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Etnografia, trabalho de campo e diagnósticos socioeconômicos para licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil: tempo, poder e categorias de classificação

Ethnography, fieldwork and socioeconomic diagnoses for the environmental licensing of large scale projects in Brazil: time, power and classification categories

Resumo

Apresento uma reflexão sobre a atuação de cientistas sociais e, em particular, antropólogos, na elaboração de estudos para o licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil. O foco recai sobre as relações estabelecidas entre esses profissionais, os consultores, e as populações afetadas pelos grandes empreendimentos e arroladas nos estudos que visam os licenciar, os impactados. Argumento que tais estudos não têm caráter etnográfico porque se caracterizam pela radicalização do domínio e do uso de categorias temporais por parte do consultor para classificação das populações impactadas. Trata-se de relação marcada por forte assimetria de poder, dada a presunção de inexorabilidade da implantação do empreendimento.

Palavras-chave
Etnografia; trabalho de campo; grandes empreendimentos; licenciamento ambiental

Abstract

The present paper is a reflection on the work of social scientists, and in particular anthropologists, in conducting studies for the environmental licensing of large scale projects in Brazil. The focus is on the relationships established between these professionals, the consultants, and the populations affected by said large developments and listed in the studies carried out for their licensing, the affected populations. I aim to demonstrate that such studies are not ethnographic in nature, since they are characterized by the radicalisation of the mastery and use of temporal categories by the consultant for the classification of the affected populations. It is a relationship marked by a strong power asymmetry, given the presumption of the inexorability of the execution of the project.

Keywords
Ethnography; Fieldwork; large scale projects; environmental licensing

A elaboração de estudos de impacto ambiental (EIA), exigida em processos de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil,1 1 Dentre os aparatos legais e institucionais destinados a lidar com questões ambientais no Brasil, destaca-se o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos/atividades potencialmente poluidores. É regido pelo seguinte arcabouço legal: lei n. 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente; resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) n. 001/1986 e 237/1997, que estabelecem os procedimentos para o licenciamento ambiental; e lei complementar n. 140/2011, que estabelece as formas de cooperação entre as três esferas de governo na proteção do meio ambiente. Para ser licenciado por um órgão ambiental governamental, um empreendimento deve possuir, a rigor, três licenças: prévia (LP); de instalação (LI), que autoriza a realização das obras; e de operação (LO), que autoriza a entrada em funcionamento. envolve a realização de um trabalho denominado diagnóstico da região em que será implantado um empreendimento. Cada vez mais, os diagnósticos socioeconômicos de regiões a ser impactadas por grandes empreendimentos têm compreendido informações primárias e secundárias sistematizadas por profissionais da área de ciências humanas e sociais.2 2 A realização do EIA depende das seguintes atividades: “diagnóstico ambiental que caracteriza a situação da área de influência do projeto antes de sua implantação; [...] análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes; [...] definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, avaliada a eficiência de cada uma destas; [...] elaboração do programa de monitoramento dos impactos” (Bronz, 2011: 37). É na primeira atividade que a maior parte dos profissionais de ciências sociais costuma atuar. O diagnóstico ambiental é subdivido em meio físico, meio biótico e meio socioeconômico, divisão que “supõe a existência de três tipos de saberes distintos sobre o meio ambiente, que seguem interpretações epistemológicas diferenciadas” (Bronz, 2011: 37). Isso porque a realização desses estudos implica a caracterização das condições do meio ambiente anteriores à construção dos empreendimentos. Diferentes expertises são mobilizadas para tanto: “cientistas da natureza (biólogos, geólogos, geógrafos, oceanógrafos), responsáveis pelos estudos sobre as condições físicas e biológicas dos ambientes; [...] economistas e cientistas sociais (geógrafos, sociólogos e antropólogos) voltados à produção de conhecimento sobre as populações localizadas próximas aos empreendimentos e sobre os efeitos aos quais estarão sujeitas; [...] engenheiros” (Bronz, 2016: 39).

Esses profissionais são contratados por empresas de consultoria ambiental, que por sua vez são contratadas pelas empresas ou consórcios proprietários dos empreendimentos - o empreendedor - para elaborar estudos demandados pela legislação ambiental brasileira. A rigor, sem as licenças ambientais, um grande empreendimento não pode operar nem sequer ser construído.3 3 Contudo, apontam-se vários limites à efetividade do licenciamento ambiental. É o caso do chamado Sistema Minas-Rio, que compreende exploração de uma mina de ferro, uma usina de beneficiamento, um mineroduto de 525km de extensão que atravessa 32 municípios, culminando em um terminal portuário - empreendimento da Anglo Ferrous Minas-Rio S.A., fundada em 2008 pela empresa Anglo American. O sistema foi licenciado de forma fragmentada, por diferentes órgãos ambientais federal e estaduais, embora seja óbvio que nenhuma dessas estruturas possa funcionar sem a outra (Milanez et al., 2013: 184). É o caso também da TK-CSA, usina siderúrgica com um porto integrado instalada na baía de Sepetiba (RJ), inaugurada em 2010 sem que tivesse obtido a licença de operação (Milanez et al., 2013: 197).

Em trabalhos anteriores (Gaspar, 2018Gaspar, Natalia Morais. (2018). In: Hidalgo, Cecilia. Encrucijadas interdisciplinarias. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fundación CICCUS/CLACSO, p. 125-147., 2016Gaspar, Natalia Morais. (2016). Disponível em: http://www.reaabanne.com.br/?menu=resumo&codResumo=443131 Acesso em 8 abr. 2017.
http://www.reaabanne.com.br/?menu=resumo...
), analisei partes de EIA, comparando-as com notas etnográficas a respeito do seu processo de elaboração. O objetivo era lançar luz sobre os mecanismos utilizados nos EIA para afirmar a viabilidade socioambiental de empreendimentos, apesar dos danos que causam. E colocar questões sobre o papel desempenhado por cientistas sociais nesse processo. Esses trabalhos foram fruto de esforços no sentido de analisar parte de minhas próprias experiências em empresas de consultoria ambiental no Brasil, sob diferentes vínculos de trabalho, entre 2006 e 2014. Estive envolvida na realização de estudos e atividades do licenciamento ambiental de empreendimentos como rodovias, linhas de transmissão e subestações de energia elétrica, portos e atividades petrolíferas - ora como consultora externa de diferentes empresas, geralmente contratada para uma tarefa específica dentro de um estudo maior; ora como funcionária técnica em socioeconomia, atuando em diferentes projetos simultaneamente, em suas variadas etapas, tanto em grandes quanto em pequenas empresas. Neste ínterim, compartilhei também experiências e impressões de outros profissionais que atuam no mesmo campo. Trata-se, portanto, de uma observação em primeira mão da elaboração de estudos ambientais, a partir da perspectiva de uma trabalhadora da consultoria ambiental. Não se trata, todavia, do resultado de uma pesquisa acadêmica com planejamento, objetivos e financiamento específicos para fins científicos, e vinculada a uma instituição universitária ou de pesquisa, mas sim uma reflexão a partir de minha atuação profissional. Durante o período em que trabalhei na área, embora fosse cada vez mais premente o desejo de produzir uma reflexão crítica com base em uma série de situações vividas, presenciadas ou relatadas por colegas, nunca houve tempo ou oportunidade para sequer tomar notas. O presente trabalho e os anteriores se baseiam, portanto, em memórias e anotações de trabalho, algumas vezes atualizadas por conversas frequentes com ex-colegas, e em documentos produzidos no âmbito do licenciamento, especialmente os EIA, além da bibliografia produzida por cientistas sociais a partir da sua inserção profissional no mercado da consultoria para licenciamento ambiental.

