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A neutralidade analítica em questão: um percurso clínico-político1 1 Trabalho baseado na monografia Psicanálise da tortura: a neutralidade analítica em questão, entregue em 2019 ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ como requisito para obtenção do título de Graduação em Psicologia.

The issue of analytical neutrality: A clinical-political trajectory

La neutralité analytique en question: un parcours clinique-politique

La neutralidad analítica en cuestion: un percurso clínico-político

Resumos

O objetivo deste artigo é examinar os múltiplos sentidos atribuídos à noção de neutralidade analítica. Tal palavra foi usada pela primeira vez por Strachey na tradução inglesa do texto “Observações sobre o amor transferencial” e emergiu nas discussões clínicas dos pós-freudianos e psicólogos do ego sobre abstinência e contratransferência. Em seguida, uma investigação sobre a história do movimento psicanalítico brasileiro demonstra, mediante notícias e relatos do Caso Amílcar Lobo, candidato a analista envolvido com a tortura política, que a noção de neutralidade foi empregada para ocultar a omissão das instituições nacionais e internacionais frente à violência de Estado durante a ditadura militar. Defendemos a importância de entrelaçar ambas as perspectivas teórica e sociopolítica para considerar a questão da neutralidade com a devida complexidade.

Palavras-chave
Neutralidade analítica; contratransferência; abstinência analítica; história da psicanálise; neutralidade política


The objective of this article is to examine the multiple meanings attributed to the notion of analytical neutrality. Such a word was used for the first time by Strachey in the English translation of the text “Observations on Transference-Love” and emerged in post-Freudians and Ego psychologists’ clinical discussions about abstinence and countertransference. A subsequent investigation into the history of Brazilian’s psychoanalytical movement demonstrates, through news items and published reports of the Amílcar Lobo Case, analyst candidate involved with political torture, that the notion of neutrality was employed to conceal the omission of national and international institutions towards State violence during the military dictatorship. We defend the importance of interlacing both theoretical and sociopolitical perspectives to consider the issue of neutrality with appropriate complexity.

Keywords
Analytical neutrality; countertransference; analytical abstinence; history of psychoanalysis; political neutrality


L’objectif de cet article est d’examiner les multiples sens attribués à la notion de neutralité analytique. Tel mot a été utilisé par la première fois dans la traduction anglaise faite par Strachey du text “Observations sur l’amour de transfert”, et a emergé dans les discussions cliniques sur l’abstinence et le contre-transfert chez les post-freudiens et les psychologues de l’ego. Ensuite, une investigation sur l’histoire du mouvement psychanalytique brésilien démontre, par le biais des nouvelles et récits du Cas Amílcar Lobo, celui-ci candidat à la position de psychanalyste et impliqué dans des cas de torture politique, que la notion de neutralité a été employé pour occulter l’omission des institutions nationaux et internationaux face à la violence de l’État pendant la dictature militaire. On défend l’importance d’entrelacer tous les deux perspectives téoriques et sociopolitiques pour approcher la question de la neutralité politique avec la complexité requise.

Mots-clés
Neutralité; analytique; contre-transfert; abstinence analytique; histoire de la psychanalyse; neutralité; politique


El objetivo de este artículo es examinar los múltiples sentidos atribuidos a la noción de neutralidad analítica. Tal palabra fue usada por primera vez por Strachey en la traducción inglesa del texto “Observaciones sobre el amor de trasferencia” y emergió en las discusiones clínicas de los post-freudianos y psicólogos del ego sobre la abstinencia y la contratrasferencia. Una investigación subsiguiente sobre la historia del movimiento psicoanalítico brasileño, mediante los artículos y relatos del caso Amílcar Lobo, analista-candidato enzarzado con la tortura política, que la noción de neutralidad fue empleada para ocultar la omisión de las instituciones nacionales e internacionales frente a la violencia estatal de la dictadura militar. Defendimos la importancia de entrelazar ambas perspectivas teórica y sociopolítica para considerar la cuestión de la neutralidad con la debida complejidad.

Palabras clave
Neutralidad analítica; contratrasferencia; abstinencia analítica; historia del psicoanálisis; neutralidad política


O presente trabalho busca responder a duas questões: o que se quer dizer quando se fala sobre neutralidade na psicanálise e quais são as implicações políticas do uso dessa noção? Trata-se de uma palavra de uso tão corriqueiro que há poucas referências de sua emergência no vocabulário teórico e técnico da psicanálise. Axel Hoffer (1985)Hoffer, A. (1985). Toward a definition of psychoanalytic neutrality. Journal of the American Psychoanalytic Association, 33(4), 771-795. indicou que o vocábulo alemão Neutralität não foi utilizado por Freud, tampouco a expressão “neutralidade benevolente”, introduzida por Edmund Bergler (1937) no XIV Congresso Internacional de Psicanálise. Foi James Strachey quem, na versão inglesa de Observações sobre o amor transferencial, empregou o termo neutrality em substituição a Indifferenz. No texto em questão, Freud abordou o manejo da transferência em casos nos quais uma paciente declara-se apaixonada pelo analista e solicita, em maior ou menor intensidade, que seus sentimentos sejam correspondidos. A tradução mais exata do trecho aqui examinado seria: “Acho, portanto, que não se deve negar a indiferença [Indifferenz] adquirida pelo domínio da contratransferência” (Freud, 1915/2017cFreud, S. (2017c). Observações sobre o amor transferencial. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1915)., p. 172).

