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O ato fotográfico a partir do olhar*1 *1 O presente artigo foi elaborado como desdobramento da dissertação de mestrado de Patrick Werner dos Anjos, bolsista da Capes entre 2016 e 2018, sob orientação da prof. dra. Nadiá Paulo Ferreira, intitulada O traço para além do índice: a fotografia sob o olhar da psicanálise, defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2018.

The photographic act from a perspective of the gaze

L’acte photographique à partir du regard

El acto fotográfico desde de la mirada

Resumos

O nosso objetivo é articular a fotografia com a diferença que Jacques Lacan apresenta, no Seminário 11. Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, entre o olho, o olhar e ser olhado. Dessa articulação nascem as questões: Até que ponto podemos confiar no caráter de evidência fidedigna da realidade na fotografia? Em um mundo dominado pelas imagens, qual o efeito que a fotografia provoca em nós como espectadores?

Palavras-chave:
Psicanálise; fotografia; olho; olhar


This article relates photography to the difference that Jacques Lacan presents in Reading Seminar XI: Lacan’s Four Fundamental Concepts of Psychoanalysis, between the eye, the gaze and being-looked-at. This exercise raises the following questions: To what extent may we rely on the character of reliable evidence of reality in photography? In a world dominated by images, what effect does photography have on us, spectators?

Key words:
Psychoanalysis; photography; eye; gaze


Notre objectif est d’associer la photographie à la différence que Jacques Lacan présente dans Le séminaire, livre 11: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, entre l’œil, le regard et être regardé. De cette association découlent les questions suivantes: dans quelle mesure pouvons-nous nous fier au caractère évident et fiable de la réalité en photographie? Dans un monde dominé par les images, quel est l’effet de la photographie sur nous, les spectateurs?

Mots clés:
Psychanalyse; photographie; œil; regard


Nuestro objetivo es articular la fotografía con la distinción que Jacques Lacan presenta, en El Seminario. Libro 11: los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, entre el ojo, la mirada y el ser mirado. De esta articulación nacen las cuestiones: ¿Hasta qué punto podemos confiar en el carácter de evidencia fidedigna de la realidad en la fotografía? En un mundo dominado por las imágenes, ¿cuál es el efecto que la fotografía nos provoca como espectadores?

Palabras clave:
Psicoanálisis; fotografía; ojo; mirada


Questões preliminares

Historicamente, o naturalismo e o realismo, com exceção do período medieval, nortearam a produção da pintura ocidental, desde os gregos da Antiguidade Clássica até a descoberta das técnicas de reprodução, no século XIX, que deram origem à fotografia e à dessacralização da obra de arte e do artista.

Desde a Grécia antiga, o artista era aquele que, por “saber bem fazer”, dominava a técnica (τεχνικά) para retratar a Natureza, buscando a representação do Belo e do Universal. Os pintores dos séculos XIV (Trecento), XV (Quattrocentos) e XVI (Cinquecento), acreditando que eram dotados do dom divino, descobrem novas técnicas para a representação da natureza, as quais deram origem ao Maneirismo e ao Renascimento. O maneirismo surgiu, inicialmente, na pintura e na escultura. Ele é considerado ora um estilo que surgiu no final do Renascimento, ora antes do Barroco, ora um procedimento que se desenvolveu no interior de um estilo, corroendo-o. Nessa segunda acepção, o livro Madame de Bovary de Gustave Flaubert, por exemplo, é considerado um romance maneirista. Girolamo Francesco Mazzola, mais conhecido por Parmigianino, é considerado por alguns historiadores da arte o pintor que inaugura o Maneirismo com o quadro Autorretrato em um espelho convexo, 1524, que se encontra no Museu de História da Arte, em Viena.

As novas técnicas descobertas são: perspectiva, sfumato e chiroscuro. A perspectiva é a representação do objeto em três dimensões. O sfumato é uma técnica que visa a produção de tons suaves. O chiaroscuro se caracteriza pelo contraste entre luz e sombra na representação de um objeto. Essa técnica requer os conhecimentos de perspectiva, dos efeitos físicos que a luz provoca nas superfícies, dos brilhos e das tintas. Os objetos representados por essa técnica não têm linhas de contorno e se caraterizam, também, pelo contraste entre as tonalidades do objeto e do fundo. Leonardo da Vinci utilizou muito as técnicas de sfumato e chiaroscuro em suas pinturas.

Com a invenção da fotografia, “os artistas pressentiram a aproximação de uma crise que ninguém - cem anos depois - poderá negar” (Benjamin, 1975Benjamin, W. (1975). A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In Os pensadores. v. XLVIII. São Paulo, SP: Abril Cultural., p. 16). Com a fotografia, “pela primeira vez, no tocante à reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essenciais que, daí em diante foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva” (p. 12). A partir daí, toda a aura em torno do hic et nunc1 *1 Para Benjamin (1975, p. 13) o hic et nunc da obra de arte se caracteriza pela “unidade de sua presença no próprio local em que se encontra”. da obra de arte desmorona, colocando em xeque, não só os critérios de originalidade e de autenticidade, mas também a ideia de que a genialidade do artista era um dom ofertado por Deus.

