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Interrupção do acompanhamento clínico ambulatorial de pacientes infectados pelo HIV

The interruption of outpatient clinical care of HIV-infected patients

Resumos

OBJETIVO: Determinar os fatores associados à interrupção do acompanhamento clínico ambulatorial de pacientes com infecção pelo HIV. MÉTODOS: Foi realizado um estudo do tipo prospectivo não-concorrente (coorte histórica) no município de Belo Horizonte, MG, em um ambulatório público de referência para atendimento de pacientes com infecção pelo HIV/Aids. Foram revisados registros médicos para se avaliar os fatores associados à interrupção do acompanhamento clínico por pacientes soropositivos para o HIV admitidos no serviço entre 1993 e 1995. Os pacientes deveriam ter comparecido a pelo menos uma consulta de retorno no prazo de sete meses. A análise estatística incluiu chi2 e Relative Hazard - RH com intervalo de 95% de confiança (IC) estimado pelo Modelo de Regressão de Cox. RESULTADOS: A incidência acumulada da interrupção do acompanhamento clínico foi de 54,3% entre os 517 pacientes incluídos no estudo (tempo médio de acompanhamento =24,6 meses; incidência pessoa tempo =26,5/100 pessoas-ano). A análise multivariada mostrou que realizar menos que duas contagens de linfócitos T CD4+ (RH =1.94; IC 95% =1.32-2.84) não realizar medida de carga viral (RH =14.94; IC 95% =5.44-41.04), comparecer a seis retornos ou menos (RH =2.80; IC 95% =1.89-4.14), não mudar de categoria clínica (RH =1.40; IC 95% =1.00-1.93) e não usar anti-retroviral, (RH =1.43; IC 95% =1.06-1.93) estava associado a um maior risco de interromper o acompanhamento clínico no serviço estudado. CONCLUSÕES: Foi alta a taxa de interrupção do acompanhamento clínico aos pacientes estudados, sugerindo que a interrupção do acompanhamento pode ser uma função que vise a priorizar os pacientes com pior situação clínica, podendo ser um marcador de futura aderência ao uso de anti-retroviral.

HIV; Síndrome de imunodeficiência adquirida; Serviços de saúde; Desistência do paciente; Cooperação do paciente; Soropositividade para HIV; Medição de risco


OBJECTIVE: To determine factors associated with the interruption of outpatient care of HIV-positive patients. METHODS: Non-concurrent prospective study carried out in a public AIDS referral center in Belo Horizonte, Brazil. Medical records were reviewed in order to assess factors associated with the interruption of clinical care of HIV patients admitted between 1993 and 1995. Patients should have attended at least one follow-up visit within a period of 7 months. Statistical analysis was carried out using Chi-square and relative hazard (RH) with 95% confidence interval (CI) estimated by Cox Regression Model. RESULTS: Cumulative incidence of interruption was 54% among 517 patients included in the study (mean follow-up=24.6 months; 26.5/100 person-years). Multivariate analysis indicated that those individuals who had fewer (<2) CD4+ T lymphocyte cell counts (RH=1.94; 95% CI=1.32-2.84) did not have viral load measured (RH=14.94; IC 95%=5.44-41.04), attended <7 medical follow-up visits (RH =2.80; IC 95%=1.89-4.14), did not change clinical category (RH =1.40; IC 95% =1.00-1.93) and did not undergo any anti-retroviral therapy (RH =1.43; IC 95% =1.06-1.93) had independently an increased risk of interrupting clinical care. CONCLUSIONS: The rate of clinical interruption in this center is high. The results suggest that interruption may be a function of better clinical outcome, i.e. the service may give priority to those patients with more severe clinical condition, and interruption of clinical care may be a marker for future antiretroviral compliance.