Desta vez, o foco recai sobre as relações estabelecidas entre consultores (nesse caso, especificamente antropólogos ou cientistas sociais) e populações afetadas pelos grandes empreendimentos e arroladas como impactadas nos estudos que visam licenciá-los. Tendo como referência a análise do antropólogo Johannes Fabian (2013)Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes. sobre o uso do tempo pela antropologia para estabelecer a distância em relação ao outro, comparo o trabalho de campo etnográfico com o trabalho de campo para diagnóstico socioeconômico na elaboração dos EIA. Procuro demonstrar que estes últimos, realizados previamente ao estabelecimento do empreendimento, caracterizam-se pela radicalização do domínio e do uso do tempo por parte do consultor, dada a alardeada inexorabilidade da realização da obra, vinculada a uma decisão política frequentemente anterior ao processo de licenciamento ambiental, a despeito da premissa de que tais estudos deveriam avaliar sua viabilidade. Analiso também as implicações da apropriação do trabalho realizado por antropólogos por empresas de consultoria ambiental.

A opção pelo aprofundamento na etapa do licenciamento que consiste na elaboração do EIA, indispensável para a obtenção da primeira de três licenças ambientais exigidas, decorre de alguns fatores. Primeiramente, foi nessa etapa que se concentraram minhas atividades profissionais e, portanto, as experiências que constituem insumo para a análise. Em segundo lugar, por tratar-se da etapa do licenciamento em que atua a maior parte dos profissionais de ciências sociais, sob variados tipos de vínculos de trabalho.4 4 No mercado das empresas de consultoria ambiental que atuam na elaboração dos EIA, há profissionais que são contratados como pessoa física (PF) para realização de serviços pontuais (trabalho de campo/relatório, ou capítulos de síntese de dados secundários) e funcionários fixos das empresas, com ou sem regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), dependendo do porte da empresa. Há também empregados fixos obrigados a abrir empresas para receber parte de seus salários como pessoa jurídica (PJ). E microempresas, formadas por ex-consultores, que não possuem funcionários - ou seja, seus sócios vendem seu próprio trabalho como PJ, subcontratando algumas vezes outros profissionais em momentos emergenciais.

Ademais, a importância dos EIAs nos processos de licenciamento, definindo impactos e grupos ou populações impactados e, portanto, alvo de medidas compensatórias e mitigadoras, também justifica a opção por realizar esse recorte.

Por fim, o EIA é por excelência a peça técnica que subsidia a autorização para a implantação de um empreendimento. Ainda que haja relatórios de aplicação de programas ambientais e cumprimento de condicionantes em etapas posteriores do licenciamento, e ainda que, na prática, a implantação de um empreendimento possa ser determinada por decisões e medidas tomadas em outras esferas e até à revelia do que foi estabelecido no estudo, o EIA permanece sendo o documento que oficialmente confere respaldo e legitimidade técnicos para as licenças concedidas. Tanto que propostas legislativas de mudanças no licenciamento ambiental, frequentemente com redução de exigências e etapas, mantêm a previsão de realização de EIA.5 5 Tramita no Senado Federal a proposta de emenda constitucional (PEC) 65/2012, que “dispõe que a apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente”. Na prática, terminaria por limitar o processo de licenciamento ambiental apenas à primeira etapa, de elaboração dos estudos iniciais. Até a escrita deste artigo, a PEC se encontrava na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sob a relatoria do senador Randolfe Rodrigues, do partido Rede. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/109736 Acesso em 27 out. 2017.

Além do EIA, Bronz (2016)Bronz, Deborah. (2016). Nos bastidores do licenciamento ambiental: uma etnografia das práticas empresariais em grandes empreendimentos. Rio de Janeiro: Contra Capa. chama a atenção para a necessidade de perceber o que está em jogo na forma como determinados grupos são selecionados como objetos de estudo e, posteriormente, público-alvo de medidas de compensação. De acordo com a autora, trata-se da formulação de uma estratégia de relacionamento das empresas com a sociedade, da qual fazem parte os mecanismos de classificação das comunidades locais. Ou seja, as informações reunidas nos EIA contribuem para a elaboração da estratégia de uma corporação para se relacionar com a sociedade.

Santos & Milanez (2017)Santos, Rodrigo Pereira dos Santos & Milanez, Bruno. (2017). Estratégias corporativas no setor extrativo: uma agenda de pesquisa para as ciências sociais. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, 5/1, p. 1-26., analisando a atuação de corporações transnacionais (CTN) extrativas com base na abordagem conceitual de redes globais de produção (RGP) (Henderson et al., 2011Henderson, Jeffrey et al. (2011). Redes de produção globais e a análise do desenvolvimento econômico. Revista Pós Ciências Sociais, 8/15, p. 143-170.), propõem a noção de estratégia corporativa, em uma concepção descritiva, para a compreensão de vínculos entre agentes e ambiente. Concebem a estratégia corporativa como um repertório de ações coordenadas, desempenhado por um ou mais agentes, com vistas a elevar a capacidade da CTN de criar, ampliar ou capturar valor, expandir seu poder ou reduzir o poder de outros agentes e alterar a seu favor as condições de enraizamento.6 6 Por valor, Henderson et al. (2011: 156) se referem “tanto às noções marxianas de mais-valia e a outras mais ortodoxas associadas a renda econômica”. Quanto ao enraizamento, se referem à forma pela qual as RPGs conectam aspectos dos arranjos sociais e espaciais, e como eles as influenciam. Em meio a táticas diversificadas, agrupáveis em padrões discerníveis segundo seus efeitos externos, cabe destacar, para efeito de análise do licenciamento ambiental, a forma como as CTN “buscam influenciar - legal, alegal ou mesmo ilegalmente - tanto os agentes políticos quanto as regras e as instituições políticas voltadas à regulação de suas operações” (Santos & Milanez, 2017Santos, Rodrigo Pereira dos Santos & Milanez, Bruno. (2017). Estratégias corporativas no setor extrativo: uma agenda de pesquisa para as ciências sociais. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, 5/1, p. 1-26.: 12).

Antropólogos, trabalho de campo e estudos ambientais para licenciamento

O espaço conferido aos profissionais das ciências humanas em empresas que elaboram estudos ambientais pode ser considerado análogo ao lugar das questões sociais no licenciamento. Bronz (2011: 32) identifica, no licenciamento como um todo, uma “supremacia da preservação dos ecossistemas naturais como um valor básico nos instrumentos da política ambiental que regulam a construção de plantas de grandes empreendimentos”, embora verifique um aumento da “importância dada aos efeitos sociais ao menos nos discursos dos gestores e dos empresários”. Basso & Verdum (2006)Basso, Luis Alberto & Verdum, Ricardo. (2006). Avaliação de impacto ambiental: EIA e Rima como instrumentos técnicos e de gestão ambiental. In: Verdum, Ricardo & Medeiros, Rosa-Maria Vieira. Relatório de impacto ambiental: legislação, elaboração e resultados. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS. ressaltam o menor nível de detalhamento exigido pelos órgãos licenciadores com relação ao meio socioeconômico de muitos dos EIA, em comparação com os outros meios, além de apontar a frequente ausência de profissionais especializados para analisar essa parte dos estudos, tanto nas empresas de consultoria que os elaboram quanto nos órgãos governamentais encarregados de os analisar.

A demanda específica por antropólogos ocorre somente no caso de empreendimentos que afetam terras indígenas (TI), quando são demandados estudos em separado sobre essas populações, a ser avaliados pela Fundação Nacional do Índio (Funai),7 7 De acordo com a instrução normativa (IN) n. 1/PRES, de 09 jan. 2012. que encaminha seu parecer ao órgão ambiental licenciador.

Há, contudo, também antropólogos que se dedicam aos diagnósticos socioeconômicos dos EIA. Mesmo sem atender a uma exigência legal específica pela expertise antropológica, a presença desses profissionais, geralmente pós-graduados, valoriza a composição das equipes técnicas que elaboram os estudos.