Em primeira instância, é preciso investigar o contexto no qual a problemática da neutralidade surgiu no movimento psicanalítico europeu, delimitando não só noções vizinhas (como contratransferência e abstinência), mas também seu lugar ao longo da constituição da clínica psicanalítica.

No entanto, a questão não se restringe a variações terminológicas e procedimentos técnicos. Como atestam as discussões recentes sobre o posicionamento político das coletividades de analistas diante da ascensão da extrema-direita no Brasil, tanto o emprego da noção de neutralidade quanto as críticas a esse uso permanecem em disputa por diferentes correntes na comunidade analítica. Consequentemente, a premissa do presente trabalho é de que o recurso teórico à noção de neutralidade está necessariamente relacionado ao modo como psicanalistas organizam-se institucionalmente e intervêm na sociedade, cabendo estudar esses processos com base na história concreta de diferentes movimentos psicanalíticos.

Neste artigo, foi escolhida como paradigma a difusão da psicanálise no Brasil, particularmente na ditadura civil-militar de 1964 a 1985, considerando as indicações da bibliografia consultada a respeito dos intensos conflitos políticos ocorridos durante tal período em Sociedades vinculadas à IPA (International Psychoanalytical Association) e em instituições dissidentes. Busca-se assim contribuir para o avanço dos estudos sobre a história do movimento psicanalítico brasileiro.

A noção de neutralidade no movimento psicanalítico europeu

A partir do momento fundante em que Breuer acompanhou o caso de Anna O., a psicanálise sofreu profundas transformações em matéria de procedimento e conceitos, embora tenha mantido o eixo constitutivo de operar uma cura pela fala - uma talking cure, nas palavras da própria Anna O. Sobretudo, a transição do método catártico para o método da associação livre implicou uma virada crucial no lugar que o clínico ocupava na condução do tratamento.

Na fase hipnótico-catártica havia um hipnotizador cujo esforço consistia em levar o paciente a reconstituir o momento da formação de determinado sintoma, cujos processos psíquicos subjacentes haviam sido relegados ao esquecimento e ao isolamento em um grupo psíquico separado. De tal modo, as representações inconscientes poderiam enfim ser rememoradas e submetidas ao decurso do pensamento consciente por intermédio da ab-reação.

Tratava-se de um método calcado na sugestão, em que a pessoa doente encontrava-se submetida à abrangente influência do médico: o relato do caso de Emmy von N. traz diversas condutas profissionais questionáveis, marcadas pela ausência de uma delimitação precisa dos encargos do clínico. Via hipnose, Freud não só tentou regular o ciclo menstrual da paciente, como produziu extensas lacunas de memória das quais Emmy ainda se queixaria meses após o fim do tratamento (Freud, 1895/1974aFreud, S. (1974a). Estudos sobre a histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. II). Imago. (Trabalho original publicado em 1895).). Ele mesmo viria a fazer severas críticas à técnica sugestiva.

A construção de dois importantes conceitos acompanhou o decaimento do método catártico. Em casos posteriores, o fracasso nas tentativas de hipnose exigiu que as consultas fossem realizadas em estado de vigília, contexto no qual Freud reconheceu que o discurso dos pacientes não era totalmente maleável às suas intervenções. Os relatos eram contados com dificuldade, entrecortados por pontos em torno dos quais o advento de novas associações e lembranças encontrava-se atravancado: a esse fenômeno clínico que gera obstáculos à continuidade do processo de enunciação, deu-se o nome de resistência.

Quanto à transferência, o salto dado por Freud foi constatar que a reedição de impulsos e fantasias endereçados à pessoa do clínico não é apenas uma variável estranha, mas sim fato inevitável a ser revelado no percurso do tratamento. Ao passo que o paciente resiste a recordá-las, as experiências psíquicas anteriores não são revividas como pertencentes ao passado, mas atualizadas no laço atual com o médico (Freud, 1905/1972Freud, S. (1972). Fragmento da análise de um caso de histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. VII). Imago. (Trabalho original publicado em 1905).).

Portanto, a transição para o método da associação livre fundamentou-se na renúncia à hipnose (Freud, 1914/2017bFreud, S. (2017b). Lembrar, repetir, perlaborar. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1914).): somente a partir desse ponto de virada radical, imbricado com a problemática do exercício de poder, pode se constituir um psicanalista. Estabeleceu-se assim a regra fundamental: o analisante deve comunicar tudo que lhe ocorre ao pensamento, sem censura ou restrições críticas, tal como cabe ao analista escutar tudo que se apresenta à superfície psíquica do analisando, sem eleger um ponto de partida privilegiado - um momento, problema ou sintoma específicos.

No entanto, Freud (1917/1976)Freud, S. (1976). Conferência XXVII: Transferência. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. XVI). Imago. (Trabalho original publicado em 1917). nunca deixou de ser interpelado pela seguinte indagação: seria o analista também praticante da sugestão, utilizando-se da influência especial concedida pela transferência para, de maneira mais ou menos implícita, conduzir a vida do paciente a fim de promover a cura?