HIV; Acquired immunodeficiency syndrome; Health services; Patient dropouts; Patient compliance; Risk assessment; HIV seropositivity


ARTIGO ORIGINAL

Interrupção do acompanhamento clínico ambulatorial de pacientes infectados pelo HIV

The interruption of outpatient clinical care of HIV-infected patients

Celeste S RodriguesI; Mark D C GuimarãesII; Francisco A AcurcioIII; Cibele C CominiIV

ISecretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG, Brasil

IIDepartamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil

IIIDepartamento de Farmácia Social da Faculdade de Farmácia da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil

IVDepartamento de Estatística da UFMG. Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Mark Drew Crosland Guimarães Av. Professor Alfredo Balena, 190 9º andar 30130-100 Belo Horizonte, MG, Brasil E-mail: drew@medicina.ufmg.br

RESUMO

OBJETIVO: Determinar os fatores associados à interrupção do acompanhamento clínico ambulatorial de pacientes com infecção pelo HIV.

MÉTODOS: Foi realizado um estudo do tipo prospectivo não-concorrente (coorte histórica) no município de Belo Horizonte, MG, em um ambulatório público de referência para atendimento de pacientes com infecção pelo HIV/Aids. Foram revisados registros médicos para se avaliar os fatores associados à interrupção do acompanhamento clínico por pacientes soropositivos para o HIV admitidos no serviço entre 1993 e 1995. Os pacientes deveriam ter comparecido a pelo menos uma consulta de retorno no prazo de sete meses. A análise estatística incluiu c2 e Relative Hazard – RH com intervalo de 95% de confiança (IC) estimado pelo Modelo de Regressão de Cox.

RESULTADOS: A incidência acumulada da interrupção do acompanhamento clínico foi de 54,3% entre os 517 pacientes incluídos no estudo (tempo médio de acompanhamento =24,6 meses; incidência pessoa tempo =26,5/100 pessoas-ano). A análise multivariada mostrou que realizar menos que duas contagens de linfócitos T CD4+ (RH =1.94; IC 95% =1.32-2.84) não realizar medida de carga viral (RH =14.94; IC 95% =5.44-41.04), comparecer a seis retornos ou menos (RH =2.80; IC 95% =1.89-4.14), não mudar de categoria clínica (RH =1.40; IC 95% =1.00-1.93) e não usar anti-retroviral, (RH =1.43; IC 95% =1.06-1.93) estava associado a um maior risco de interromper o acompanhamento clínico no serviço estudado.

CONCLUSÕES: Foi alta a taxa de interrupção do acompanhamento clínico aos pacientes estudados, sugerindo que a interrupção do acompanhamento pode ser uma função que vise a priorizar os pacientes com pior situação clínica, podendo ser um marcador de futura aderência ao uso de anti-retroviral.

Descritores: HIV. Síndrome de imunodeficiência adquirida. Serviços de saúde, utilização. Desistência do paciente. Cooperação do paciente. Soropositividade para HIV. Medição de risco.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To determine factors associated with the interruption of outpatient care of HIV-positive patients.

METHODS: Non-concurrent prospective study carried out in a public AIDS referral center in Belo Horizonte, Brazil. Medical records were reviewed in order to assess factors associated with the interruption of clinical care of HIV patients admitted between 1993 and 1995. Patients should have attended at least one follow-up visit within a period of 7 months. Statistical analysis was carried out using Chi-square and relative hazard (RH) with 95% confidence interval (CI) estimated by Cox Regression Model.

RESULTS: Cumulative incidence of interruption was 54% among 517 patients included in the study (mean follow-up=24.6 months; 26.5/100 person-years). Multivariate analysis indicated that those individuals who had fewer (<2) CD4+ T lymphocyte cell counts (RH=1.94; 95% CI=1.32-2.84) did not have viral load measured (RH=14.94; IC 95%=5.44-41.04), attended <7 medical follow-up visits (RH =2.80; IC 95%=1.89-4.14), did not change clinical category (RH =1.40; IC 95% =1.00-1.93) and did not undergo any anti-retroviral therapy (RH =1.43; IC 95% =1.06-1.93) had independently an increased risk of interrupting clinical care.

CONCLUSIONS: The rate of clinical interruption in this center is high. The results suggest that interruption may be a function of better clinical outcome, i.e. the service may give priority to those patients with more severe clinical condition, and interruption of clinical care may be a marker for future antiretroviral compliance.