Argumento que, além do título universitário, a valorização dos estudos ambientais em que estão envolvidos antropólogos ocorre em parte devido a uma confusão, vantajosa para as empresas de consultoria, relacionada à expressão trabalho de campo. É sabido que diferentes profissionais realizam trabalho de campo, e não só no contexto de estudos para licenciamento ambiental - geógrafos, sociólogos, oceanógrafos, biólogos, sanitaristas etc. Quando um antropólogo está em campo, no entanto, fica subentendida uma associação com o trabalho de campo etnográfico. Assim, ao entrar em contato com populações afetadas por grandes empreendimentos, muitas delas classificadas como populações tradicionais8 8 A definição jurídica de população tradicional, embora não tenha sido incorporada à versão final da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), aprovada em 10 de junho de 1999, vigora nos discursos e pleitos daqueles que se reconhecem sob essa categoria. O projeto de lei n. 2.892 assim a define: “Grupos humanos culturalmente diferenciados vivendo há no mínimo três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”. - aquelas classicamente consideradas objeto do conhecimento antropológico -, é tacitamente atribuída ao antropólogo alguma espécie de acesso privilegiado a elas, devido a sua formação. Essa característica também incentiva a contratação de antropólogos freelancers, exclusivamente para a realização de um trabalho de campo e elaboração de um relatório a respeito,9 9 Os trabalhos de campo para diagnóstico do meio socioeconômico de diferentes empreendimentos por vezes constituem um importante complemento de renda, como trabalho informal e avulso, para estudantes de graduação e pós-graduação em ciências sociais, e não apenas antropólogos. Trata-se de um perfil diferente daqueles de profissionais de ciências sociais que se tornam funcionários efetivos das empresas de consultoria, geralmente marcados por trajetórias menos privilegiadas e pela necessidade de se fixar no mercado de trabalho. Entre estes últimos, são frequentes as aspirações a retomar seus estudos, embora nem sempre concretizadas. tarefa bastante específica, que vai subsidiar alguns capítulos que compõem o diagnóstico do meio socioeconômico de um EIA.

Isso coloca problemas de diferentes ordens, incluídos os éticos, concernentes às relações entre consultores e impactados e ao conhecimento que é produzido a respeito dessas populações nesse contexto.

Há trabalhos de cientistas sociais sobre licenciamento (por exemplo, Pitanga, 2015Pitanga, Luisa Godoy. (2015). Ambientalização, audiovisual e desenvolvimento: percursos etnobiográficos. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro. e Bronz, 2016Bronz, Deborah. (2016). Nos bastidores do licenciamento ambiental: uma etnografia das práticas empresariais em grandes empreendimentos. Rio de Janeiro: Contra Capa.) que tratam da relação desses com outros profissionais, na hierarquia tanto das empresas de consultoria quanto do licenciamento. Esses trabalhos trazem etnografias que desnaturalizam os ambientes corporativos em que são construídos os discursos e estratégias que legitimam os grandes empreendimentos e o próprio licenciamento ambiental. Kirsch e Benson (2010)Kirsch, Stuart & Benson, Peter. (2010). Capitalism and the politics of resignation. Current Anthropology, 51/4, p. 459-486. chamam a atenção para o fato de que os empregados das corporações são obrigados a vender seu trabalho sob condições de constrangimento e que não atuam como agentes livres que poderiam expressar dissenso e pressionar por mudanças. Os autores se debruçam sobre os modos pelos quais corporações disciplinam ideias e empregados, argumentando que a existência de diferenciação interna nas corporações não necessariamente corresponde a diferenças externas, em termos das consequências de sua atuação. E destacam a peculiaridade das circunstâncias sob as quais os empregados das corporações sucumbem à resignação, dentro da perspectiva de que a característica definidora do capitalismo contemporâneo é a resposta corporativa à crítica. O capital gerencia a crítica de modo que o reconhecimento do dano causado pelas corporações e o descontentamento a esse respeito são convertidos em estruturas de sentimento que promovem cinismo sobre a possibilidade de alterar estruturas sociais, tornando a resignação um modo dominante de ação política.

Nesse sentido, escassas são as reflexões sobre a relação consultor/impactados. Uma delas é a contribuição de Fernandes (2005)Fernandes, Ricardo Cid. (2005). Produto e processo: desafios para o antropólogo na elaboração de laudos de impacto ambiental. In: Leite, Ilka Boaventura (org.). Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: Nuer/ABA, p. 191-205., que parte da elaboração de um laudo antropológico a respeito de uma comunidade indígena impactada por um aproveitamento hidrelétrico em Santa Catarina. Em parte, análises como essa são escassas porque o contato com populações impactadas é fugaz e constitui apenas uma parte de todo o trabalho realizado por esses profissionais no âmbito do licenciamento. É, todavia, para realizar esse contato que os cientistas sociais são contratados, e sua presença na equipe técnica dos estudos elaborados é alardeada por empresas de consultoria como sinal da atenção a impactos sociais dos empreendimentos. Por exemplo, ouvi de um empreendedor, em reunião de negócios, que estava contratando uma determinada empresa de consultoria, cuja equipe contava com um grupo considerável de cientistas sociais, devido à presença de muitos quilombos na área do empreendimento. Em última instância, a expectativa do empreendedor era a de que uma empresa com essas características pudesse lidar melhor com as especificidades dessas populações tradicionais, tornando mais provável a obtenção das licenças ambientais requeridas.

Há dissertações de mestrado (por exemplo, Mazurec, 2012Mazurec, Bianca Maria Abreu. (2012). Reconhecimento étnico quilombola no licenciamento ambiental. Dissertação de Mestrado. CPDA/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.; Sampaio, 2006Sampaio, Priscila B. (2006). Mar de conflitos: as diferentes formas de organização política dos pescadores “artesanais”. Dissertação de Mestrado. CPDA/Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.; Silva, 2004Silva, Juliana Loureiro. (2004). Petróleo à vista. O “meio ambiente” na política local: estudo de caso num processo político. Dissertação de Mestrado. PPGSA/ Universidade Federal do Rio de Janeiro.) de cientistas sociais/consultores que tomam como objeto as populações afetadas por grandes empreendimentos em cujo licenciamento estiveram envolvidos como profissionais, alguns contendo reflexões a respeito do posicionamento do pesquisador também como ator no processo de licenciamento ambiental, que podem ser aprofundadas. Argumento que a apropriação dessa expertise pelo mercado da consultoria para licenciamento ambiental está relacionada a um suposto acesso privilegiado dos cientistas sociais a essas populações, por meio de uma associação entre o trabalho de campo para diagnóstico do meio socioeconômico e o trabalho de campo etnográfico, entendido como especialidade de profissionais como antropólogos e alguns sociólogos.

Partindo de reflexões sobre a utilização da antropologia para fins pragmáticos, como, por exemplo, as pesquisas de mercado, Magnani (2009)Magnani, José Guilherme Cantor. (2009). Etnografia como prática e experiência. Horizontes Antropológicos, 15/32, p. 129-156. chama a atenção para a ocorrência de alguns mal-entendidos, com destaque para a banalização da etnografia como metodologia, estratégia de pesquisa e postura intelectual. E apresenta, então, alguns traços distintivos que marcam a especificidade da etnografia: trata-se de uma metodologia inseparável das escolhas teóricas no interior da disciplina e das particularidades dos objetos de estudo; e engloba estratégias para inserção no campo, condições para prática continuada e experiência, e escrita final.

Nessa direção, a análise da atuação de antropólogos na elaboração de estudos para licenciamento ambiental contribui de forma particular para pensar a banalização do método etnográfico, pois pressupõe uma confusão útil para empresas que têm interesses na transformação de territórios, muitas vezes contrários aos interesses das populações afetadas, em uma relação assimétrica de poder, na qual estudos são elaborados para comprovar a viabilidade de empreendimentos, cuja realização está associada a decisões políticas previamente tomadas.

Não se trata, aqui, de deslegitimar a ocupação desses espaços do mercado de trabalho por antropólogos ou cientistas sociais, mas de refletir sobre o uso que é feito de suas habilidades - tanto as requeridas para a realização dos estudos ambientais quanto aquelas presumidas por sua formação profissional, ou ainda por seu envolvimento prévio com as populações impactadas por determinado empreendimento, como nos casos analisados por Fernandes (2005)Fernandes, Ricardo Cid. (2005). Produto e processo: desafios para o antropólogo na elaboração de laudos de impacto ambiental. In: Leite, Ilka Boaventura (org.). Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: Nuer/ABA, p. 191-205. e Geer (2003)Geer, Sacha. (2003). The tricky/trickster. Role of the anthropologist: ethical dilemmas of the consultant anthropologist in Papua New Guinea. Totem: The University of Western Ontario Journal of Anthropology, 11/1, p. 40-50.. Kirsch (2014Kirsch, Stuart. (2014). Mining capitalism: the relationship between corporations and their critics. Oakland: University of California Press.: 150) relata como a indústria mineradora empregou antropólogos com expertise nas localidades onde se situa seu empreendimento, na Papua Nova Guiné, mas impôs restrições sobre o conteúdo de suas publicações.

