento do SUS que determina o desinteresse das universidades na formação para a saúde. E não o inverso.

Os alunos questionam muito. "Mas e aí, eu vou trabalhar, aonde eu vou? Como é que vai ser? Onde eu vou utilizar esses conceitos? Eu vou utilizar esses conceitos quando eu for dar aula? Quando eu estiver no personal trainer?". (Eunicamp2.)

Todos os depoimentos relataram que a incorporação da perspectiva da Saúde Coletiva nos cursos de educação física é recente. Partem do princípio de que os serviços poderiam desencadear atos criativos, inovadores, para atender necessidades que vão além dos problemas e riscos à saúde, mas percebem que a incorporação do professor de educação física nas instituições públicas de saúde não se concretizou ainda.

A gente já conversou com o pessoal da Comissão da Graduação, mostrou qual é o currículo. Quando a gente fala o que pretende trabalhar, eles acham interessante, mas acham também que é um problema da [Faculdade de] Saúde Pública. (Dusp.)

Essa distância se mantém, a despeito do entendimento de que a aproximação do professor de educação física com o SUS potencializaria uma preocupação mais voltada para a promoção da saúde. Segundo Dusp, essa aproximação é benéfica, porque os estudantes de educação física estão mais propensos a pensar a saúde e não a doença.

Eu acho que o que mexe melhor com a qualidade de vida, que fala do discurso da qualidade de vida é o professor de educação física, porque ele não se sente um cara que trabalha com o doente. Eventualmente, ele pode trabalhar com pessoas que estão doentes, mas ele trabalha com as pessoas. E se preocupa com a qualidade de vida. E é um discurso que está sendo incorporado há muito pouco tempo na saúde, a qualidade de vida. A saúde sempre tratou da doença. Então, a gente quando vai dar aula pra vocês, fala de doença também, porque é um viés que tem. (Dusp.)

Em consideração contrária, Eunicamp1 destaca a tendência biologicista da educação física, que se não está ligada diretamente à clínica e ao doente está em função deles. Dunicamp ressalva, ainda, que são comuns afirmações de prevenção que acabam por culpar a vítima como única responsável por hábitos de vida considerados não saudáveis, afirmações do tipo "Fazer uma caminhada não custa nada!", "Só depende de você!", e conclui que "[...] a atividade física não é pra quem quer, mas pra quem pode".

Os docentes responsáveis pelas disciplinas não são formados em educação física. Na FEF/Unicamp, o professor é médico sanitarista; na USP, a professora é enfermeira e, diferentemente do que acontece na FEF/Unicamp, ela não faz parte do corpo docente da EEFE/USP, mas sim, da Faculdade de Saúde Pública da USP, departamento de Prática de Saúde Pública.

O fato de dar aula lá e não estar lá tem muito valor. Eu fui a vários espaços fazer contato, tentar descobrir o que os alunos têm de aula pra poder ver como se relacionar com o resto do curso. (Dusp.)

Na FEF/Unicamp, o professor da disciplina também é responsável pelo Grupo de Saúde Coletiva/Epidemiologia e Atividade Física (GSCEAF), criado em 1988. A EEFE/USP, desde 2002 conta com o Grupo de Pesquisa Educação Física e Saúde Coletiva, que trabalha com duas linhas de pesquisa: Educação Física/ Saúde Coletiva e Estudos do Lazer/do Lúdico. Entretanto, diferentemente da Unicamp, na USP, não existe relação formal entre a professora responsável pela disciplina e o Grupo de Pesquisa.

O Grupo de Pesquisa da USP escolhe outro objeto para análise dentro da mesma relação educação física e saúde, as "práticas corporais". A escolha, que também não traz consenso, instrumentaliza-se de uma compreensão que tenta não dar ênfase ao gasto de energia, como faz a expressão "atividade física". O Grupo desenvolve há aproximadamente 10 anos parceria com o Centro Saúde Escola - Butantã.

No caso da FEF/Unicamp, o docente responsável pela disciplina está alocado no departamento de Ciências do Esporte, e essa relação saúde e performance é trabalhada a partir da "Epidemiologia das Capacidades Físicas", por ele definida como resistência, força muscular, flexibilidade, velocidade e coordenação motora, com relação às pessoas, ao tempo e ao espaço.

Segundo Moura (2006), o significado de performance está, de maneira geral, vinculado a grandes espetáculos. Porém, especificamente, na disciplina EF532, esse significado é ampliado, abandonando a imposição da competição e respeitando a individualidade, sendo possível, segundo seu olhar, programar atividades compatíveis com o equilíbrio das dimensões performáticas de cada praticante.

Considerações Finais

É conveniente lembrar que a formação institucionalizada, focada neste trabalho, não é a única possibilidade de contato do estudante com o conhecimento da Saúde Coletiva, tampouco que ele acontece preso necessariamente a disciplinas com o mesmo nome. Mesmo assim, podemos concluir que dentro das universidades estaduais paulistas, USP e Unicamp, as disciplinas dos cursos de educação física estudadas neste artigo não são suficientes para oferecer uma formação densa em Saúde Coletiva.