Ferenczi (1921/1988)Ferenczi, S. (1988). Prolongamentos da “técnica ativa” em psicanálise. In J. Birman (Org.), Escritos psicanalíticos 1909-1933. Taurus. (Trabalho original publicado em 1921). tensionou os limites do método analítico ao propor a chamada técnica ativa, que consistia na “intimação e execução sistemáticas de injunções e proibições, mantida sempre a ‘situação de abstinência’, segundo Freud” (p. 188; grifos do autor). Empregada em casos nos quais a análise experimentasse longos períodos de estagnação, as tarefas solicitadas não visavam à produção de prazer tampouco à manutenção de bem-estar psíquico, mas sim a romper o equilíbrio libidinal mediante realização de ações desagradáveis: o propósito era resgatar os processos psíquicos impedidos de vir à tona, possibilitando a continuidade da associação livre mediante obediência à regra fundamental.

Durante uma conferência em Budapeste no ano de 1919, Freud (1919/2017d)Freud, S. (2017d). Caminhos da terapia psicanalítica. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919). abordou a temática da técnica ativa recorrendo ao direcionamento de que “o tratamento analítico deve, na medida do possível, ser executado na privação - na abstinência” (p. 195; grifo nosso). Há dois aspectos condensados em tal orientação. Primeiramente, recomenda-se que a atividade do analista “precisa se manifestar como uma intervenção enérgica contra as satisfações substitutivas prematuras”, pois “em sua relação com o médico, o paciente deve ter uma vasta gama de desejos não realizados” (Freud, 1919/2017dFreud, S. (2017d). Caminhos da terapia psicanalítica. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919)., pp. 197-198). Quanto à segunda dimensão, Freud advertiu:

Recusamos enfaticamente transformar o paciente, que se entrega em nossas mãos buscando ajuda, em nossa propriedade, formar o seu destino para ele, impor-lhe os nossos ideais e, com a altivez do Criador, formá-lo à nossa semelhança, para a nossa satisfação. (...) Porque pude ajudar pessoas com as quais não tinha qualquer laço de raça, educação, posição social ou visão de mundo, sem incomodá-las em suas peculiaridades. (p. 98)

Depara-se aqui com o uso eminentemente político da concepção de abstinência, visto que as características ressaltadas por Freud correspondem a marcas de distinção entre sujeitos e grupos sociais, a partir das quais ocorrem amplos processos de exploração, violência e extermínio. Contudo, tal vertente foi historicamente preterida em detrimento de discussões técnicas sobre a contratransferência, noção de grande importância para diversas correntes pós-freudianas.

A primeira aparição da palavra deu-se em correspondência redigida a Jung em 1909 para abordar o caso de Sabina Spielrein, simultaneamente paciente e amante de Jung; na carta, a contratransferência foi aludida como um “permanente problema” a ser dominado (McGuire, 1976McGuire, W. (1976). Freud/Jung: Correspondência Completa. Imago. (Trabalho original publicado em 1974).). No ano seguinte, em uma comunicação para a abertura do Segundo Congresso de Psicanálise, Freud (1910/1974b)Freud, S. (1974b). As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. XI). Imago. (Trabalho original publicado em 1910). apresentou a contratransferência como um fenômeno recém-descoberto, resultado da influência do paciente sobre os sentimentos inconscientes do médico, devendo ser sobrepujada pela análise pessoal. Em 1915, no texto “Observações sobre o amor transferencial”, viria igualmente a ser designada como uma das forças que retiram o clínico do nível analítico.

Ainda que em todas as três ocorrências acima seja possível verificar uma acepção mais circunscrita à resposta do analista à transferência amorosa, a noção de contratransferência foi amplamente empregada, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, como uma ferramenta de reflexão sobre a contribuição do analista para a formação da situação transferencial. Subjacente aos múltiplos desdobramentos teóricos do termo em jogo, a questão da neutralidade permanecia como um enigma; particularmente, alguns comentários encontrados no texto “Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico” provocaram intenso debate na comunidade.

Sou insistente em recomendar aos colegas que no tratamento psicanalítico tomem como exemplo o cirurgião, que coloca de lado todos os seus afetos e até a sua compaixão humana e estabelece um único objetivo para as suas forças psíquicas: realizar a operação o mais perfeitamente possível. (Freud, 1912/2017aFreud, S. (2017a). Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1912)., p. 98)

Freud (1912/2017a)Freud, S. (2017a). Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico. In Fundamentos da clínica psicanalítica. Autêntica. (Trabalho original publicado em 1912). também apontou que “o médico precisa ser opaco para o analisando e, assim como uma superfície espelhada, não deve mostrar nada além daquilo que lhe é mostrado” (p. 102). A partir de certa tendência no entendimento coletivo dessas pontuações, erigiu-se o ideal do analista “neutro”, impessoal, apático, adepto de um tipo estoico e próximo em comportamento a uma coisa inanimada. No entanto, logo ficou claro para a comunidade de analistas que a experiência clínica francamente contradizia esse ideal, de modo que concepções tradicionalmente difundidas sobre o lugar do analista no tratamento começaram a ser questionadas mediante o uso da noção de contratransferência.

