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A “CRISE DO CUIDADO” E OS CUIDADOS NA CRISE: REFLETINDO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

THE “CARE CRISIS” AND THE CARE IN THE CRISIS. REFLECTIONS FROM THE BRAZILIAN CASE

Resumo

O texto reflete sobre os diversos modos de significar as práticas do cuidar, explorando as especificidades que esses modos adquirem em nossa realidade. Com base em evidências retiradas do caso brasileiro, o texto documenta quão longa e diversa tem sido a chamada “crise do cuidado” e explora como essa organização social do cuidado foi desafiada pela pandemia, obrigando-nos, assim, a repensar a relação entre cuidado e crise. Conclui-se que, dada a especificidade da nossa organização social do cuidado, o diagnóstico de uma recente “crise do cuidado”, tal como cunhado na literatura sobre os países do norte, talvez mereça ser repensado, tomando em conta os desafios colocados por realidades nas quais a mercantilização do cuidado se deu num contexto de persistente familiarização e fraca externalização dessa atividade, sob condições de elevada desigualdade, pobreza extrema, e fragilidade das políticas estatais de bem-estar.

Palavras-chave
Cuidado; Crise; Reprodução social; Pandemia; Brasil

Abstract

Once we consider the social organization of care in Latin America, would it be appropriate to recognize a “care crisis”, as coined in the literature on the Global North? Or shall we recognize that a long crisis of social reproduction has been into place, in countries where the commodification of care occurs under weak externalization of care activities, high inequality, extreme poverty levels, and scarce welfare policies? How did the SARS-COVID 19 pandemic impact such a scenario? Understanding the specificities of care regime and care crisis requires exploring the different meanings associated to care practices and care circuits, and its specificities in poor and unequal countries; based on evidence taken from the Brazilian case, the text documents how long and diverse the so-called “care crisis” has been. Finally, it explores how the pandemic challenged that modality of social organization of care, reframing the relationship between care and crisis.

Keywords
Care; Crisis; Social reproduction; Pandemics; Brazil

INTRODUÇÃO

Há muito tempo a literatura tem apontado para a existência de uma “crise do cuidado”. Intérpretes que se debruçaram sobre a realidade das nações mais afluentes chamaram a atenção para que essas estariam sendo confrontadas com um crescente “déficit de cuidados”, uma vez que a demanda não estaria sendo adequadamente atendida, seja pelas relações sociais, seja pelas infraestruturas até então existentes. Esse déficit seria o resultado de uma multiplicidade de fatores, os quais abrangem desde a relutância dos homens em se envolver em cuidados não remunerados ou pagos, passando pelo aumento da participação das mulheres no trabalho remunerado, tendência que conviveria com o crescente envelhecimento das populações e com a redução no tamanho das famílias, pari passu com a contração das políticas de proteção num contexto de crise dos Estados de bem-estar social (Ehrenreich & Hochschild, 2002Ehrenreich, Barbara & Hochschild, Arlie. (2002). Global Woman: Nannies, Maids and Sex Workers in the New Economy. New York: Henry Holt and Company. ).

Entretanto, dada a especificidade da organização social do cuidado na América Latina, seria adequado afirmar que estaríamos diante de uma “crise do cuidado”, tal como cunhado na literatura que se debruçou sobre a recente realidade dos países do norte? Como, à luz da literatura latino-americana que vem crescentemente se debruçando sobre o tema do cuidado, podemos contribuir para bem entender a especificidade desse fenômeno, enriquecendo nossas interpretações a partir da análise dos regimes de cuidado nos países do sul? Finalmente, como a pandemia do SARS-CoV-2, a covid-19, impactou as infraestruturas, as necessidades e as representações sobre o cuidado, e como tal impacto assumiu formas específicas em países, como o Brasil, marcados pela fragilidade histórica das políticas públicas de proteção econômica, pela elevada desigualdade social e níveis alarmantes de pobreza?

Para confrontar as indagações precedentes, lançarei mão de três portas de entrada, dedicando a cada uma delas uma das seções que se seguem a esta primeira, de natureza introdutória. Na segunda seção, tomarei o prisma do cuidado como prática, estabelecendo os pontos de partida da minha reflexão. Assim, poderei, na terceira seção, sistematizar os diversos modos de significar as práticas do cuidar, explorando as especificidades que esses modos adquirem em países pobres e desiguais; para tal, lançarei mão de evidências empíricas buscadas no caso brasileiro de maneira a documentar quão longa e diversa tem sido, entre nós, a “crise do cuidado”, talhada pelo modo particular como a reprodução social tem sido desafiada entre nós. Na quarta seção explorarei essas ideias por um outro prisma, observando como uma tal organização do cuidado foi desafiada pela pandemia. Desse modo, arriscarei algumas considerações teóricas sobre como são variadas as formas de declinar a relação entre cuidado e crise. Por fim, uma quinta seção recolherá as principais ideias desenvolvidas ao longo do texto para concluir refletindo sobre o modo pelo qual podemos pensar a “crise do cuidado”, concebida enquanto “déficit de cuidado”, em seus elos com a especificidade, entre nós, do trabalho de reprodução social, a qual engloba as variadas formas do “trabalho doméstico”, remunerado e não remunerado, bem como do “trabalho de cuidado”, seja ele formal ou informal, em domicílio ou em instituições. Um trabalho que, por contribuir à reprodução do viver, não pode ser bem compreendido se desconsiderarmos suas dimensões emocional e afetiva, expressas nos modos de conferir significado ao ato de cuidar.

Duas âncoras sustentarão esse esforço, e espero que ambas transpareçam no desenvolvimento do argumento. A primeira delas se assenta na perspectiva do cuidado como um trabalho (Molinier, 2011Molinier, Pascale. (2011). Antes que todo, el cuidado es un trabajo. In: Arango, Luz Gabriela & Molinier, Pascale (eds.). El trabajo y la ética del cuidado. Medellín: La Carreta, p.45-64. ). Nesse sentido, a par de apreender o cuidado como uma disposição ou uma ética (Gilligan, 1982Gilligan, Carol. (1982). In a Different Voice, Psychological Theory and Women’s Development. Cambridge, MA: Harvard University Press. ), há que considerá-lo como uma prática — daí porque um trabalho — marcado por profundas e consubstanciais desigualdades 1 1 No dizer de Tronto ( 1987 ), a sua dimensão moral deve ser buscada na disposição ética que se associa ao estatuto de dominado(a) . .

A segunda âncora nos fará interrogar as condições e limites de validade de interpretações produzidas a partir da experiência histórica dos países do norte global. Isso implica interpelar categorias e achados consagrados pela literatura do campo, repensando-os à luz de uma realidade específica, a de países do sul global 2 2 Ou dos vários “sul”, como formulado por Borgeaud-Garciandía, Guimarães e Hirata ( 2020 ). , como é o caso do Brasil, fonte da maior parte das evidências empíricas doravante acionadas.