Keyword: HIV. Acquired immunodeficiency syndrome. Health services. Patient dropouts. Patient compliance. Risk assessment. HIV seropositivity.

INTRODUÇÃO

A epidemia de HIV/Aids no mundo continua a ser, ao final do século XX, um importante problema de saúde pública a ser enfrentado. Dados da UNAIDS16 indicam expansão na prevalência da infecção pelo HIV em todos os continentes, entre 1996 e 2001, sendo particularmente importante na Ásia (160%), Europa Oriental (1300%) e África (100%).

No Brasil, dados de notificação apontam crescimento constante da epidemia e mostram a magnitude do problema. Em 1999, 59% dos 5507 municípios brasileiros já haviam registrado pelo menos um caso de Aids6 com um total de 222.356 notificações no País até setembro de 2001.10

A evolução da epidemia exige uma reflexão própria, pois expõe o cenário de contradições sociais no qual se desenvolve e, muitas vezes, a limitada capacidade de resposta do poder público às demandas surgidas. O avanço do conhecimento sobre HIV/Aids, bem como o desenvolvimento de novas formas de diagnóstico e terapêutica para as pessoas infectadas, têm deslocado a capacidade de intervenção para estágios mais precoces da doença, com conseqüente aumento da sobrevida dos pacientes.

O cuidado médico regular é essencial para o prolongamento da vida e melhoria da qualidade de saúde entre indivíduos vivendo com a infecção pelo HIV/Aids. Este cuidado deve iniciar-se imediatamente após o diagnóstico da infecção, incluindo monitoramento médico sistemático e intervenções durante o curso da doença.3 Diversos estudos mostram que o acesso e a utilização de serviços de saúde podem reduzir a progressão da doença, diminuir a hospitalização, a morbidade associada e a mortalidade, por meio de acompanhamento adequado, do uso de anti-retrovirais e de profilaxia para infecções oportunistas.1,7,9,13

Apesar desse conhecimento, um dos significativos problemas enfrentados durante a atenção ao paciente com HIV/Aids é a sua não-adesão às recomendações preconizadas pelo serviço de saúde durante o acompanhamento. Essa não-adesão traz grande inquietação aos planejadores e demais profissionais de saúde, pois pode resultar em graves conseqüências. Dentre estas, para o indivíduo, citam-se o agravamento da doença, muitas vezes irreversível, e a possibilidade de dar origem a cepas resistentes com prejuízo para tratamentos posteriores. Com o advento de novas drogas que, quando combinadas, reduzem drasticamente a carga viral, levando-a a níveis indetectáveis, observou-se um aumento da atenção dos pesquisadores sobre o problema da não-adesão, sendo a discussão da adesão ao acompanhamento médico um de seus principais aspectos.3 Porém, existem poucos estudos disponíveis que abordem diretamente a questão da interrupção do acompanhamento clínico pelo paciente com a infecção pelo HIV e dos fatores associados a esta interrupção. A ênfase tem sido dada à adesão ao tratamento com anti-retrovirais, com vasta literatura disponível.

Nesse sentido, uma maior compreensão de questões relacionadas ao acesso e utilização, bem como da adesão dos usuários aos serviços de saúde pode contribuir para uma melhor oferta e organização desses serviços, com maior fixação do paciente e conseqüente maior eficácia social. Assim, o presente estudo tem como objetivo principal determinar os fatores associados à interrupção do acompanhamento clínico por pacientes com infecção pelo HIV, acompanhados em um serviço ambulatorial para HIV/Aids.

MÉTODOS

Trata-se de estudo do tipo prospectivo não-concorrente (coorte histórica), desenvolvido em um serviço público ambulatorial de referência para atendimento ao paciente HIV/Aids.