No texto “Sobre transferência e contratransferência”, Alice e Michael Balint investigaram diversos aspectos do tratamento nos quais pesam as características pessoais de cada analista, em especial no estilo de comunicar, intervir e finalizar as sessões. Concluíram que não há método “estéril” de analisar, no qual estaria garantida uma suposta passividade destituída de traços da transferência do próprio analista. Descreveram a situação analítica como “o resultado de um interjogo entre a transferência do paciente e da contratransferência do analista, complicado pelas reações liberadas em cada um pela transferência do outro sobre si” (Balint & Balint, 1939/2002Balint, A., & Balint, M. (2002). Sobre transferência e contratransferência. In A contratransferência à luz do desejo do analista. Escola Letra Freudiana. (Trabalho original publicado em 1939)., p. 12).

Margaret Little (1951/2002)Little, M. (2002). Contratransferência e a resposta do paciente a isso. In A contratransferência à luz do desejo do analista. Escola Letra Freudiana. (Trabalho original publicado em 1951). observou a imprecisão da palavra “contratransferência”, buscando delimitar alguns significados utilizados com maior frequência; depreendeu que a definição mais comum englobava “sentimentos recalcados, infantis, subjetivos, irracionais, alguns prazerosos, outros penosos” (p. 57). Entretanto, ainda que houvesse discordâncias quanto ao destino correto a ser dado às manifestações contratransferenciais, tornava-se teoricamente possível descartar a neutralidade enquanto condição a priori do tratamento analítico.

Por outro lado, vertentes pós-freudianas de importante repercussão na língua inglesa seguiram um caminho oposto: autores como Hartman (1968)Hartman, H. (1968). Psicologia do ego e o problema de adaptação. Biblioteca Universal Popular. (Trabalho original publicado em 1958). alegavam que a psicanálise havia privilegiado os conflitos entre as instâncias psíquicas em decorrência do trabalho terapêutico com indivíduos acometidos por psicopatologias, propondo uma nova “psicologia psicanalítica” para estudar a esfera do ego livre de conflitos. Buscavam entender não os estados de exceção, mas o desenvolvimento ajustado à realidade, ou seja, ao mundo externo ao qual um ego forte seria capaz de dirigir-se por meio de mecanismos autônomos que garantiriam uma “adaptabilidade média” e uma “adaptação normal”.

Curiosamente, Hartman (1968)Hartman, H. (1968). Psicologia do ego e o problema de adaptação. Biblioteca Universal Popular. (Trabalho original publicado em 1958). escolheu como analogia a descrição de um país ou Estado, que deveria ser observado não apenas durante uma guerra, mas também nos tempos de “desenvolvimento pacífico de seu povo, economia, estrutura social, administração” (p. 12). É importante extrair aqui uma associação com a problemática da neutralidade, visto que a definição de tal vocábulo remete à condição de não tomar parte em um conflito diplomático ou militar.

Embora representantes da psicologia do ego tenham invocado regiões supostamente neutras do aparelho psíquico, suas construções teóricas demonstravam algumas concepções hegemônicas sobre sexualidade, desenvolvimento, civilização, sociabilidade e felicidade. A tradução então hegemônica do axioma freudiano “Wo es war, sol Ich werden” por “O Eu deve desalojar o Isso”, de ampla circulação no meio científico da época, permite apreender os possíveis compromissos normalizadores entre o trabalho analítico e a adaptação social.

Futuramente, Lacan (1958/1998)Lacan, J. (1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos. Zahar. (Trabalho original publicado em 1958). viria a alertar que pouco adiantava divagar sobre a contratransferência quando era admissível à comunidade analítica que seu trabalho tivesse como finalidade a “reeducação emocional do paciente”. Na base de suas críticas à rigidez das Sociedades europeias e estadounidenses vinculadas à IPA, havia a seguinte premissa: a concepção que se faz dos fins de uma psicanálise deve ser remetida à coletividade de analistas que a sustenta, tendo em conta sua hierarquia institucionalizada e sua aderência à ordem social vigente.

A contratransferência foi definida no primeiro seminário (Lacan, 1953-54/2009Lacan, J. (2009). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud (2. ed.). Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-54).) como a “soma dos preconceitos do analista”, o que já indicava uma perspectiva crítica quanto a tal noção. Nos anos seguintes, Lacan promoveu um deslocamento da situação a dois compreendida como relação de ego a ego para uma estruturação em torno de dois desejos: afirmou que, se o analista não toma o paciente nos braços ou o atira pela janela, é porque está possuído por um desejo mais forte (Lacan, 1960-61/2010Lacan, J. (2010). O seminário. Livro 8. A transferência (2. ed.). Zahar. (Trabalho original publicado em 1960-61).). Foi fundamental que Lacan tenha proposto justamente um desejo como sustentação à função do analista.

