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Ethos e produção de subjetividade no “Mundo dos depressivos”: uma análise institucional de discurso1 1 Este artigo foi baseado na tese de doutorado intitulada Contornos de subjetividades na web - a escritura de si em blogs: uma análise institucional do discurso, defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, tendo como orientadora Marlene Guirado.

Ethos and production of subjectivity in the “World of depressives”: an institutional discourse analysis

Ethos et production de subjectivité dans le “Monde des dépressifs”: une analyse institutionnelle du discours

Ethos y producción de subjetividad en el “Mundo de los depresivos”: un análisis institucional del discurso

Resumos

O presente artigo se debruça sobre o corpus encontrado no blog “Mundo dos depressivos”, em que seu criador apresenta um olhar sobre como é ser um indivíduo deprimido. O objetivo é o de delimitar os contornos de subjetividade que se produzem ali. Este trabalho foi construído a partir da perspectiva da Análise Institucional do Discurso. A estratégia de pensamento, motriz de todo trabalho, organiza-se em torno de conceitos como discurso, cena discursiva, efeitos de reconhecimento e desconhecimento e ethos. Por meio da construção de cenas de antagonismo entre o indivíduo com depressão e a sociedade, o enunciador do blog configura um ethos não como prostração ou abatimento, como se poderia esperar, mas como um lugar de potência e resistência.

Palavras-chave:
Depressão; blog; ethos; Análise Institucional de Discurso


This article focuses on the corpus found on the blog “World of Depressives”, in which its creator portrays the experience of being a depressed individual. The objective is to delimit the contours of subjectivity within the blog. This work was constructed from the perspective of Institutional Discourse Analysis. The thought strategy driving all work is organized around concepts such as discourse, discursive scene, effects of recognition and ignorance, and ethos. Through the construction of scenes of antagonism between the individual with depression and society, the blog’s enunciator shapes an ethos, not as prostration or despondency, as one might expect, but as a place of power and resistance.

Keywords
Depression; blog; ethos; Institutional Discourse Analysis


Cet article se concentre sur le corpus trouvé sur le blog “Monde des dépressifs, dans lequel son créateur présente un regard sur ce que c’est que d’être un individu dépressif. L’objectif est de délimiter les contours de la subjectivité qui s’y produisent. Ce travail a été construit dans la perspective de l’Analyse Institutionnel du Discours. La stratégie de pensée, moteur de tout travail, s’organise autour de concepts tels que discours, scène discursive, effets de reconnaissance et d’ignorance et d’ethos. Par la construction de scènes d’antagonisme entre l’individu dépressif et la société, l’énonciateur du blog configure un ethos, non comme prostration ou abattement, comme on pourrait s’y attendre, mais comme lieu de pouvoir et de résistance.

Mots-clés
Depression; blog; ethos; Analyse institutionnel du discours


Este artículo se centra en el corpus encontrado en el blog “Mundo dos depresivos”, donde su creador ofrece una mirada sobre cómo es ser un individuo deprimido. El objetivo es delimitar los contornos de subjetividad que se producen allí. Este trabajo fue construido desde la perspectiva del Análisis Institucional del Discurso. La estrategia de pensamiento, que impulsa todo el trabajo, se organiza en torno a conceptos como discurso, escena discursiva, efectos de reconocimiento e ignorancia, y ethos. A través de la construcción de escenas de antagonismo entre el individuo con depresión y la sociedad, el enunciador del blog configura un ethos, no como postración o disminución, como cabría esperar, sino como lugar de poder y resistencia.

Palabras clave:
Depresión; blog; ethos; Análisis Institucional del Discurso


Introdução

O presente artigo deriva de uma pesquisa de doutorado chamada Contornos de subjetividades na web - a escrita de si em blogs: uma análise institucional do discurso (Lima, 2016Lima, M. A. (2016). Contornos de subjetividades na web - a escritura de si em blogs: uma análise institucional do discurso. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.) e pretende pensar a produção de subjetividade nas mídias digitais a partir da análise de relatos presentes no blog “Mundo dos depressivos”.

A pesquisa de doutorado supracitada é fruto da inquietação e de certo estranhamento diante de discursos que passaram a ser produzidos com o advento de uma nova mídia, virtual e digital, qual seja, a internet. Esse meio de comunicação engendrava (aos nossos olhos) intrigantes modos de enunciar. Chamava-nos a atenção o recurso à palavra (mediada pelo computador e pela world wide web) com a finalidade de falar sobre si. Ao que tudo indica, a internet foi aos poucos se mostrando como um campo comunicacional que facultou amplamente a ação de discorrer sobre si mesmo, de fazer uma apresentação e uma exposição de si.

A partir dos pressupostos epistemológicos da Análise Institu-cional de Discurso, passamos a considerar essas mídias digitais como um campo de práticas discursivas que têm como efeito a produção de subjetividades. Paulatinamente despertou em nós o interesse de pensar como esses internautas se reconheciam ao escrever; que imagem de si construíam por meio desses suportes digitais; como constroem um “si” na relação com o outro (interlocutor); qual é o estatuto do destinatário dos enunciados assim produzidos.

Assim, intrigados com o fenômeno da exposição da intimidade realizada pelos usuários das redes sociais, debruçamo-nos sobre alguns blogs de caráter pessoal, buscando delinear a produção de subjetividades nesses meios. Dizendo de outra maneira, o alvo do trabalho foi operar uma análise que tivesse como foco os modos de enunciação e que esboçasse algumas imagens daqueles que faziam uma apresentação de si. Tratava-se de delinear os reconhecimentos que o escrevente de blog podia ter de si no próprio ato de enunciar (Lima, 2016Lima, M. A. (2016). Contornos de subjetividades na web - a escritura de si em blogs: uma análise institucional do discurso. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.).