O trabalho de cuidar ou o cuidado como prática: Fixando pontos de partida

Trinta anos já se passaram desde quando Berenice Fisher e Joan Tronto cunharam aquela que se tornou a mais recorrente e consagrada definição de “cuidado”. Retomando as palavras das autoras (Fisher & Tronto, 1990Fisher, Berenice, & Tronto, Joan. (1990). Toward a Feminist Theory of Caring. In: Abel, Emily K. & Nelson, Margaret K. (eds.). Circles of Care: Work and Identity in Women’s Lives. Albany: State University of New York Press.: 40, tradução nossa):

Sugerimos que o cuidado seja visto como uma atividade da espécie que inclui tudo o que fazemos para manter, continuar e reparar nosso “mundo”, de modo que nele possamos viver da melhor forma possível. Esse mundo inclui nossos corpos, nós mesmos e nosso ambiente, os quais procuramos entrelaçar em uma teia complexa e que sustente a vida. [ We suggest that caring be viewed as a species activity that includes everything that we do to maintain, continue, and repair our “world” so that we can live in it as well as possible. That world includes our bodies, ourselves, and our environment, all of which we seek to interweave in a complex, life-sustaining web .]

Assim concebido, enquanto uma “atividade da espécie”, o ato de cuidar envolve uma pluralidade de práticas. Vale dizer, ele não se traduz em uma forma particular de agir; não se restringe a um modo concreto de intervir sobre algo de que se cuida. Ao contrário, o cuidar, enquanto prática que se pretende universal, se define pelo fim que o move — um télos, um valor, o do “bem viver”.

Ora, sendo o cuidado um valor universal, um télos a mover a espécie humana, apreendê-lo enquanto prática requer dar conta da multiplicidade de maneiras interconectadas de agir nas quais a busca do bem viver se encarna. Entretanto, cada sociedade constrói suas escolhas sobre quem cuidará de quem (ou do que), como e por que o fará. Tronto ( 2013Tronto, Joan. (2013). Particularisme et responsabilité relationnelle en morale: une autre approche de l’éthique globale. In: Gilligan, Carol; Hochschild, Arlie & Tronto, Joan. Contre L’Indifférence des privilégiés: à quoi sert le care. Édité et présenté par Patricia Paperman et Pascale Molinier. Paris: Payot, p. 99-131. ), invertendo os termos intuitivamente consensuais dessa equação, sugere que o modo como uma sociedade está organizada resulta das suas escolhas sobre o modo de produção do cuidado. Ou seja, a divisão social do trabalho de cuidar, compreendidas as múltiplas práticas que lhe são correlatas, estaria no fundamento da ordem social, seria uma das formas elementares da vida em sociedade.

Nesse sentido, entendo que refletir sobre o cuidado como prática nos obriga a atentar para os modos como os indivíduos conferem significado à relação social nele envolvida. Isso porque, ao variar o modo como uma atividade concreta é significada, não somente se alteram aqueles que são socialmente reconhecidos como agentes do seu exercício, como (e mais interessante ainda) se criam as condições para que tais agentes identifiquem (ou não) a atividade que desempenham como uma atividade de cuidado, nomeando-a (ou não) como trabalho ou como cuidado. Dessa maneira, diferenciam-se as relações sociais (em mercantis ou não mercantis) que sustentam o exercício dessa atividade de cuidado, estabelecendo-se fronteiras e hierarquias entre essa e outras atividades similares de cuidar. Portanto, variam as formas de retribuição pelo trabalho desempenhado e os meios que materializam tal retribuição (que podem ou não ser monetários). Constituem-se, assim, distintos “circuitos de cuidado”, que, a depender do modo como se compõem, dão os contornos à organização social do cuidado que se erige e especifica uma dada realidade empírica.

Sabemos que é notável a pluralidade das formas e relações nas quais o cuidado se expressa e através das quais o trabalho de cuidado se exerce. Todavia, sugiro que, em sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais (como as sociedades latino-americanas), e em momentos em que tais desigualdades se ampliam de forma notável (como em conjunturas de crise), tal pluralidade mostra-se ainda mais ampla 3 3 Como bem sublinharam várias autoras (Borgeaud-Garciandía; Guimarães & Hirata, 2020 ; Destremau & Georges, 2017 ; ILO, 2018 ; Razavi, 2007 ), esse gradiente é sem dúvida maior que o das chamadas “profissões do cuidado”, termo pelo qual o tema é apresentado e utilizado na produção acadêmica, que inicialmente refletiu sobre a realidade do cuidado nos países do norte global. . Disso tratarei em seguida.

Os diversos modos de significar as práticas do cuidar

Assumir que o cuidado é algo que todos requerem ao longo da sua vida, e não só uma demanda de indivíduos dependentes — idosos, crianças menores e pessoas com necessidades especiais —, nos obriga, como dito antes, a reconhecer que o cuidado tem múltiplas faces, facetas ou formas de aparecer como relação na vida em sociedade. Essas facetas são diversas e mobilizam atores que percebem a si mesmos e a relação que estabelecem de maneiras igualmente distintas. Nesse sentido, o modo de perceber a relação de cuidado é importante a ponto de fazê-la visível ou invisível, seja para os seus provedores e beneficiários, seja para os produtores de estatísticas e de políticas, seja até mesmo para nós, os seus intérpretes. Por isso, há que descerrar essa cortina e trabalhar analiticamente essas várias formas. À luz da experiência brasileira, propus que pelo menos três delas ganhavam relevo.

O cuidado pode ser provido, e recebido, como algo que “nada mais é que” uma “ obrigação4 4 Por meio do uso das aspas e do itálico quero indicar que se trata de uma noção êmica. Esse recurso será usado doravante no texto. . Ora, por ser assim percebido e nomeado, o trabalho que se performa resulta invisível, naturalizado ao se transmutar no desempenho de um papel social compulsório, pelo qual não se paga, ou que se paga com recompensa afetiva, com “ amor ”. Ademais, embora se trate de uma obrigação, há que ter em conta que esta é seletiva — pesa nos ombros das mulheres, tal como a literatura, em todos os quadrantes, tem se encarregado de demonstrar (ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ) 5 5 Na América Latina, as mulheres se veem socialmente obrigadas a realizar, em média, 74% das horas de trabalho não remunerado. Um percentual que esconde uma enorme variedade e valores extremos, como é o caso de El Salvador, em que as mulheres se responsabilizam por 3 horas e 48 minutos em média por semana, enquanto cabem aos homens meros 43 minutos do cuidado não pago (ILO, 2018 ). . Tais obrigações marcam o cotidiano não apenas das “esposas” (companheiras e/ou mães), mas também das “meninas” (filhas, irmãs, sobrinhas, netas, “crias da casa”) e das “avós” — fazendo-o de um modo ainda mais intenso quando essas são mulheres negras, tal como fartamente documentado no Brasil (Pinheiro; Tokarski & Posthuma, 2021Pinheiro, Luana; Tokarski, Carolina Pereira & Posthuma, Anne Caroline. (2021). Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Brasília, DF: IPEA. ).