Se diferentes correntes da psicanálise convergem quanto ao lugar do analista diante do conflito psíquico - Anna Freud (1936/2006)Freud, A. (2006). O ego e os mecanismos de defesa. Artmed. (Trabalho original publicado em 1936). ancorou a objetividade da escuta analítica em um “ponto equidistante do id, ego e superego”, tal qual Cottet (1982/1989Cottet, S. (1989). Freud e o desejo do psicanalista. Zahar. (Trabalho original publicado em 1982).) definiu a neutralidade como “não tomar partido por um dos termos do conflito inconsciente mais que por outro” -, resta ainda interrogar um quarto termo relegado à margem: o dito mundo externo, também marcado por disputas e guerras.

A neutralidade política no movimento psicanalítico brasileiro

Como atesta um artigo publicado pelo analista Eduardo Mascarenhas (1978)Mascarenhas, E. (1978, 12 de fevereiro). O “boom” da psicanálise e a consciência nacional. Jornal do Brasil, B5. no Jornal do Brasil, tornou-se comum que não apenas meios de difusão restritos a profissionais do campo psi, mas também jornais de ampla circulação aludissem ao “boom psicanalítico” que conquistou as classes médias em expansão no eixo Rio de Janeiro-São Paulo durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici.

De fato, foi no início da década de 1970 - os “anos de chumbo”, marcados não só por transformações sociodemográficas proporcionadas pelo chamado “milagre econômico”, mas especialmente pelo ápice da repressão e censura do Estado - que a psicanálise de fato se consolidou no Brasil. Cecília Coimbra (1995)Coimbra, C. (1995). Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “Milagre”. Oficina do Autor. afirmou que o circuito família-escola foi a via pela qual a psicanálise avançou nos anos 1970 e conquistou, para além da literatura especializada, um espaço privilegiado no cotidiano das classes médias urbanas, que consumiam tais práticas e saberes tanto quanto eram produzidas pela cultura psicanalítica veiculada na mídia.

No entanto, em 1973 surgiram as primeiras denúncias que enfim revelaram a outra cena da proliferação da psicanálise em um período de extrema violência de Estado. Nesse ano, o jornal clandestino Voz Operária publicou um texto que viria a ser reproduzido pela revista argentina Cuestionamos; no artigo Algo más sobre tortura, constava:

Outro oficial do Exército, da equipe de torturadores, é o tenente médico Amilcar Lobo Moreira. Esse oficial orienta os torturadores sobre a resistência física do preso político. E como psicanalista é o responsável pelo ‘acompanhamento’ da saúde mental do torturado e da melhor maneira de arrancar confissões. (Mascarenhas & Pellegrino, 1981/1982Mascarenhas, E., & Pellegrino, H. (1982). Rio de Janeiro, 5 de março de 1981. In G. Cerqueira Filho (Org.), Crise na psicanálise. Graal. (Trabalho original publicado em 1981)., p. 230; grifo nosso)

Após a transcrição, foi impressa uma observação adicional:

Uma nota de rodapé, escrita a mão, diz o seguinte: “Amilcar Lobo é candidato da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Enviamos esta denúncia a diferentes sociedades psicanalíticas. Esperamos que sejam tomadas as medidas correspondentes. O que mais se pode dizer frente a esta denúncia? E o que sentir, senão horror e indignação?” (Mascarenhas & Pellegrino, p. 230; tradução nossa)

No relatório final da Comissão Nacional da Verdade, Amílcar Lobo foi incluído na lista de agentes “responsáveis pela autoria direta de condutas que ocasionaram graves violações de direitos humanos” (Comissão Nacional da Verdade, 2014Comissão Nacional da Verdade (2014, dezembro). Relatório da Comissão Nacional da Verdade (v. 1). Recuperado de <http://www.cnv.gov.br/index.php>.
http://www.cnv.gov.br/index.php...
). Foi designado em 1970 para trabalhar como médico no 1º Batalhão de Polícia do Exército - BPE, no Rio de Janeiro, atuando no DOI-CODI do I Exército de 1970 a 1974 sob o codinome de “doutor Carneiro”. Simultaneamente, era candidato à formação na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro - SPRJ, onde fazia análise didática desde 1968. Assim que foram divulgadas as primeiras denúncias, ele se afastou da SPRJ para “dar liberdade à instituição de investigar livremente seu caso” (“Amilcar Lobo novamente acusado de ser torturador”, 1981Amilcar Lobo novamente acusado de ser torturador. (1981, 5 de fevereiro). Folha de S.Paulo.). Em 1976, foi readmitido na Sociedade, que se eximiu de qualquer esclarecimento público sobre os rumores que então cercavam um de seus membros provisórios.

A situação continuou sem maiores repercussões até 1980, quando novas acusações vieram à luz. No dia 29 de setembro, durante o evento “Psicanálise e Fascismo” realizado pela Clínica Social de Psicanálise na PUC-RJ, Rômulo Noronha de Albuquerque tomou a palavra para relatar as torturas sofridas durante o período em que foi preso político. Dentre a equipe de torturadores havia reconhecido o dr. Amílcar Lobo, responsável por supervisionar o estado físico e mental das vítimas. Hélio Pellegrino, fundador da Clínica e membro associado da SPRJ, enviou no dia 2 de outubro uma carta ao então presidente da instituição, Victor Manuel de Andrade, comunicando a acusação realizada em sua presença (Pellegrino, 1980/1982Pellegrino, H. (1982). Rio de Janeiro, 2 de outubro de 1980. In G. Cerqueira Filho (Org.), Crise na psicanálise. Graal. (Documento original publicado em 1980)., p. 213). Não obteve qualquer resposta da cúpula.