Neste artigo, tomamos a decisão de fazer um recorte do trabalho e abordar a temática da depressão. Isto em função da importância e da atualidade do tema, o que nos impulsiona a querer desenvolver um tópico que não era central na pesquisa de doutorado. Inúmeros trabalhos apontam a depressão como uma das modalidades de sofrimento psíquico mais frequente nos dias de hoje (Fuks, 1999Fuks, M. P. (1999). Mal-estar na contemporaneidade e patologias decorrentes. Psicanálise e Universidade, 9-10, 63-78, jan.-jun. Recuperado em 10.07.2023 de: <https://sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletimonline/wp-content/uploads/2022/11/b63_mariofuks.pdf>;=
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; Pombo, 2011Pombo, M. F. (2011). A depressão na contemporaneidade: mídia e produção de uma subjetividade vulnerável. UFRJ/ECO.; Pinheiro, 2019Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro.). Além disso, a internet tem facilitado aos indivíduos não apenas uma apresentação de si, mas que falem também de diferentes formas de sofrimento, que construam narrativas autobiográficas nas quais contam suas experiências, entre outras, as com a depressão.

Traremos uma discussão que se apoia em uma das análises realizadas no trabalho de doutoramento supracitado. Procuraremos delinear a produção de subjetividade a partir do relato de um indivíduo que se apresenta a partir da categoria de “depressivo”. Assim, o foco deste estudo será o de configurar como, em suas enunciações, esse enunciador se reconhece, que lugares atribui a si; como reconhece seu(s) interlocutor(es); quais são os lugares atribuídos a este(s); quais as expectativas produzidas nesta relação; como reconhece as categorias “depressivo” e “depressão”.

Neste momento traremos alguns trabalhos correlatos ao nosso e, posteriormente, faremos considerações de ordens metodológicas e conceituais para que o leitor possa compreender os operadores que estão produzindo a análise em questão.

Escritas de si na internet e depressão: breve levantamento bibliográfico

Inúmeros trabalhos têm se dedicado, nos últimos anos, a pensar a utilização das mídias digitais como forma de produzir uma apresentação de si. Alguns deles aproximam a escrita digital (em especial, em blogs) à produção de um diário íntimo (Bogaert & Lejeune, 2003Bogaert, C., & Lejeune, P. (2003). Un journal à soi: histoire de une pratique. Les Éditions Textuel.; Schittine, 2004Schittine, D.(2004). Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Civilização Brasileira.). Sibilia (2015)Sibilia, P. (2015). Autenticidade e performance: a construção de si como personagem visível. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, 17(3), 353-364 setembro/dezembro. doi: 10.4013/fem.2015.173.09.
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, fazendo uma discussão a respeito das transformações na relação entre público e privado, dá ênfase à exposição e supervaloração do eu e ao esforço de “tornar-se visível para poder ser alguém”. Para Komesu (2005)Komesu, F. C. (2005). Entre o público e o privado: um jogo enunciativo na constituição do escrevente de blogs da internet. Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP. e Tavernari (2013)Tavernari, M. (2013). Blogs íntimos: gêneros emergentes no meio digital. Revista Fronteira - Estudos midiáticos, 15(1), 43-52, janeiro/abril. a escrita nos blogs teria como meta a busca do outro; seria fruto da necessidade narcísica de colocar-se como destaque e mostrar-se ao mundo.

Outros trabalhos vão abordar a relação entre a escrita de si e sofrimento, relação esta que pode se dar no âmbito da literatura (Furtado & Szapiro, 2018Furtado, M. A., & Szapiro, A. M. (2018). Escrita de si e interioridade: deslocamentos na relação com o sofrimento na contemporaneidade. Psicologia Clínica, 30(1), 15-36. https://doi.org/10.590/1980-5438300120180013.
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) ou das mídias digitais (Andrade, Santos & Vaz, 2014Andrade, P. H., Santos, A., & Vaz, P. (2014). Testemunho e subjetividade contemporânea: narrativas de vítimas de estupro e a construção social da inocência. Lumina - Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, 8(2).). Esses últimos propõem uma diferenciação entre “confissão” e “testemunho”, considerando que o que se produz na internet seria mais da ordem do testemunho. Se a confissão faz com que se atribua a si mesmo uma culpa, o testemunho colocaria a responsabilidade pelo sofrimento do indivíduo em algo exterior, como a sociedade. Tanto Baroni e Toneli (2012)Baroni, D. P. M., &; Toneli, M. J. F.(2012). Produção de si na depressão. Psicologia em Estudo, 17(1), 27-36, jan./mar. Recuperado em 01.07.23 de: <https://www.scielo.br/j/pe/a/Pqd5jgyx35WHjYzHggMhb8d/?lang=pt>
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, quanto Pinheiro (2019)Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro. vão produzir trabalhos em que a autocategorização como “depressivo(a)” por alguns indivíduos nas redes pode ser pensada como forma de construção de uma identidade. No momento de discussão de nossos resultados, retornaremos a esses estudos.

Discurso, ethos e cena: fundamentos da análise

O simples fato de chamar um trabalho de analítico não é suficiente para caracterizá-lo, pois existem diferentes tipos de análise e não há uma única maneira de realizá-las. As diferentes formas de análise vão depender dos conceitos básicos que as instrumentalizam. Esses pressupostos vão dar o “recorte e o âmbito da análise que se faz; e (...) guardam uma relação constitutiva com o ponto a que se chega com o trabalho analítico” (Guirado, 2019Guirado, M. (2019). Entre Discurso e Ato, há muito mais do que se imagina. Psicologia USP, 30. Recuperado em 10.03.2023 de: <https://doi.org/10.1590/0103-6564e190027>.
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, p. 1).