Para tanto, cabe escrutinar os motivos pelos quais os trabalhos de campo para diagnósticos socioeconômicos dos EIA não podem ser considerados trabalho de campo etnográfico. Cabe ainda compreender melhor as habilidades postas em uso pelos profissionais que realizam os trabalhos de campo para diagnósticos na consultoria ambiental e o tipo de conhecimento que é construído nessas condições, com finalidades distintas da produção de conhecimento pela antropologia acadêmica/universitária. Um dos intuitos é o de contribuir para que esses profissionais possam assumir um posicionamento esclarecido em sua atuação.

Tempo e poder

Para esclarecer as diferenças entre o trabalho de campo para diagnóstico socioeconômico e o trabalho de campo etnográfico, a principal questão é o tempo, de duas formas. Primeiramente, o pouco tempo de permanência em campo para diagnóstico socioeconômico não permite que se faça etnografia. Ainda nesse sentido, há também pouco tempo para pesquisa bibliográfica e escrita do relatório final. Frequentemente, o pesquisador que vai a campo não tem contato com a parte do EIA que reúne dados secundários sobre a região em estudo.

A seleção das localidades a visitar em um trabalho de campo que subsidia o diagnóstico do meio socioeconômico está relacionada à definição da área de influência do empreendimento a ser licenciado. Bronz (2016: 56) observa que a

delimitação da área de influência é condição para realização dos estudos, na medida em que indica as áreas sujeitas à avaliação dos técnicos, visitação, experimentação e coleta de dados. Ao mesmo tempo, é anunciada como resultado das análises, pois, do ponto de vista metodológico, só após a realização do estudo seria possível compreender como os impactos se distribuem sobre os territórios e suas populações.

A quantidade de localidades a ser visitada e a duração dos trabalhos de campo também são influenciadas pela divisão da área a ser impactada entre área de influência direta (AID) e área de influência indireta (AII) dos empreendimentos. Essa divisão está relacionada à divisão entre beneficiários ou não de certos recursos, pois “as áreas consideradas diretamente afetadas e as populações nelas residentes estarão sujeitas ao desenvolvimento de ações e projetos de mitigação e compensação, enquanto as áreas indiretamente afetadas estarão sujeitas apenas aos planos de monitoramento de impactos” (Bronz, 2016Bronz, Deborah. (2016). Nos bastidores do licenciamento ambiental: uma etnografia das práticas empresariais em grandes empreendimentos. Rio de Janeiro: Contra Capa.: 56). Geralmente, os trabalhos de campo para diagnóstico do meio socioeconômico de um EIA se concentram na AID.

Os relatórios resultantes desses períodos em campo costumam condensar informações utilizadas em diferentes partes de um EIA mas, em sua quase totalidade, vão compor um capítulo comumente denominado “Uso do solo da AID”, ou ainda capítulos específicos sobre a pesca artesanal, quando é o caso. De acordo com Bronz (2016: 56), as “áreas de visitação dos consultores do meio socioeconômico costumam ser determinadas a partir dos resultados preliminares das experimentações, análises e modelagens matemáticas que indicam a extensão das áreas sujeitas aos impactos naturais e aos riscos de acidentes”.

Diante disso, que tipo de informações é requerido quando os profissionais responsáveis pelo meio socioeconômico vão a campo? De que condições eles dispõem para realizar esse levantamento?

O tipo de informação que a empresa de consultoria espera que o profissional traga de campo varia segundo o tipo de empreendimento a ser licenciado. Em todos os casos, é preciso registrar evidências da presença dos profissionais nos locais percorridos - o mínimo é que sejam feitas fotografias dos lugares e pessoas visitados; cada lugar fotografado e descrito também costuma ser registrado com marcação no aparelho de Global Positioning System (GPS). Essas evidências poderão ser usadas posteriormente para provar a realização de estudos in loco, em caso, por exemplo, de questionamento do EIA em uma audiência pública (AP). De maneira geral, trata-se de colher informações que supostamente ajudam a fazer inferências sobre as transformações pelas quais passarão a vida das pessoas e os lugares afetados pela instalação e pela operação de um empreendimento.

Em trabalho anterior (Gaspar, 2018Gaspar, Natalia Morais. (2018). In: Hidalgo, Cecilia. Encrucijadas interdisciplinarias. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fundación CICCUS/CLACSO, p. 125-147.: 132), expus com mais detalhes as condições nas quais são realizadas essas campanhas de campo. Por exemplo, no

caso do licenciamento de atividades petrolíferas no mar (offshore), interessa saber, principalmente, se há pescadores que exercem suas atividades dentro da área de exclusão do empreendimento (geralmente, um raio de 500m ao redor das plataformas e das embarcações de apoio, que se deslocam entre a plataforma e o porto). Esses empreendimentos costumam comportar como “área de influência” vários municípios costeiros contíguos, por vezes em mais de uma unidade da federação. O trabalho de campo consiste, então, em percorrer todos esses municípios, visitando colônias e associações de pesca, nas quais geralmente tem-se uma conversa que não ultrapassa 30 minutos com o presidente ou alguma liderança da colônia ou associação. Além disso, procuram-se os locais de desembarque pesqueiro, e tem-se uma conversa com pescadores que estejam eventualmente no local naquele momento. [...] Em geral, as equipes passam mais tempo na estrada, entre um município e outro, do que efetivamente conversando com pescadores. Não permanecem mais que uma noite em cada localidade visitada. [...] Ou seja, entre outras coisas, o trabalho de campo permite ao pesquisador apenas vislumbrar a complexidade da organização da pesca em uma área enorme, prestes a ser transformada em uma região petrolífera.10 10 Pitanga (2015: 50), antropóloga e consultora, narra um trabalho de campo para diagnóstico socioeconômico da área a ser impactada por exploração de petróleo offshore no litoral norte do Brasil: “Além das visitas institucionais, deveríamos visitar os portos de desembarque de pesca. Chegávamos aos portos pelas indicações obtidas nas colônias visitadas ou circulando pela cidade e, como não havia possibilidade de pré-agendamentos, a abordagem era feita com quem estivesse ali no momento. De certa forma, a este tipo de abordagem se misturam alguns fatores como o acaso, a empatia, o convencimento, a capacidade de improviso e o senso de oportunidade. O intuito era observar a movimentação do porto, o embarque, o desembarque, a comercialização, conversar com pescadores, conhecer os tipos de embarcação, instrumentos de pesca, os tipos de pescado comercializados e realizar uma dinâmica participativa de uso de carta náutica com os pescadores que se disponibilizassem.[...] Quando pedíamos para os presidentes de colônia elencarem as localidades em que havia pescadores de mar, muitas vezes a lista chegava à casa das dezenas, reiterando para nós o fato de não haver qualquer possibilidade de visitarmos todas essas “comunidades”. Outra realidade que se impunha era a de que não necessariamente as embarcações e tripulações presentes nos portos de desembarque residiam no município onde o porto se localiza, não havendo exatamente um critério de pertencimento, a embarcação poderia ser registrada em um município, desembarcar em outro e sua tripulação ser de pescadores de diversos municípios diferentes”.

Sobre os diagnósticos para licenciamento de linhas de transmissão de energia (LT), observei que têm como principal objetivo verificar o tipo de ocupação nos locais em que será instalado o empreendimento, para avaliar se as atividades ali desenvolvidas interferem na presença da LT - por exemplo, os cultivos na chamada faixa de servidão podem ser apenas forrageiros, ou seja, plantas rasteiras. Na etapa do diagnóstico, são constatados apenas os usos da área de influência. Em áreas rurais, por exemplo, as equipes (geralmente duplas) percorrem o chamado corredor entrando em algumas estradas vicinais e aplicando breve questionário aberto aos moradores e produtores. É presumida a semelhança entre o perfil dos moradores e produtores entrevistados, e todos os demais da mesma região, em uma espécie de amostragem aleatória não calculada.