São cargas que pesam tanto mais quanto menos efetiva é a presença do Estado, essencial para socializar tarefas, externalizando-as e desfamiliarizando-as. Por isso mesmo, há que ter em conta uma outra característica que marca o cuidado que se provê como “ obrigação ”: ele impõe penalidades àquelas que cuidam, privando-as de direitos. Às meninas há a penalidade de estar fora da escola (por curtos ou longos períodos), de modo a se manterem em casa cuidando dos irmãos menores e assegurando as condições para que as mulheres adultas, em geral, suas mães, possam sair em busca de rendimentos (Abramo; Venturi & Corrochano, 2020Abramo, Helena; Venturi, Gustavo & Corrochano, Maria Carla. (2020). Estudar e trabalhar: um olhar qualitativo sobre uma complexa combinação nas trajetórias juvenis. Novos Estudos Cebrap, 39/3, p. 523-542. ; Rocha et al., 2020Rocha, Enid; Costa, Joana; Silva, Claudia; Posthuma, Anne & Caruso, Luiz. (2020). Diferentes vulnerabilidades dos jovens que estão sem trabalhar e sem estudar: como formular políticas? Novos Estudos Cebrap, 39/3, p. 545-562. ). Às mulheres-cônjuges são impostas as penalidades de se ausentar do mercado de trabalho (numa inatividade econômica forçada); ou, quando nele se inserem, a contingência de se assujeitar a penalidades salariais que as desigualam pelos rendimentos (Ciccia & Sainsbury, 2018Ciccia, Rossella; Sainsbury, Diane. (2018). Gendering Welfare State Analysis: Tensions between Care and Paid Work. European Journal of Politics and Gender, 1/1-2, p. 93-109 ). Às avós não sobra mais do que a necessidade de seguirem se responsabilizando pelo trabalho doméstico não remunerado, mesmo depois de despender tantos anos de sua trajetória nesses afazeres na condição de “mães” (Batthyány & Genta, 2020Batthyány, Karina; Scavino, Sol & Perrotta, Valentina. (2020). Cuidados infantiles y trabajo remunerado en tres generaciones de mujeres madres de Montevideo: los recorridos de las desigualdades de género. Dados, 63/4, p. 1-37. ).

Nesse sentido, as desigualdades no cuidado que se exerce como “ obrigação ” têm um forte (embora pouco estudado) componente geracional, além da reconhecida desigualdade de gênero e etária. Isso porque, se na geração das nossas mães, as mulheres estavam em ampla maioria retidas em casa, especializadas em prover esse cuidado não remunerado e invisibilizado, na nossa geração, as mulheres, independentemente de classe e cor, estão crescentemente inseridas no mercado, produzindo e provendo rendimentos 6 6 Na América Latina, em média, as taxas de participação feminina aumentaram de 40,5% em 1991, para 51,5% em 2018 (ILO, 2018 ). , ao tempo em que seguem responsabilizadas pelo trabalho doméstico não remunerado. A “ obrigação ” de cuidar, nesse sentido, pesa nos ombros de mulheres que acumulam jornadas de trabalho profissional e de cuidado.

Ora, essa reflexão já nos deixa diante de uma segunda modalidade de provimento do cuidado — aquele que é performado e emicamente reconhecido enquanto uma “ profissão ”. Não sem razão as profissões do cuidado foram a porta de entrada privilegiada pela agenda acadêmica nos países do Norte (Duffy; Albelda & Hammonds, 2013Duffy, Mignon; Albelda, Randy & Hammonds, Clare. (2013). Counting Care Work: The Empirical and Policy Applications of Care Theory. Social Problems, 60/2, p. 145-167. ; Duffy & Armenia, 2019Duffy, Mignon & Armenia, Amy. (2019). Paid Care Work around the Globe: A Comparative Analysis of 47 Countries. Luxembourg: LIS. (LIS Working Paper, 758, Jan.). ; ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ; Razavi, 2007Razavi, Shahra. (2007). The Political and Social Economy of Care in a Development Context: Conceptual Issues, Research Questions and Policy Options. Geneva: UNSRID. ). Também na América Latina e Caribe as mulheres aparecem como figuras chave no provimento de serviços de cuidado, de sorte tal que, em fins da década passada, uma em cada três mulheres ali se empregam (ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ) .

Todavia, é enorme a variedade das modalidades que o trabalho profissional de cuidado assume entre nós, no sul. Tais modalidades compreendem desde as configurações mais tradicionais e objeto dos primeiros estudos acadêmicos (como as atividades ligadas à saúde e enfermagem) até as que emergem mais recentemente (como o trabalho das “cuidadoras”, domiciliares e em instituições de longa permanência), passando pelas longevas formas do serviço doméstico, segmento essencial no emprego de mulheres. Se o seu afluxo em grandes números é recente nos países do norte, elas são figuras que marcam a história dos arranjos familiares das classes médias e altas em países latino-americanos. A presença de mulheres racializadas no serviço doméstico, com remuneração monetária ou sem ela, é uma constante, estivessem as patroas engajadas no mercado de trabalho ou não.

No Brasil, por exemplo, as “trabalhadoras domésticas” constituem a mais importante das ocupações envolvidas no circuito do cuidado como “ profissão ”. De fato, é pelo assalariamento de uma massa crescente de mulheres pobres e negras (Pinheiro; Tokarski & Posthuma, 2021Pinheiro, Luana; Tokarski, Carolina Pereira & Posthuma, Anne Caroline. (2021). Entre relações de cuidado e vivências de vulnerabilidade: dilemas e desafios para o trabalho doméstico e de cuidados remunerado no Brasil. Brasília, DF: IPEA. ) que se viabiliza o trabalho domiciliar de cuidado, direto e indireto. Isso porque, entre nós, a comodificação do cuidado não teve como contraparte a equivalente externalização do serviço de cuidar, mas conviveu com a permanente internalização de provedoras subalternas de cuidado, que passaram a ser remuneradas desde o final da escravidão. Não sem razão, o país se destaca internacionalmente por um regime de cuidado assentado no notável quantitativo de trabalhadoras domésticas. Mas esse está longe de ser um fenômeno exclusivamente brasileiro. As trabalhadoras domésticas remuneradas se tornaram uma das marcas estruturantes da organização social do cuidado em diversos outros países nos quais as políticas públicas se mostram frágeis e os fluxos migratórios alimentam a demanda domiciliar por cuidado remunerado (ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ). Esse é outro fator que altera, entre nós, o sentido da “crise do cuidado”.

A ele se associa uma outra especificidade do nosso regime de cuidado. Nele, as distintas configurações do cuidado como “ profissão ” deixam entrever as marcas das desigualdades que se expressam no variado perfil (etário, racial e social) das suas trabalhadoras. Mas também denotam o diferenciado reconhecimento social que se confere às suas atividades, bem como a diversidade da cesta de direitos a que cada uma dessas configurações tem acesso.

Sabemos que o desenvolvimento de um forte segmento assentado em ocupações especializadas e remuneradas que sustentem formas desfamiliarizadas de cuidado — notadamente nos setores de educação e saúde — pode ser estratégico para o atendimento das necessidades e para os avanços em termos de justiça e equidade de gênero. Isso, entretanto, requer condições mínimas de equidade social entre as profissionais provedoras do cuidado (o que está longe de acontecer na América Latina), além de equidade econômica (em especial de renda) que capacite as usuárias a contratar tais serviços (Duffy & Armenia, 2019Duffy, Mignon & Armenia, Amy. (2019). Paid Care Work around the Globe: A Comparative Analysis of 47 Countries. Luxembourg: LIS. (LIS Working Paper, 758, Jan.). ), o que não ocorre nos países do “sul global” (Borgeaud-Garciandía; Guimarães & Hirata, 2020Borgeaud-Garciandía, Natacha; Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). Introduction: Care aux suds: quand le travail de care interroge les inégalités sociales. Revue internationale des études du développement, 242, p. 9-34. Dossier: Care, inégalités et politiques aux Suds. ). No Brasil, por exemplo, conforme a Pesquisa de Orçamentos Familiares veiculada em 2018, apenas dois em cada dez domicílios dispõem de renda suficiente para contratar qualquer tipo de trabalho remunerado de cuidado (Guimarães & Hirata, 2020Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades Cotia, SP: Ateliê. ).