No dia 8 de outubro, Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas foram expulsos da SPRJ por decisão do Conselho Consultivo da entidade, sem que lhes fosse dado direito de defesa. O aparente estopim foi a matéria Os Barões da Psicanálise, publicada duas semanas antes no Jornal do Brasil, na qual os dois analistas criticaram o chamado “baronato da psicanálise”. Entre os problemas assinaladas por eles, estavam “os altos custos do tratamento, a gerontocracia nas instituições psicanalíticas, as discriminações ideológicas contra candidatos à formação, o falsoapoliticismo’, e até mesmo a ignorância das obras de Freud” (Mello, 1980Mello, R. (1980, 15 de outubro). A psicanálise em pé de guerra. Jornal do Brasil, B1./1982Mello, R. (1982). Os barões da psicanálise. In G. Cerqueira Filho (Org.), Crise na psicanálise. Graal. (Documento original publicado em 1980)., p. 181; grifo nosso).

A exclusão gerou indignação no quadro social da SPRJ e rapidamente alcançou a mídia. Victor Manuel de Andrade deu a seguinte declaração em entrevista para o Jornal do Brasil: “Devemos criticar a Sociedade, mas lá dentro. (...) A Sociedade é rigorosa, mas lá dentro se fala o que quiser; aqui fora não se admite que se fale uma coisa dessas; houve espanto, choque, horror” (Mello, 1980Mello, R. (1980, 15 de outubro). A psicanálise em pé de guerra. Jornal do Brasil, B1.).

Não tardou para que os membros convocassem uma Reunião Plenária extraordinária, na qual foi recomendado o arquivamento do processo de exclusão. Em dezembro, o presidente enviou uma circular suspendendo a expulsão de Pellegrino e Mascarenhas com base em uma suposta retratação apresentada durante a Reunião. Alegou na mensagem que as manifestações de ambos à imprensa constituíam “ato merecedor de irrestrita desaprovação, por conterem o germe da desagregação e servirem aos propósitos de contumazes detratores da psicanálise” (Andrade, 1980/1982Andrade, V. M. (1982). Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 1980 (Circular). In G. Cerqueira Filho (Org.), Crise na psicanálise. Graal. (Documento original publicado em 1980)., p. 196). Como esse tipo de atitude “anti-societária” punha em cheque a identidade de filiação da SPRJ com a IPA, avisou que “qualquer membro que vise a prejudicar nossa imagem científica no cenário psicanalítico contará com nosso repúdio” (Andrade, p. 197). Ainda alertou o quadro social para o perigo representado pela possibilidade de “inoculação sub-reptícia de ideologias alheias à psicanálise, em geral, e à SPRJ, em particular” (Andrade, p. 196; grifo nosso).

No início de 1981, uma nova denúncia desestabilizou as Sociedades cariocas: a ex-presa política Inês Etienne Romeu acusou Amílcar Lobo de prestar serviços no centro clandestino de tortura e extermínio conhecido como “Casa da Morte”, localizado em Petrópolis. Lobo confessou ter atendido presos políticos - aplicou choque elétrico em Abigail Paranhos para curá-la de uma “paralisia histérica”, por exemplo -, mas “agindo sempre como médico” (Helena, 1981Helena, S. (1981, 8 de fevereiro). Psicanalista se diz vítima ‘da engrenagem’. Folha de S. Paulo.). Afirmou ter sido “peça de uma engrenagem”, alguém que cumpria ordens.

A declaração que mais constrangeu a comunidade institucionalizada de psicanalistas concernia precisamente à análise didática. “Amílcar Lobo afirma que seu trabalho na PE era conhecido por seu analista, já que representava enorme fonte de conflito”, anunciou o jornal (Helena, 1981Helena, S. (1981, 8 de fevereiro). Psicanalista se diz vítima ‘da engrenagem’. Folha de S. Paulo.). O didata em questão era Leão Cabernite, que ocupava o cargo de presidente da SPRJ quando emergiram as primeiras denúncias contra seu analisante. É importante enfatizar que, conforme os moldes da IPA, uma análise didática perfazia não só a função terapêutica esperada de um tratamento psíquico, mas também respondia às exigências institucionais de ensino técnico e avaliação dos candidatos a membro permanente, portanto, funcionando como um dispositivo formativo.

Entretanto, antes da controvérsia deflagrada no Brasil, a acusação do jornal Voz Operária já havia sido repercutida a nível internacional graças aos psicanalistas argentinos, alcançando até mesmo o então presidente da IPA. Quando Serge Lebovici enfim decidiu buscar esclarecimentos sobre a denúncia, rapidamente se formulou uma resposta coordenada por importantes figuras administrativas nas instâncias locais. Uma carta foi redigida em 1973 pelos dirigentes da SPRJ tendo como destinatário David Zimmerman, presidente do Conselho Coordenador das Organizações Psicanalíticas da América Latina - COPAL, que havia sido solicitado pela IPA.