População e período do estudo

A população do estudo foi constituída por indivíduos admitidos para acompanhamento médico, atendidos pela primeira vez pelo serviço ambulatorial estudado, entre 1 de janeiro de 1993 e 31 de dezembro de 1995. Esses indivíduos apresentaram evidência laboratorial de infecção pelo HIV e foram classificados de acordo com as categorias clínicas propostas pelo "Centers for Disease Control and Prevention" (CDC),5 como "A" (assintomático, infecção aguda pelo HIV ou linfadenomegalia generalizada persistente) ou "B" (sintomáticos, não-A e ausência de condições indicativas de Aids). Além disso, tiveram indicação de retorno e foram seguidos até 31 de dezembro de 1997, garantindo a todos um tempo mínimo de acompanhamento de dois anos.

Foram excluídos pacientes que preencheram os critérios de entrada, mas que: evoluíram para óbito até 31 de maio de 1997, tiveram registro em prontuário de transferência para continuidade do acompanhamento clínico em outro serviço de saúde ou que compareceram apenas na primeira consulta, apesar da indicação de retorno.

A não-inclusão no estudo dos indivíduos que foram classificados na entrada como categoria "C" deveu-se ao fato de que, em geral, esses indivíduos, com infecção mais grave costumam apresentar uma maior adesão ao serviço de saúde3,12,15 e também porque vários deles haviam morrido durante o período do estudo, sendo este um fator de exclusão do estudo. Não era objetivo do estudo a análise da interrupção do acompanhamento clínico conseqüente a esse evento.

Os óbitos foram verificados pela linkage do banco de dados do estudo com o banco de dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM-MS) e da Gerência de Epidemiologia e Informação/Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.

A definição de interrupção do acompanhamento clínico (evento) foi estabelecida considerando-se que a infecção pelo HIV é uma doença crônica e que o paciente deve ter uma avaliação médica, em média, a cada três meses, estando esta freqüência associada à gravidade da doença.3 Com isso, foi estabelecido o período de sete meses sem comparecimento ao serviço após a última consulta registrada, propiciando um espaço maior de tempo para que o paciente, caso perdesse o retorno agendado, pudesse remarcar sua consulta. O tempo de acompanhamento no serviço foi definido como o tempo entre a data da primeira consulta e a data da última consulta realizada, em meses, dentro do período analisado.

A população final do estudo foi subdividida em dois grupos:

1) indivíduos aderentes ao serviço, correspondendo àqueles que tiveram indicação de retorno e permaneceram em acompanhamento no serviço até o final do período do estudo;

2) indivíduos que interromperam o acompanhamento, correspondendo àqueles que ficaram mais de sete meses sem comparecer ao serviço considerando a data final do estudo que foi de 31 de dezembro de 1997.

Variáveis de medida de exposição

Os dados foram coletados através dos prontuários do serviço (fonte secundária), com o preenchimento de formulário especificamente elaborado e previamente testado. Foram coletados dados relativos ao primeiro atendimento do paciente e a todos os retornos subseqüentes realizados dentro do período estudado. Foi realizada revisão de 10% dos formulários preenchidos, escolhidos aleatoriamente para se avaliar a confiabilidade das informações obtidas.

As variáveis contínuas foram categorizadas e a mediana foi utilizada como ponto de corte. Para as categorias de exposição múltipla, utilizou-se de hierarquização baseada na probabilidade de transmissão. Foram categorizados como: a) usuário de drogas injetáveis (UDI) quando havia qualquer menção desta prática; b) homo/bissexual, quando havia qualquer menção desta prática, exceto UDI; c) transmissão sangüínea, quando havia qualquer menção de hemotransfusão, exceto UDI ou prática homo/bissexual; d) heterossexual, quando este era o único relato de risco.8 Devido ao pequeno número de indivíduos categorizados como transmissão sangüínea, optou-se por analisar este grupo associado à categoria de transmissão heterossexual.

Análise estatística

Foram feitas distribuições de freqüência das variáveis, para construção do perfil dos participantes no estudo. Calculou-se a incidência acumulada e o coeficiente de incidência pessoas-tempo para interrupção do acompanhamento clínico. Para este último, foi usado como denominador o somatório dos tempos de acompanhamento de cada indivíduo (em anos). O tempo mediano de acompanhamento foi estimado utilizando-se o método de Kaplan-Meier.