Isso nos coloca diante de uma terceira grande porta de entrada analítica aos modos de provimento de cuidado. Ela se refere àquelas formas que proliferam em contextos sociais em que a pobreza extrema veda aos indivíduos o acesso a serviços mercantilizados e em que igualmente claudicam as iniciativas de políticas públicas. No Brasil, com frequência, as ações de provimento de cuidado ganharam, nesse contexto, o sentido êmico de “ ajudas ”, as quais costumam envolver múltiplas formas de “ tomar conta ” (Fernandes, 2021Fernandes, Camila. Casas de “tomar conta” e creches públicas: relações de cuidados e interdependência entre periferias e Estado. Revista de Antropologia, 64/3, 2021. ; Guimarães & Hirata, 2020Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades Cotia, SP: Ateliê. ; Moreno, 2019Moreno, Renata Faleiros Camargo. (2019). Entre a família, o Estado e o mercado: mudanças e continuidades na dinâmica, distribuição e composição do trabalho doméstico e de cuidado. Tese de Doutorado. PPGS/Universidade de São Paulo, São Paulo. ; Vieira, 2017Vieira, Priscila. (2017). Trabalho e pobreza no Brasil: entre narrativas governamentais e experiências individuais. Tese de Doutorado. PPGS/Universidade de São Paulo. ).

Nesse caso, e tal como naquele do cuidado como “ obrigação ”, as atividades desempenhadas no cuidar não são entendidas como “trabalho”. Entretanto, e à diferença do caso anterior, as pessoas que as performam nem sempre se identificam como cumprindo qualquer “ obrigação ” de cuidar. Tais atividades de cuidado se sustentam maiormente (e se reproduzem a partir de) relações sociais assentadas na reciprocidade, em geral interindividual, a qual não raro (como vimos na pandemia) se desdobram em formas grupais, ou comunitárias, de relações sociais de cuidado. O dinheiro pode jamais por ali circular como forma de retribuir o trabalho efetivamente desempenhado, muito embora, uma vez existindo (o que é raro como fluxo regular), ele seja sempre bem-vindo para quem cuida, dada a privação social a que estão sujeitas, tanto as provedoras quanto as beneficiárias do cuidado como “ ajuda ” (Guimarães, 2020Guimarães, Nadya. (2020). O cuidado e seus circuitos: significados, relações, retribuições. In: Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades Cotia, SP: Ateliê, cap. 3, p. 91-128. ). Aqui, a dimensão de classe é muito saliente. Claro que, como sempre, ela está junto com o viés de sexo, e com recorrente presença da população negra.

Em suma, ao abrir o leque de modo a incluir várias formas de significar a mesma atividade concreta de cuidar — o “cuidado como profissão ”, o “cuidado como obrigação ” e o “cuidado como ajuda ” —, observamos que, sendo o cuidado um valor universal, um télos a mover a espécie humana, apreendê-lo enquanto prática, enquanto um trabalho essencial à reprodução social, requer dar conta, em termos analíticos, da multiplicidade de facetas interconectadas de cuidar nas quais a busca do bem viver se encarna. Sem isso, perderemos as especificidades que conformam a organização social do cuidado em distintos países e latitudes, aí compreendidos os elos entre cuidado e crise, tema central deste texto.

Ora, o que se passa com tal configuração quando ocorre a eclosão da recente crise sanitária da covid-19? Como uma tal organização social, nutrida por um contexto de crise longeva da reprodução social, é desafiada pelo modo como a pandemia atinge sociedades historicamente talhadas pela pobreza e desigualdade?

O cuidado na crise: declinações variadas para uma relação… e novos desafios à teorização

Quando assumimos que o cuidado é uma constante social, as questões relativas a quem cuida de quem, quem deve cuidar de quem, em que bases e sob que condições, em que estágio do curso da vida, e quem é elegível para o cuidado são, todas elas, constitutivas da ordem social. Nesse sentido, a presença ou ausência de cuidados é visível especialmente em momentos (ou situações) de vulnerabilidade e necessidade — e isso se torna sobretudo saliente sob crises, sejam elas decorrentes de fatores externos ao indivíduo (guerras, crises econômicas, ou sanitárias, como a que vivemos), ou internos ao indivíduo (doenças, perdas etc.).

Nesses momentos, um atributo da relação social de cuidado se sobressai: justamente por ser uma constante social, essa relação opera como um dispositivo moral, central à negociação das condições de reprodução social, vale dizer, de reprodução da vida; um dispositivo moral que opera em múltiplos sentidos, dois dos quais são especialmente importantes. Em primeiro lugar, e seguindo uma pista argutamente sugerida por Glenn ( 2010Glenn, Evelyn Nakano. (2010). Forced to Care: Coercion and Caregiving in America. Cambridge, MA: Harvard University Press. ), seria possível afirmar que, nos contextos de crise, fica especialmente saliente a assimetria existente entre quem presta cuidado e quem o recebe. Assim, como já notara Glenn, enquanto o ato de prover cuidado parece associar-se a atributos como capacidade, potência ou poder social, o de receber cuidados tende a denotar vulnerabilidade, necessidade, mas também sinaliza para alguém que dele se fez merecedor.

Ora, a ideia do “ser merecedor” de cuidado flagra um segundo modo de operação desse dispositivo moral: se cuidar significa inclusão e proteção para certos indivíduos ou grupos, também pode significar exclusão e negligência para com outros. Sobretudo em tempos de crise, ou sob condições de precariedade, o cuidado se torna um recurso escasso, que é distribuído entre aquelas pessoas que são percebidas como legítimas, e daí elegíveis por características que os incluem em circuitos de proteção. Como bem percebeu Drotbohm ( 2015Drotbohm, Heike. (2015). Shifting Care Among Families, Social Networks, and State Institutions in Times of Crisis: A Transnational Cape Verdean Perspective. In: Alber, Edmund & Drotbohm, Heike (eds.). Anthropological Perspectives on Care. New York: Palgrave Macmillan, cap. 5, p. 93-114. , grifos nossos), “no cuidado está em jogo o movimento de conectar posições, moldadas por assimetrias — entre indivíduos, grupos, mas também sociedades”. Esse é um movimento que se expressa no plano das relações e hierarquias interpessoais, mas que também transparece enquanto um sustentáculo da seletividade das políticas sociais e de bem-estar, e, sem dúvidas, das políticas e ações voltadas ao provimento de cuidado.

Vê-se, assim, que a relação entre cuidado e crise pode ser declinada de diferentes formas. Por um lado, ela varia a depender do circuito de cuidado em que o impacto da crise seja observado. Por outro lado, a crise deve ser pensada como um catalisador de novos enlaces entre práticas de cuidado, o que nos obriga a capturar os diferentes circuitos de cuidado em sua dinâmica, recusando abordagens que os tratem como meras classes numa tipologia, “aplicável” a quaisquer realidades. Assim, à luz de achados empíricos para o caso brasileiro, concluirei argumentando que, ao tempo em que a pandemia transcorria, foi possível reconhecer novas facetas no elo entre cuidado e trabalho, notadamente quando o capturamos sob o prisma da intersecção entre gênero, raça e idade em contextos de crise.