Este trabalho foi produzido a partir da perspectiva da Análise Institucional de Discurso (AID). A estratégia de pensamento que caracteriza esse método se organiza em torno de conceitos como o de discurso. Trabalhar com esse termo (o qual faz parte de uma tradição foucaultiana) implica pensar o discurso não como um conjunto de representações de uma realidade que lhe é exterior, mas tomar o discurso como ato, como acontecimento. Isto significa evidenciar as condições de possibilidade da enunciação, significa pensar a enunciação “como algo que acontece numa íntima relação com o contexto” (Guirado, 2000Guirado, M. (2000). A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo., p. 11; itálico nosso). Dizendo de outra maneira, implica considerar o discurso um conjunto de relações que funda a atividade enunciativa. Nessa perspectiva, falar não seria um ato individual livre de coerções, “terreno da liberdade”, expressão do pensamento de um indivíduo que usa a linguagem como ferramenta, mas sim como a “mobilização de um conjunto de regras que o sujeito não domina” (Maingueneau, 2000Maingueneau, D. (2000). Aula. Sobre o discurso e a análise de discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo., p. 21). Assim, produzir uma análise a partir deste ponto de vista significa tomar o discurso em sua dimensão institucional, ou ainda, considerar o discurso como instituição.

Uma consequência dessa perspectiva discursiva e pragmática é a noção de que ao enunciar, o indivíduo está não apenas dizendo, mas está, ao mesmo tempo, mostrando que está dizendo algo. Isto significa dizer que a linguagem é essencialmente reflexiva (Maingueneau, 2000Maingueneau, D. (2000). Aula. Sobre o discurso e a análise de discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo.). Ao dizer: “Você esteve aqui ontem?” mostra-se que o que se enuncia é uma pergunta e que o tempo verbal corresponde ao passado, ou seja, que o momento ao qual se refere o enunciado é anterior ao momento da enunciação. Assim, “(...) cada enunciado tem uma referência ao fato mesmo da própria enunciação” (Maingueneau, 2000Maingueneau, D. (2000). Aula. Sobre o discurso e a análise de discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo., p. 28).

Uma análise que dá destaque à reflexividade do discurso é uma análise que enfatiza o dizer ao invés do dito. Desta forma, terá necessariamente um caráter descritivo, pois trata-se de ressaltar o que se mostra enquanto se diz: “que tipo de interlocução se cria, que posição se legitima na asserção feita, que posição se atribui ao interlocutor, o jogo de expectativas criado na situação, como se respondem ou se subvertem tais expectativas, e assim por diante” (Guirado, 2000Guirado, M. (2000). A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo., p. 34). É também uma análise que permite configurar, quando o indivíduo enuncia, o que ele reconhece como verdadeiro e necessário, ao mesmo tempo em que desconhece o caráter relativo daquilo que toma como inquestionável; ou seja, é uma análise que permite delimitar efeitos de reconhecimento e desconhecimento (Guirado, 2004Guirado, M. (2004). Instituições e Relações Afetivas: o vínculo com o abandono. (Ed. revista e ampliada). Casa do Psicólogo.; 2010Guirado, M. (2010). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. Annablume.; 2018Guirado, M. (2018). Análise do Discurso e Psicanálise: matrizes institucionais do sujeito psíquico. Appris.).

Outro tema que coloca esta análise no âmbito da pragmática é o que Maingueneau (2000)Maingueneau, D. (2000). Aula. Sobre o discurso e a análise de discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo. chama de “subversão da oposição entre texto e contexto” (p. 30). Com isso o autor procura abdicar da ideia de que o contexto seria algo que está “ao redor”, que está fora do texto. O contexto está no texto; o contexto se produz (e se mostra) na própria enunciação. Isto porque o contexto também está na “cabeça” daqueles que falam. Cada um dos parceiros de comunicação define, por meio de sua própria enunciação, o contexto no qual está falando. Esses parceiros cooperam ou se antagonizam para definir o contexto (Maingueneau, 2000Maingueneau, D. (2000). Aula. Sobre o discurso e a análise de discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. Casa do Psicólogo.).

Pode-se dizer que outro elemento que vai compor esse contexto é aquilo que se convencionou chamar de ethos. Toda enunciação, ao se fazer, supõe determinada imagem de seu interlocutor. Da mesma maneira, ela também implica uma imagem daquele que fala. Produzem-se nesses jogos de expectativas, efeitos de reconhecimento (e desconhecimento). Aquele que fala, além de atribuir certos lugares ao outro, reconhece a si mesmo de determinada maneira e não de outra. O enunciador ao mesmo tempo que produz uma fala, mostra como se vê, qual imagem está construindo de si próprio. Assim, ele faz inevitavelmente uma apresentação de si. Por meio de seu modo de enunciar e da apresentação de si, o enunciador faculta ao interlocutor construir uma representação daquele que lhe fala, ou seja, permite configurar um ethos (Maingueneau, 1995Maingueneau, D. (1995). Conferência. Discurso, corpo e voz: o ethos como vetor de análise. IP/CAC - Escolar Universidade de São Paulo.; 2013Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação (6ª ed. ampl.). Cortez.; 2020Maingueneau, D. (2020). Variações sobre o ethos. Parábola.).

A noção de ethos implica pensar a construção de certa “aparência”, certa “voz”, um “jeito de ser” do sujeito falante. Com isto, esta imagem de si funcionaria também como a fiadora, o “lastro”, a fonte garantidora do discurso. (Maingueneau, 1995Maingueneau, D. (1995). Conferência. Discurso, corpo e voz: o ethos como vetor de análise. IP/CAC - Escolar Universidade de São Paulo.; 2013Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação (6ª ed. ampl.). Cortez.).