A primeira sensação que a fotografia produziu foi de uma relação direta entre o espectador e o objeto, deixando de fora a mediação do artista. Essa hipótese considerava a nova técnica uma espécie de representação imagética sem fantasia, ou, pelo menos, sem a fantasia do seu autor, o fotógrafo. Vejamos, por exemplo, o que o escritor Edgar Allan Poe (2013)Poe, E. A. (2013). O Daguerreótipo. In A. Trachtenberg. Ensaios sobre fotografia: de Niépce a Krauss. Lisboa, PT: Orfeu Negro. disse a respeito da fotografia, assim que ela foi inventada:

O aparelho em si deve ser considerado, sem margem para dúvidas, como o mais importante, e talvez o mais extraordinário, triunfo da ciência moderna. [...] Com efeito, a verdade é que a chapa daguerreotipada é infinitamente (utilizamos o termo de modo intencional), é infinitamente mais precisa na sua representação do que qualquer pintura efetuada por mãos humanas. Se observarmos uma obra de arte comum com um potente microscópio, todos os traços de semelhanças com a natureza desaparecerão - mas o exame mais minucioso do desenho fotogênico revela apenas uma verdade mais absoluta, uma identidade de aspecto mais perfeita com a coisa representada. As variações de sombra e as gradações de perspectiva linear e aérea são as da própria verdade na sua perfeição suprema. (pp. 55-56)

A técnica fotográfica e sua promessa de verossimilhança causaram um rebuliço na cultura, em especial na pintura. A partir daí, muito se discutiu acerca do lugar do fotógrafo e da fotografia em relação às artes visuais. No entanto, não demorou muito para se perceber que as pretensões da fotografia, no que dizem respeito à fidelidade de representação do objeto, estavam longe de se concretizar. Logo se constatou que o papel do fotógrafo nas distorções ópticas e cromáticas da imagem fotográfica tinha uma função importante. Sem dúvida, a fotografia, em relação à representação fidedigna do representado, contribuiu para a desmistificação de que o real é aquilo que se vê e para a confirmação da famosa frase de Jacques Lacan de que o real é impossível de ser representado.

Atualmente o papel da fotografia no sistema das artes visuais parece estar definitivamente consolidado. Há um crescente interesse cultural que não se restringe apenas à técnica e à história da fotografia, mas que sobretudo reconhece nela um “modo de se apresentar como objeto de reflexão teórica, e justamente por isso, como forma de arte contemporânea” (Signorini, 2014Signorini, R. (2014). A arte do fotográfico: os limites da fotografia e a reflexão teórica nas décadas de 1980 e 1990. São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 9). Essa mudança de estatuto se dá mediante as práticas artísticas desenvolvidas a partir dos anos 1960, bem como por meio da reflexão teórica que se seguiu, principalmente na segunda metade da década de 1970. Nessa abordagem surge a noção de “fotográfico”, termo que designa

uma lógica de funcionamento da imagem e sua relação com a realidade, com o autor e com os fruidores, típica da fotografia e simultaneamente comum a muitas outras expressões da arte contemporânea. Portanto, hoje se fala difusamente do “fotográfico” para aludir a um vasto e unitário (embora multifacetado) âmbito de experiência que talvez não seja despropositado chamar de arte do fotográfico, no qual parecem faltar os limites tradicionais entre fotografia e arte ou, ainda melhor, que parece constituir ele próprio um novo campo de atividade e de teoria. (p. 9)

Convém aqui chamar atenção para a terminologia. Podemos utilizar o termo “fotografia” de diferentes maneiras, ora designando a técnica de representação, ora a imagem que essa técnica produz, ou ainda considerando seu estatuto de objeto teórico, pois, por vezes, nem mesmo na literatura especializada a diferença entre “fotografia” e “fotográfico” se apresenta com clareza - como nos escritos de Roland Barthes, por exemplo. Uma vez que o intuito deste trabalho não é o de solucionar problemas terminológicos no campo das artes visuais, mas sim produzir uma reflexão acerca da fotografia à luz da psicanálise, utilizaremos o termo “fotografia” para designar a técnica de representação - reconhecendo que a técnica já traz imbutidas as questões teóricas. O termo “fotográfico” será utilizado exclusivamente para designar o objeto teórico, e os termos “foto” e “imagem fotográfica” farão referência à imagem que se produz a partir da técnica.

Barthes e o noema da fotografia

Roland Barthes (2012)Barthes, R. (2012). A câmara clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., em seu livro A câmara clara, se pergunta o que é a fotografia. Ao tentar dar conta de sua pergunta, ele confessa que foi tomado por um desejo ontológico de saber o que é a fotografia “em si”. Embora reconheça que para responder a essa pergunta seria necessário recorrer a algum tipo de classificação, a fim de construir um corpus, ele afirma que esse não é o caminho para responder à sua pergunta. Para Barthes, a fotografia é inclassificável, na medida em que todas as formas de definição (empíricas, retóricas ou estéticas) podem ser aplicadas a outras formas de representação, mas não à essência da fotografia. É claro que podemos classificar as fotos, designá-las como sendo profissionais ou amadoras, paisagem ou retrato, pertencentes a esta ou aquela categoria estética. No entanto, nada disso responde à sua pergunta. Para Barthes (2012)Barthes, R. (2012). A câmara clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., a fotografia é

o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto boba, o Tal (tal foto, e não a Foto), em suma a Tiquê, a Ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável. [...] Uma fotografia sempre se encontra no extremo desse gesto; ela diz: isso é isso, é tal! Mas não diz nada mais. (p. 14)

A fotografia, ao contrário da pintura, exige que o objeto esteja diante da objetiva de uma câmera, no momento do disparo do obturador.2 *2 Não estamos neste momento considerando aquilo que pode ser produzido a partir das mais recentes tecnologias de tratamento de imagem digital, como o Photoshop e recursos semelhantes. É a foto daquele objeto, naquele momento, naquele lugar. Quando olhamos para uma foto, o que vemos de imediato não é o fotográfico, mas sim um objeto. “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos” (Barthes, 2012Barthes, R. (2012). A câmara clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira., p. 15).