Foi realizada análise univariada comparando-se os indivíduos aderentes ao serviço com os indivíduos que interromperam o acompanhamento clínico. Foi utilizado o modelo de riscos proporcionais de Cox, para estimativa do Relative Hazard – RH com intervalo de 95% de confiança entre os subgrupos formados a partir de cada variável. O nível de significância considerado foi de 0,05.

Da mesma forma, a determinação do efeito independente entre variáveis selecionadas e a interrupção foi obtida por meio de análise multivariada, utilizando-se modelo de riscos proporcionais de Cox. A modelagem iniciou-se com todas as variáveis que apresentaram associação estatisticamente significativa (p<0,10) na análise univariada, seguida de deleção seqüencial de acordo com a importância estatística de cada uma delas. Com o objetivo de avaliar-se a importância de cada variável na modelagem, usou-se o teste de Wald.

A determinação da adequação do modelo final, verificando a suposição básica de riscos proporcionais do modelo de regressão de Cox, foi feita utilizando-se de técnicas gráficas. Os dados foram divididos em estratos, de acordo com covariáveis selecionadas do modelo final. Observou-se então o paralelismo das curvas log (cumulative hazard), com o objetivo de verificar se houve violação da suposição de riscos proporcionais nos estratos do conjunto de dados.

Para os residentes em Belo Horizonte, foi medida distância, em linha reta, entre os endereços geoprocessados e o serviço estudado, sendo expressa em quilômetros. Para os residentes em outros municípios, considerou-se que estes residiam a uma distância maior que a mediana encontrada para os residentes em Belo Horizonte.

Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pela gerência do serviço, pela Comissão de Ética do Hospital das Clínicas e pela Câmara do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG.

RESULTADOS

O estudo incluiu 517 pacientes HIV positivos acompanhados por dois anos (1993-1995). Durante o período analisado, 1709 indivíduos entraram no serviço pela primeira vez, sendo 834 (48,8%) elegíveis para participar no estudo. Destes, 317 (18,5%) foram excluídos conseqüentes a: terem evoluído para óbito (n=264); terem sido encaminhados para acompanhamento em outro serviço de saúde (n=3); terem comparecido apenas às primeiras consultas não mais retornando (50), ficando a população final disponível para análise representada por 30,3% do total.

A incidência acumulada de interrupção do acompanhamento clínico foi de 54,3%, enquanto que o coeficiente de incidência pessoas-tempo foi de 26,5/100 pessoas-ano. O tempo médio de acompanhamento dos pacientes no serviço, calculado entre a data da primeira e da última consulta, foi de 24,6 meses. O menor tempo de permanência no serviço foi de 0,2 mês (6 dias) e o máximo de 58,4 meses. Para os pacientes aderentes, o tempo médio de acompanhamento foi de 37,2 meses, com mediana de 35,1 meses. Os pacientes que interromperam o acompanhamento clínico apresentaram tempo médio de acompanhamento de 14,1 meses, com mediana de 11,4 meses. Utilizando-se do método de Kaplan-Meier o tempo mediano global de acompanhamento dos indivíduos foi estimado em 30,4 meses (Figura).


As características sociodemográficas indicaram predomínio na população estudada de homens (68,9%), de cor branca (56,7%), com escolaridade £8 anos de estudo (48,4%), idade £31 anos (55,1%; média =32,0 e mediana =31,0) e heterossexuais/receptores de transfusão sangüínea (45,3%). As variáveis renda e cobertura assistencial não foram analisadas devido ao grande número de informação sem registro encontrado (55,7% e 92,6%, respectivamente).

Resultados de variáveis que caracterizam a primeira consulta mostraram maior percentual de entrada no serviço no ano de 1995 (42,4%) e predomínio de indivíduos com categoria clínica inicial "A" na entrada (76,2%). As variáveis que caracterizam os retornos indicaram maior proporção de realização de mais de uma contagem de linfócitos T CD4+ (59,8%), não-realização de exame de detecção de carga viral (79,7%), realização de mais de seis retornos (50,5%), manutenção da mesma categoria clínica (72,1%), não-uso de anti-retroviral e profilaxia primária durante acompanhamento (52,8% e 67,5% respectivamente), e ter interrompido o acompanhamento clínico (54,3%).