Um aspecto que Maingueneau apresenta ao trabalhar a noção de ethos é o de pensar essas noções não apenas nos enunciados orais. Mesmo um texto escrito apresenta um tom que dá autoridade ao que é dito. Esse tom contribui para que o leitor atribua ao enunciador um caráter e uma corporalidade. O primeiro diz respeito a um conjunto de traços psicológicos e, o segundo, corresponde a determinada “constituição física”, a uma maneira de se vestir e de movimentar no espaço social. Segundo Maingueneau (2013)Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação (6ª ed. ampl.). Cortez., tanto o caráter quanto a corporalidade para serem construídos baseiam-se em um conjunto de representações sociais valorizados ou desvalorizados, em uma gama de estereótipos culturais que circulam em domínios múltiplos como literatura, televisão, cinema, fotos, publicidade, mídias digitais.

A noção de ethos permite refletir a respeito da adesão dos sujeitos ao universo de sentidos configurado pela enunciação. A capacidade de adesão e de persuasão de um discurso está relacionada ao fato de esse discurso levar o indivíduo a se identificar com um modo de se colocar no mundo, com o “movimento de um corpo” investido de um conjunto de representações e valores sociais. “(...) as ‘ideias’ suscitam a adesão do leitor por que a maneira de dizer implica uma maneira de ser” (Maingueneau, 2020Maingueneau, D. (2020). Variações sobre o ethos. Parábola., p. 14; itálico do autor). Esses efeitos do ethos sobre o interlocutor, sobre o leitor, Maingueneau (1995Maingueneau, D. (1995). Conferência. Discurso, corpo e voz: o ethos como vetor de análise. IP/CAC - Escolar Universidade de São Paulo.; 2013Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação (6ª ed. ampl.). Cortez.; 2020Maingueneau, D. (2020). Variações sobre o ethos. Parábola.) chama de incorporação.

Por fim, vale dizer que o que se propõe aqui como análise é o exercício de configurar o contexto e o ethos a partir do corpus do blog. Isto, em alguma medida equivale a desenhar a “cena discursiva”, ou seja, configurar como se vê aquele que fala (os lugares assumidos), como representa seu(s) interlocutor(es) (os lugares atribuídos) e as expectativas daí decorrentes. Como diria Guirado (2019)Guirado, M. (2019). Entre Discurso e Ato, há muito mais do que se imagina. Psicologia USP, 30. Recuperado em 10.03.2023 de: <https://doi.org/10.1590/0103-6564e190027>.
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, são os conceitos de contexto, ethos e cena, potentes vetores analíticos que “permitem dizer das ações e sentidos do discurso-ato” (p. 2). Tais noções contribuem para poder pensar, como anunciamos, a subjetividade no discurso.

Análise do blog “Mundo dos depressivos”

A análise que realizamos aqui pode ser entendida como um processo de “desconstrução” da enunciação do escrevente do blog. Isto significa dizer que, instruídos pela malha conceitual acima apresentada, buscamos evidenciar o modo como o discurso se organiza. Em outras palavras, operou-se um trabalho que visou apontar os “pontos de ruptura” do discurso, ou seja, destacar os índices de heterogeneidade discursiva (as negações, as pressuposições, o discurso direto, o discurso indireto, o discurso indireto livre, as ironias, entre outros) a fim de com isto estabelecer as cenas, o ethos e os efeitos de reconhecimento e desconhecimento.

Após este trabalho, o qual poderíamos metaforicamente chamar de um processo de “desmontagem” das escrituras do blog, realizamos uma reorganização e uma “reconstrução” do material do blog a partir dos temas que a análise permitiu configurar. A apresentação do blog está estruturada a partir dessas temáticas. A análise está dividida em subitens e o título dos subitens expressa o tema ou mesmo uma espécie de “conclusão” que pudemos produzir a partir da “desconstrução” do material do blog.

A construção de si como uma “categoria”: o “eu-deprimidos”

Comecemos a análise por uma pequena apresentação que o enunciador faz.

Me chamem de “Superman”, porque preciso ter a resistência de um super-herói para resistir ao cotidiano da minha vida e também para continuar a manter minha própria existência.

Superman é o meu super-herói favorito.

Também sou alguém que possue (sic) sentimentos, sentimentos variados, mudo de humor constantemente. (itálico nosso)

Pode-se perceber que o enunciador, ao falar, constrói um interlocutor plural, ou melhor, um conjunto de interlocutores, os quais poderiam ser representados pelo pronome “vocês”. Esse grupo de interlocutores, interpelados diretamente, é suposto como pessoas que eventualmente vão chamá-lo, que vão se dirigir a ele. É como se já houvesse de saída uma convicção de interlocução. O blog permite que “Superman” reconheça-se como alguém que tem leitores que vão conduzir-se a ele.

O enunciador não se apresenta pelo nome próprio, mas por uma “identidade secreta”. “Superman” é uma alcunha que ajuda a compor o ethos do enunciador. Mais especificamente, essa alcunha corresponde ao que Maingueneau (2005)Maingueneau, D. (2005). Ethos, cenografia, incorporação. In R. Amossy, Imagens de si no discurso: a construção do Ethos. Contexto. chamaria de “ethos dito” (em oposição ao “ethos mostrado”). O apelido faz com o que o leitor recorra à sua competência enciclopédica e comece a construir uma imagem do enunciador associando a ele certas características do personagem Superman, tal como (provavelmente) força. Isto parece estar relacionado ao fato de o enunciador trazer a ideia de que é necessário ser “mais do que humano” para poder dar conta de sua existência.

Passemos para a página de apresentação do blog.

Figura 1
Página inicial do blog Mundo dos Depressivos

A construção do layout inicial do blog conjuga texto e imagem. Ao que tudo indica, ambos são solidários na construção de determinado ethos. Esses elementos exercem uma relação de cumplicidade e complementaridade, pois o texto faz a imagem ser pensada como uma representação possível do mundo dos depressivos e a imagem, por sua vez, agrega uma “dimensão afetiva” ao texto e ao blog.

O fundo do blog é preenchido por uma imagem do espaço sideral repleto de estrelas, o que confere uma tonalidade escura para a página. De forma geral é feito um uso de cores de pouco contraste e a imagem, em seu conjunto, ganha um aspecto quase monocromática.