Segundo Barthes, no referido livro, a foto pode ser objeto de três práticas (ou intenções): fazer, olhar e suportar. A essas três práticas correspondem, respectivamente, três conceitos - ou poderíamos dizer, talvez, três agentes: Operator, Spectator e Spectrum. O Operator é o fotógrafo, aquele que escolhe (ou não?) o que será fotografado, que faz o enquadramento e decide o momento de realizar o disparo. Essa operação produz um corte no espaço (enquadramento) e no tempo (“momento decisivo”3 *3 A expressão “momento decisivo” dá o título a um artigo muito famoso de Henri Cartier Bresson (2015), e diz respeito ao instante exato em que o fotógrafo decide realizar o disparo. do disparo). O Spectator é, como o próprio termo em inglês sugere, o espectador, somos todos nós que olhamos as fotos nos celulares, nos museus, nos jornais etc. Um olhar, aliás, cada vez mais presente e compulsivo, em uma sociedade que vem sendo gradativamente inundada por imagens. O Spectrum, por sua vez, diz respeito àquilo que é fotografado, o objeto, o referente fotográfico em torno do qual gira a fotografia.

Barthes (2012)Barthes, R. (2012). A câmara clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. se vê diante de um paradoxo. Se, por um lado, busca nomear uma essência, um tipo de ciência eidética da fotografia, por outro, se depara com o fato de que ela é apenas contingência, uma banalidade, e encontra dificuldade em deixar de lado o aspecto afetivo da foto, aquele que coloca em jogo o desejo. Ele decide então não abrir mão desse caráter banal e contingente, conferindo-lhe um lugar central na sua formulação.

[...] no momento de chegar à essência da Fotografia em geral eu bifurcava; em vez de seguir o caminho de uma ontologia formal (de uma Lógica), eu me detinha, guardando comigo, como um tesouro, meu desejo ou meu desgosto; a essência prevista da Foto não podia, em meu espírito, separar-se do “patético” de que ela é feita, desde o primeiro olhar. (p. 28)

A partir da relação muito particular entre a foto e o referente fotográfico (Spectrum), Barthes encontrou a essência que buscava. Para ele, a unidade mínima de significado da fotografia, o seu noema, se resume em “Isso-foi”. É isso que uma foto realmente representa. Qualquer significado que se dê a uma imagem fotográfica é passível de interpretações, no entanto, a essência da fotografia se constitui a partir dessa qualidade de evidência - isso, que vejo nessa imagem, esteve diante da câmera e foi fotografado. Para Barthes, a foto é uma testemunha muda. Essa afirmação coloca em questão o próprio referente fotográfico, pois se a essência da fotografia se resume a um Isso-foi, convém saber, de fato, o que é “isso” que foi visto pelo olhar do fotógrafo em determinado ponto no tempo e no espaço, e, posteriormente, fixado pelo mecanismo da câmera fotográfica.

Da fenomenologia ao olhar como objeto a

Para Lacan (1964/2008a) a diferença entre o olho (visto) e o olhar (ser visto),4 *4 É importante assinalar que para Lacan o que é visto sempre é precedido por um dado-a-ver. que comparece na pulsão escópica, aponta para a esquize do sujeito, que é a sua falta constitutiva. Suas formulações sobre o olho e o olhar partem da fenomenologia de Husserl e, principalmente, de Merleau-Ponty. Husserl produz uma teoria do conhecimento que se baseia na concepção de que as coisas já estão dadas e prontas no mundo para serem conhecidas. Por outro lado, o sujeito que percebe não está fora do mundo, já que faz parte intrínseca dele. Dessa maneira, Husserl rompe com a ideia de Kant de que há uma separação entre fenômeno (objeto acessível aos sentidos) e númeno (a coisa em si). Lacan se apropria de Husserl, no que diz respeito à inclusão do sujeito no fenômeno, e se apodera da noção kantiana da coisa em si para relacioná-la com o conceito freudiano de das Ding (a Coisa).

Lacan, ao se apropriar do conceito de estrutura da linguística, que deu origem ao estruturalismo, acrescenta ao simbólico e imaginário o real. Dessa forma ele rompe com a tradição dualista, mantida por Freud e pelo estruturalismo, introduzindo um terceiro: o real, que insiste em aparecer e resiste a toda e qualquer tentativa de simbolização. Diz Lacan (1972-1973/2008b), no Seminário 20. mais, ainda: “Meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não é do campo da linguística” (p. 22). Não podemos esquecer que, para Lacan, o sujeito de que se trata é um sujeito dividido entre o significante que o marca e o significante que vem do campo do Outro. Nesse sentido, não há nenhum momento da percepção que esteja fora da estrutura da linguagem, inclusive aqueles que se encontram recalcados, e, portanto, fora da consciência.