Enquanto boa parte das reflexões críticas sobre a etnografia (por exemplo, Clifford 1998Clifford, James. (1998). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Fabian, 2013Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes.) gira em torno das relações de poder e assimetrias implícitas na relação pesquisador/pesquisado e com os limites do envolvimento intersubjetivo, gerando diferentes estratégias para lidar com essas questões, parece consensual a valorização do trabalho de campo etnográfico como meio de acesso empírico ao outro e, por conseguinte, a si mesmo. Para que esse acesso aconteça é necessário envolvimento de longo prazo por parte do pesquisador.

James Clifford (1998)Clifford, James. (1998). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. situa historicamente o que denomina autoridade etnográfica dentro do desenvolvimento de uma ciência da observação participante no século XX. Sobre o trabalho de campo, destaca o fato de que a observação participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução, para produzir conhecimento a partir de um forte envolvimento intersubjetivo e de intensas experiências de pesquisa.

Para Johannes Fabian (2013)Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes., a grande contradição e ao mesmo tempo a grande virtude da antropologia do século XX estão no estabelecimento da pesquisa de campo como base prática do discurso teórico. Assim, apesar de situar os nativos em outro tempo que não a contemporaneidade no discurso e na teorização antropológicos, os etnógrafos, ao se relacionar com seus objetos de estudo, vivem experiências de coetaneidade, pois é condição fundamental para que a comunicação ocorra.

O trabalho de campo, que demanda presença pessoal e envolve vários processos de aprendizado, mantém uma certa economia do tempo. A regra de ouro antropológica - um ciclo completo de estações - pode não ser a sua medida exata, mas ela reconhece, ao menos, que uma certa passagem do tempo é um pré-requisito necessário, não somente um custo inoportuno (Fabian, 2013Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes.: 116).

Assim sendo, as condições de realização dos trabalhos de campo para diagnóstico socioeconômico dos EIA, especialmente o exíguo tempo de permanência em campo, não permitem o desenvolvimento de qualquer envolvimento intersubjetivo que não seja superficial e fugaz. Correndo o risco de beirar o óbvio, cabe exemplificar que não será possível perceber em meio à população afetada pertencimentos além daqueles formalizados em instituições (como colônias ou associações de pesca, associações de agricultores, de moradores etc.), rivalidades e disputas sutis ou quiçá as mais explícitas, problemas ou alcance da representação e da legitimidade das lideranças. Tampouco é possível notar diferentes formas de relação com o ambiente, tornando difícil dimensionar como transformações dessa relação pela instalação do empreendimento podem ter repercussões em diferentes esferas da vida social.11 11 Nesse sentido, Zhouri e Oliveira (2003: 190) também apontam para a impossibilidade de manter a fidelidade aos preceitos acadêmicos relativos ao método etnográfico quando antropólogos atuam como consultores no âmbito do licenciamento ambiental. Além do pouco tempo de permanência em campo, que por si só já inviabiliza a realização de trabalho etnográfico, as questões mencionadas não podem ser percebidas pelo pesquisador devido à relação assimétrica de poder entre o consultor e os impactados. Essa assimetria é instransponível e passa pelo total domínio do tempo por parte do consultor, encarregado de consolidar os resultados do trabalho de campo em um relatório, subsídio para um diagnóstico, por sua vez insumo para uma análise de impacto, que classifica as populações afetadas em categorias de caráter temporal, ou seja, são situadas em pontos específicos do tempo - de forma simplificada, no período anterior à implantação de um empreendimento, como objeto de um diagnóstico; e naquele posterior à implantação do empreendimento, como população impactada. Cabe ainda acrescentar que, em uma relação na qual consultor e impactado têm posições tão claramente demarcadas, frequentemente com interesses opostos, as informações fornecidas ao consultor pelo impactado passam pelo filtro das expectativas deste último a respeito do uso que será feito delas, o que também torna praticamente impossível o envolvimento intersubjetivo necessário à pesquisa etnográfica.

Tanto no caso do trabalho de campo para o licenciamento quanto no caso da pesquisa científica, o pesquisador não realiza a viagem com recursos próprios, o que seria inviável, mas é financiado por uma instituição. Como contratado por uma empresa de consultoria ambiental, “o consultor é um viajante enquadrado na lógica do mercado empresarial, que trabalha sob fiscalização de um órgão público e que tem o compromisso de produzir um documento escrito que servirá de base para o licenciamento de um grande empreendimento que pode afetar milhares de pessoas” (Pitanga, 2015Pitanga, Luisa Godoy. (2015). Ambientalização, audiovisual e desenvolvimento: percursos etnobiográficos. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 75). Ao contrário, porém, do pesquisador universitário, cuja vinculação a objetivos e instituições científicos pode proporcionar um esforço teórico e prático para a superação das limitações a um envolvimento intersubjetivo para a construção de um conhecimento dialógico, que toma o outro como um sujeito seu contemporâneo, o consultor está imerso na inexorabilidade da implantação do empreendimento, sob a qual o outro, em um primeiro momento, é objeto do estudo, para em seguida ser fatalmente situado em um momento futuro do tempo, como população impactada.

Cabe a ressalva de que, quando objeto do diagnóstico, a população já tem sua vida modificada pela perspectiva de instalação do empreendimento, pela circulação de técnicos envolvidos com estudos prévios, entre outras mudanças. Tais fenômenos são frequentes e são identificados como impacto em alguns EIA, geralmente denominado geração de expectativas em relação ao empreendimento. A reflexão sobre esse impacto introduz algumas sutilezas na análise do domínio do tempo por parte do consultor em sua relação com o impactado. Durante a realização do diagnóstico, a população local é objeto de estudo e também impactada no tempo presente. Simultaneamente, sua condição de impactada é pensada como inexorável, estendendo-se e aprofundando-se do presente até o futuro.

O tratamento do advento de grandes empreendimentos como inexorável por agentes econômicos e governamentais aparece nos relatos sobre a atuação de um painel de especialistas independentes, que se reuniram para formular um documento de contestação aos estudos ambientais para o licenciamento da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte. Os pesquisadores se depararam com a caracterização da obra pelos empreendedores como “de interesse nacional”, inexorável e necessária para a remediação do “problema energético brasileiro” (Hernández & Magalhães, 2011Hernández, Francisco del Moral & Magalhães, Sonia Barbosa. (2011). Ciência, cientistas e democracia desfigurada: o caso Belo Monte. Novos Cadernos NAEA, 14/1, p. 79-96.: 84). A menção explícita à construção de um cenário de inexorabilidade também aparece no relato do projeto de pesquisa Cidade e Alteridade (Roland et al., 2017Roland, Manoela Carneiro et. al. (2017). Violações de direitos humanos por empresas: o caso do Porto do Açu. HOMA - Centro de Direitos Humanos e Empresas, 24p.: 8) a respeito do Sistema Minas-Rio, como reforçado pela estratégia de fragmentação do licenciamento ambiental, que “costuma não só acarretar o subdimensionamento dos impactos globais de um projeto, como reforça o cenário de inexorabilidade de sua implementação”. Já Gerhardt e Rocha (2017Gerhardt, Clayton & Rocha, Luiz Felipe. (2017). Feitiços e contra feitiços no ritual de licenciamento de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) no sul do Brasil: cosmopolítica Mbya e Kaigang no enfrentamento à razão unificadora jurua. Desenvolvimento e meio ambiente, 42.: 27), ao analisar a elaboração de estudos de componente indígena (CI) para licenciar quatro pequenas centrais hidrelétricas (PCH) na cidade de Salto do Jacuí (RS), percebem a execução da obra como “fato concreto e necessário”, dotada de “estatuto fixo”, de “imprescindibilidade inquestionável” e “concretude irremovível”, diante do que a “participação” indígena se torna “medida protocolar”.