A imagem central apresenta uma visão da superfície de um ambiente coberto por neve e com algumas árvores. Além disto, não é possível identificar pessoas ou qualquer referência humana (como um prédio, um carro, dentre outros). Diante dessa imagem o leitor não encontra “parceiros” humanos. O texto pode fazer com que o leitor acabe por buscar na imagem elementos socialmente associados à depressão, como a impressão de um ambiente frio e a ideia de solidão.

A imagem abrange também uma perspectiva do céu, o qual mostra planetas em sobreposição, alinhados, mundos diferentes, o que parece estar em sintonia com o próprio título do blog: Mundo dos depressivos. A imagem confere certa “personalidade” ao blog e ao mesmo tempo o blog apresenta uma representação possível da depressão, ou, mais precisamente, do mundo dos depressivos.

O ethos construído por meio dessa somatória de elementos apresenta (coloca ao alcance, expõe) para o conjunto de leitores potenciais, uma “realidade” específica em um universo de sentidos, ideias ou estereótipos associados à depressão, funcionando quase como um “convite à interlocução” para aqueles que venham a se identificar.

O modo como o enunciador faz uso da linguagem (lançando mão inclusive de elementos intersemióticos, tais como figuras, texto, cores) constrói uma imagem que permite a um interlocutor eventual aproximar-se e até “ocupar” a mesma posição do enunciador. É facultado ao leitor reconhecer-se por meio desta ou daquela característica da imagem construída, não exatamente do enunciador, mas de um “lugar depressivo”. Podemos perceber, portanto, a produção de subjetividade por meio (ou concomitantemente) ao engendramento e acionamento de um ethos.

Detenhamo-nos no “subtítulo” do blog.

JULGAR UM(A) DEPRIMIDO(A) É COMO ATIRAR PEDRAS EM UM CÃO SARNENTO, PORQUE É MAIS FÁCIL PARA MUITOS “SACRIFICÁ-LO” DO QUE DAR ATENÇÃO, RESPEITO, CARINHO E AMOR. (itálico nosso)

A palavra “deprimido”, embora encontre-se hoje completamente inserida nos usos verbais cotidianos, pode ser pensada como um termo que tem origem em campos específicos do conhecimento como a medicina, a psicologia, a psiquiatria. No trecho, assim como em todo o blog, o termo aparece menos com uma função diagnóstica e sim como um modo possível de ser, de dizer de si. Um modo de dizer de si com as palavras do “diagnóstico”.

Vale notar que o uso do artigo indefinido confere ao termo um caráter genérico. “Um deprimido”, não se refere a um indivíduo específico, mas a uma classe. Desta maneira, aquilo que é dito aqui não se estende apenas ao enunciador (que por suposição integra o grupo), mas ao conjunto de pessoas classificáveis como tal.

Essa categoria, a “dos deprimidos”, já surge sob a mira das pedras e do julgamento de muitos. Aparentemente, a cena é caracterizada por uma espécie de antagonismo entre duas instâncias:

• uma que julga, agride e considera o “deprimido” um “cão sarnento” ao qual cabe apenas sacrifício, que joga pedras ao invés de carinho;

• outra que é vítima das pedradas, do julgamento e que não recebe a atenção e o respeito que, aos olhos do enunciador, mereceria.

A cena em relação a qual o interlocutor é levado a presenciar e a testemunhar, é aquela de uma situação de injustiça produzida pelo “muitos” contra o deprimido.

Continuaremos nossa análise a partir de um trecho da autoapresentação do escrevente.

Dias sombrios de uma mente atormentada, atormentada pelo silencio (sic) da ignorância e pelos gritos da estupidez social, mentes que não entendem e não sabem compreender o sofrimento alheio, usam o julgamento falacioso como única arma para combater esse mal que já é considerado a doença do século, a depressão.

No extrato, aparece uma caracterização dos dias, a qual é construída menos por descrição de fatos concretos e mais por uma “impressão subjetiva”. O interlocutor é colocado em contato com uma dimensão temporal. Aquilo que é vivido tem uma duração, permanece por dias. Além disso, tem a qualidade de ser sombrio. O tom pesaroso confere dramaticidade à cena. O interlocutor é colocado em contato com uma dimensão de vivências subjetivas.

É importante notar que os “dias sombrios” estão relacionados a uma “mente atormentada”. Essa indeterminação causada pelo pronome não permite que se atribua essas vivências exclusivamente ao enunciador. Trata-se de algo que diz respeito a uma espécie de categoria que pode abarcar o enunciador, mas também a todo o grupo de pessoas deprimidas. Aparentemente o enunciador não fala só em nome de si. Ele não fala em nome de seu “eu”, ele fala em nome de muitos outros “eus”. É como se ao enunciar dessa maneira, “Superman” construísse um “si” que é “múltiplo”, um “eu” como categoria, um “eu-depressivos”. Apresenta-se um sujeito que pode ser todos, mas não é ninguém ao mesmo tempo, pois se constrói uma imagem que se presta a dizer de todos os depressivos, mas não permite identificar nenhum, nem mesmo, o próprio enunciador.

A potência do dizer: as palavras usadas como armas

Neste subitem gostaríamos de pensar as atribuições de lugares feitas pelo enunciador aos depressivos, à sociedade, ao leitor do blog e a si mesmo. Vamos retomar abaixo o texto de abertura do blog.

JULGAR UM(A) DEPRIMIDO(A) É COMO ATIRAR PEDRAS EM UM CÃO SARNENTO, PORQUE É MAIS FÁCIL PARA MUITOS “SACRIFICÁ-LO”, DO QUE DAR ATENÇÃO, RESPEITO, CARINHO E AMOR.