É, contudo, com Maurice Merleau-Ponty que Lacan estabelece o diálogo mais produtivo. O visível e o invisível, livro póstumo e inacabado de Merleau-Ponty, lançado em 1964, é considerado por Lacan um passo adiante em relação ao livro Fenomenologia da percepção. Naquele, Merleau-Ponty, ao abordar o olhar, não se limita apenas ao fenômeno visual, mas se refere à preexistência de um olhar em relação à experiência daquele que vê - “eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte” (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 76). Ou seja, antes do visto, há um dado-a-ver. Já em 1954, no Seminário 1. Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-1954/2009Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-54).) apresenta um esboço dessa ideia, afirmando que

O olhar não se situa simplesmente ao nível dos olhos. Os olhos podem muito bem não aparecer, estar mascarados. O olhar não é forçosamente a face do nosso semelhante, mas também a janela atrás da qual supomos que ele nos espia. É um x, o objeto diante do qual o sujeito se torna objeto. (p. 286)

Em O visível e o invisível, Merleau-Ponty (2014)Merleau-Ponty, M. (2014). O visível e o invisível. São Paulo, SP: Perspectiva. refere-se ao corpo como carne:

Antes da ciência do corpo - que implica a relação com outrem -, a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em qualquer lugar, mas emerge no recesso de um corpo. Os outros homens que veem “como nós”, que vemos vendo e que nos veem vendo, apenas nos oferecem uma amplificação do mesmo paradoxo. Se já é difícil dizer que minha percepção, tal como a vivo, vai às próprias coisas, é impossível outorgar à percepção dos outros o acesso ao mundo; e, à guisa de revide, também eles me recusam o acesso que lhes nego. Pois, em se tratando dos outros (ou de mim, visto por eles), não é preciso dizer apenas que a coisa é envolvida pelo turbilhão dos movimentos exploradores e dos comportamentos perceptivos, e puxada para dentro. (p. 23)

Para Lacan, o olhar coloca em cena o conceito de objeto a - inicialmente definido como objeto causa do desejo e, posteriormente, como mais-gozar. Para ele, a clivagem que se estabelece entre a visão e o olhar se assenta na esquize do sujeito barrado, dividido entre o significante (S1) que o marca e o significante (S2) que vem do campo do Outro representá-lo para outros significantes, dando início à série significante. Nesse sentido, a barra que divide o sujeito corresponde à mancha da função escópica, ou seja, a mancha está para a função escópica, assim como a barra está para o sujeito. Justamente por isso, Lacan (1957-1958/1998) em Escritos, recorre à fórmula da fantasia para demonstrar que tanto a barra quanto a mancha fazem parte da mesma estrutura. E acrescenta:

Portanto, é como representante da representação na fantasia, isto é, como sujeito originalmente recalcado, que o $, S barrado do desejo, suporta aqui o campo da realidade, e este só se sustenta pela extração do objeto a, que, no entanto, lhe fornece seu enquadre. (p. 560)

Campo da realidade refere-se à consciência. Não é à toa que esse conceito sempre se apresentou como uma dificuldade para Freud. Desde o “Projeto para uma psicologia científica” (1895) até o fim de sua obra, a consciência, em última análise, não só é “o nosso único farol na treva da psicologia profunda” (Freud, 1923/1976b, p. 31Freud, S. (1976b). O ego e o id. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923).), mas também constitui “um fato sem paralelo, que desafia toda explicação ou descrição” (Freud, 1938/1976aFreud, S. (1976a). Esboço da psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXIII). Rio de Janeiro, |RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1938)., p. 182).

Para Lacan, a consciência se caracteriza não só pela idealização, mas também pelo desconhecimento. Nesse sentido, Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., no Seminário 11, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, define o olhar como o “avesso da consciência” (p. 86). A consciência, no campo da visão, refere-se àquilo que o olho vê. O que é visto ordena-se em função de uma correspondência ponto a ponto de duas unidades no espaço, o que, por sua vez, é o que determina uma imagem. Esse simples esquema surge no Renascimento com a perspectiva geométrica - método de representação no qual a linha reta simula o trajeto da luz, e que foi desenvolvido com o intuito de criar representações fiéis às imagens que o olho humano vê. Voltaremos a esse ponto mais adiante. Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., no entanto, chama atenção para o fato de que a perspectiva geometral não abarca tudo o que está em jogo no campo da visão. Ele recorre ao livro de Diderot, Carta sobre os cegos para uso dos que enxergam, para demonstrar que, ainda que não seja capaz de ver, o cego pode perfeitamente reconstruir o espaço geometral da visão ao imaginá-lo.

O cego pode muito bem conceber que o campo do espaço que ele conhece, e que ele conhece como real, possa ser percebido à distância e como que simultaneamente. Trata-se para ele de apenas apreender uma função temporal, a instantaneidade [...]. A dimensão geometral da visão não esgota, portanto, e longe disso, o que o campo da visão enquanto tal nos propõe como relação subjetivante original. (Lacan, 1964/2008Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 89)

O olhar, como o avesso da consciência, está para além do que pode ser visto pela perspectiva geometral. E, justamente por isso,

uma vez que o sujeito tenta se acomodar a esse olhar, ele se torna, esse olhar, esse objeto punctiforme, esse ponto de ser evanescente, com o qual o sujeito confunde seu próprio desfalecimento. Também, de todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer a dependência em que está no registro do desejo, o olhar se especifica como inapreensível. É por isso que ele é, mais que qualquer outro objeto, desconhecido, e é talvez por essa razão também que o sujeito consegue simbolizar com tanta felicidade seu próprio traço evanescente e punctiforme na ilusão da consciência de ver-se vendo-se, em que o olhar se elide. (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 86)

Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). lança mão de um pequeno apólogo para demonstrar que o lugar do sujeito é diferente do lugar do ponto de vista geometral:

Um dia, então, em que esperávamos o momento de puxar as redes, o chamado Joãozinho, vamos chamá-lo assim [...], me mostra uma coisa que boiava na superfície das ondas. Era uma latinha, e mesmo precisamente, uma lata de sardinhas [...]. Ela respelhava ao sol. E Joãozinho me diz: - Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não! [...]. Primeiro, se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo, no nível do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora. (p. 97)

Se é por meio da elisão do olhar, como objeto a, que algo pode ser visto, convém compreender de que maneira isso ocorre. Que relação o sujeito pode estabelecer com esse olhar? De que forma podemos imaginá-lo? Sartre, segundo Lacan (1964/2008a), ao falar do olhar, exemplifica-o a partir de um ruído de folhas ouvido repentinamente, ou de passos que surgem no corredor enquanto ele, movido por curiosidade ou ciúmes, olha pelo buraco de uma fechadura. Ao espiar por esse buraco, o voyeur está sozinho e sua consciência não está voltada para si ou para a qualificação dos seus atos.

Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., no sétimo capítulo do Seminário 11, referindo-se a Sartre, em O ser e o nada, afirma que ele aborda o olhar “na dimensão da existência de outrem” (p. 86). Esse olhar ganha corpo na medida em que é “um olhar imaginado por mim no campo do Outro” (p. 87). Ou seja: aquele que se vê sendo olhado é o sujeito que se sustenta em uma função de desejo.

O sujeito cartesiano e o sujeito do inconsciente no campo escópico

Como já foi dito, a perspectiva geométrica nasceu no Renascimento. Também conhecida por diversos outros nomes - como perspectiva artificialis, central, unilocular, linear e albertiana - a perspectiva supriu, durante quase cinco séculos, as necessidades figurativas da civilização ocidental, oferecendo garantias de racionalidade às suas projeções gráficas a partir de um suporte matemático (Machado, 2015Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili.). Leo Batista Alberti, seu primeiro teorizador, imaginava o quadro como uma secção plana do ângulo de visão do olho, e a perspectiva como a projeção de todo campo visual nesse plano.

Figura 1

Nesse sistema, o centro visual é um ponto fixo que corresponde ao vértice daquilo que Alberti denominou de pirâmide visual. Esse ponto fixo é ligado aos contornos de todos os objetos que se encontram dentro do campo visual, de modo que as linhas retas, que efetivam essa ligação, determinam a posição relativa desses objetos no plano de intersecção.

A imagem obtida por meio desse sistema de projeções mostrava uma hierarquia de proporções que deveria representar a distância relativa dos objetos no espaço tridimensional. Ao mesmo tempo, todo o espaço representado no plano se mostrava unificado pelas linhas de projeção, de maneira que as retas perpendiculares ao plano de intersecção pareciam se prolongar de forma invisível no espaço, até se juntarem todas num ponto de convergência comum, denominado ponto de fuga. (Machado, 2015Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili., pp. 74-75)

A perspectiva geométrica significou, na época em que foi desenvolvida, o descobrimento de um sistema de representações absolutamente fiel ao espaço conforme é visto pelo olho humano. A partir de então, foram desenvolvidos vários aparelhos destinados a obter de forma prática imagens em perspectiva, como a portinhola de Albrecht Dürer, e, mais tarde, a câmera obscura, construída a partir do aparelho de Dürer, que deu origem a todo o mecanismo óptico da câmera fotográfica (Machado, 2015Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili.). No entanto, para que a perspectiva artificialis pudesse aparecer como essa representação “natural” do mundo, uma série de aspectos fundamentais precisavam ser, de certa forma, censurados. Podemos citar como exemplo o irrealismo do ponto de fuga, representação do infinito, mas que aparece no quadro como um ponto que pode, inclusive, ser tocado com os dedos. Ou, ainda, o fato de que todo sistema se baseia no pressuposto de um olho único, imóvel e abstrato, o que significa dizer que “a visão da perspectiva renascentista é a visão do ciclope muito mais do que a do homem” (Machado, 2015Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili., p. 77).

Para Machado (2015)Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili. a perspectiva renascentista é a marca de uma ruptura entre Deus e o homem. A partir dela o espaço ganha homogeneidade e o mundo aparece unificado não mais por forças místicas ou divinas, mas por forças geométricas forjadas pelo espírito racional do artista. O olho do sujeito adquire, então, um lugar central, pois passa a organizar esse espaço homogêneo e infinito. O sujeito de que se trata aqui é o sujeito cartesiano. Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., no referido Seminário 11, no capítulo VIII, destaca o fato de que foi precisamente na mesma época que Descartes inaugurou a função do sujeito, que se desenvolveu a perspectiva geométrica.

No entanto, para a psicanálise há uma esquize do sujeito que, no campo escópico, produz a dicotomia entre o olho e o olhar. Assim, o olho central da perspectiva, que indica o sujeito como aquele que vê, apenas o faz na medida em que o coloca numa posição de gozo, ao elidir, por meio de um anteparo, o olhar como causa de desejo. Dessa forma, se o sujeito cartesiano pode ser encontrado no ponto geometral que organiza a perspectiva, o mesmo não pode ser dito acerca do sujeito na sua relação com o desejo. O sujeito surge não como organizador do quadro, mas como aquele que é olhado, ou seja, aquele que se inscreve no quadro.