Análise univariada

A incidência acumulada de interrupção foi maior entre os homens (55,3%), sem ocupação (55,8%), com união não estável (56,5%), idade >31 anos (55,6%), residentes em outros municípios (55,7%), que moravam a uma distância do serviço menor que 4,7 km (57,4%) e usuários de drogas injetáveis (61,0%) (Tabela 1). No entanto, nenhuma das características sociodemográficas estudadas apresentou associação estatisticamente significativa com a interrupção do acompanhamento clínico.

Quanto às variáveis de primeira consulta, apenas a classificação clínica inicial apresentou associação estatisticamente significativa com interrupção do acompanhamento clínico. Indivíduos classificados como categoria "A" tiveram menor risco de interromper o acompanhamento que indivíduos classificados como "B" (RH =0,65; IC 95% =0,50-0,84) (Tabela 1).

No que se refere às variáveis que caracterizam os retornos (Tabela 1), observou-se maior risco para interrupção entre os pacientes que: 1) não realizaram ou realizaram somente uma contagem de linfócitos T CD4+; 2) não realizaram exame de detecção de carga viral; 3) tiveram seis ou menos retornos; 4) não mudaram de categoria durante o acompanhamento; 5) foram classificados como categoria "A" na última consulta realizada no serviço; 6) não usaram anti-retroviral ou usaram anti-retroviral em monoterapia ou em esquema duplo ); 7) não usaram profilaxia primária e 8) não foram atendidos por especialista ou compareceram a duas ou menos consultas com estes.

Análise multivariada

O modelo final indicou que, ter realizado somente uma contagem de linfócitos T CD4+ ou nenhuma, não ter realizado exame de detecção de carga viral durante acompanhamento no serviço, ter realizado seis ou menos retornos, não ter mudado de categoria clínica e não ter usado anti-retroviral estavam associados a maior risco de interrupção do acompanhamento clínico (Tabela 2). As curvas produzidas para cada estrato foram paralelas, indicando não haver desvios da suposição dos riscos proporcionais do modelo de Cox.

A variável ano/calendário de entrada no serviço não apresentou uma associação estatisticamente significativa com a interrupção do acompanhamento clínico na análise univariada. Apesar disto, e considerando a sua importância, ela foi incluída na análise multivariada, porém não se manteve enquanto variável independente.

DISCUSSÃO

Os resultados encontrados mostram que os indivíduos mais saudáveis tendem a utilizar menos o serviço de saúde, apresentando maior risco de interromper o acompanhamento clínico.

A taxa de incidência de interrupção encontrada (54,3%) foi mais alta que a de outros estudos conduzidos em diferentes períodos de tempo e diferentes lugares, analisando indivíduos com infecção pelo HIV/Aids,3,4,8,12 variando de 15% a 36%. Esses pacientes tiveram menor chance de realização de exame de detecção de carga viral e contagem de linfócitos T CD4+, bem como do uso de anti-retrovirais e de medicamentos para profilaxia primária.

O tempo médio de acompanhamento no serviço para os pacientes que o interromperam (14,1 meses) foi curto, considerando-se ser a infecção pelo HIV/Aids uma doença crônica, ainda grave, apesar dos avanços ocorridos. A interrupção pode ser conseqüente à forma como o serviço de saúde se organiza, com menor utilização podendo significar maior dificuldade de acesso aos serviços. Além disto o serviço não está organizado para reconhecer e buscar pacientes ausentes. A interrupção pode também ocorrer como resultado das formas de adaptação do indivíduo a sua nova realidade. Sentimentos de frustração, desesperança e outras emoções negativas sobre sua saúde podem levar o indivíduo a ser menos aderente a recomendações médicas.14

A alta incidência de interrupção do acompanhamento clínico poderia, em parte, ser explicada pela utilização paralela de outros serviços de saúde, após ter iniciado acompanhamento no serviço estudado.