Diante da proclamada inexorabilidade da realização do empreendimento, a assimetria de poder entre consultor e impactados inevitavelmente influencia o conhecimento produzido, segundo motivo pelo qual não é possível tratar esse conhecimento como etnográfico. Não que assimetrias não ocorram quando um pesquisador universitário realiza trabalho de campo com fins científicos. A relação entre o consultor e a população potencialmente afetada apresenta, contudo, uma assimetria de poder de natureza bastante específica, posto que terá como produto um estudo legitimador da transformação das condições de vida daquelas pessoas à sua revelia.

De certo modo, no sentido de Fabian (2013)Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes., essa relação assimétrica é também uma relação temporal com características bem marcadas. O consultor, enquanto representante do empreendedor, no encontro com os potenciais impactados, fala em nome de um projeto, conduzido pelo Estado ou grandes corporações, com o poder de decidir e promover expressivas mudanças de diferentes ordens nos territórios, com vários efeitos sobre as populações que lá vivem ou trabalham. Segundo Bezerra & Bronz (2014Bezerra, Marcos Otavio & Bronz, Deborah. (2014). Grandes empreendimentos, administração pública e populações. Revista Antropolítica, 37/2, p. 131-136.: 131), os grandes empreendimentos, também denominados projetos de larga escala ou grandes projetos industriais, caracterizam-se por elevados investimentos empresariais, por mobilizar grande contingente de recursos, capital e mão de obra e produzir transformações expressivas nos territórios em que são construídos. Ou seja, os planejadores e realizadores de um grande empreendimento detêm o poder de implementar transformações significativas no ambiente, na paisagem, nas condições de vida de diferentes populações, que estão associadas a outras transformações não diretamente promovidas pelo empreendimento, mas por seus efeitos - algumas previsíveis, outras não. Desse modo, detêm o poder de influenciar a longo prazo os territórios e as vidas das populações afetadas. E de controlar a construção dessa influência ao longo do tempo, por meio de seus estudos, mapas, tabelas e planos.

Esses instrumentos apoiam a realização do trabalho de campo e também são produto dele. Uma vez que cada encontro (Pitanga, 2015Pitanga, Luisa Godoy. (2015). Ambientalização, audiovisual e desenvolvimento: percursos etnobiográficos. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.) do consultor com um ou mais impactados é marcado com um ponto no GPS, que permitirá a inserção espacial das informações extraídas, e sua comparação com informações associadas a outros pontos, em que ocorreram outros encontros, o consultor tem acesso a uma visão de toda a área percorrida com seu conjunto de encontros. Além disso, o consultor frequentemente utiliza um mapa em que se encontra desenhado o empreendimento e, eventualmente, estruturas de apoio para sua instalação, como canteiros de obras ou estradas de acesso, ou seja, uma série de elementos que não existem naquele espaço no momento da realização do trabalho de campo e da ocorrência dos encontros. Desse modo, o mapa é um instrumento que permite uma visão do conjunto do território a ser afetado pelo empreendimento em um tempo futuro, é um mapa-projeto,12 12 Dessa forma, o papel desempenhado pelos mapas de projetos de grandes empreendimentos utilizados no licenciamento guarda semelhança com aquele dos mapas de modelo europeu utilizados por políticos e administradores no Sudeste Asiático, como analisa Benedict Anderson (2008) para pensar a formação das nações e do nacionalismo. “Desde a invenção do cronômetro, em 1761, por John Harrison, que permitiu o cálculo das longitudes, a superfície curva de todo o planeta havia sido submetida a uma grade geométrica que enquadrava os mares vazios e as regiões inexploradas dentro de quadriculados medidos com precisão. A tarefa de, por assim dizer, “preencher” esses quadriculados ficava a cargo de exploradores, topógrafos e soldados” (Anderson, 2008: 239). O alinhamento entre mapa e poder fica ainda mais evidente quando Anderson menciona o historiador tailandês Thongchai mostrando que, no processo de surgimento do Sião, único país da região que não foi colonizado, o mapa, em vez de representar algo que já existe objetivamente, antecipava a realidade espacial, era um modelo para o que se pretendia representar. Anderson considera o mapa uma das instituições de poder que, juntamente com o censo e o museu, moldaram a maneira pela qual o Estado imaginava seu domínio - “a natureza dos seres humanos por ele governados, a geografia do seu território e a legitimidade do seu passado” (Anderson, 2008: 227). ao qual a população potencialmente impactada não costuma ter acesso. Cabe pensar as implicações da construção de um conhecimento com base na visualização de todos os dados simultânea e espacialmente organizados sob a forma de um mapa. Analisando recomendações a antropólogos iniciantes antes de ir a campo, Fabian (2013)Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes. aponta que a extrapolação de conselhos simples sobre método acaba resultando em uma caricatura da etnografia, porque tais recomendações omitem dimensões da experiência ligadas a outros sentidos que não a visão. E reflete sobre o obscurecimento de aspectos temporais nas relações de exploração entre a sociedade do antropólogo e as outras sociedades por meio de imagens espaciais, como a da expansão ocidental.

Conclusão

Ao delimitar e classificar uma determinada área como área de influência de um empreendimento, e determinados agrupamentos de pessoas como impactados, excluindo outros,13 13 Da mesma forma que a classificação inclui uma área e certos segmentos populacionais, ela exclui outras áreas e segmentos potencialmente afetados. A mudança pode então ocorrer seja pela inclusão, seja pela exclusão e invisibilização dos danos. Pesquisadores demonstram, por exemplo, que diferentemente do que estipulava o EIA, o impacto do rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco, no estado de Minas Gerais, em novembro de 2015, não se restringiu às áreas de influência previstas tecnicamente, mas atingiu extensão muito maior (Zonta e Trocate, 2016). um EIA situa certos segmentos do território e da população em diferentes pontos do tempo - diagnóstico, quando os grupos impactados são objeto de estudo; fase de instalação (construção) e fase de operação (funcionamento), quando eles estão reconhecidamente sujeitos a danos e são alvo de medidas compensatórias e mitigadoras.

Esses estudos têm por base uma organização do tempo que toma como inexorável a realização do empreendimento e, pressupondo a previsibilidade de todas as suas consequências, as organiza em um planejamento temporal e espacial. Diante disso, alguns danos que serão causados às populações e ao ambiente, chamados de impactos, são identificados, classificados, têm seus desdobramentos previstos e sua importância calculada, de modo que sua gestão ao longo do tempo permaneça sob o controle do empreendedor e sob a cada vez mais frágil fiscalização de órgãos do Estado.

A criação da sensação de inexorabilidade do empreendimento contribui para que a população afetada seja constrangida a negociar acordos envolvendo medidas paliativas francamente insuficientes diante dos danos sofridos, muitos deles irreparáveis. Nesse sentido, a sensação de inexorabilidade em relação aos grandes empreendimentos e aos danos por eles causados coaduna com a ideia de política da resignação, trabalhada por Kirsch e Benson (2010)Kirsch, Stuart & Benson, Peter. (2010). Capitalism and the politics of resignation. Current Anthropology, 51/4, p. 459-486.. E constitui prova insofismável da assimetria de poder entre consultores e impactados, o que inviabiliza a produção de conhecimento etnográfico.

O fato de que alguns destes empreendimentos, planejados e tratados como inexoráveis em estudos prévios, não vêm a ser concretizados14 14 É o caso do Complexo Porto Sul, no estado da Bahia, projeto público-privado anunciado em 2008, que envolveria uma mina de ferro em Caetité, uma ferrovia (Fiol), um aeroporto internacional ao norte de Ilhéus e um porto de grande calado para navios graneleiros no sul da Bahia. A mina suspendeu as atividades em 2013, demitindo quase todos os funcionários. Ao final de 2015, o porto não foi implantado e a Fiol se encontra em construção (Rocha, 2017: 158). e o fato de que desastres associados à construção e ao funcionamento de grandes empreendimentos costumam impactar áreas maiores do que aquelas previstas em estudos ambientais e causar danos imprevistos e impossíveis de ser contidos por planos de contingência ou emergência (ver nota 13), não invalidam o enquadramento temporal de territórios e populações como impactados, realizado pelos EIA. Ao contrário, são reveladores do papel do EIA como ferramenta protocolar de legitimação técnica e legal da imposição de um enquadramento temporal e de todas as transformações a ele associadas, previstas ou não.