Tomo aqui a estrutura no nível do sujeito, mas ela reflete algo que já se encontra na relação natural que o olho inscreve para com a luz. Não sou simplesmente esse ser punctiforme que se refere ao ponto geometral desde onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro. (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 98)

Esta inversão de lugares se encontra no esquema feito por Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). no Seminário 11, no capítulo VIII:

Figura 2
Os dois sistemas triangulares de Lacan (a)

Esta figura apresenta dois triângulos: no vértice do primeiro triângulo temos o sujeito da representação e, no vértice do segundo, temos o olhar punctiforme e evanescente. Para a psicanálise, o que determina o sujeito no campo escópico é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo seu efeito. Donde se conclui que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual [...] sou foto-grafado” (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 107).

Figura 3
Os dois sistemas triangulares de Lacan (b)

Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964). deixa claro que

Não se trata aqui do problema filosófico da representação. Nesta perspectiva, em presença da representação, me garanto a mim mesmo, como, em suma, sabendo muito, me garanto como consciência que sabe que é apenas representação, e que há, mais além, a coisa, a coisa em si. (p. 107)

Não se trata, portanto, apenas de saber que por trás do fenômeno há o númeno, como diria Kant. O que está verdadeiramente em jogo para a psicanálise é o fato de que há uma fratura, que se manifesta no campo escópico por meio da esquize do olho e do olhar.

O olho e o olhar: considerações sobre o espectador na fotografia

A arte - não apenas renascentista, mas também a pós-renascentista -certamente se valeu muito da perspectiva geométrica, a ponto de podermos dizer que chegou a obedecê-la cegamente. Ainda assim, tínhamos aqueles que subvertiam essas regras e que encontravam maneiras de, em meio às próprias leis da óptica geometral, revelar algo da dimensão do olhar. Um famoso exemplo é o quadro de Hans Holbein, Os embaixadores, ponto de partida para uma série de comentários de Lacan. Nesse quadro vemos dois personagens que se apresentam com uma postura de aparente domínio e ostentação, no meio de objetos que representam os campos das artes e da ciência. Entre os personagens surge do chão um objeto inclinado que, à primeira vista, não pode ser reconhecido. Porém, se o observador se desloca do ponto geometral em que olha o quadro, para se posicionar acima e à direita dele, pode perceber, sob determinado ângulo e distância, a figura de um crânio. Trata-se de uma anamorfose, uma deformação que se obtém justamente a partir do uso invertido da perspectiva.

Essa figura, flutuando no primeiro plano, está lá para pegar na armadilha aquele que olha. Para Lacan, trata-se de um modo de mostrar que, como sujeito, somos chamados para dentro do quadro. O crânio só aparece no momento em que o observador se posiciona em um lugar específico em relação ao quadro. Localizado entre dois personagens paramentados e fixados, que remetem à vaidade das artes e das ciências, esse crânio reflete nosso destino, que é a morte. Para Lacan (1964/2008a)Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., trata-se da utilização, “da dimensão geometral da visão para cativar o sujeito, relação evidente ao desejo que, no entanto, resta enigmático” (pp. 94-95).

Lacan nos mostra, então, que em pleno apogeu da perspetiva geométrica, Holbein torna visível, com sua anamorfose, o sujeito como nadificado. Nos termos lacanianos, trata-se de uma encarnação imajada do menos-fi [(-φ)] da castração (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 91).

É importante salientar que Lacan utiliza, no Seminário 11, o termo quadro de duas maneiras diferentes, mas que se relacionam de alguma forma. Uma delas diz respeito à função do quadro, conforme ele estabelece nos seus sistemas triangulares. Trata-se, nesse caso, da “função em que o sujeito tem que se discernir como tal” (1964/2008a, p. 102). Mas o que dizer da pintura, por exemplo? Do que se trata quando um sujeito humano se engaja em fazer um quadro?

O quadro, como obra de arte, nos oferece o que Lacan chama, no referido Seminário 11, de “pastagem para o olho”. Ou seja: um convite para que o espectador deposite ali o seu olhar como quem depõe suas armas. “Queres olhar? Pois bem, veja então isso!” (1964/2008a, p. 102).

O quadro oferece ao sujeito aquilo que, nos sistemas triangulares das figuras 2 e 3, podemos identificar como o anteparo. Esse anteparo consiste em uma captura imaginária, que tem a função de mediação entre o olho e o olhar. O sujeito do desejo isola a função de anteparo e joga com ela. “O homem, com efeito, sabe jogar com a máscara como sendo esse mais além do que há o olhar” (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)., p. 108). Quando o quadro entra em relação com o desejo, o lugar de anteparo central está sempre marcado. Dessa maneira, Lacan distingue o quadro da representação.

A função do pintor é completamente diferente da organização do campo da representação. Isso é demonstrado, por exemplo, pelo fato de que, durante o século XIX, houve certo afrouxamento da obediência da pintura à perspectiva, a ponto de nomes como Cézanne aparecerem insurgindo-se contra ela (Machado, 2015Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili.). Contudo, é, precisamente nesse momento, que a recém-inventada fotografia se apresenta como a salvação da perspectiva em crise, “pois a construção de seu aparelho de base recupera todos os procedimentos renascentistas de ‘retificação’ da informação visual” (Machado, 2015Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo, SP: Gustavo Gili., p. 85). A câmera fotográfica, num primeiro momento, reassegura de forma muito contundente o código da visão renascentista, colocando novamente o olho num lugar de dominação. Esse resgate foi de tal modo poderoso, que Walter Benjamin (2017)Benjamin, W. (2017). Pequena história da fotografia. In Estética e sociologia da arte. Belo Horizonte, MG: Autêntica., em Pequena história da fotografia, chama atenção para uma publicação alemã daquela época, que se refere à fotografia como uma arte diabólica, considerando-a uma verdadeira blasfêmia, pois o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, que, por sua vez, não pode ser fixada por nenhuma máquina humana.