Os burocratas em questão trataram as denúncias como nada mais que afirmações falsas cujo objetivo seria atacar a psicanálise e destruir suas instituições representantes. Lamentaram que o nome de um candidato tenha sido “torpemente utilizado para fins inteiramente alheios aos nossos propósitos clínicos e científicos” (Vianna, 1994Vianna, H. B. (1994). Não conte a ninguém… Contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Imago., p. 41; grifo nosso). Zimmerman e Lebovici, por sua vez, contentaram-se com a explicação fornecida e deram retorno de que usariam o testemunho de Cabernite para justificar aos demais analistas que Lobo havia sido caluniado. Percebe-se que em nenhum momento foi dado peso à efetiva existência de tortura contra presos políticos no Brasil, tornando-se da maior prioridade nacional e internacional garantir proteção ao dr. Lobo.

Tal modo de operar prosseguiu inclusive quando, a pedido do acusado, a Diretoria da SPRJ contratou um exame grafológico com a finalidade de identificar a caligrafia escrita no rodapé da revista Cuestionamos. Foi dessa maneira que Helena Besserman Vianna, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro - SBPRJ - a segunda instituição carioca filiada à IPA - teve seu anonimato rompido ao ser apontada publicamente como autora da denúncia. Sua motivação estaria assentada unicamente em “intentos políticos” fora da “ética médica, do espírito psicanalítico, da decência humana ou da normalidade mental”, segundo carta redigida pela SPRJ (Vianna, 1994Vianna, H. B. (1994). Não conte a ninguém… Contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Imago., p. 48). Em junho de 1975, Helena B. Vianna foi convocada para uma reunião com o Conselho da SBPRJ; nessa ocasião, descrita por ela como um “inquérito policial-psicanalítico”,

Um dos membros do Conselho (...), sentado diante de mim, revolvia, acintosamente (pelo menos eu assim o sentia), uma pasta grampeada, que tinha em seu frontispício linha verde-amarela e as conhecidas iniciais (pelo menos para mim) - DOPS. (...) Eu era acusada de denunciar um torturador... (Vianna, 1994Vianna, H. B. (1994). Não conte a ninguém… Contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Imago., p. 59)

Vianna (1994)Vianna, H. B. (1994). Não conte a ninguém… Contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Imago. contou ainda que uma das reprimendas então apresentadas se direcionou à “postura política conhecida e devidamente registrada no DOPS, desviando-me dos padrões éticos exigidos de ‘neutralidade’ no exercício profissional de nossa especialidade” (p. 60; grifo nosso). O testemunho de Vianna demonstra como o apelo a uma suposta “neutralidade política” comparecia enquanto ponto crucial na sustentação das estruturas institucionais que determinavam o modo dominante de pensar e fazer psicanálise no Brasil. Qualquer resistência às hierarquias de poder já estabelecidas na organização das Sociedades era tomada como uma ofensa à “verdadeira psicanálise”, desencadeando ameaças, punições e expulsões.

“Jamais fui político. Minha ideologia é a psicanálise”, declarou Leão Cabernite (“Cabernite se defende”, 1986Cabernite se defende. (1986, 16 de setembro). Jornal do Brasil, B8.) à imprensa no auge da crise da SPRJ nos anos 1980. Tanto a alegação de que seus ex-analisantes poderiam atestar sua neutralidade como analista quanto a afirmação de Lobo (“Amilcar Lobo novamente acusado de ser torturador”, 1981Amilcar Lobo novamente acusado de ser torturador. (1981, 5 de fevereiro). Folha de S.Paulo.) de que “não se pode querer fazer política dentro de uma instituição científica”, são instrutivas quanto aos interesses de classe atendidos pelo uso recorrente da noção de neutralidade durante a ditadura: manutenção do status quo que garantia altos ganhos econômicos àqueles que conseguiam finalizar uma formação ipeísta, em especial, aos didatas e dirigentes das Sociedades, pertencentes à pequena burguesia e à burguesia.

Considerações finais

Ao término da argumentação desenvolvida, espera-se ter condições para apontar o surgimento da noção de neutralidade analítica e as implicações políticas de seu uso. Percebe-se que, de início, sua emergência esteve atrelada a reflexões sobre o método analítico, despontando como uma recomendação técnica para o manejo transferencial na condução do tratamento. A dimensão política inerente ao uso dessa palavra, referente à organização institucional da psicanálise e à posição de classe de quem a exerce, permanecia preterida em prol de discussões sobre a contratransferência, exceto quando certas elaborações da psicologia do ego permitiam entrever uma ativa neutralização do que se chamava então de “mundo externo”.

Robert Castel (1978)Castel, R. (1978). O psicanalismo. Graal. apontou que a neutralidade analítica é apresentada apenas como uma condição técnica de possibilidade da transferência, mas funciona como um “para-brisas para não pensar a responsabilidade do psicanalista na sociedade” (p. 40). Portanto, a regra técnica da neutralidade estaria fundada em uma postura política de consenso com a ordem capitalista vigente, estabelecendo o apoliticismo como referência política da situação analítica.