Isso porque a classificação ou a não classificação de determinados grupos como impactados, por si só, exerce seus efeitos. E porque o tempo não volta: o que já aconteceu não pode ser modificado por acontecimentos futuros. Assim, quando a população de determinada região passa a lidar com o projeto de realização de um empreendimento, como parte de planos privados ou estatais, a expectativa de transformações de tão grande escala produz mudanças na vida local - por exemplo, a circulação de autoridades públicas, de técnicos ligados a órgãos governamentais ou a empresas privadas, e muitas vezes a chegada de trabalhadores em busca de emprego. Caso a instalação do empreendimento não ocorra, a região enfrentará efeitos da frustração dessas expectativas. Por outro lado, quando um desastre industrial afeta regiões que não foram previamente classificadas como impactadas, trata-se de populações que são totalmente surpreendidas por danos ambientais, sem que tenham sido beneficiadas por medidas preventivas, mitigadoras ou compensatórias.

Assim, é inevitável que o encontro do consultor com o impactado durante o trabalho de campo seja marcado por expressiva e intransponível assimetria de poder, por meio de mecanismos que atribuem ao consultor um domínio sobre o tempo presente e futuro, materializado na prerrogativa de enquadrar seu interlocutor em uma espécie de destino, decidido e planejado à sua revelia. Ainda que o profissional que executa o trabalho de campo tenha pouco ou nenhum controle ou mesmo conhecimento a respeito dos diferentes aspectos ou etapas da implantação do empreendimento, e até mesmo da apropriação que será feita dos achados de sua pesquisa dentro do próprio EIA, na relação com o impactado, ele representa o empreendedor, e essa condição estabelece limites ao envolvimento intersubjetivo que poderia ocorrer em campo. A respeito desse papel desempenhado pelos consultores, Pitanga (2015: 82) chega a os qualificar como “mensageiros do apocalipse”, pois encarnam, na relação com a população afetada, a chegada do empreendimento.

De acordo com Fabian (2013)Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes., o tempo é utilizado para criar distância na antropologia. A teoria antropológica assim o faz por meio de alguns instrumentos de distanciamento, que acabam por produzir um resultado global, que o autor chama de negação da coetaneidade - a persistente e sistemática tendência em identificar o referente da antropologia (seu objeto) em um tempo que não o presente do produtor do discurso antropológico.15 15 Fabian (2013) identifica três usos do tempo na antropologia: o tempo físico, parâmetro ou vetor na descrição do processo sociocultural, que não está sujeito a variações culturais, é um tempo natural, objetivo, não cultural; o tempo tipológico, medido em eventos significativos sob o ponto de vista sociocultural, e que fundamenta qualificações como anterior à escrita x letrado, tradicional x moderno, camponês x industrial; e o tempo intersubjetivo, que enfatiza a natureza comunicativa da ação e interação humana. Essa tendência, no entanto, frequentemente enfrenta a contradição com a literatura etnográfica, que é fruto de eventos de comunicação entre pesquisador e pesquisado, eventos esses que só podem ocorrer quando ambos compartilham o mesmo tempo, são coevos”. Assim, o uso de temporalizações como a passagem da selvageria à civilização ou do campesinato à sociedade industrial teria por muito tempo servido a uma ideologia com o propósito final de “justificar a aquisição de commodities para os nossos mercados” (Fabian, 2013Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes.: 121-122).

No caso do estudo para o licenciamento de um grande empreendimento, trata-se da passagem das condições de vida atuais de uma população - que pode ser urbana ou rural, tradicional ou não, mas geralmente das classes populares - à condição de impactada e, portanto, exposta a danos. O consultor, que pode ou não ser um antropólogo, deve reunir dados sobre populações impactadas e os transmitir aos agentes do desenvolvimento - Estados e corporações -, conferindo-lhes legitimidade técnica e legal para as expropriar.