Nesse sentido, introduzimos aqui duas interrogações:

  1. O ato de fotografar, apesar de sua aliança com a perspectiva geométrica, pode fugir às leis dessa perspectiva?

  2. A fotografia é um quadro no sentido de Lacan?

Estamos diante de questões que colocam em cena o ato de representação e o quadro. A resposta à primeira pergunta é negativa. A fotografia não pode se desvencilhar das leis da perspectiva pelo simples fato de que a câmera é construída justamente a partir dessas leis. Isto não significa que não haja distorções dentro do próprio sistema, porque nem sempre a câmera e o olho coincidem. Algumas distorções já foram mencionadas como a redução do objeto tridimensional a uma imagem bidimensional, variações cromáticas etc. Além disso, no que se refere ao equipamento fotográfico, por exemplo, a simples mudança de uma lente de 50 mm - que supostamente nos dá a visão “normal” dos objetos em profundidade - para uma grande angular de 25 mm, produz distorções de tamanho no primeiro plano e no plano de fundo da imagem. De qualquer forma, diferente do que ocorre com o pintor, o fotógrafo está sempre subordinado às leis e às condições que o aparelho fotográfico oferece. Nesse sentido, fotografar implica a perspectiva geométrica como sistema de representação. Como afirma Flusser (2009)Flusser, V. (2009). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro, RJ: Sinergia/Relume-Dumará., o fotógrafo joga com as possibilidades que a câmera lhe dá.

Em relação à segunda pergunta, em um primeiro momento a fotografia pode ser considerada um quadro, na medida em que coloca o espectador no lugar de sujeito (sujeito cartesiano). No entanto, ela não se presta apenas a essa função, e este é o ponto mais importante. A promessa de resgate da perspectiva, que a rigor significava a promessa de salvação do sujeito cartesiano, não se cumpriu. A fotografia, como ápice da técnica da perspectiva, ainda assim não conseguiu tornar o espectador imune ao olhar que o desloca do ponto geometral e o coloca no lugar do sujeito olhado.

Em nossa época, centenas ou milhares de fotografias se apresentam aos nossos olhos todos os dias: placas, propagandas, embalagens de produtos, smartphones etc. A maioria dessas imagens, em vez de apontar para a dimensão do olhar, produz unidades de sentido, capazes de gerar fantasias no espectador. E quais seriam essas fantasias? Na publicidade, por exemplo, a fascinação do objeto, como imagem, convence o espectador a comprá-lo. Nos jornais impressos ou televisivos, o espectador se convence de que não há diferença entre o acontecimento e as imagens fotografadas ou filmadas. Mas em alguns casos, a fotografia pode se apresentar como um dispositivo que nos permite, por retroação, a partir de outro tempo e outro espaço, reconhecer algo da ordem do olhar, que permaneceu invisível, no momento em que a foto foi tirada. Todo fotógrafo se depara com essa dimensão invisível, tendo consciência disso ou não. Os grandes fotógrafos parecem ser aqueles que, de alguma forma, se entregam a essa dimensão, e se tornam disponíveis para um encontro com algo que inevitavelmente lhes escapa, algo da ordem do real.

É comum encontrarmos no discurso de vários fotógrafos a descrição de uma experiência que remete a uma espécie de auto-apagamento, enquanto realizam seu trabalho. Cartier-Bresson (2015)Cartier-Bresson, H. (2015). Ver é um todo: entrevistas e conversas, 1951-1998. São Paulo, SP: Gustavo Gili., em especial, falava muito dessa experiência, que, em suas palavras, era elevada ao nível de uma exigência para qualquer um que almejasse se tornar um bom fotógrafo. “Você precisa se esquecer de si mesmo” (p. 47). Podemos entender da seguinte maneira o que Cartier-Bresson diz: para fazer de uma foto um quadro, é preciso que o artista se desligue da consciência, pois, afinal, não é dela que se trata. Aquilo que verdadeiramente nos captura em uma foto, e que Barthes (2012)Barthes, R. (2012). A câmara clara. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. chamou de punctum, é algo que surge de uma surpresa, reservando sempre algo de tíquico, para usarmos um significante lacaniano, que remete à tiquê (Lacan, 1964/2008aLacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).). Para Cartier-Bresson, esse auto-apagamento implica, inclusive, uma posição subjetiva do fotógrafo, semelhante à do analista quando está escutando seu analisando. O que seria esse apagamento senão uma suspensão do ser e dos significantes que constituem o sujeito barrado, a fim de que a certeza do sujeito cartesiano, naquele exato momento, seja sustada e que se abra um espaço para dar lugar a uma outra dimensão do olhar?