O estatuto pragmático do extrato é curioso. Apesar de colocado como um subtítulo na página inicial do blog, ele não exerce a função de complementar o título e descrever o assunto a ser tratado. Configura-se, na verdade, como uma espécie de aforismo, de “ensinamento” que revela como são e o que fazem os “muitos”. Talvez não seja ousado dizer que o trecho sutilmente se coloca como revelando o caráter questionável desse grupo constituído pelos “muitos”. Assim, o trecho parece configurar-se como uma sentença que traz uma denúncia e também uma crítica, um juízo. O enunciador, na medida em que acusa, também coloca-se em posição de quem pode julgar a ação de “muitos”.

É importante também dar destaque ao uso de metáforas (“[...] atirar pedras em cão sarnento [...]” e “[...] sacrificá-lo [...]”) conferem certa agressividade ao texto. O aspecto gráfico do extrato (ser escrito com letras maiúsculas) parece reforçar este efeito.

Quase não existe a compreensão amiga, quase não existe a amizade verdadeira, isso está se perdendo devido a rotina e a correria da sociedade, isso é o resultado desse mundo globalizado, um mundo em que prevalece a lei da selva.

Muitos criam seus próprios mundos para tentar fugir dessa rotina chata, sem graça e solitária com que passa milhões de mentes atormentadas em busca de paz e compreensão, mas até nisso a sociedade é cruel, nos taxam de loucos, preguiçosos e tatuam permanentemente um código de barras em nossas testas para que outras pessoas vejam e possam nos identificar com maior facilidade e assim vai se juntando mais e mais gente até que a multidão já formada grite palavras que nos incentive ainda mais a desistir de nossas vida; é como se estivéssemos à beira de um precipício e alguém simplesmente nos empurrasse para o buraco do silêncio eterno. (grifo nosso)

Mais uma vez emerge a denúncia, agora evidenciando a correria e a crueldade da sociedade, os resultados do mundo globalizado, um mundo em que prevalece a lei da selva. No segundo extrato, “Superman” se põe representante dos milhões de mentes atormentadas, em nome de quem toma a palavra. O uso do pronome “nos” mostra que ele se inclui como um dos membros desse conjunto.

Os extratos permitem caracterizar as instâncias em antagonismo. De um lado, haveria o grupo formado pelos muitos atormentados em busca de paz que são sujeitos aos maus-tratos e a arbitrariedade da sociedade. São incompreendidos, não têm paz, são taxados de loucos, são rotulados para serem identificados mais facilmente e até estimulados a desistir da vida. Na escritura do enunciador, o lugar em que os deprimidos surgem é o de vítimas e de pacientes em relação às crueldades dos agressores. Por outro lado, as palavras de “Superman” constroem um lugar de agressor, representado pela sociedade, um personagem indeterminado (não há como identificar quem sejam essas pessoas “cruéis”), mas que é ativo, pois age de diferentes maneiras para atacar as mentes em busca de paz. Para falar desses personagens “Superman” constrói oposições: agressor/agredido, agente/paciente, opressor/vítima.

No entanto, não podemos deixar de apontar que ao construir a cena dessa maneira, “Superman” se coloca em um lugar ativo, uma posição de quem sabe das coisas e pode denunciar. Uma denúncia que desqualifica o “opressor” na medida em que revela suas ações condenáveis.

Eu culpo mais o sistema do que as pessoas, apesar de as pessoas contribuírem abundantemente com esse sistema podre e ineficaz, onde o poder do dinheiro prevalece, o egocentrismo, a hipocrisia, o egoísmo e a inveja nos fazem ficar mais fracos de espírito e nos consomem feito um câncer em sua fase terminal.

Agora “Superman” já se atribui um lugar de importância. O daquele que pode julgar e dizer quem é o culpado por tal estado de coisas. O enunciador constrói “vilões”. Essa atribuição desliza sutilmente de uma personagem para outro: o sistema, as pessoas, o poder do dinheiro, o egocentrismo... Tais agentes são inespecíficos, genéricos e não identificáveis. Eles exercem a ação de prejudicar determinado grupo de pessoas no qual o enunciador se insere: o “nós”.

Esse grupo também guarda razoável grau de indeterminação, pois não é possível saber de quem se trata, a não ser pelo enunciador. “Superman”, no entanto, se põe representante desse grupo de pessoas que têm sua fraqueza potencializada pela ação dos já referidos vilões. “Superman” é o porta-voz do grupo e exerce a função de escancarar essa situação de injustiça para todos os leitores do blog.

O enunciado é construído por meio de imagens que causam certo impacto: “sistema podre e ineficaz”, “nos consomem feito um câncer em sua fase terminal”. Tal aspecto confere um teor de dramaticidade ao texto. São expressões carregadas de agressividade, como se visassem atingir e ferir determinado oponente. Palavras usadas como denúncia e arma.

O elogio da depressão

Um dos aspectos que pudemos delinear a respeito da escrita de “Superman” foi o lugar atribuído a si e também à própria condição depressiva, tomada por vezes como uma forma de diferenciação. Acompanhemos.

Um pouco de mim.

Sou um ser humano da espécie Homo Sapiens, uma pessoa comum, um pensador liberto e ateu, mas não sou igual a ninguém, minha impressão digital, arcada dentária, íris, saliva e sinais(tenho um sinal em forma de barata nas costas) provam isso. (itálico do autor)

O título que aparece aqui (“Um pouco sobre mim”) sugere um texto com um caráter autodescritivo e com um tom despretensioso (“falar um pouco e não tudo sobre si”).

Embora se apresente como pertencente a um mesmo grupo que todos indivíduos, o enunciador apresenta-se como diferente. Ele traz elementos de diferenciação, aspectos que são tidos socialmente (e cientificamente) como marcas físicas da singularidade de um indivíduo. Desta forma, essa qualidade estende-se ao próprio enunciador, ele é único. Até mesmo aquilo que ele tem nas costas em forma de barata é um “sinal” de sua distinção em relação aos outros seres humanos.