O ideal é que não precisássemos de disciplinas específicas que trabalhassem esses conceitos, mas que toda a formação os tivesse como campo de atuação. As disciplinas parecem desempenhar um papel contraditório, sendo, ao mesmo tempo, elemento de dissenso de um currículo conservador e não acumulando forças no sentido de mudanças institucionais que permitam o desenvolvimento da Saúde Coletiva.

É preciso indisciplinar o conhecimento, rompendo a falsa superioridade de uma estrutura que aloca marginalmente as ciências sociais e humanas, e não valoriza espaços alternativos de produção criativa e de gestão participativa. Os núcleos/grupos de pesquisa têm capacidade de desenvolver um ensino livre, mas seu caráter optativo não chega a colocar em questão mudanças na graduação.

Apenas por meio desse estudo não é possível apontar todas as possibilidades de mudanças práticas para a formação nos cursos de educação física em aproximação com o referencial da Saúde Coletiva. Mesmo assim parece viável afirmar que alterações institucionais poderiam definir pontos de não retorno para uma reforma profunda desde que acompanhadas de ampla participação, para democratizar experiências e envolver a maioria dos interessados. Reformas internas nos cursos que, condicionadas às mudanças gerais da educação física e da saúde, especialmente, as Diretrizes Curriculares Nacionais e ao trabalho organizado pelo Sistema Único, construíssem um marco de tensão para mudanças estruturais estratégicas.

Os currículos da EEFE/USP e da FEF/Unicamp são bastante diferentes entre si e parecem exercer influências distintas sobre as disciplinas e a própria formação. Outros estudos nesse sentido podem vir a posicionar de forma mais clara os conflitos e a história da relação entre os cursos e a Saúde Coletiva.

Por fim, a constatação de necessárias mudanças na formação em saúde do professor de educação física não é simplesmente o apontamento da frágil articulação entre as demandas em saúde, a formação de trabalhadores e a regulamentação do trabalho. Afinal, nossa tarefa não é reformar acriticamente os cursos aos novos paradigmas científicos e tecnológicos demandados pelas contradições do capitalismo, senão criar bases para um novo processo pedagógico.

Recebido em: 15/08/2008

Reapresentado em: 10/08/2009

Aprovado em: 25/09/2009

  • ARAÚJO, D.; MIRANDA, M. C. G.; BRASIL, S. L. Formação de profissionais de saúde na perspectiva da integralidade. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 31, n. 1, p. 20-31, 2007.
  • BAGRICHEVSKY, M. et al. Sedentário "sem-vergonha", saudável "responsável"?: problematizando a difusão do "estilo de vida ativo" no campo sanitário. In: BAGRICHEVSKY, M.; ESTEVÃO, A.; PALMA, A. (Org.). A saúde em debate na Educação Física Ilhéus: Editus, 2007. v. 3, p. 209-229.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo Lisboa: Ed. 70, 1977.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Dinâmica das graduações em saúde no Brasil: subsídios para uma política de recursos humanos. Brasília, DF, 2006.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Indicadores de gestão do trabalho em saúde: material de apoio para o Programa de Qualificação e Estruturação da Gestão do Trabalho e da Educação no SUS - ProgeSUS. Brasília, DF, 2007.
  • BRECHT, B. O sr. Keuner e os exercícios. In: ______. Histórias do sr. Keuner São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 66.
  • BREILH, J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.
  • CARVALHO, S. R. As contradições da promoção à saúde em relação à produção de sujeitos e a mudança social. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 669-678, 2004.
  • CARVALHO, Y. M. Atividade física e saúde: onde está e quem é o "sujeito" da relação? Revista Brasileira de Ciências do Esporte, São Paulo, v. 22, n. 2, p. 9-21, 2001.
  • CARVALHO, Y. M.; CECCIM, R. B. Formação e educação em saúde: aprendizados com a saúde coletiva. In: CAMPOS, G. W. S. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 149-180.
  • CASTELLANI FILHO, L. Educação física no Brasil: a história que não se conta. 12. ed. Campinas: Papirus, 2006.
  • CECCIM, R. B.; BILIBIO, L. F. S. Articulação com o segmento estudantil da área da saúde: uma estratégia de inovação na formação de recursos humanos para o SUS. In: FERLA, A. A.; FAGUNDES, S. M. S. (Org.). Tempo de inovações: a experiência da gestão na saúde do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: DaCasa, 2002. p. 163-177.
  • GONZÁLEZ, A. D.; ALMEIDA, M. J. Onde nascem e como se concretizam as mudanças na formação superior da área da saúde? Revista Espaço para a Saúde, Londrina, v. 10, n. 1, p. 25-33, 2008.
  • MOURA, A. C. S. MH 607 FEF/UNICAMP, onde saúde coletiva e performance humana se encontram: uma pesquisa-ação. 2006. Tese (Mestrado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
  • PAIM, J. S.; ALMEIDA FILHO, N. A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva Salvador: Casa da Qualidade, 2000.
  • TAFFAREL, C. N. Z. et al. Uma proposição de diretriz curricular para a formação de professores de Educação Física. PRESENTE!, Salvador, v. 14, n. 53, p. 40-47, 2006.
  • TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 2010

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2008
  • Aceito
    25 Set 2009
  • Revisado
    10 Ago 2009
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br