Considerações finais

As crises nas artes plásticas pela invenção da fotografia e no teatro pela invenção do cinema (França, 1895, os irmãos Louis e Auguste Lumière) marcam o início de uma nova era, como vimos no início de nosso artigo, que é a derrocada da aura que, até então, tinha sido o valor mais importante para avaliar a obra de arte. Inicialmente, os pintores vociferaram contra os fotógrafos, com os argumentos de que sua máquina infernal nunca iria se comparar à grandiosidade e à criatividade de um quadro que, depois de avaliado pelos teóricos e críticos de arte, passava a ser classificado de obra arte. Aliás, a questão - O que é uma obra de arte? Ou seja: O que é representar alguma coisa? E em seguida: Qual a função da obra de arte? - nasce, na Antiguidade, com Platão e Aristóteles e permanece até os nossos dias.

No início do século XX, ainda se insistia com as discussões de que a fotografia, ao contrário da pintura, não era uma obra de arte. E o círculo vicioso se repete. Cabe a nós, psicanalistas, com o que aprendemos com Lacan, defender a posição de que um romance, uma poesia, uma pintura, uma foto ou qualquer outra coisa poderá ser considerada uma obra de arte, não em função das técnicas utilizadas, mas em função da “transformação de um objeto em uma coisa, a elevação repentina, da caixa de fósforo a uma dignidade que ela não tinha de modo algum anteriormente. Mas, é claro, é uma coisa que nem por isso é, de modo algum, a Coisa.” (Lacan, 1959-60/1988Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60)., p. 148). A Coisa (das Ding), aqui definida como “o que do real primordial [...] padece do significante” (p. 149). Isto, nomeado de a Coisa, que Freud nos ensina que foi constituída no princípio do prazer, está perdida para sempre. Justamente por isso a busca incessante de ser reencontrada. Diz Lacan (1959-60/1988)Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58).:

Reencontramos aí uma estrutura fundamental, que nos permite articular que a Coisa em questão é suscetível, em sua estrutura, de ser representada pelo que chamamos, há tempos, a respeito do discurso do tédio e da prece, de a Outra coisa. A Outra coisa é, essencialmente, a Coisa. (p. 149)

Ou seja, na impossibilidade de representação do verdadeiro segredo, a Coisa, sempre velada, passa a ser representada por Outra coisa, que, quando revelada, no caso da fotografia, é vista, tanto pelo fotógrafo quanto pelo espectador, como algo que nos pega, um enigma, uma traição do olhar, um vazio, ou seja, alguma coisa que nos afeta, porque não há palavras para decifrá-la. Mas mesmo assim ficamos apaixonados. É exatamente isto que Lacan nomeia de sublimação. É necessário lembrar que não estamos afirmando que toda sublimação é arte e sim que toda arte é sublimação. Nesse sentido, é lógico que as fotos de comemorações com todos sorrindo e felizes não são obras de arte. Mas tudo depende do fotógrafo. E é lógico que fotos que de algum modo não mostrem os fotografados como se veem olhados, não servem para se transformarem em imagens dos tempos felizes que não voltam mais...

  • *1
    O presente artigo foi elaborado como desdobramento da dissertação de mestrado de Patrick Werner dos Anjos, bolsista da Capes entre 2016 e 2018, sob orientação da prof. dra. Nadiá Paulo Ferreira, intitulada O traço para além do índice: a fotografia sob o olhar da psicanálise, defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2018.
  • *1
    Para Benjamin (1975, p. 13)Benjamin, W. (1975). A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In Os pensadores. v. XLVIII. São Paulo, SP: Abril Cultural. o hic et nunc da obra de arte se caracteriza pela “unidade de sua presença no próprio local em que se encontra”.
  • *2
    Não estamos neste momento considerando aquilo que pode ser produzido a partir das mais recentes tecnologias de tratamento de imagem digital, como o Photoshop e recursos semelhantes.
  • *3
    A expressão “momento decisivo” dá o título a um artigo muito famoso de Henri Cartier Bresson (2015), e diz respeito ao instante exato em que o fotógrafo decide realizar o disparo.
  • *4
    É importante assinalar que para Lacan o que é visto sempre é precedido por um dado-a-ver.

Referências

  • Barthes, R. (2012). A câmara clara Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
  • Benjamin, W. (1975). A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In Os pensadores v. XLVIII. São Paulo, SP: Abril Cultural.
  • Benjamin, W. (2017). Pequena história da fotografia. In Estética e sociologia da arte Belo Horizonte, MG: Autêntica.
  • Cartier-Bresson, H. (2015). Ver é um todo: entrevistas e conversas, 1951-1998 São Paulo, SP: Gustavo Gili.
  • Flusser, V. (2009). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia Rio de Janeiro, RJ: Sinergia/Relume-Dumará.
  • Freud, S. (1976a). Esboço da psicanálise. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XXIII). Rio de Janeiro, |RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1938).
  • Freud, S. (1976b). O ego e o id. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923).
  • Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).
  • Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58).
  • Lacan, J. (2008a). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).
  • Lacan, J. (20008b). O seminário. Livro 20. mais, ainda Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-73).
  • Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-54).
  • Machado, A. (2015). A ilusão especular: uma teoria da fotografia São Paulo, SP: Gustavo Gili.
  • Merleau-Ponty, M. (2014). O visível e o invisível São Paulo, SP: Perspectiva.
  • Poe, E. A. (2013). O Daguerreótipo. In A. Trachtenberg. Ensaios sobre fotografia: de Niépce a Krauss Lisboa, PT: Orfeu Negro.
  • Signorini, R. (2014). A arte do fotográfico: os limites da fotografia e a reflexão teórica nas décadas de 1980 e 1990 São Paulo, SP: Martins Fontes.
Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2020
  • Aceito
    18 Jul 2020
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