Para começar, há que inquirir sobre a natureza da crise que induziu às reconfigurações nas práticas de cuidado. Isso porque, no caso brasileiro, essa crise está longe de poder ser descrita apenas por seu caráter sanitário. Na verdade, observamos uma conjunção entre múltiplas crises: (i) uma crise econômica, que já se desdobrava desde 2014, exprimindo-se num refluxo nas condições de emprego e renda desde 2015; (ii) uma crise política, que já se evidenciava em 2014 e que culminou tanto no impedimento presidencial em 2016 quanto em mudanças institucionais sucessivas no campo dos direitos sociais e das políticas de bem-estar a partir de 2017, as quais se aprofundaram desde 2019; e (iii) uma crise sanitária, ocasionada pela pandemia do SARS-CoV-2, que toma de assalto o país a partir de março de 2020 e que se alimenta da política negacionista do governo em função. Essa complexa realidade de conjunção entre crises não só colocou desafios para as práticas de cuidado no Brasil, como desafiou intérpretes a bem capturar a operação dos circuitos de cuidado no novo contexto. Vejamos.

Diferentemente do que se esperaria, no Brasil da última década, cresceu a um ritmo célere o emprego de mulheres envolvidas no circuito do cuidado como “ profissão ”. Entretanto, tal crescimento se verificou apenas entre aquelas que atuavam no trabalho domiciliar remunerado de cuidado; um crescimento que se manteve mesmo durante a crise que se instalou no mercado de trabalho a partir de 2015. Assim, tomando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) desde o seu início, em 2012, e observando-os até o final de 2018, vemos que a ocupação de cuidadora domiciliar se expandiu em nada menos que 257%. Ou seja, cresceu duas vezes e meia, num período em que a estagnação marcava o movimento médio do emprego nas demais ocupações no Brasil (Guimarães & Hirata, 2020Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades Cotia, SP: Ateliê. ), inclusive o emprego doméstico remunerado, outro esteio do provimento do cuidado nos domicílios brasileiros.

Esse fato indica o quão estratégico se tornou o serviço remunerado de cuidado domiciliar, tendo em vista a divisão do trabalho e a organização do cotidiano entre aquelas famílias que dispõem de meios para acorrer ao mercado e contratar tal tipo de trabalho. Entretanto, por não ser unívoca, a relação entre cuidado e crise, em sua dimensão econômica, comporta distintas facetas. Assim, se o emprego continuou crescendo de modo veloz, as condições de operação do mercado se alteraram. Isso aconteceu por efeito tanto da retração da atividade econômica, como do novo marco institucional que passou a regular o contrato de trabalhadores(as) em domicílio, oriundo da Emenda constitucional nº 72/2013 7 7 A Emenda constitucional nº 72/2013 foi fruto de uma árdua luta das trabalhadoras domésticas, que persistiu mesmo depois da Constituição de 1988, visto que esta, ao estabelecer os direitos do trabalho, privou as “domésticas” de vários desses direitos. A Emenda em questão alterou a redação do parágrafo único do artigo sétimo da Constituição Federal para estabelecer a completa igualdade de direitos entre trabalhadoras domésticas e demais trabalhadores(as) urbanos e rurais. Tal legislação é também a que passou a amparar as cuidadoras domiciliares, as quais carecem de direitos associados ao seu trabalho específico, posto que a regulamentação profissional que as protegeria, e que havia sido aprovada no Congresso Nacional, foi vetada em 2019 pela Presidência da República. e da sua regulamentação, na forma da Lei complementar nº 150/2015 8 8 A Lei complementar nº 150/2015 regulamentou as alterações previstas na Emenda constitucional nº 72 (vide nota 7). Entretanto, ao fazê-lo, impôs a obrigatoriedade de reconhecimento de vínculo empregatício unicamente para empregadores(as) que atuassem no mínimo três dias semanais num mesmo domicílio. Ora, dado o notável crescimento do emprego de trabalhadoras diaristas, uma parcela significativa das trabalhadoras domésticas continuou excluída do rol de direitos trabalhistas; ao mesmo tempo, muitas empregadoras alteravam os vínculos para escapar à obrigatoriedade de formalizar contratos. . Desse modo, a continuidade do crescimento da ocupação de cuidadora conviveu com a fragilização da sua relação de trabalho, num movimento que refletia os ajustes que as famílias das classes média e alta passaram a fazer no consumo desse serviço, mesmo tendo ele se tornado imperioso.

Diante desse quadro, a emergência sanitária e a consequente conjunção de crises colocaram, na ordem do dia, uma radical reorganização da divisão interinstitucional das atividades de cuidar, com a internalização do trabalho (daqueles que puderam se confinar) no âmbito do domicílio. Isso jogou luz sobre as múltiplas relações e contradições no provimento do cuidado. Mais ainda, a pandemia atuou como um catalisador de novos enlaces entre as formas do trabalho de cuidado: voltam para a casa tarefas antes externalizadas, ao tempo em que deixam a casa trabalhadoras antes essenciais à ordem familiar, ali onde o cuidado profissional remunerado era um recurso. Almeida e Wajnman ( 2023Almeida, Mariana Eugenio & Wajnman, Simone. (2023). Occupational Transitions of Paid Care Workers During the COVID-19 Pandemic in Brazil. São Paulo: Cebrap. p. 1-25. (Documentos de Trabalho, Redes “Who Cares? Rebuilding Care in a Post Pandemic World” e “Cuidados, Direitos e Desigualdades, 3). ), observando o momento de auge do isolamento social (primeiro e segundo trimestres de 2020), documentaram que, entre as mulheres, as trabalhadoras domiciliares do cuidado foram as mais atingidas pelo risco de expulsão do mercado de trabalho: nada menos que 20% das cuidadoras e 17,6% das trabalhadoras domésticas passaram à inatividade, valores muito superiores ao que se observou no período para a média das mulheres (11,2%), mas também significativamente mais elevados que entre aquelas que atuavam no cuidado em instituições (de educação e saúde), cuja saída do mercado não alcançou mais que 8% das até então ocupadas.

Com efeito, a combinação inesperada entre confinamento e trabalho remoto chamou a atenção para importantes disparidades que marcaram nossas sociedades com respeito às cargas de cuidado. De uma parte porque o confinamento foi, por assim dizer, um movimento de reversão na esperada tendência a externalizar atividades que antes haviam estado concentradas na família e se exerciam no domicílio: atividades de trabalho, de educação, de lazer e sociabilidade, entre outras. Nesse sentido, o confinamento não apenas internalizou compulsoriamente o trabalho, ali onde ele poderia ser desempenhado em forma remota, como fez voltar ao domicílio toda uma gama de tarefas que, ao longo do tempo, tinham passado a se exercer no espaço público, dispersas por instituições outras.

Dizendo-o de outro modo, uma divisão social complexa, interinstitucional, forjada para atendimento de necessidades cruciais à reprodução, e que tratamos antes na interface entre o trabalho de cuidado como “ obrigação ” e como “ profissão ”, viu-se tensionada e, não raro, teve que se reconverter para, repentinamente, dar lugar a outra forma de divisão de distintas formas de trabalho, que voltavam a se realizar na casa.

Entretanto, e por outro lado, tarefas que haviam persistido como responsabilidade das famílias e que eram, na antiga divisão do trabalho, exercidas por não residentes contratados para atuar em domicílio — como domésticas e babás, por exemplo —, tiveram que ser totalmente desempenhadas, ou quando menos redistribuídas, pelos membros da família e/ou pelos residentes no domicílio. Desse modo, diante da necessidade imposta pelo confinamento, os indivíduos foram desafiados a equacionar os impactos dessa nova divisão interinstitucional dos encargos da reprodução sobre os antigos termos da divisão do trabalho reprodutivo.