NOTAS

  • 1
    Dentre os aparatos legais e institucionais destinados a lidar com questões ambientais no Brasil, destaca-se o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos/atividades potencialmente poluidores. É regido pelo seguinte arcabouço legal: lei n. 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente; resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) n. 001/1986 e 237/1997, que estabelecem os procedimentos para o licenciamento ambiental; e lei complementar n. 140/2011, que estabelece as formas de cooperação entre as três esferas de governo na proteção do meio ambiente. Para ser licenciado por um órgão ambiental governamental, um empreendimento deve possuir, a rigor, três licenças: prévia (LP); de instalação (LI), que autoriza a realização das obras; e de operação (LO), que autoriza a entrada em funcionamento.
  • 2
    A realização do EIA depende das seguintes atividades: “diagnóstico ambiental que caracteriza a situação da área de influência do projeto antes de sua implantação; [...] análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes; [...] definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, avaliada a eficiência de cada uma destas; [...] elaboração do programa de monitoramento dos impactos” (Bronz, 2011Bronz, Deborah. (2011). Empreendimentos e empreendedores: formas de gestão, classificações e conflitos a partir do licenciamento ambiental, Brasil, século XXI. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 37). É na primeira atividade que a maior parte dos profissionais de ciências sociais costuma atuar. O diagnóstico ambiental é subdivido em meio físico, meio biótico e meio socioeconômico, divisão que “supõe a existência de três tipos de saberes distintos sobre o meio ambiente, que seguem interpretações epistemológicas diferenciadas” (Bronz, 2011Bronz, Deborah. (2011). Empreendimentos e empreendedores: formas de gestão, classificações e conflitos a partir do licenciamento ambiental, Brasil, século XXI. Tese de Doutorado. PPGAS/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 37). Isso porque a realização desses estudos implica a caracterização das condições do meio ambiente anteriores à construção dos empreendimentos. Diferentes expertises são mobilizadas para tanto: “cientistas da natureza (biólogos, geólogos, geógrafos, oceanógrafos), responsáveis pelos estudos sobre as condições físicas e biológicas dos ambientes; [...] economistas e cientistas sociais (geógrafos, sociólogos e antropólogos) voltados à produção de conhecimento sobre as populações localizadas próximas aos empreendimentos e sobre os efeitos aos quais estarão sujeitas; [...] engenheiros” (Bronz, 2016Bronz, Deborah. (2016). Nos bastidores do licenciamento ambiental: uma etnografia das práticas empresariais em grandes empreendimentos. Rio de Janeiro: Contra Capa.: 39).
  • 3
    Contudo, apontam-se vários limites à efetividade do licenciamento ambiental. É o caso do chamado Sistema Minas-Rio, que compreende exploração de uma mina de ferro, uma usina de beneficiamento, um mineroduto de 525km de extensão que atravessa 32 municípios, culminando em um terminal portuário - empreendimento da Anglo Ferrous Minas-Rio S.A., fundada em 2008 pela empresa Anglo American. O sistema foi licenciado de forma fragmentada, por diferentes órgãos ambientais federal e estaduais, embora seja óbvio que nenhuma dessas estruturas possa funcionar sem a outra (Milanez et al., 2013Milanez, Bruno et al. (2013). Injustiça ambiental, mineração e siderurgia. In: Porto, Marcelo Firpo et al. Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o mapa de conflitos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.: 184). É o caso também da TK-CSA, usina siderúrgica com um porto integrado instalada na baía de Sepetiba (RJ), inaugurada em 2010 sem que tivesse obtido a licença de operação (Milanez et al., 2013Milanez, Bruno et al. (2013). Injustiça ambiental, mineração e siderurgia. In: Porto, Marcelo Firpo et al. Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o mapa de conflitos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.: 197).
  • 4
    No mercado das empresas de consultoria ambiental que atuam na elaboração dos EIA, há profissionais que são contratados como pessoa física (PF) para realização de serviços pontuais (trabalho de campo/relatório, ou capítulos de síntese de dados secundários) e funcionários fixos das empresas, com ou sem regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), dependendo do porte da empresa. Há também empregados fixos obrigados a abrir empresas para receber parte de seus salários como pessoa jurídica (PJ). E microempresas, formadas por ex-consultores, que não possuem funcionários - ou seja, seus sócios vendem seu próprio trabalho como PJ, subcontratando algumas vezes outros profissionais em momentos emergenciais.
  • 5
    Tramita no Senado Federal a proposta de emenda constitucional (PEC) 65/2012, que “dispõe que a apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente”. Na prática, terminaria por limitar o processo de licenciamento ambiental apenas à primeira etapa, de elaboração dos estudos iniciais. Até a escrita deste artigo, a PEC se encontrava na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sob a relatoria do senador Randolfe Rodrigues, do partido Rede. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/109736 Acesso em 27 out. 2017.
  • 6
    Por valor, Henderson et al. (2011Henderson, Jeffrey et al. (2011). Redes de produção globais e a análise do desenvolvimento econômico. Revista Pós Ciências Sociais, 8/15, p. 143-170.: 156) se referem “tanto às noções marxianas de mais-valia e a outras mais ortodoxas associadas a renda econômica”. Quanto ao enraizamento, se referem à forma pela qual as RPGs conectam aspectos dos arranjos sociais e espaciais, e como eles as influenciam.
  • 7
    De acordo com a instrução normativa (IN) n. 1/PRES, de 09 jan. 2012.
  • 8
    A definição jurídica de população tradicional, embora não tenha sido incorporada à versão final da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), aprovada em 10 de junho de 1999, vigora nos discursos e pleitos daqueles que se reconhecem sob essa categoria. O projeto de lei n. 2.892 assim a define: “Grupos humanos culturalmente diferenciados vivendo há no mínimo três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para a sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável”.
  • 9
    Os trabalhos de campo para diagnóstico do meio socioeconômico de diferentes empreendimentos por vezes constituem um importante complemento de renda, como trabalho informal e avulso, para estudantes de graduação e pós-graduação em ciências sociais, e não apenas antropólogos. Trata-se de um perfil diferente daqueles de profissionais de ciências sociais que se tornam funcionários efetivos das empresas de consultoria, geralmente marcados por trajetórias menos privilegiadas e pela necessidade de se fixar no mercado de trabalho. Entre estes últimos, são frequentes as aspirações a retomar seus estudos, embora nem sempre concretizadas.
  • 10
    Pitanga (2015: 50), antropóloga e consultora, narra um trabalho de campo para diagnóstico socioeconômico da área a ser impactada por exploração de petróleo offshore no litoral norte do Brasil: “Além das visitas institucionais, deveríamos visitar os portos de desembarque de pesca. Chegávamos aos portos pelas indicações obtidas nas colônias visitadas ou circulando pela cidade e, como não havia possibilidade de pré-agendamentos, a abordagem era feita com quem estivesse ali no momento. De certa forma, a este tipo de abordagem se misturam alguns fatores como o acaso, a empatia, o convencimento, a capacidade de improviso e o senso de oportunidade. O intuito era observar a movimentação do porto, o embarque, o desembarque, a comercialização, conversar com pescadores, conhecer os tipos de embarcação, instrumentos de pesca, os tipos de pescado comercializados e realizar uma dinâmica participativa de uso de carta náutica com os pescadores que se disponibilizassem.[...] Quando pedíamos para os presidentes de colônia elencarem as localidades em que havia pescadores de mar, muitas vezes a lista chegava à casa das dezenas, reiterando para nós o fato de não haver qualquer possibilidade de visitarmos todas essas “comunidades”. Outra realidade que se impunha era a de que não necessariamente as embarcações e tripulações presentes nos portos de desembarque residiam no município onde o porto se localiza, não havendo exatamente um critério de pertencimento, a embarcação poderia ser registrada em um município, desembarcar em outro e sua tripulação ser de pescadores de diversos municípios diferentes”.
  • 11
    Nesse sentido, Zhouri e Oliveira (2003Zhouri, Andrea & Oliveira, Raquel. (2003). Development and environmental conflicts in Brazil. Challenges for anthropology and anthropologists. Vibrant, 9/1, p. 181-208.: 190) também apontam para a impossibilidade de manter a fidelidade aos preceitos acadêmicos relativos ao método etnográfico quando antropólogos atuam como consultores no âmbito do licenciamento ambiental.
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    Dessa forma, o papel desempenhado pelos mapas de projetos de grandes empreendimentos utilizados no licenciamento guarda semelhança com aquele dos mapas de modelo europeu utilizados por políticos e administradores no Sudeste Asiático, como analisa Benedict Anderson (2008)Anderson, Bennedict. (2008). Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras. para pensar a formação das nações e do nacionalismo. “Desde a invenção do cronômetro, em 1761, por John Harrison, que permitiu o cálculo das longitudes, a superfície curva de todo o planeta havia sido submetida a uma grade geométrica que enquadrava os mares vazios e as regiões inexploradas dentro de quadriculados medidos com precisão. A tarefa de, por assim dizer, “preencher” esses quadriculados ficava a cargo de exploradores, topógrafos e soldados” (Anderson, 2008Anderson, Bennedict. (2008). Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 239). O alinhamento entre mapa e poder fica ainda mais evidente quando Anderson menciona o historiador tailandês Thongchai mostrando que, no processo de surgimento do Sião, único país da região que não foi colonizado, o mapa, em vez de representar algo que já existe objetivamente, antecipava a realidade espacial, era um modelo para o que se pretendia representar. Anderson considera o mapa uma das instituições de poder que, juntamente com o censo e o museu, moldaram a maneira pela qual o Estado imaginava seu domínio - “a natureza dos seres humanos por ele governados, a geografia do seu território e a legitimidade do seu passado” (Anderson, 2008Anderson, Bennedict. (2008). Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras.: 227).
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    Da mesma forma que a classificação inclui uma área e certos segmentos populacionais, ela exclui outras áreas e segmentos potencialmente afetados. A mudança pode então ocorrer seja pela inclusão, seja pela exclusão e invisibilização dos danos. Pesquisadores demonstram, por exemplo, que diferentemente do que estipulava o EIA, o impacto do rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco, no estado de Minas Gerais, em novembro de 2015, não se restringiu às áreas de influência previstas tecnicamente, mas atingiu extensão muito maior (Zonta e Trocate, 2016Zonta, Marcio & Trocate, Charles (orgs.). (2016). Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/Vale/BHP Billiton. Marabá: Editorial iGuana.).
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    É o caso do Complexo Porto Sul, no estado da Bahia, projeto público-privado anunciado em 2008, que envolveria uma mina de ferro em Caetité, uma ferrovia (Fiol), um aeroporto internacional ao norte de Ilhéus e um porto de grande calado para navios graneleiros no sul da Bahia. A mina suspendeu as atividades em 2013, demitindo quase todos os funcionários. Ao final de 2015, o porto não foi implantado e a Fiol se encontra em construção (Rocha, 2017Rocha, Rui Barbosa da. (2017). Desenvolvimento territorial e licenciamento ambiental: o Sul da Bahia com a Fiol e o Porto Sul. In: Costa, Marco Aurélio et al. (orgs.). Licenciamento ambiental e governança territorial: registros e contribuições do seminário internacional. Rio de Janeiro: Ipea, p. 149-168.: 158).
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    Fabian (2013)Fabian, Johannes. (2013). O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes. identifica três usos do tempo na antropologia: o tempo físico, parâmetro ou vetor na descrição do processo sociocultural, que não está sujeito a variações culturais, é um tempo natural, objetivo, não cultural; o tempo tipológico, medido em eventos significativos sob o ponto de vista sociocultural, e que fundamenta qualificações como anterior à escrita x letrado, tradicional x moderno, camponês x industrial; e o tempo intersubjetivo, que enfatiza a natureza comunicativa da ação e interação humana.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2018
  • Revisado
    11 Dez 2019
  • Aceito
    03 Set 2020
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