Se o psicanalista é “neutro”, é antes de mais nada porque em geral ele é socialmente neutralizável ao menor esforço, naquilo em que não se destaca sobre o pano de fundo das atitudes socio-políticas dominantes em seu meio. Além disso, ele é tecnicamente neutralizado pelo papel que lhe cabe no quadro da convenção analítica. A partir deste fato, torna-se praticamente neutralizante, agente ativo de um processo de neutralização, ao invalidar, enquanto a trabalha analiticamente, a dimensão sócio-política do material. (Castel, 1978Castel, R. (1978). O psicanalismo. Graal., p. 45)

Castel busca localizar esse processo ativo de desconhecimento do sociopolítico nas condições intrínsecas de constituição da situação analítica, ou seja, no próprio tratamento tido como “intra-analítico” em contraposição aos “usos” sociais da psicanálise. Tais indicações advertem contra uma leitura simplista que trate a omissão das Sociedades diante do terror de Estado durante a ditadura como um caso isolado, desresponsabilizando os analistas de questionar premissas de neutralidade política erigidas desde o surgimento da psicanálise.

Victor Manoel de Andrade, presidente da SPRJ, repudiou “ideologias alheias à psicanálise” em plena ditadura, claramente aludindo à militância de esquerda dos membros recém-expulsos e favorecendo o anticomunismo na Sociedade. Por outro lado, Carmen Oliveira (2017)Oliveira, C. L. M. V. (2017). Sob o discurso da “neutralidade”: as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24(supl. 1), 79-90. Recuperado de <https://doi.org/10.1590/S0104-59702017000400006>.
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ressaltou que mesmo psicanalistas de esquerda, como Hélio Pellegrino, compartilhavam uma concepção generalizada de que a realidade social deveria ser colocada entre parênteses durante a escuta analítica; sua divergência principal em relação aos colegas de direita residia na luta política organizada fora do consultório.

Contudo, partindo das advertências de Castel, perguntamos: é possível pensar uma psicanálise que não carregue o apoliticismo como pressuposto na produção de saber e na intervenção clínica? Observando o cenário brasileiro, pode-se constatar uma série de iniciativas que não só recusam qualquer suposição de imparcialidade, como se articulam concretamente enquanto coletivos e movimentos sociais no espectro político da esquerda.

Um primeiro exemplo é o coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia, fundado em 2018 diante da ascensão da extrema-direita e do fascismo no Brasil, defende em sua Carta de Princípios (PUD, 2020) uma psicanálise “em permanente exercício crítico, voltada para problemáticas sociais e políticas, atenta às mais variadas formas de sofrimento psíquico, que entende o campo do inconsciente como transindividual e não coextensivo ao indivíduo isolado”. Os integrantes sustentam que a psicanálise não é neutra, demarcando assim um posicionamento contrário à opressão de grupos historicamente explorados, como negros, indígenas, mulheres e LGBTQI+.

Em seguida, é necessário citar como referência os coletivos que construíram as Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia, como o Margens Clínicas, os institutos Projetos Terapêuticos de São Paulo e Rio de Janeiro, além da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA. Também vale acompanhar o surgimento de múltiplas clínicas públicas de psicanálise em diversos Estados do Brasil: destacamos a experiência na Vila Itororó e no coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt, pioneiras na década de 2010, além do surgimento do PerifAnálise no bairro de São Mateus, localizado na periferia de São Paulo. Por fim, é notável a experiência histórica de psicanalistas em cargos de atenção e gestão nas instituições do SUS, inclusive participando na formulação de políticas públicas de Saúde Mental e militando junto a familiares e usuários na luta antimanicomial, o que gerou uma riquíssima produção bibliográfica singular a nosso país. São importantes exemplos de uma psicanálise implicada (Rosa, 2018Rosa, M. D. (2018). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento (2. ed.). Escuta.).

Um segundo questionamento: a noção de neutralidade ainda é interessante para orientar o manejo da transferência, propiciando uma escuta sensível ao sofrimento de cada analisante? Afinal, Ferenczi (1921/1988)Ferenczi, S. (1988). Prolongamentos da “técnica ativa” em psicanálise. In J. Birman (Org.), Escritos psicanalíticos 1909-1933. Taurus. (Trabalho original publicado em 1921). já alertou em sua época que nenhuma interpretação é verdadeiramente “passiva”, pois constitui em si uma intervenção direta na atividade psíquica do paciente, orientando seu pensamento em uma certa direção; tais apontamentos culminaram inclusive na concepção de uma metapsicologia do analista. Pode-se constatar também que os debates pós-freudianos sobre a contratransferência e as proposições de Lacan sobre o desejo do analista provêm de uma recusa à assunção imediata de uma suposta neutralidade no trabalho clínico. Portanto, há uma rica fundamentação teórica para alternativas que apostem, de partida, na implicação do psicanalista em seu fazer.

O presente artigo buscou apresentar considerações preliminares que enriqueçam os debates realizados na contemporaneidade acerca da neutralidade analítica. Somente a partir de uma articulação entre as duas dimensões elaboradas ao longo deste trabalho, clínica e política, podemos tratar a noção com a devida complexidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2022
  • Aceito
    01 Out 2023
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