No que concerne ao trabalho não remunerado de cuidado, fartas evidências para o caso brasileiro já haviam chamado a atenção para a notável desproporção prevalecente, desde antes da pandemia, entre participação de homens e mulheres nas atividades reprodutivas, em detrimento das mulheres, especialmente se negras (Jesus, 2018Jesus, Jordana. (2018) Trabalho doméstico não remunerado no Brasil: uma análise de produção, consumo e transferência. Tese de Doutorado. Cedeplar/Universidade Federal de Minas Gerais. ; Melo & Castilho, 2009Melo, Hildete & Castilho, Marta. (2009). Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? Revista de Economia Contemporânea, 13/1, p. 135-158. ; Pinheiro & Medeiros, 2016Pinheiro, Luana & Medeiros, Marcelo. (2016). Desigualdades de gênero em tempo de trabalho pago e não pago no Brasil, 2013. Brasília, DF: IPEA. (Textos para Discussão, 2214). ). O deflagrar da pandemia e a conjunção de crises nos permitiu observar um outro fenômeno com respeito à dinâmica dos circuitos de cuidado: imbricam-se, e de modo diverso para diferentes grupos sociais e raciais, os circuitos de “ obrigação ”, “ profissão ” e “ ajuda ”.

Pesquisa realizada pela Sempreviva Organização Feminista (SOF, 2020 SOF – Sempreviva Organização Feminista. (2020). Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. Disponível em http://mulheresnapandemia.sof.org.br/ . Acesso em 30 jan. 2024.
http://mulheresnapandemia.sof.org.br/...
) entre 27 de abril e 11 de maio de 2020 com 2.641 mulheres brasileiras mostrou que 50% delas passaram a ter que cuidar de alguém durante a crise sanitária. Entretanto, esse percentual se mostrou mais elevado entre as mulheres negras (52%) e mais reduzido entre as brancas (46%). Tal responsabilidade foi mais significativa entre as mulheres no meio rural (62% delas), a sugerir que este operava como uma “reserva de cuidado”, acolhendo os(as) que não podiam mais sobreviver nas cidades para onde haviam se deslocado. Entre as responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos ou pessoas com deficiência, 72% delas percebiam que haviam aumentado as suas cargas de trabalho voltadas a monitorar e/ou a fazer companhia a pessoas no domicílio. Entre as que cuidavam de filhos com até doze anos, 40% delas estimavam que a intensidade desse encargo teria não apenas aumentado, mas “aumentado muito” (contra 28% das que se responsabilizam por idosos).

Ademais, ao cuidado que se volta a membros da família, passaram a se somar as “ ajudas ” na forma de apoio a vizinhos (mais importante entre as mulheres negras, 51% das quais registram esse tipo de encargo de cuidado) e a amigos(as) (mais relevante entre as mulheres brancas, 52% das quais agregaram essa atividade). A pesquisa encontrou também que, no que poderíamos reconhecer como parte do circuito das “ ajudas ”, nada menos que 59% das mulheres negras diziam se encarregar, nos seus domicílios, de cuidar de “outras crianças” que não as do seu núcleo familiar (contra apenas 38% entre as mulheres brancas). Nesse sentido, a pandemia agravou e multiplicou a carga do trabalho de cuidado que as mulheres já exerciam, seja como uma “ obrigação ” (socialmente imposta), seja como “ ajuda ” (apoio a outrem), a denotar os laços de interdependência e as relações de reciprocidade que sustentam a vida cotidiana, notadamente entre os mais pobres e vulneráveis.

Estudo da Rede de Pesquisa Solidária 9 9 A Rede de Pesquisa Solidária ( https://redepesquisasolidaria.org/ ) foi criada durante a emergência sanitária na forma de um consorcio de instituições paulistas organizado para desenvolver análises durante e sobre os efeitos sociais da pandemia, bem como sobre os desafios colocados para as políticas públicas. , ao acompanhar as percepções das lideranças comunitárias em áreas vulneráveis nas regiões metropolitanas brasileiras, mostrou que

90% das lideranças citaram que os próprios moradores, associações locais e entidades religiosas das comunidades de alta vulnerabilidade passaram a se mobilizar para mitigar os impactos da pandemia. À multiplicação de estratégias de arrecadação e doação de alimentos, somam-se as iniciativas voltadas para o incremento de renda e melhoria da informação, que despontam nas comunidades como esforço de auto-organização. Além da sua pequena presença, os partidos, associações de classe e grandes empresas são olhados com suspeição. O poder público, em seus diferentes níveis, é tratado com desconfiança e descrédito. Sua ineficiência ou ausência estimula a formação de redes de moradores e entidades voltadas para garantir a sobrevivência nas comunidades

(Castello; Vieira & Picanço, 2020Castello, Graziela; Vieira, Priscila & Picanço, Monise (2020). Boletim da Rede de Pesquisa Solidária, 12, 19 jun.: 1).

Isso nos leva a refletir sobre um outro aspecto importante: as experiências associativas e de cuidado comunitário mostraram o vigor das redes de ajudas que organizavam o cotidiano dos indivíduos e que passaram a ser potencializadas. Certamente, tais experiências de associativismo deitarão raízes no cotidiano futuro dos grupos mais pobres.

Por fim, e no que concerne ao trabalho profissional de cuidado, nem todas as pessoas conseguiram permanecer confinadas e desempenhar suas atividades de forma remota. As trabalhadoras de cuidado direto estavam impossibilitadas de fazê-lo, notadamente aquelas que atuam no circuito do cuidado como “ profissão ”. Para a massa dos(das) trabalhadores(as) menos qualificados(as) e/ou mais vulneráveis, inexistiu a chance do confinamento associado ao trabalho remoto porque as regras de confinamento lhes eram inaplicáveis. Por isso mesmo, enquanto uma parte dos trabalhadores brasileiros se mantinha confinada e muito(as) em trabalho remoto, outra parte continuou a atuar em seus locais de trabalho. Eram enfermeiras, médicos, auxiliares de enfermagem, ajudantes de serviços gerais e funcionários administrativos dos hospitais, cuidadores(as) de instituições de longa permanência de idosos (ILPI), bem como as(os) cuidadoras(es) domiciliares. O mero enunciar dessa lista de ocupações remete ao coração do trabalho de cuidado como “ profissão ”. Essas pessoas continuaram a ir aos seus locais de trabalho, correndo riscos para a sua saúde, muitas vezes sem equipamentos de proteção individual, na qualidade e diversidade de que necessitariam 10 10 As cuidadoras domiciliares, cujo reconhecimento profissional fora negado pelo veto presidencial de 2019, foram inicialmente excluídas da regra de prioridade no acesso à tardia imunização, contrariamente ao que ocorreu com respeito a todos os profissionais da saúde. .