As diferenciações não físicas aparecem por meio de oposições implícitas. O enunciador também se distingue daqueles que são não libertos (pensadores) e não ateus, sugerindo inclusive, pela justaposição, uma ligação entre estas duas características.

O enunciador apresenta-se por meio de um jogo de inclusão/exclusão. Por meio de uma categoria taxonômica (espécie) insere-se em grupo, o dos seres humanos, e logo retira-se por meio de marcas que atestam (quase que biológica e “juridicamente” - se pensarmos nas digitais) sua distinção. Produz-se dois conjuntos de pessoas, o que ele se insere e é composto por um único elemento e o formado por todos os representantes da espécie.

Dias sombrios de uma mente atormentada, atormentada pelo silêncio da ignorância e pelos gritos da estupidez social, mentes que não entendem e não sabem compreender o sofrimento alheio; usam o julgamento falacioso como única arma para combater esse mal que já é considerado a doença do século, a depressão.

A cena é marcada pelo antagonismo entre duas “instâncias”: uma “mente” versus muitas “mentes”. O grupo constituído pelas “mentes” é caracterizado como aquele que julga, que não entende e que usam armas contra as pessoas deprimidas. Novamente aparece um modo de enunciar que é uma espécie de denúncia. A descrição da ação do “agressor” é feita por meio de metáforas que envolvem sensorialidade (“silêncio, gritos”). No entanto, o ato concreto, a ação retratada como injusta não é apresentada, ficando a cargo do interlocutor supô-la.

Vale notar o modo como o enunciador escreve sobre a depressão no trecho “(...) como única arma para combater esse mal que já é considerado a doença do século (...)” (grifos nossos). O uso da voz passiva (“considerado”) tem como efeito retirar do enunciador a responsabilidade pelo que se diz e conferir legitimidade ao enunciado, pois lhe atribui o valor de algo já estabelecido. Trata-se de uma polifonia (a voz que se faz ouvir não é propriamente a do enunciador) que permite conferir um estatuto de verdade a um enunciado que, embora designe a depressão como patologia, lhe dá um lugar de importância: não é qualquer doença, é a doença do século.

Algumas pessoas têm a sorte de ter alguém ou mais que um alguém que tentam e até conseguem tirar aquele que sofre da rotina costumeira, mas acredito eu que raridades como essa são difíceis de ocorrer, também não tenho a certeza absoluta se alguém consegue ajudar um deprimido(a) a sair do casulo em que este está envolvido, fruto deixado pela maioria da sociedade, é comum entre nós depressivos termos recaídas, mas até o amigo(a) que está convivendo há muitos anos com você caro leitor, é difícil para ele entender. (itálico nosso)

O “deprimido” aparece nas palavras de “Superman” como alguém que sofre e novamente em uma posição passiva, impossibilitado de reação, envolvido pelo casulo deixado pela sociedade. Denuncia-se uma ação de quase anulação da sociedade sobre o deprimido.

No entanto, vale atentar para o lugar que “Superman” atribui a si mesmo ao fazer tais afirmações. Aquele que faz uma denúncia coloca-se no lugar de quem sabe de algo que não é de conhecimento de outras pessoas. Ao mesmo tempo, podemos ver pelo trecho em itálico que o enunciador interpela diretamente o leitor do blog, transmitindo-lhe um ensinamento, uma advertência, portanto, mostrando-se portador de um saber.

Além disso, a ação renitente de “Superman” em mostrar o deprimido no “casulo”, no lugar de vítima, de incompreendido e impossibilitado de movimento, acaba sendo uma forma de resistir ou de anular a ação do opressor sobre ele.

Assim, ao contrário do que poderia parecer em um primeiro momento, o lugar de “Superman” está longe de ser um lugar de passividade ou de alguém imobilizado, anulado. Seu lugar é o de alguém ativo, que pode denunciar, explicar coisas ao leitor, atribuir à sociedade a responsabilidade pelo sofrimento dos depressivos, resistir e anular a ação maléfica dos “muitos”. O blog e, principalmente, o modo como toma a palavra, permitem que “Superman” ocupe um lugar de força.

É importante direcionarmos nosso olhar para o lugar atribuído ao interlocutor do blog. O trecho grifado também permite asseverar que a ele é dado o estatuto de “leitor”, de depressivo, de alguém na mesma situação de suposta opressão por parte dos “muitos” e que agora está sendo esclarecido por “Superman” a respeito de sua condição.

“Superman” vai ensinando ou revelando para o interlocutor como é a sociedade, as injustiças impostas ao deprimido, as mazelas da condição depressiva, “desvendando” como o mundo é, e como trata os depressivos. A fala do enunciador para o leitor assume um caráter de conclamação, quase um chamamento para uma causa. Autorizando-nos a licença de fazer alusão a uma obra clássica, poderíamos dizer que o blog fica próximo de assumir a conotação de um “manifesto depressivo”.

Vejamos um próximo extrato:

A amizade hoje em dia é muito difícil de preservar, temos que dar algo em troca antes de obtê-la...

Por exemplo: dando alguma coisa ou ainda mostrando que você tem algum valor para oferecer a esse ser, senão você não se encaixa, é como uma peça defeituosa, não presta mais, então é jogado fora.

É triste, mas a realidade é essa (pelo menos para mim).

O extrato denuncia o grau de vilania (ou “crueldade”) dos opositores. Com isso, o interlocutor também pode ser incluído nesse lugar de quem é descartado como uma peça defeituosa. O leitor está sendo, novamente, instruído sobre o que fazem com ele.

O trecho “É triste” pode ser entendido como uma espécie de polifonia, é como se o escrevente concordasse com uma opinião do interlocutor e reafirmasse que é assim que as coisas são (“é triste mesmo, mas é assim”).

“Superman” se coloca aqui no lugar de alguém que consegue apreender uma verdade, ou melhor, ele pode saber como é a realidade. Com isso, esclarece o leitor a respeito de um fato que ele pode eventualmente não conhecer. Novamente, este entendimento de “Superman” está associado à sua condição de depressivo.

A felicidade é para poucos

A vida para alguns pode ser repleta de privilégios, repleta de oportunidades e alegrias, isso os tornam felizes e dignos de serem respeitados pela sociedade. Mas e para aqueles que não “conseguem” viver a vida como normalmente ela é vivida?

Para esses a vida é implacável e cruel, ela nos ensina a duras penas de que se não lutarmos por nossos sonhos sozinhos, não agirmos como querem a sociedade, com certeza iremos desaparecer, cairemos no ostracismo e na ignorância daqueles que nos julgam, que tentam nos converter à crença deles achando que esse é o único caminho, que dão concelhos (sic) arrogantes, que nos perturbam com liçõezinhas de moral, e bate papo furado.

O primeiro extrato inicia-se fazendo uma caracterização de um grupo de pessoas que possuem uma série de vantagens em relação a outro conjunto. Tal diferença não é reconhecida como fruto da ação própria desses indivíduos, ou seja, não advém de um mérito. São os privilégios que as tornam felizes e dignas de serem respeitadas. Trata-se de sorte ou de benefícios que não atingem a todos. Configura-se, portanto, uma situação de desigualdade.

Existiria, portanto, o grupo daqueles que são privilegiados e o grupo das pessoas representadas agora por “Superman”. Para esses é necessário lutar sozinhos frente ao risco do ostracismo e da ignorância do outro. Além disso, “Superman” desqualifica o opositor (“[...] dão concelhos (sic) arrogantes, que nos perturbam com liçõezinhas de moral” [...]”) e faz uma valorização do grupo dos depressivos. Essa valorização se dá até mesmo pelo fato de serem desprestigiados. Precisam superar uma situação de desigualdade. São lutadores.

Como “Superman” faz parte desse grupo que precisa lutar, talvez se possa dizer que a escritura do blog se insira nesse movimento de combate, enfrentamento, resistência. Pode-se dizer que o escrevente se faz um guerreiro por meio de suas palavras.

A felicidade é pra poucos, eu vejo as outras pessoas felizes e morro de inveja, sei que eles não são felizes todo tempo, estou ciente disso, mas eu não consigo me conter. (itálico nosso)

A felicidade é algo que está ligado aos outros e não a “Superman”. O sentimento de felicidade é um dos elementos que diferencia o escrevente das outras pessoas. Vimos até agora que “Superman” faz uma distinção e valorização simultânea da figura do deprimido e que a depressão surge como uma condição que permite a percepção da realidade, o exercício de uma função crítica e da denúncia. Considerando tais aspectos, autorizamo-nos a dizer que se a felicidade é para poucos, a depressão (entendida como essa condição distintiva e potencializadora do entendimento do indivíduo) também é.

Muita gente quando me olham vêem alguém que não possui nada, me olham com aquela ironia que todo depressivo percebe na hora, é como se eles me dissessem que eu deveria me envergonhar por eu ser assim e que eu deveria olhar para a situação das outras pessoas para eu me sentir bem. É horrível isso, eu realmente estou cansado de tudo.

O enunciador constrói uma cena em que é observado, é alvo de olhares depreciadores e que carregam mensagens e assim a cena de antagonismo se instaura novamente. Fazer parte do grupo (e do mundo) dos depressivos não é algo de que o escrevente sente vergonha, como atesta o uso do futuro do pretérito (“deveria”). Considerando os escritos anteriores de “Superman”, diríamos que o sentimento em relação a esta condição (embora sofrida) está mais próximo de uma espécie de orgulho. Fazer parte desse grupo é o que faculta ao escrevente ter uma apreensão da realidade do mundo, exercer uma função crítica, denunciar vilões, ensinar e esclarecer seus pares, mostrar-se forte e capaz de, por meio de suas palavras, anular a ação de seus opositores. Assim, ao invés de qualquer depreciação de sua condição, o que “Superman” faz é um elogio da depressão.

Considerações finais

Um dos pontos que se destaca na análise é a construção de um “si” a partir de uma categoria diagnóstica. Esta ocupa um lugar de elemento identitário, ou seja, é por meio dela que o escrevente do blog parece reconhecer-se. Nesse ponto, a análise produzida está alinhada com a pesquisa de Baroni e Toneli (2012)Baroni, D. P. M., &; Toneli, M. J. F.(2012). Produção de si na depressão. Psicologia em Estudo, 17(1), 27-36, jan./mar. Recuperado em 01.07.23 de: <https://www.scielo.br/j/pe/a/Pqd5jgyx35WHjYzHggMhb8d/?lang=pt>
https://www.scielo.br/j/pe/a/Pqd5jgyx35W...
. Em seu trabalho com fóruns e enquetes de comunidades virtuais do Orkut, destacam um exercício de produção de si em referência ao diagnóstico de depressão. As autoras apontaram um imperativo do indivíduo de saber sobre a verdade de sua doença (que se dava por meio de uma investigação sobre as sensações pessoais, com a ajuda dos outros participantes dos fóruns), o que somado às exigências dos ideais normativos e à crença da necessidade de se proteger dos riscos à sua vida, “o indivíduo adota diagnósticos como identidades, medidas preventivas e tratamentos medicamentosos como práticas de si (p. 35).

Além de um modo de reconhecimento de si, produz-se no discurso um ethos que funciona como o fiador daquilo que está sendo enunciado. Esse fiador, em função de certa indeterminação, tem a característica de se apresentar como múltiplo, como se “Superman” escrevesse em nome de um grupo, qual seja, o dos indivíduos que se veem como depressivos. