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OUTROS GÊNEROS, OUTRAS MODERNIDADES: CONTRIBUIÇÕES DE MARIANNE WEBER PARA UMA TEORIA SOCIAL CLÁSSICA GENERIFICADA

OTHER GENDERS, OTHER MODERNITIES: MARIANNE WEBER’S CONTRIBUTIONS TO A GENDERED CLASSICAL SOCIAL THEORY

Resumo

O objetivo deste artigo é promover uma discussão acerca da obra de Marianne Weber (1870-1954) a fim de contribuir para o movimento de ampliação do debate social clássico, tensionando-o no que se refere a dimensões de gênero. Em diálogo com a fortuna crítica da pensadora, o artigo oferece dados biográficos, bem como uma visão panorâmica de algumas de suas perspectivas e diálogos teóricos, com destaque para suas contribuições de matiz feminista. As especificidades do pensamento sociológico de Weber são relacionadas à sua atuação no movimento de mulheres com o intuito de apresentar aspectos de sua visão generificada da cultura moderna.

Palavras-chave
Marianne Weber; Feminismo; Teoria social clássica; Cultura; Racionalidade moderna

Abstract

This article aims to promote a discussion of the work of Marianne Weber (1870-1954) to contribute to the movement of expanding the classic social debate by tensioning it regarding gender dimensions. In dialogue with the thinker’s critical fortune, the article offers biographical data, as well as a panoramic view of some of her theoretical perspectives and dialogues, with emphasis on her feminist contributions. The specificities of Weber’s sociological thought are related to her role in the women’s movement to present her gendered view of modern culture.

Keywords
Marianne Weber; Feminism; Classical social theory; Culture; Modern rationality

É muito provável que, por meio de uma ou duas frases ditas marginalmente, muitas estudantes de Ciências Sociais tenham sido apresentadas a Marianne Weber como a esposa de Max Weber 1 1 Durante todo o texto, quando menciono apenas Weber, estou me referindo à Marianne Weber. , a responsável pela biografia e pela edição da obra do grande autor de Economia e sociedade . Em meio ao esforço de compreender conceitos complexos, como ação social e dominação, desencantamento do mundo, a relação entre protestantismo e capitalismo etc., é bem possível que essas estudantes tenham deixado de lado o nome de Marianne Weber no decorrer de seu curso, e esquecido até mesmo seu papel fundamental para a construção de um dos clássicos obrigatórios da sociologia.

O que diriam nossas estudantes se soubessem que a própria Marianne Weber publicou nove livros e quase uma centena de artigos? Que, à época, era uma figura pública tão notável como Max Weber? Que ela foi uma das grandes expoentes do movimento alemão de mulheres daquele período? Que ocupou o cargo de deputada e foi a primeira mulher a fazer um discurso no parlamento de Baden? Que a grande maioria dos seus textos está voltada a compreender a situação da mulher na sociedade moderna, tanto na esfera profissional quanto na matrimonial, política, familiar, educacional, erótica?

Embora saibamos de muitos e muitos relatos sexistas de apagamento histórico da atuação intelectual de mulheres, ainda choca quando os detalhes desse fenômeno são revelados em histórias singulares. No caso de Marianne Weber, há certa vergonha adicional quando se evidencia, uma vez mais, que a sociologia não escapa às relações de poder que ela se esmera em criticar. Contudo, a despeito do choque e da vergonha, é de todo modo positivo perceber que há um processo de revisão ocorrendo na história das ideias sociológicas. Tal processo se constrói a contrapelo nas matrizes de poder geográficas, raciais e generificadas. No caso específico das dimensões de gênero, há um movimento nacional e internacional de recuperação das autoras clássicas das ciências sociais, o que nos permite vislumbrar não só nomes de mulheres historicamente silenciados, mas também maneiras específicas de lidar com os fenômenos sociais que se contrapõem à frequente universalização imposta por olhares masculinos (além de brancos e eurocentrados).

Bärbel Meurer ( 2010Meurer, Bärbel. (2010). Marianne Weber: Leben und Werk. Tübingen: Mohr Siebeck. ), autora de uma detalhada biografia acerca de Marianne Weber, informa que o primeiro congresso em torno da pensadora ocorreu apenas em 1998. Contudo, aos poucos, as contribuições de Marianne Weber começam a ser debatidas e traduzidas dentro e fora da Alemanha, como exemplificam os trabalhos de Lengermann e Niebrugge-Brantley ( 1998Lengermann, Patricia Madoo & Niebrugge-Brantley, Jill. (1998). The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings. New York: McGraw-Hill. ), Meurer ( 2004Meurer, Bärbel. (2004). Marianne Weber: Beiträge zu Werk und Person. Tübingen: Mohr Siebeck. ), Weber ( 2007Weber, Marianne. (2007). La mujer y la cultura moderna: tres ensayos. Cali: Archivos del Índice. ), Mata ( 2017Mata, Giulle Vieira da. (2017). O ideal e sua forma: casamento e condição feminina na sociologia de Marianne Weber. Tese de doutorado. PPGS/Universidade Federal de Minas Gerais. ), Vieira (Daflon & Campos, 2022Daflon, Verônica Toste & Campos, Luna Ribeiro. (2022). Pioneiras da sociologia. Niterói: Eduff. ), Zanon et al. (2021), Tijssen ( 1991Tijssen, Lieteke van Vucht. (1991). Women and Objective Culture: Georg Simmel and Marianne Weber. Theory, Culture, and Society, 8/3, p. 203-218. ), Roth ( 2001Roth, Günther. (2001). Max Webers deutsch-englische Familiengeschichte 1800-1950. Tübingen: Mohr Siebeck. ) e Wobbe (1998). Porém, as traduções brasileiras de trabalhos de Weber ainda são escassas. Salvo engano, além da biografia de Max Weber (Weber, 2003Weber, Marianne. (2003). Max Weber: uma biografia. Niterói: Casa Jorge. ), é possível conferir apenas “Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico: excertos” (Zanon et al., 2021Zanon, Breilla et al. (orgs.). (2021). A atualidade de Max Weber e a presença de Marianne Weber. Porto Alegre: Fundação Fênix. ) e “Autoridade e autonomia no casamento” (Weber, 2022Weber, Marianne. (2022). Autoridade e autonomia no casamento. In: Castro, Celso (org.). Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 82-95. ).

De todo modo, é interessante notar que, lá no nascimento da sociologia, tão próxima de grandes clássicos como Max Weber e Georg Simmel, estava uma mulher, cuja própria reflexão apresentava um olhar generificado para debates tão típicos das reflexões sobre a modernidade, como os processos de diferenciação, racionalização e individualização.

Grosso modo, nos debates recentes em torno da teoria social, há a emergência de esforços voltados para ampliar e diversificar o cânone. Os autores consensualizados como clássicos da sociologia legaram contribuições fundamentais para a compreensão do mundo moderno, contudo, eles não foram os únicos a fazê-lo. Em decorrência dessa constatação, presenciamos nacional e internacionalmente importantes contribuições que desnaturalizam a institucionalização dos pilares canônicos da sociologia. Conforme Raewyn Connell ( 2012Connell, Raewyn. (2012). O império e a criação de uma ciência social contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar, 2/2, p. 309-336, jul./dez.: 330-331), “o cânone clássico da sociologia foi criado, principalmente nos Estados Unidos, como parte de um esforço de reconstrução depois do colapso do primeiro projeto de sociologia euro-americano”. Alatas e Sinha ( 2017Alatas, Syed Farid & Sinha, Vineeta. (2017). Sociological Theory Beyond the Canon. London: Palgrave Macmillan. ) também advogam tanto por uma releitura crítica de Max Weber, Émile Durkheim e Karl Marx, com “corretivos necessários”, quanto por uma recuperação de “discursos alternativos”, via mapeamento de intelectuais, tradições e repertórios.

Autores consensualizados como clássicos ressaltaram características importantes da modernidade, como os processos de industrialização, de urbanização, de aceleração da diferenciação social e da divisão do trabalho, de racionalização, intelectualização e avanço das trocas monetárias etc. Mas suas perspectivas foram universalizadas pelas ciências sociais, muitas vezes sem consideração a aspectos importantes que fraturam as experiências sociais modernas, como pertencimento étnico-racial, geográfico e de gênero. Daí a necessidade de promover uma sociologia polifônica (Hamlin et al., 2023Hamlin, Cynthia Lins; Weiss, Raquel & Brito, Simone Magalhães. (2023). Por uma sociologia polifônica: introduzindo vozes femininas no cânone sociológico. Sociologias, 24/61, p. 26-59. ) e de reconhecer as “anomalias” presentes na teoria social por conta de sua configuração majoritariamente branca e androcêntrica (Collins, 2016Collins, Patricia Hill. (2016). Aprendendo com a outsider within. Sociedade e Estado, 31/1, p. 99-127. ).

Nesse sentido, a defesa da importância dos clássicos para as ciências sociais, em especial para a sociologia, adquire um escopo mais crítico. Já em Jeffrey Alexander ( 1999Alexander, Jeffrey C. (1999). A importância dos clássicos. In: Giddens, A. & Turner, J. (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 23-89. ) essa defesa é feita a partir da perspectiva de que um clássico seria o resultado de um esforço primitivo que ainda tem certo privilégio na contemporaneidade. Nas ciências sociais, diferentemente das ciências naturais (mais preocupadas com os dados empíricos), as obras clássicas seriam importantes para lidar com o alto nível de dissenso inerente ao pensamento social. Assim, os clássicos da sociologia remontariam a autores que fizeram uma contribuição discursiva singular à ciência da sociedade, recorrendo às suas qualidades de sensibilidade pessoal para interpretar os fenômenos sociais. Mais preocupada com as relações de poder que estão envolvidas na configuração desse escopo de “privilegiados”, Connell ( 1997Connell, Raewyn. (1997). Why Is Classical Theory Classical? American Journal of Sociology, 102/6, p. 1511-1557.: 1546) advoga por uma introdução da sociologia não como “uma história de ‘grandes homens’, mas como uma prática configurada pelas relações sociais que a tornou possível”. Para isso, o cânone deveria incluir tradições que foram apagadas, como as feitas por feministas, anarquistas e pelos colonizados.

Do ponto de vista do gênero, o esforço de recuperação de pensadoras da teoria social adquiriu impulso nas últimas décadas. The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings (Lengermann & Niebrugge-Brantley, 1998Lengermann, Patricia Madoo & Niebrugge-Brantley, Jill. (1998). The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings. New York: McGraw-Hill. ), por exemplo, foi publicado em 1998, recuperando contribuições de diversas autoras. No Brasil, Clássicas do pensamento social (Daflon & Sorj, 2021Daflon, Verônica Toste & Sorj, Bila. (2021). Clássicas do pensamento social: mulheres e feminismos no século XIX. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. ) concentra-se no tema das mulheres e do feminismo no século XIX. Também por aqui, Pioneiras da sociologia (Daflon & Campos, 2022Daflon, Verônica Toste & Campos, Luna Ribeiro. (2022). Pioneiras da sociologia. Niterói: Eduff. ) recupera mulheres intelectuais dos séculos XVIII e XIX. Além disso, observamos dossiês (Daflon & Chaguri, 2023Daflon, Verônica Toste & Chaguri, Mariana Miggliolaro. (2023). Mulheres na teoria social: presente e passado para uma sociologia plural. Sociologias, 24/61, p. 16-24, 2023. ) e eventos voltados ao tema 2 2 Como o curso de extensão Mulheres na Teoria Social, organizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) em 2021, ou o projeto Fundadoras de la Sociología, organizado pela Fundación Centro de Estudios Andaluces, também em 2021. , bem como o surgimento de traduções e pesquisas de doutorado centradas em autoras específicas (Martineau, 2021; Mata, 2017Mata, Giulle Vieira da. (2017). O ideal e sua forma: casamento e condição feminina na sociologia de Marianne Weber. Tese de doutorado. PPGS/Universidade Federal de Minas Gerais. ).

Atenta a esse movimento, tenho como objetivo contribuir com o descentramento do cânone sociológico, sobretudo via perspectiva de gênero. Farei isso inicialmente recuperando aspectos da obra e da trajetória de Marianne Weber e, depois, focando em seus debates generificados e nas possibilidades que eles abrem para pensar em aspectos da modernidade não considerados pelos clássicos masculinos, justamente por sua condição de pertencimento ao gênero pretensamente “universalizável”. Nesse sentido, quando reflete sobre temas como a família, o direito, o trabalho, a educação nas sociedades modernas, Weber remete sempre às desigualdades de gênero (por vezes, pensadas em termos de diferença) inerentes à participação de homens e mulheres nessas instituições.

Para introduzir esses debates realizados pela autora, de sua vasta obra serão abordados principalmente os ensaios reunidos na coletânea Frauenfragen und Frauengedanken [ Questões e pensamentos de mulheres ], publicado inicialmente em 1919. Meu interesse pelo trabalho da autora surgiu a partir das tentativas de questionar, na medida do que é institucionalmente possível, alguns pressupostos dos currículos de Ciências Sociais, incluindo um debate sobre ela na clássica disciplina voltada aos trabalhos de Max Weber. Como procuro demonstrar ao longo do texto, a leitura da obra de Marianne Weber sugere que suas discussões podem ser muito profícuas para um debate mais plural do ponto de vista do gênero no âmbito da teoria social clássica.

Notas biográficas

Marianne Schnitger Weber nasceu em 1870, em Oerlinghausen, Alemanha, e faleceu em 1954, em Heidelberg 3 3 As informações biográficas dessa sessão estão baseadas principalmente em Lengermann & Niebrugge-Brantley ( 1998 ). Referências adicionais estão citadas ao longo do texto. . Sua infância não foi muito fácil. A mãe morreu quando Weber tinha apenas dois anos de idade. Ela ficou aos cuidados da avó e de uma tia. Além disso, o pai e dois tios sofriam de graves problemas psíquicos. Com a ajuda do avô materno, que era irmão do avô de Max Weber, Marianne foi enviada para Hannover, onde concluiu sua formação escolar. Entre 1891 e 1892, ela passa temporadas com a família de Max Weber (que era seu primo de segundo grau) e os dois acabam se tornando noivos, casando-se em 1893.

Durante seu casamento, de 1893 até o falecimento de Max em 1920, Marianne Weber usufruiu de relativa liberdade para desenvolver suas preocupações intelectuais e envolver-se no movimento alemão de mulheres. Em Friburgo, onde o casal viveu entre 1894 e 1895, Weber frequentou seminários universitários e dedicou-se às aulas do neokantiano Heinrich Rickert. Também nesse período, ela começa a explorar o pensamento feminista. A partir de 1896, o casal Weber muda-se para Heidelberg, onde Marianne Weber torna-se líder de um grupo de disseminação de ideias feministas, começa a escrever seus próprios textos e frequenta cursos de filosofia na Universidade de Heidelberg — instituição então muito pouco frequentado por mulheres: como informa Theresa Wobbe ( 1995Wobbe, Theresa. (1995). On the Horizons of a new Discipline: Women Sociologists in Germany. Journal of the Anthropological Society of Oxford. 26/3, p. 283-297. ), apenas a partir do ano acadêmico 1908-1909 as mulheres puderam se matricular regularmente como estudantes universitárias na Prússia, o maior estado do Império Alemão. A própria Weber não concluiu nenhuma formação universitária formal (Wobbe, 2004Wobbe, Theresa. (2004). Marianne Webers historischer Ort als Bildungsbürgerin und Frauenrechtlerin. In: Meurer, Bärbel (Hrsg.). Marianne Weber: Beiträge zu Werk und Person. Tübingen: Mohr Siebeck, p. 127-155.: 176). A autorização para que mulheres se tornassem professoras universitárias na Alemanha só viria em 1920.

Entre 1898 e 1904, durante a grave crise psíquica que afastou Max de boa parte de suas atividades intelectuais e públicas, Marianne Weber também se dedicou intensamente à recuperação do companheiro. Mesmo assim, data de 1900 seu primeiro livro, Fichtes Sozialismus und sein Verhältnis zur Marx’schen Doktrin [ O socialismo de Fichte e sua relação com a doutrina marxista ]. Ao final da recuperação de Max, Marianne Weber havia se tornado uma figura pública atuante.

A partir de 1904, após o retorno de Max à academia, Marianne Weber também intensifica sua atuação intelectual e política. Ocorre a famosa viagem aos Estados Unidos, que foi intelectualmente profícua não apenas para o autor da Ética protestante e o espírito do capitalismo , mas também para sua companheira. Naquele país, ela encontrou as ativistas Jane Addams (1860-1935) e Florence Kelley (1859-1932) e ficou impressionada com suas ações em defesa das mulheres trabalhadoras e de condições justas de trabalho e moradia para as classes trabalhadoras em geral — Meurer ( 2010Meurer, Bärbel. (2010). Marianne Weber: Leben und Werk. Tübingen: Mohr Siebeck. ) descreve esses encontros com mais detalhes. Até 1907, Weber publicou vários trabalhos sobre a experiência das mulheres e o livro Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung [ Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico ], que fez dela “uma das mais conhecidas cientistas [da Alemanha]” (Roth, 2001Roth, Günther. (2001). Max Webers deutsch-englische Familiengeschichte 1800-1950. Tübingen: Mohr Siebeck.: 564).

No início do século, Marianne Weber também fundou seu “Círculo de Estudos”, que, de certo modo, permaneceu em atividade ao longo de toda a sua vida e foi frequentado por importantes intelectuais alemães, como Georg Simmel, Werner Sombart, Robert Michels, Karl Mannheim, Karl Jaspers, Emil Lask, além de proeminentes feministas, como Marie Baum, Gertrud Bäumer e Gertrud Simmel. Ainda em Heidelberg, Weber passou a ser reconhecida como uma feminista (frequentemente de forma pejorativa). Até a morte de Max Weber, em 1920, ela publicou inúmeros trabalhos sobre a questão das mulheres. Naquele ano, Marianne Weber tornou-se presidenta da Liga das Associações Alemãs de Mulheres [Bund Deutscher Frauenvereine (BDF)]. Tal Liga foi um meio muito importante para a “primeira onda”, ou para o “antigo feminismo” (como se diz em contexto alemão). Criada em 1894, essa instituição reunia diversas organizações espalhadas pelo país. Porém, vale mencionar que ela “excluía as associações de trabalhadoras de orientação social-democrata” (Gerhard, 2009Gerhard, Ute. (2009). Frauenbewegung und Feminismus: eine Geschichte seit 1789. München: C. H. Beck.: 65). Desse modo, a liga estava centrada em mulheres de classe burguesa e tinha uma orientação preponderantemente liberal, embora algumas de suas representantes buscassem combinar ou mediar esse fronte com aquele mais diretamente ligado à luta de classes (Gerhard, 2009Gerhard, Ute. (2009). Frauenbewegung und Feminismus: eine Geschichte seit 1789. München: C. H. Beck.: 66).

Marianne Weber ficou muito abalada com a morte do marido. A partir de então, dedicou-se à edição da obra do companheiro (publicada entre 1920 e 1922) e, em seguida, à redação de uma biografia dele (publicada em 1926). Para Roth ( 2001Roth, Günther. (2001). Max Webers deutsch-englische Familiengeschichte 1800-1950. Tübingen: Mohr Siebeck. ), sem essa atuação de Marianne Weber, o significado posterior da obra de Max Weber muito possivelmente não se firmaria do modo como se sucedeu. Em 1924, ela recebeu o título de doutorado honorário da Universidade de Heidelberg (tanto pelo seu trabalho em torno da obra do marido como por sua própria obra), e, a partir de 1926, seguiu suas atividades de palestras e escritos acerca da questão feminista. Todavia, após a ascensão do nazismo, ela foi obrigada a renunciar a atividades públicas ligadas ao movimento de mulheres e a Liga das Associações Alemãs de Mulheres foi dissolvida. De todo modo, Marianne Weber seguiu escrevendo até o fim da sua vida, incluindo uma autobiografia, publicada em 1948.

Movimento feminista

A unificação da Alemanha em 1871 foi alcançada pelo “regime autoritário e militarista da monarquia da Prússia liderada por Bismarck” (Lengermann & Niebrugge-Brantley, 1998Lengermann, Patricia Madoo & Niebrugge-Brantley, Jill. (1998). The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings. New York: McGraw-Hill.: 200), o qual teria contribuído tanto para criar como para ampliar um “ideal tradicional de masculinidade no final do século XIX na Alemanha” (Lengermann & Niebrugge-Brantley, 1998Lengermann, Patricia Madoo & Niebrugge-Brantley, Jill. (1998). The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings. New York: McGraw-Hill. ). Mas é também nesse contexto que as ideias feministas encontram ecos mais massivos. A divisão do movimento feminista em ondas talvez seja um tanto genérica para dar conta da diversidade de questionamentos feitos às desigualdades de gênero ao longo da história e suas sobreposições raciais, geográficas, geracionais e de classe. De qualquer forma, o período em que Marianne Weber viveu costuma ser classificado como pertencente à primeira onda do feminismo moderno. No contexto alemão, esse período é conhecido como antigo movimento de mulheres — enquanto o que chamamos de segunda onda equivale ao que, na Alemanha, se conhece como novo movimento de mulheres, ou novo feminismo (Gerhard, 2009Gerhard, Ute. (2009). Frauenbewegung und Feminismus: eine Geschichte seit 1789. München: C. H. Beck. ).

Vale registrar que, em alemão, inicialmente utilizou-se a designação Frauenbewegung (literalmente, movimento de mulheres) para as lutas contra as desigualdades de gênero. O conceito feminismo, empregado pela primeira vez nos anos de 1880 pelas feministas francesas, só passou a ser utilizado mais amplamente como autodesignação pelos movimentos de mulheres alemãs a partir de 1970. Antes, tal concepção era utilizada pelos opositores como forma de depreciação e, mesmo contemporaneamente, a palavra evoca a imagem de radicalismo em contexto alemão (Gerhard, 2009Gerhard, Ute. (2009). Frauenbewegung und Feminismus: eine Geschichte seit 1789. München: C. H. Beck.: 6-8). Feito esse registro contextual, durante esse texto, eventualmente utilizarei como intercambiáveis as designações movimento feminista e movimento de mulheres, uma vez que ambas se referem à luta por emancipação das mulheres e o uso da segunda expressão foi sendo abandonado pelas alemãs em favor do emprego da primeira, como forma de afirmação política.

À época de Marianne Weber, conforme argumenta Ute Gerhard ( 2009Gerhard, Ute. (2009). Frauenbewegung und Feminismus: eine Geschichte seit 1789. München: C. H. Beck. ), o movimento feminista alemão estava em grande medida vinculado às diversas organizações de mulheres que se formaram no país a partir de 1865, sejam aquelas mais ligadas às mulheres pertencentes a estratos da burguesia, sejam aquelas de classes proletárias. Além disso, a luta das mulheres contra as desigualdades também era bastante fomentada por redes nacionais e internacionais, publicações diversas etc. “Para a geração de Marianne Weber, o movimento de mulheres é a arena da politização e o laboratório para experimentação de conceitos femininos de vida” (Wobbe, 1998Wobbe, Theresa. (1998). Marianne Weber (1870-1954): ein anderes Labor der Moderne. In: Honegger, Claudia & Wobbe, Theresa (Hrsg.). Frauen in der Soziologie: neun Portraits. Originalausged. München: C.H. Beck, p. 153-177.: 160, tradução nossa).

No caso específico de Marianne Weber, o envolvimento com a questão das desigualdades de gênero se desenvolveu tanto a partir da sua participação em associações de mulheres quanto do estudo crítico de autoras feministas, a exemplo da estadunidense Charlotte Perkins Gilman (Lengermann & Niebrugge-Brantley, 1998Lengermann, Patricia Madoo & Niebrugge-Brantley, Jill. (1998). The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings. New York: McGraw-Hill.: 197). Em 1897, ela fundou a seccional de Heidelberg da Associação para Formação de Mulheres [Verein für Frauenbildung-Frauenstudium], que tinha por objetivo o incentivo à formação acadêmica feminina (Göttert, 2004Göttert, Margit. (2004). Gertrud Bäumer und Marianne Weber: Kampfgefährtinnen im Bund Deutscher Frauenvereine. In: Meurer. Bärbel. Marianne Weber: Beiträge zu Werk und Person. Tübingen: Mohr Siebeck, p. 127-155.: 128). Seu primeiro ensaio de teor feminista é de 1904 e tem como título “A participação da mulher na ciência” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr. ). Tal texto já apresenta um diálogo crítico, embora não explícito, com a ideia de “cultura feminina” de Georg Simmel (Roth, 2001Roth, Günther. (2001). Max Webers deutsch-englische Familiengeschichte 1800-1950. Tübingen: Mohr Siebeck.: 569) — voltarei a seguir a esse debate.

O feminismo de Marianne Weber está bastante atrelado ao tema dos direitos, seguindo, em parte, a tópica do debate da assim chamada primeira onda feminista (antigo feminismo, na designação alemã), especialmente em sua vertente não proletária. A autora defende, por exemplo, o direito das mulheres à participação na universidade, na ciência, nas decisões matrimoniais e na educação de filhas e filhos, na política, nas relações de propriedade etc. Também preocupada com dimensões econômicas do patriarcalismo, sobretudo em relação às mulheres pobres, impossibilitadas de trabalhar por não ter com quem deixar as filhas e filhos, ela defende o direito a um percentual do salário dos maridos exclusivamente para suas necessidades pessoais (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 20-37).

De todo modo, vale destacar que, já na época de Weber, seria melhor falarmos em movimentos de mulheres, portanto, no plural. Como mencionado, as relações da autora estão mais vinculadas às vertentes liberais desses movimentos, sustentadas pelas mulheres da burguesia. Nesse sentido, ela discorda, por exemplo, de argumentos marxistas que remontam a submissão da mulher ao advento da propriedade privada 4 4 Mata ( 2017 ) reconstrói em sua tese os diálogos de Marianne Weber com o marxismo em Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung [ Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico ]. . Do mesmo modo, Weber também se posicionou contrariamente ao movimento da “nova ética sexual”, que adquiriu bastante força no início do século XX e pregava a libertação do amor de instituições burguesas, como o casamento e a família. Essa postura favorável ao amor livre não passou ao largo do movimento de mulheres burguesas, contudo, não recebeu o apoio de Marianne Weber (Lichtblau, 1996Lichtblau, Klaus. (1996). Die Kulturwerte des asketischen Protestantismus und die „Neue Ethik”. In: Lichtblau, Klaus. Kulturkrise und Soziologie um die Jahrhundertwende: Zur Genealogie der Kultursoziologie in Deutschland. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 315-345. ).

Como representante do movimento feminista de sua época, a grande ênfase da autora estava na defesa da participação das mulheres nas instituições modernas — o que implica a defesa de direitos diversos, desde o direito à educação até à atuação política, passando pelas decisões familiares, conforme mencionado. De um ponto de vista teórico, seu esforço intelectual concentrou-se em conceber uma função cultural para as mulheres, de modo que elas pudessem contribuir para a “atenuação da cisão entre cultura objetiva e cultura pessoal” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 8, tradução nossa).

Com base nessa premissa, as reflexões feministas de Marianne Weber encerram uma preocupação com a situação da mulher na cultura moderna — o que lhes confere um alcance teórico mais abrangente. Ao olhar para os processos de diferenciação e individualização próprios da modernidade, ela pergunta se as mulheres poderiam contribuir com algo de “próprio e insubstituível” para uma cultura que foi cunhada pelos homens (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 1). Nisso, também aparece um questionamento aos ideais de universalização das categorias modernas: “Homem e ser humano valem em geral como idênticos, e a pergunta pela essência e determinação do homem coincide com a pergunta pela essência e determinação do ser humano” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 95, tradução nossa).

Como mencionado, esse debate promovido por Marianne Weber está bastante atrelado às discussões desenvolvidas por Georg Simmel, especialmente em seus ensaios “Cultura feminina” — inicialmente publicado em 1902 (Simmel, 1985Simmel, Georg. (1985). Weibliche Kultur [1902]. In: Schriften zur Philosophie und Soziologie der Geschlechter. Edição Heinz-Jürgen Dahme e Klaus Christian Köhnke. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 159-177. ) 5 5 Uma tradução brasileira dessa primeira versão se encontra no livro Filosofia do amor (Simmel, 1993). e, depois, de modo reformulado, em 1911 (Simmel, 2001bSimmel, Georg. (2001b). Weibliche Kultur [1911]. In: Philosophische Kultur. Edição Georg Simmel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 251-289. ) — e “O relativo e o absoluto no problema dos sexos” (Simmel, 2001aSimmel, Georg. (2001a). Das Relative und das Absolute im Geschlechter-Problem [1911]. In: Philosophische Kultur. Edição Georg Simmel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 224-250. ), publicado em 1911. Grosso modo, nesses e em outros debates, Simmel argumenta que haveria um “princípio masculino” regendo a modernidade, que faria o polo objetivo sobressair-se em relação ao polo subjetivo. Para ele, a atuação das mulheres poderia oferecer um contraponto a esse processo porque as mulheres estariam mais conectadas à subjetividade, enquanto os homens teriam mais ligações com a objetividade (Santos, 2020Santos, Patrícia da Silva. (2020). Figuras párias em Georg Simmel: a mulher, o pobre, o estrangeiro. Civitas, 20/2, p. 259-269. ).

Simmel argumenta que a cultura moderna seria fruto do “espírito e do labor dos homens”, por isso ela seria “verdadeiramente adaptada somente à capacidade de produção masculina” (Simmel, 1985Simmel, Georg. (1985). Weibliche Kultur [1902]. In: Schriften zur Philosophie und Soziologie der Geschlechter. Edição Heinz-Jürgen Dahme e Klaus Christian Köhnke. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 159-177.: 161, tradução nossa). Para ele, “a natureza de nosso trabalho cultural, e não só sua quantidade, se dirige especialmente a energias masculinas, a sentimentos masculinos, a uma intelectualidade masculina” (Simmel, 2001aSimmel, Georg. (2001a). Das Relative und das Absolute im Geschlechter-Problem [1911]. In: Philosophische Kultur. Edição Georg Simmel. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 224-250.: 258, tradução nossa). Além disso, o indivíduo altamente diferenciado concebido pela modernidade só teria sido desenvolvido plenamente pelos homens. Contudo, o lugar ocupado pelas mulheres nesse contexto não é visto necessariamente pelo autor como uma desvantagem. A suposta “unidade pré-diferenciada” (Simmel, 1985Simmel, Georg. (1985). Weibliche Kultur [1902]. In: Schriften zur Philosophie und Soziologie der Geschlechter. Edição Heinz-Jürgen Dahme e Klaus Christian Köhnke. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 159-177.: 148) formada por elas poderia servir como contraponto ao excesso de objetividade da vida moderna. Como defende Lichtblau ( 1996Lichtblau, Klaus. (1996). Die Kulturwerte des asketischen Protestantismus und die „Neue Ethik”. In: Lichtblau, Klaus. Kulturkrise und Soziologie um die Jahrhundertwende: Zur Genealogie der Kultursoziologie in Deutschland. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 315-345. ), o reequilíbrio entre objetivo e subjetivo requer uma reorientação das instituições e valores da sociedade em direção ao feminino.

Em 1913, Marianne Weber publica um artigo que interpela esse debate promovido por Simmel. Trata-se de Die Frau und die objektive Kultur [ A mulher e a cultura objetiva ]. Nele, ela reconhece que Simmel também reclama uma autonomia para as mulheres, mas ele faz isso de uma maneira tipicamente idealizada. Ao circunscrever a mulher como um “caso especial e independente do gênero humano” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 102, tradução nossa), é como se a realização dela estivesse naqueles pontos em que ela complementa ou aperfeiçoa o homem em suas deficiências. Nisso, dirá Weber ( 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 102, tradução nossa), Simmel acaba reproduzindo “aquele modelo de mulher que, em pensadores mais antigos e superficiais, surge das necessidades de complementação do ser masculino”.

Em seus próprios termos, Marianne Weber concorda parcialmente com o argumento simmeliano, contrariando-o em uma dimensão importante. Para ela, é certo que a atuação masculina na construção da modernidade fortaleceu, historicamente, a dimensão objetiva em detrimento da subjetiva. Porém, para se opor a esse processo, Simmel defendia a participação das mulheres na modernidade em acordo com o “selo puro e autêntico da feminilidade” (Simmel, 1985Simmel, Georg. (1985). Weibliche Kultur [1902]. In: Schriften zur Philosophie und Soziologie der Geschlechter. Edição Heinz-Jürgen Dahme e Klaus Christian Köhnke. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p. 159-177.: 161, tradução nossa), que as dotaria de uma maior unidade e também de uma maior conexão com a natureza. Portanto, na perspectiva simmeliana, a contribuição das mulheres estaria mais associada ao fortalecimento específico da dimensão subjetiva, em conformidade com sua alegada indiferenciação interna. Nesse passo está a objeção mais importante de Marianne Weber. Para ela, tanto as alterações na divisão social do trabalho como a participação das mulheres no movimento feminista as dotaria da capacidade de entrelaçar objetividade e subjetividade e, assim, atuar nas duas frentes, conectando-as:

Evidentemente, a natureza concedeu a ambos os sexos, mesmo que em combinações muito diferentes, o talento e a direção para a conformação do pessoal e do suprapessoal; o imperativo de desenvolver esse talento vale portanto para ambos, tanto quanto outros imperativos também lhes são comuns

(Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 132, tradução nossa).

Nos argumentos de Marianne Weber no texto em questão é interessante acompanhar como, por um lado, ela é vitimizada por certa essencialização dos gêneros típica de sua contemporaneidade — lembro que o próprio conceito de gênero como o entendemos contemporaneamente não estava disponível na época e ganhou corpo apenas por volta dos anos de 1970 6 6 Também por esse motivo utilizo a expressão sexo nas traduções de citações de Marianne Weber. (Scott, 1995Scott, Joan. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise. Educação e Realidade, 15/2, p. 71-99. ). Nesse sentido, Weber segue em parte alguns pressupostos que também estão em Simmel. Entretanto, notamos as suas tentativas de contrariar a essencialização absoluta das mulheres, especialmente quando isso implica um confinamento de sua atuação ao lar e uma limitação de sua autonomia — como veremos, esse é um ponto central no pensamento de Marianne Weber, inclusive em diálogo com pensadores iluministas.

De acordo com a interpretação de Weber, na perspectiva de Simmel restariam as tarefas domésticas como lugar por excelência de realização das mulheres. Embora em seus textos o autor reclame alguns espaços na esfera pública a serem ocupados por mulheres, acaba ficando implícita a incompatibilidade entre a pretensa constituição especial delas e a cultura objetiva. Weber se opõe a essa perspectiva de maneira enfática. Para ela, o trabalho doméstico suscita nas mulheres “tensões e cisões entre ser e dever, sujeito e coisa como qualquer outra atividade cultural” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 112, tradução nossa). Diferentemente do que argumenta Simmel, não seria um imperativo da natureza o que levaria as mulheres a inclinarem-se a tarefas domésticas, mas as normas e as disposições objetivas que tornam essa atividade uma “tarefa conjugal”: “Se servir à casa fosse uma função evidente da natureza feminina, então não seria necessário primeiro seu aprendizado e depois a sua repetida exortação” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 112-113, tradução nossa). Alguns anos depois, em texto de 1914, Weber adotaria uma posição um pouco mais enfática em relação a essa recondução da mulher ao natural:

Nós ouvimos hoje muitas vozes que querem limitar o desenvolvimento do ser humano feminino à sua determinação especial e conduzir a mulher à prisão ao natural. Para a mulher moderna não há dúvidas de que aquela reivindicação é um equívoco alimentado por diversas fontes, que ela, do mesmo modo que o homem, não pode nem deve regressar do caminho de seu desenvolvimento milenar rumo à cultura e que, por isso, a ela é também devido um direito ao desenvolvimento e efetivação de suas capacidades extrafemininas. Ela deve responsabilizar-se em ser autêntica mulher e autêntico ser humano, e é sua disposição unificar ambas as direções do ser

(Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 139, tradução nossa).

É sintomático que Weber utilize a expressão “tipo dualístico de mulher” para designar a nova mulher que surgiria dessa unificação. Por um lado, há esse esforço intelectual em pensar novas formas de atuação das mulheres no mundo da cultura. Por outro, há ainda uma restrição posta pelo próprio estágio de reflexões sobre gênero de sua época, que faz com que a ideia de uma forma autêntica de ser para a mulher continue em vigência. Portanto, dualística é também a posição histórica ocupada pela autora: sua participação no movimento feminista aponta potencialidades ao gênero feminino que a colocam bem à frente de seu tempo. Porém, a indisponibilidade de um conceito como o de gênero a torna, ao menos parcialmente, refém da essencialização incontornável da mentalidade histórica de sua época.

No debate com Simmel no texto de 1913, para Weber é fato que algumas mulheres têm não só a propensão a ser (como argumentava o pensador), mas também a criar, a “produzir conteúdos que superem o puramente pessoal”. Além disso, uma parte dessas mulheres seria “dotada da força para a atuação suprapessoal e a objetivações de qualquer tipo” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 115, tradução nossa). Enquanto Simmel limitava a atuação das mulheres na cultura objetiva a determinados campos que seriam mais adequados à sua constituição especial — ele menciona explicitamente as artes, em sobretudo a literatura, a medicina (por conta da “empatia” feminina), a história e mesmo a matemática —, Weber defende sua atuação pública em atividades de qualquer tipo. Há uma passagem especialmente sintomática do esforço de Marianne Weber em superar perspectivas essencializadoras de sua época, na qual a autora confronta a “unidade pré-diferenciada” atribuída às mulheres por Simmel:

Mas primeiro deve se tornar claro que a ideia de uma unidade predestinada do ser, de uma totalidade da essência da mulher alcançada sem luta tornou-se um sonho alimentado pelo passado. Talvez isso tenha sido alguma vez o típico, quando a espiritualidade da mulher ainda estava em um grau pueril. Hoje, o processo cultural, que se distanciou do natural, implica também a uma parte do sexo feminino que se separe do seu natural e se torne um ser espiritualmente consciente e, sobretudo, a mulher é posta diante de tarefas, cuja realização ao mesmo tempo impulsiona e exige o desenvolvimento de seus talentos de maneira independente do sexo

(Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 115-116, tradução nossa).

Mais adiante, a autora pondera que a relação das mulheres com o mundo supraobjetivo seria mais problemática que no caso do homem, entre outras coisas, por seu corpo estar física e espiritualmente predisposto à maternidade. Porém, a despeito dessa insistência essencializadora e ainda tributária do biológico que aparece em alguns pontos do argumento, o esforço em distanciar-se do dualismo de gênero simmeliano quase absoluto torna a reflexão crítica de Weber interessante do ponto de vista de uma apreciação generificada dos papéis sociais de sua época.

Importa destacar que boa parte dessa ampliação da potencialidade de atuação das mulheres nas esferas suprapessoais seria viabilizada precisamente pela participação delas no movimento feminista:

Que, contrariamente a toda tradição, exista há algumas décadas um “movimento” criado, suportado e conduzido apenas por mulheres para elevação de seu sexo e que se afirma contra um mundo de resistências internas sem qualquer meio de poder externo, é apenas um dos rebentos manifestados por essas forças antes ocultas. Realizar algo objetivo ou fazer algo por uma ideia também significa, sem dúvida, uma paixão genuína para a mulher que o deseja

(Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 128, tradução nossa).

A superação da dualidade absoluta entre subjetividade e objetividade é importante, de acordo com Weber, pois apenas por meio dela a mulher pode atuar no mundo moderno de maneira a desenvolver sua personalidade autônoma e livre. Para Wobbe ( 1998Wobbe, Theresa. (1998). Marianne Weber (1870-1954): ein anderes Labor der Moderne. In: Honegger, Claudia & Wobbe, Theresa (Hrsg.). Frauen in der Soziologie: neun Portraits. Originalausged. München: C.H. Beck, p. 153-177.: 175, tradução nossa), as especificidades das contribuições de Marianne Weber e suas diferenças em relação ao pensamento simmeliano só foram possíveis por conta do feminismo: “Decisivo para seu pensamento sociológico é, naquele momento, o contexto do movimento de mulheres”.

Outros gêneros, outras modernidades

O debate de Weber com Simmel aponta um problema que seria interessante analisar também por outras vias. Trata-se da forma generificada como a autora aprecia a modernidade. É certo que esse elemento aparece em parte em um clássico como Simmel — apesar de todos os problemas de essencialização das mulheres que podem ser encontrados em seu argumento. Também é certo que Marx e Engels, por exemplo, não passaram ao largo da questão das desigualdades de gênero 7 7 Vale lembrar a discussão de Engels ( 1984 ) sobre a origem da família, da propriedade privada e do Estado. Além do rico e amplo debate acerca das relações conflitivas entre produção e reprodução desenvolvido pelas feministas marxistas (que não cabe referir no escopo desse artigo), destaco a avaliação crítica e exegética das referências do próprio Marx à questão do gênero e da família feita por Brown ( 2012 ). . Todavia, o que chama a atenção em Marianne Weber é que ela elegeu o gênero como o ponto de vista central para apreciar aspectos da modernidade — enquanto os clássicos masculinos, quando muito, desenvolveram categorias universalizadoras e, em alguns momentos, utilizaram-nas para criticar as desigualdades de gênero. Nisso, embora possivelmente Weber não tivesse essa pretensão, emergem em seus textos elementos que contribuem para tensionarmos as ideias universalistas de modernidade que a sociologia clássica nos legou. Assim, mesmo que não haja uma teoria definitiva e singular da modernidade na obra da autora, há pontos de tensão generificados em relação às concepções de indivíduo, de racionalidade, de ciência (entre outras) que nos permitem reconhecer em suas contribuições o aceno a outras formas de teorização do moderno.

Nesse sentido, outro tema clássico que Marianne Weber debateu de maneira generificada foi o da família, ou, mais especificamente, do casamento. Como mencionado, Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung [ Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico ] é tido como sua maior contribuição ao pensamento social 8 8 A fim de ilustrar a ressonância encontrada pelos trabalhos de Marianne Weber, vale lembrar que esse livro foi resenhado por ninguém menos que Émile Durkheim — autor que, deliberadamente ou não, nunca escreveu sobre a obra de Max Weber. . De acordo com Giulle Mata ( 2017Mata, Giulle Vieira da. (2017). O ideal e sua forma: casamento e condição feminina na sociologia de Marianne Weber. Tese de doutorado. PPGS/Universidade Federal de Minas Gerais.: 17), o argumento do livro remete “à história do desenvolvimento do direito matrimonial para então discutir as implicações da historicidade dos princípios orientadores da ética sexual na legislação ocidental no que tange à condição feminina dentro do casamento e da família”.

Assim como no livro de 1907, no artigo “Autonomia e autoridade no casamento”, de 1912, Weber ( 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr. , 2022Weber, Marianne. (2022). Autoridade e autonomia no casamento. In: Castro, Celso (org.). Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 82-95. ) retoma o ponto de vista histórico para indicar como o casamento foi se moldando ao longo do tempo sob a interação com instituições como o direito, a religião e a economia. Gostaria de sublinhar dois aspectos desse texto: um refere-se à reflexão sociológica que Marianne Weber desenvolve em torno da interação matrimonial, enquanto o outro se relaciona, de modo complementar, à mobilização de conceitos filosóficos, especialmente a concepção de autonomia, para lidar com um tema cotidiano. Esses dois pontos oferecem a possibilidade de reconhecermos na contribuição da autora elementos próprios de quem olha o mundo social na contramão da universalização típica do pensamento masculino.

Ao ocupar-se de uma interação cotidiana para desenvolver uma reflexão de viés sociológico, Marianne Weber logra demonstrar o quanto as relações microssociais estão entrelaçadas a aspectos de ordem macrológica e podem propiciar uma compreensão de dinâmicas históricas, sociais, jurídicas, econômicas e religiosas. E isso é feito do ponto de vista das mulheres que estão nessa relação, inicialmente, como simples e explícita “propriedade do homem” e sob seu “bárbaro arbítrio” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 68, tradução nossa). Ao longo da história do matrimônio, essa condição foi sendo abrandada, mas a mulher nunca alcançou a paridade em relação aos homens; o casamento permanece sob a condição de “predomínio legalmente protegido do homem” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 73, tradução nossa). Para a autora, essa “corrente infinita dos cotidianos saciados, cômodos e sem luta, nos quais os casais têm a posse um do outro sem esforço” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 79, tradução nossa) representa uma terrível ameaça não só para a vida a dois, mas também para o desenvolvimento individual de cada um dos partícipes da sociedade matrimonial.

Embora de maneira idealizada aos olhos do debate de gênero contemporâneo (e mesmo aos olhos de parte do movimento feminista da época 9 9 Conforme já mencionado, parte do movimento feminista alemão do início do século XX já apresentava fortes críticas à instituição casamento e defendia o ideal do amor livre e de uma nova ética sexual. Os embates do casal Weber com essas feministas são discutidos por Roth ( 2001 ). ), ao discutir essa parceria singular, Marianne Weber toca em pontos importantes das desigualdades entre homens e mulheres, com destaque para a desvalorização econômica dos trabalhos de cuidado — ainda hoje submetidos ao pagamento via moedas do “amor” e da “virtude” (Fraser, 2020Fraser, Nancy. (2020). Contradições entre capital e cuidado. Princípios, 27/53, p. 261-288.: 265). Esse debate é feito por Weber com uma sensibilidade em relação às desigualdades de classe que se cruzam às desigualdades de gênero — embora ela tivesse uma visão crítica em relação ao feminismo marxista, estando mais atrelada a correntes liberais. Em “Profissão e casamento”, de 1905, ao defender o pagamento de um percentual de 5 a 10% do salário dos homens para as mulheres de todas as classes, independentemente de outras despesas domésticas, ela argumenta que, com essa medida,

ao mesmo tempo, seria possível inculcar na consciência pública, mais que por meio de qualquer enaltecimento romântico, que as tarefas domésticas e maternais também são economicamente valiosas, mesmo que seu valor não possa ser calculado com precisão monetária

(Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 34, tradução nossa).

A autora olhou sociologicamente para o casamento como teórica e como feminista e, só nessa condição, foi capaz de perceber as formas patriarcais de dominação que ainda prevalecem nessa relação, mesmo em um contexto social de dominação racional-legal (caso se queira empregar a tipologia de seu companheiro). É com esse olhar sociológico que ela enxerga a mulher casada vivendo no paradoxo entre a “dominação pessoal” do casamento e os “nexos suprapessoais” que tomam forma na sociedade moderna. Nisso, de certo modo, ela acaba denunciando anomalias sexistas que, ao menos no domínio do casamento, promovem um verdadeiro quiproquó nos tipos puros de dominação legítima propostos por Max Weber. É como se as mulheres tivessem que conviver entre um domínio doméstico onde a dominação tradicional e patriarcal prevalece e um domínio público, no qual predomina a dominação racional-legal. As mudanças na forma social casamento em função da superação de elementos patriarcais teriam, para Marianne Weber, consequências, inclusive, no âmbito dessa última dimensão mais estrutural. Nesse sentido, a autora sustenta: “Somente nosso tempo conhece o conflito entre casamento e profissão, entre as tarefas específicas da mulher e sua coação interna para colaborar na construção do mundo cultural suprapessoal” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 79, tradução nossa).

As premissas para uma dominação racional-legal da teoria de Max aparecem também generificadas quando lemos os textos de Marianne Weber. É certo que sua intenção não era delinear uma teoria crítica em relação ao companheiro, nem mesmo estava no seu horizonte questionar diretamente quaisquer de seus pressupostos. Porém, ao discorrer sobre a experiência das mulheres e sobre essa posição dualista que elas ocupam na modernidade (entre casamento, maternidade, cuidados domésticos etc. e profissão, educação, participação política, por exemplo), fica de certo modo evidenciado que a dominação racional-legal é sobretudo um tipo ideal da experiência masculina do moderno. Em certa medida, quando se avalia o caráter patriarcal da vida doméstica, as mulheres ainda estão preponderantemente vinculadas à dominação tradicional.

Também é como intelectual e feminista que Marianne Weber denuncia o universalismo do pensamento iluminista ao cobrar coerência dos “grandes pensadores Kant e Fichte” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 71, tradução nossa). Embora tenha elaborado o ideal da autonomia como a forma de dignidade específica do ser humano, “que o distingue como ‘personalidade’ diante de todos outros seres” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 72, tradução nossa), o idealismo alemão se trai aqui e ali ao não conseguir ocultar sua conivência patriarcal. A autonomia idealizada por esses pensadores recai em autoritarismo quando se trata da forma ainda patriarcal como o casamento contemporâneo à Marianne Weber se configura. É como intelectual que conhece bem tais autores que ela escreve (vide o livro sobre Fichte mencionado acima e a frequência aos seminários do neokantiano Heinrich Rickert). Entretanto, é também com as ferramentas do movimento de mulheres que ela critica as contradições do suposto universalismo do idealismo alemão — ratificando a tese de que a atuação no movimento de mulheres foi a grande responsável pela originalidade de suas reflexões sociológicas (Wobbe, 1998Wobbe, Theresa. (1998). Marianne Weber (1870-1954): ein anderes Labor der Moderne. In: Honegger, Claudia & Wobbe, Theresa (Hrsg.). Frauen in der Soziologie: neun Portraits. Originalausged. München: C.H. Beck, p. 153-177. ).

O ideal da personalidade, tão presente (de forma universalista) na sociologia de Max como algo a ser afirmado em defesa da dignidade humana, é generificado por Marianne Weber: “Também é imoral para a mulher sujeitar a própria consciência ao desejo alheio” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 72, tradução nossa). A autora joga com os conceitos kantianos ao mencionar o dilema entre o “imperativo da própria consciência e o imperativo do marido” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 78, tradução nossa). Nisso, a lei moral do idealismo alemão é despida de parte de seu universalismo e, tendo o patriarcalismo ainda presente no casamento como referência, é apresentada em suas colorações sexuadas e sexistas.

De certo modo, Marianne Weber cobra a realização das promessas iluministas para as relações entre cônjuges. Na contramão de outras vertentes feministas e eróticas de sua própria época (Lichtblau, 1989Lichtblau, Klaus. (1989). Eros and Culture: Gender Theory in Simmel, Tönnies and Weber. Telos. 82, p. 89-110. ), ela defende esse laço “como ideal mais elevado da comunidade humana”, “como uma estrela guia inquestionável sobre a vida sexual da humanidade civilizada” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 79, tradução nossa). Porém, ao defender que “também para a mulher o maior objetivo existencial ético não pode ser outro senão o desenvolvimento de uma personalidade moralmente autônoma” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 72, tradução nossa), Weber confronta o projeto iluminista mobilizando suas fissuras — em especial, a fissura sexista.

Outro artigo importante relacionado à forma como a modernidade poderia alterar as relações entre os gêneros consiste no já mencionado “A nova mulher”. Nesse texto de 1914, Weber argumenta que um novo tipo de mulher surgiria a partir da combinação entre esforços de “autoconfiguração” e “configuração do mundo”. Essa nova mulher só teria se tornado possível graças às transformações da divisão do trabalho e ao movimento social de mulheres. Assim, a nova mulher perseguiria aqueles objetivos de combinar autoconfiguração e configuração do mundo “não apenas como singulares, não apenas para si mesmas, mas em comunidade e, na verdade, em comunidade organizada com muitas companheiras de sexo com a mesma disposição” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 135, tradução nossa). Aqui também Weber argumenta que é como “herdeira da doutrina ética de liberdade do idealismo alemão” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 137, tradução nossa) que as mulheres buscam ocupar seus espaços também na esfera pública — ou no mundo objetivo ou suprapessoal, conforme suas próprias formulações.

Um ponto interessante a sublinhar nessas considerações de Marianne Weber relaciona-se ao modo como elas tocam em pontos centrais de interesse da sociologia clássica, não apenas no caso de Georg Simmel, mas também de Max Weber. Nesse sentido, as observações de Wobbe ( 1998Wobbe, Theresa. (1998). Marianne Weber (1870-1954): ein anderes Labor der Moderne. In: Honegger, Claudia & Wobbe, Theresa (Hrsg.). Frauen in der Soziologie: neun Portraits. Originalausged. München: C.H. Beck, p. 153-177.: 169, tradução nossa) são pertinentes:

Como Max Weber, Marianne Weber parte da irreversibilidade da racionalização e diferenciação ocidental. Com seu marido, ela compartilha o programa de pesquisa da sociologia da cultura, que pergunta pelo cruzamento entre ideia e interesse. À diferença do conceito de modernidade de Max Weber, no qual a separação entre funções e esferas é respondida com um decisionismo, Marianne Weber explora as possibilidades de associação entre cultura subjetiva e objetiva. […] De acordo com Marianne Weber, em seu caminho de individualização, as mulheres experienciam uma relação tensa de relações pessoais e impessoais, com isso, elas se encontram em um dilema, que, para os homens, não existe desse modo.

É sintomático que precisamente seu olhar generificado faça com que Marianne Weber se distancie, em alguma medida, do seu companheiro — mesmo que ela “certamente não visse [essas diferenças] como oposição, mas antes como expansão” (Wobbe, 1998Wobbe, Theresa. (1998). Marianne Weber (1870-1954): ein anderes Labor der Moderne. In: Honegger, Claudia & Wobbe, Theresa (Hrsg.). Frauen in der Soziologie: neun Portraits. Originalausged. München: C.H. Beck, p. 153-177.: 169). Sem encampar uma ambição teórica mais ampla, os contrapontos que Weber logra fazer à imagem de modernidade oferecida por Max aparecem quase como “consequências imprevistas e mesmo indesejadas ” do seu trabalho, para parafrasearmos uma formulação famosa dele (Weber, 2004Weber, Max. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.: 81)

Considerações finais

As interpretações generificadas da sociologia clássica ainda precisam de muito mais interlocuções, delineamentos e expansão. Sem recusar o mérito daqueles que convencionalmente são elencados como nossos “pais” (!) fundadores, é importante reconhecer que muitos de seus postulados foram universalizados de maneira a homogeneizar experiências sociais bastante diversas — tanto do ponto de vista de gênero, como do racial e geográfico. Nesse sentido, sobretudo da perspectiva de gênero, as tentativas contemporâneas de recuperar nossas “pioneiras” são muito bem-vindas. A leitura da obra de mulheres como Marianne Weber, Harriet Martineau, Anna Julia Cooper e tantas outras que contribuíram com o pensamento social em seus momentos iniciais de configuração suscita formas diferenciadas para pensar conceitos fundamentais como indivíduo, racionalização, diferenciação, produção e objetividade. Além disso, essas concepções clássicas passam a ser confrontadas por dimensões menos consideradas quando se considera o advento da modernidade (e hoje, com base em um esforço contrário à universalização, perguntamos de qual modernidade estamos falando), como cuidado, reprodução e subjetividade.

A obra de Marianne Weber interessa à sociologia porque oferece maneiras generificadas de contemplar os debates feitos pelos clássicos (homens) de sua época como pressupostos básicos da experiência do “indivíduo moderno”. Com base nos debates hoje promovidos no pensamento feminista, também as formulações de Weber podem, por certo, serem acusadas de universalização quando ela fala em mulheres sem elaborar suficientemente as intersecções de gênero com outras categorias. A despeito disso, penso que é válido confrontar o pensamento dela àquele desenvolvido por seus contemporâneos do gênero masculino. Como procurei indicar, esse procedimento pode ser muito profícuo no sentido de compreendermos as outras modernidades que podem ser vislumbradas a partir da experiência de outros gêneros — assim como de outros pertencimentos étnico-raciais e geográficos.

Em seu artigo sobre “A nova mulher”, Marianne Weber cita uma frase programática da Liga das Associações Alemãs de Mulheres: “O movimento de mulheres deseja assegurar à mulher o livre desenvolvimento de todas as suas forças e a participação plena dela na vida da cultura” (Weber, 1919Weber, Marianne. (1919). Frauenfragen und Frauengedanken. In: Gesammelte Aufsätze. Tübingen: Mohr.: 137, tradução nossa). Essa reivindicação feminista continua a ressoar à espera de realização e as tentativas contemporâneas de tirar do silêncio as reflexões das mulheres feitas no âmbito da teoria social clássica são uma maneira de fazê-la valer a contrapelo da história androcêntrica da sociologia. Nesse intuito, essa contribuição é feita na esperança de que, cada vez mais, Marianne Weber e outras mulheres intelectuais deixem de figurar como notas marginais nos cursos e nos debates sobre sociologia clássica e passem a ocupar o espaço ao qual suas obras têm direito. Nossas estudantes certamente agradecerão essa ampliação do cânone sociológico e o enriquecimento da sociologia estará garantido com tal diversificação.

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  • Zanon, Breilla et al. (orgs.). (2021). A atualidade de Max Weber e a presença de Marianne Weber. Porto Alegre: Fundação Fênix.
  • 1
    Durante todo o texto, quando menciono apenas Weber, estou me referindo à Marianne Weber.
  • 2
    Como o curso de extensão Mulheres na Teoria Social, organizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) em 2021, ou o projeto Fundadoras de la Sociología, organizado pela Fundación Centro de Estudios Andaluces, também em 2021.
  • 3
    As informações biográficas dessa sessão estão baseadas principalmente em Lengermann & Niebrugge-Brantley ( 1998Lengermann, Patricia Madoo & Niebrugge-Brantley, Jill. (1998). The Women Founders: Sociology and Social Theory, 1830-1930: A Text with Readings. New York: McGraw-Hill. ). Referências adicionais estão citadas ao longo do texto.
  • 4
    Mata ( 2017Mata, Giulle Vieira da. (2017). O ideal e sua forma: casamento e condição feminina na sociologia de Marianne Weber. Tese de doutorado. PPGS/Universidade Federal de Minas Gerais. ) reconstrói em sua tese os diálogos de Marianne Weber com o marxismo em Ehefrau und Mutter in der Rechtsentwicklung [ Esposa e mãe no desenvolvimento jurídico ].
  • 5
    Uma tradução brasileira dessa primeira versão se encontra no livro Filosofia do amor (Simmel, 1993Simmel, Georg. (1993). Cultura Feminina. In: Filosofia do amor. São Paulo: Martins Fontes, p. 67-92.).
  • 6
    Também por esse motivo utilizo a expressão sexo nas traduções de citações de Marianne Weber.
  • 7
    Vale lembrar a discussão de Engels ( 1984Engels, Friedrich. (1984). A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ) sobre a origem da família, da propriedade privada e do Estado. Além do rico e amplo debate acerca das relações conflitivas entre produção e reprodução desenvolvido pelas feministas marxistas (que não cabe referir no escopo desse artigo), destaco a avaliação crítica e exegética das referências do próprio Marx à questão do gênero e da família feita por Brown ( 2012Brown, Heather A. (2012). Marx on Gender and Family: A Critical Study. Leiden; Boston: Brill. ).
  • 8
    A fim de ilustrar a ressonância encontrada pelos trabalhos de Marianne Weber, vale lembrar que esse livro foi resenhado por ninguém menos que Émile Durkheim — autor que, deliberadamente ou não, nunca escreveu sobre a obra de Max Weber.
  • 9
    Conforme já mencionado, parte do movimento feminista alemão do início do século XX já apresentava fortes críticas à instituição casamento e defendia o ideal do amor livre e de uma nova ética sexual. Os embates do casal Weber com essas feministas são discutidos por Roth ( 2001Roth, Günther. (2001). Max Webers deutsch-englische Familiengeschichte 1800-1950. Tübingen: Mohr Siebeck. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2023
  • Aceito
    04 Out 2023
  • Revisado
    18 Ago 2023
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