Estudo desenvolvido por Kissinger et al8 (1995) analisando a adesão ao cuidado médico em serviço público de atendimento ao paciente com infecção pelo HIV, estimou que 40% dos pacientes atendidos usaram outros serviços durante acompanhamento no setor público. Mor et al11 (1992) encontraram percentual de utilização paralela de outros serviços de saúde, por pacientes com infecção pelo HIV, que variou de 26,4% a 50%.

Foi encontrada elevada proporção de dados ignorados ou ausentes, para algumas variáveis pesquisadas, como renda e existência de seguro-saúde. Essas variáveis não puderam ser incluídas na análise, impossibilitando uma abordagem mais completa. A existência de seguro saúde pode estar associada a maior risco para interrupção, visto que o paciente tem outra opção de acompanhamento além do serviço público.

O estudo de confiabilidade, com a coleta de dados de 10% dos prontuários (n=51), mostrou que 25% (n=13) dos pacientes que haviam interrompido o acompanhamento clínico no período estudado retornaram ao serviço após dezembro de 1997, com períodos de ausência que variaram de 12 a 48 meses. Isso pode indicar que o período de dois anos definido no presente estudo talvez seja curto para uma avaliação mais abrangente desta interrupção. No entanto, a ausência do acompanhamento por até dois anos em uma condição como o HIV, é um importante indicador de utilização de serviço, apontando a necessidade de uma maior compreensão dos fatores associados a essa ausência.

Ao final do acompanhamento, observou-se mudança de categoria clínica em 25,9% dos pacientes classificados inicialmente como "A" ou "B", para "C". Esta proporção de progressão foi maior (39,5%) em estudo anterior desenvolvido no mesmo local (1989 a 1994).2 É provável que esta diferença seja devido à política de realização de exames e distribuição de medicamentos do Ministério da Saúde, sobretudo a partir de 1995.

Indivíduos menos graves ao final do estudo apresentaram maior risco de interrupção do acompanhamento clínico. Estes resultados são coerentes com outros estudos, que apontam maior risco de não-comparecimento ao serviço por pacientes com menor gravidade da doença.1,11,15 Por outro lado, a realização de exames (contagem de linfócitos T CD4+ e exame de detecção de carga viral) e o número de retornos podem ser interpretados como prováveis marcadores de utilização do serviço.

O produto dessa investigação reflete a situação de indivíduos menos graves, ou seja, aqueles classificados como categorias A ou B na entrada no serviço. A opção de exclusão neste estudo de pacientes classificados na categoria "C" na entrada no serviço e também dos óbitos, provavelmente com maior gravidade clínica e, portanto, mais aderentes ao acompanhamento, pode ter contribuído com os resultados encontrados. O grande dinamismo da epidemia pelo HIV mostra o avanço progressivo do conhecimento sobre a infecção, com disponibilidade nos últimos anos de um crescente arsenal diagnóstico e terapêutico, deslocando a capacidade de intervenção para estágios mais precoces da evolução da doença. Isso coloca aos serviços de saúde o desafio de conseguir acompanhar, de maneira regular, os pacientes menos graves, que poderiam se beneficiar dessa intervenção mais precoce, com maior tempo livre de Aids, maior sobrevida e melhor qualidade de vida. Também é necessário desenvolver mecanismos de monitoramento contínuo do acompanhamento, com identificação ágil dos pacientes ausentes buscando-os para continuidade do atendimento. O reconhecimento e a compreensão do percurso realizado pelo indivíduo fora do serviço pode auxiliar no redimensionamento das intervenções, obtendo-se melhor resultado na saúde do indivíduo infectado pelo HIV em acompanhamento nos serviços de saúde públicos.

Baseado na dissertação de mestrado apresentada a Faculdade de Medicina da UFMG

Recebido em 22/2/2002

Reapresentado em 10/9/2002

Aprovado em 21/10/2002.

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  • Endereço para correspondência
    Mark Drew Crosland Guimarães
    Av. Professor Alfredo Balena, 190 9º andar
    30130-100 Belo Horizonte, MG, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2003
    • Data do Fascículo
      Abr 2003

    Histórico

    • Aceito
      21 Out 2002
    • Revisado
      10 Set 2002
    • Recebido
      22 Fev 2002
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