Já para outros segmentos dos(as) profissionais de serviços do cuidado (que não profissionais de saúde), a crise sanitária acompanhou as perdas de salário e/ou aumento do risco associado ao trabalho (risco da contaminação), quando não com o risco do desemprego ou de descumprimento de contratos de trabalho. Perdas e riscos estiveram associados à condição de sexo, uma vez que parte significativa das atividades de serviços, entendidas como não essenciais, eram desempenhadas por mulheres — e com frequência estavam associadas ao cuidado pessoal, como salões de beleza, apoio em consultórios médicos, por exemplo; quando essas atividades foram suspensas, as trabalhadoras ficavam privadas de rendimento 11 11 Bem assim, cresceu o desemprego de trabalhadoras domésticas, as quais, no Brasil, como dito, estão também engajadas no provimento de cuidado não apenas indireto, mas também direto. A Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) denunciou, com insistência, que patroas se recusavam a continuar a pagar o salário para mantê-las confinadas. Mas a pandemia também esgarçou os limites entre vida pessoal e vida profissional no circuito de trabalho remunerado de “cuidadoras” e “domésticas”: a “vida profissional” invade a “vida pessoal” tanto pela retenção dessas trabalhadoras no local trabalho (sob novas jornadas, na forma de verdadeira “residência no trabalho”, em especial para as cuidadoras de idosos, um grupo excluído de direitos), quanto pela reconfiguração das obrigações e relações associadas à vida pessoal pelo temor do risco decorrente do exercício profissional. Não sem razão, no Brasil, a mobilização dessa categoria em torno da palavra de ordem “Cuida de quem te cuida” foi relevante e se expressou na forma de múltiplos vídeos e campanhas. .

A seletividade do risco era evidente: as mulheres, os negros e as profissões do cuidado formaram o grosso da parcela mais vulnerável da população brasileira no momento da pandemia. As pessoas ocupadas em serviços domésticos eram metade desse grupo (52%); e se a elas agregarmos “cabeleireiros e outras atividades de tratamento de beleza”, chegaremos a nada menos que dois terços dos(as) brasileiros(as) mais vulneráveis no momento da pandemia. Em outras palavras, as trabalhadoras no cuidado (e a flexão no feminino é justa pela expressiva maioria de mulheres nesse segmento) formaram o grosso do contingente das pessoas cuja inserção pré-pandemia as tornava “extremamente vulneráveis” aos efeitos da crise sanitária que se abatia sobre o mercado de trabalho (Barbosa & Prates, 2020Barbosa, Rogério Jerônimo & Prates, Ian. (2020). Boletim da Rede de Pesquisa Solidária, 2, 17 abr. ).

Em suma, as desigualdades ocupacionais, que já avançavam desde 2015, deixaram os brasileiros diante de uma realidade de desigual vulnerabilidade, que se aprofundou com a pandemia. Contudo, a conjunção de crises evidenciou não apenas o aprofundamento de desigualdades pré-existentes; ela nos ver, com clareza, como foram várias as formas pelas quais se declinou, entre nós, a relação entre cuidado e crise(s), a depender dos circuitos que organizavam a relação entre provedores e beneficiários do cuidado. Vale dizer, captar tal diversidade demanda um esforço analítico e de teorização que não perca de vista a multiplicidade de prismas através dos quais essa relação precisa sempre ser observada.

À guisa de conclusão: a crise do cuidado num contexto de uma longa crise da reprodução social

Nas seções precedentes procurei documentar quão longa e diversa tem sido, entre nós, a chamada “crise do cuidado”. Uma crise talhada pelo modo particular como a reprodução social tem sido desafiada por uma organização social do cuidado em que este se mercantiliza num contexto de fraca externalização, sob condições de elevada desigualdade e de preocupantes níveis de pobreza extrema, nos quais escasseiam políticas estatais de bem-estar. Nesse sentido, talvez estejamos, antes, diante de uma longa crise de reprodução social,

Isso porque, se essa forma particular de organização social do cuidado tem posto em risco a reprodução social, ela o tem feito por caminhos distintos e numa temporalidade diversa daquela que foi originalmente descrita (Ehrenreich & Hochschild, 2002Ehrenreich, Barbara & Hochschild, Arlie. (2002). Global Woman: Nannies, Maids and Sex Workers in the New Economy. New York: Henry Holt and Company. ). Tal formulação, como vimos, procurou dar conta de um fenômeno recente de desajuste sociodemográfico entre oferta e demanda de cuidado nos países centrais. Assim, com o ingresso crescente de mulheres no trabalho remunerado, os domicílios teriam sido privados daquelas que vinham sendo as “provedoras naturais” do cuidado. Produzia-se, desse modo, um “déficit de cuidado” que desafiaria as condições da reprodução social.

Ora, isso está longe de ser o caso em países como o Brasil, onde mulheres, em sua maioria negras, escravas ou libertas, foram as “provedoras naturais” do cuidado, representando um esteio para as suas “patroas”, mesmo quando estas não se engajavam no mercado profissional de trabalho. Bem assim vimos que, entre nós, o envelhecimento, agudizador da “crise do cuidado” no norte global só muito recentemente vem ganhando força. Aqui, ao contrário, a alta fecundidade foi o traço que caracterizou a dinâmica demográfica até muito recentemente. Isso fez com que o cuidado a crianças, antes que a idosos, fosse, por um longo tempo, o grande desafio ao bem viver.

A toda essa especificidade se agrega, como agravante, a ausência de políticas robustas de bem-estar nos países do sul global. Isso dista do quadro observado nos países do norte, nos quais o encolhimento dos antigos dispositivos de proteção social, expressão do neoliberalismo, foi descrito como fator de peso a agudizar esse desajuste entre oferta e demanda de cuidados. Ora, casos como o brasileiro nos colocam diante do desafio de explicar uma situação aparentemente paradoxal na qual conviveram um movimento de relativa extensão de direitos sociais — entre os quais estão aqueles associados ao cuidado — como fruto do processo de redemocratização, com a crescente implantação de políticas econômicas neoliberais.

Diante dessa diversidade, os circuitos de cuidado adquirem configuração específica em nossos países, o que marca os termos da relação entre cuidado e crise(s). Assim, se as “ ajudas ” ganham especial relevo entre nós, elas carecem de registro como traço robusto da organização social do cuidado na realidade dos países do norte global. Já no circuito do cuidado como “ profissão ”, é imperioso reconhecer que, entre nós, a notável presença das trabalhadoras domésticas (em sua maioria negras) tem sido o modo de equacionar, desde sempre, o provimento do cuidado domiciliar, estivessem, ou não, as suas “patroas” (brancas) inseridas no trabalho remunerado extradomiciliar.

Em suma, em nosso caso, são outros os desafios que a forma assumida pela organização social do cuidado coloca para a reprodução social, sendo difícil equacionar as crises e tensões que a cercam no modo consagrado pela literatura que se debruçou sobre a “crise do cuidado”. Em outros termos, se “déficits de cuidado” existem, entre nós eles têm sido historicamente persistentes e, sobretudo, fortemente ancorados em relações sociais cujas desigualdades encontram seus fundamentos na intersecção entre classe, sexo e raça. Nesse sentido, a crise recente da pandemia operou como um revelador dessa aguda desigualdade no modo de produzir e distribuir o cuidado — uma longeva crise do cuidado que, aqui, assume antes a forma de uma longa crise da reprodução social do que de um simples e recente “déficit de cuidado”.

Assim, e como tratado ao longo do texto, quando observados os elos entre as diferentes formas de prover e receber o cuidado, numa extraordinária situação de catástrofe sanitária, vimos como se interligam, de forma não apenas especial, mas diversa e intensa, os diferentes circuitos, com suas práticas e sentidos próprios. Mas, se a pandemia operou como um dispositivo revelador de antigas e novas desigualdades nos circuitos do cuidado, como “ obrigação ”, “ profissão ” e “ ajuda ”, ela também deixou entrever novas interfaces e desdobramentos socialmente relevantes em realidades como a nossa. Tal foi o caso da força com que se expressaram as experiências associativas e de cuidado comunitário, sem dúvida assentadas no vigor das redes prévias de ajudas que organizavam o cotidiano dos indivíduos, agora potencializadas pela urgência que as estruturava em novas bases.

Entretanto, e como última consideração, ainda que durante a recente conjunção de crises o cuidado tenha se tornado um domínio de elevada visibilidade e mesmo uma urgência social, isso não se exprimiu em políticas que traduzissem tal visibilidade (e urgência), ou tampouco em ações que deixassem evidente o cuidar como valor. Assim sendo, urge exprimir esse valor na forma de direitos: direito a cuidar (cujo trabalho requer reconhecimento institucional e retribuição condizente com sua centralidade), direito a ser cuidado (especialmente ali onde pobreza se combina com mercantilização selvagem e com políticas sociais tímidas) e direito a não cuidar (pela urgência na redistribuição de cargas de cuidado). Desse modo, em países como o Brasil, o pós-pandemia nos coloca diante do desafio de encarar o cuidado não como um “quase-direito”, sujeito à vontade política e às restrições orçamentárias, mas como uma obrigação jurídica que proteja os direitos de quem cuida e de quem é cuidado, tanto quanto o direito a não cuidar e ao autocuidado. Confrontar a longa crise do cuidado requer, entre nós, confrontar as enormes desigualdades na distribuição das cargas de cuidado, tanto quanto nos direitos de quem o provê. As recentes mobilizações e conquistas nesse sentido, em vários países latino-americanos, apontam para a urgência de avançarmos a reflexão e a ação em outros tantos países, o Brasil entre eles.

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  • Vieira, Priscila. (2017). Trabalho e pobreza no Brasil: entre narrativas governamentais e experiências individuais. Tese de Doutorado. PPGS/Universidade de São Paulo.
  • 1
    No dizer de Tronto ( 1987Tronto, Joan. (1987). Beyond Gender Difference to a Theory of Care. Signs, 12/4, p. 644-663, Summer. ), a sua dimensão moral deve ser buscada na disposição ética que se associa ao estatuto de dominado(a) .
  • 2
    Ou dos vários “sul”, como formulado por Borgeaud-Garciandía, Guimarães e Hirata ( 2020Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). O gênero do cuidado: desigualdades, significações e identidades Cotia, SP: Ateliê. ).
  • 3
    Como bem sublinharam várias autoras (Borgeaud-Garciandía; Guimarães & Hirata, 2020Borgeaud-Garciandía, Natacha; Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). Introduction: Care aux suds: quand le travail de care interroge les inégalités sociales. Revue internationale des études du développement, 242, p. 9-34. Dossier: Care, inégalités et politiques aux Suds. ; Destremau & Georges, 2017Destremau, Blandine & Georges, Isabel (eds.). (2017). Le Care, face morale du capitalisme: assistance et police des familles en Amérique Latine. Bruxelles: Peter Lang. ; ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ; Razavi, 2007Razavi, Shahra. (2007). The Political and Social Economy of Care in a Development Context: Conceptual Issues, Research Questions and Policy Options. Geneva: UNSRID. ), esse gradiente é sem dúvida maior que o das chamadas “profissões do cuidado”, termo pelo qual o tema é apresentado e utilizado na produção acadêmica, que inicialmente refletiu sobre a realidade do cuidado nos países do norte global.
  • 4
    Por meio do uso das aspas e do itálico quero indicar que se trata de uma noção êmica. Esse recurso será usado doravante no texto.
  • 5
    Na América Latina, as mulheres se veem socialmente obrigadas a realizar, em média, 74% das horas de trabalho não remunerado. Um percentual que esconde uma enorme variedade e valores extremos, como é o caso de El Salvador, em que as mulheres se responsabilizam por 3 horas e 48 minutos em média por semana, enquanto cabem aos homens meros 43 minutos do cuidado não pago (ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ).
  • 6
    Na América Latina, em média, as taxas de participação feminina aumentaram de 40,5% em 1991, para 51,5% em 2018 (ILO, 2018ILO – International Labour Office. (2018). Care Work and Care Jobs for the Future of Decent Work. Geneva: ILO. ).
  • 7
    A Emenda constitucional nº 72/2013 foi fruto de uma árdua luta das trabalhadoras domésticas, que persistiu mesmo depois da Constituição de 1988, visto que esta, ao estabelecer os direitos do trabalho, privou as “domésticas” de vários desses direitos. A Emenda em questão alterou a redação do parágrafo único do artigo sétimo da Constituição Federal para estabelecer a completa igualdade de direitos entre trabalhadoras domésticas e demais trabalhadores(as) urbanos e rurais. Tal legislação é também a que passou a amparar as cuidadoras domiciliares, as quais carecem de direitos associados ao seu trabalho específico, posto que a regulamentação profissional que as protegeria, e que havia sido aprovada no Congresso Nacional, foi vetada em 2019 pela Presidência da República.
  • 8
    A Lei complementar nº 150/2015 regulamentou as alterações previstas na Emenda constitucional nº 72 (vide nota 7). Entretanto, ao fazê-lo, impôs a obrigatoriedade de reconhecimento de vínculo empregatício unicamente para empregadores(as) que atuassem no mínimo três dias semanais num mesmo domicílio. Ora, dado o notável crescimento do emprego de trabalhadoras diaristas, uma parcela significativa das trabalhadoras domésticas continuou excluída do rol de direitos trabalhistas; ao mesmo tempo, muitas empregadoras alteravam os vínculos para escapar à obrigatoriedade de formalizar contratos.
  • 9
    A Rede de Pesquisa Solidária ( https://redepesquisasolidaria.org/ ) foi criada durante a emergência sanitária na forma de um consorcio de instituições paulistas organizado para desenvolver análises durante e sobre os efeitos sociais da pandemia, bem como sobre os desafios colocados para as políticas públicas.
  • 10
    As cuidadoras domiciliares, cujo reconhecimento profissional fora negado pelo veto presidencial de 2019, foram inicialmente excluídas da regra de prioridade no acesso à tardia imunização, contrariamente ao que ocorreu com respeito a todos os profissionais da saúde.
  • 11
    Bem assim, cresceu o desemprego de trabalhadoras domésticas, as quais, no Brasil, como dito, estão também engajadas no provimento de cuidado não apenas indireto, mas também direto. A Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) denunciou, com insistência, que patroas se recusavam a continuar a pagar o salário para mantê-las confinadas. Mas a pandemia também esgarçou os limites entre vida pessoal e vida profissional no circuito de trabalho remunerado de “cuidadoras” e “domésticas”: a “vida profissional” invade a “vida pessoal” tanto pela retenção dessas trabalhadoras no local trabalho (sob novas jornadas, na forma de verdadeira “residência no trabalho”, em especial para as cuidadoras de idosos, um grupo excluído de direitos), quanto pela reconfiguração das obrigações e relações associadas à vida pessoal pelo temor do risco decorrente do exercício profissional. Não sem razão, no Brasil, a mobilização dessa categoria em torno da palavra de ordem “Cuida de quem te cuida” foi relevante e se expressou na forma de múltiplos vídeos e campanhas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2023
  • Aceito
    18 Dez 2023
  • Revisado
    25 Out 2023
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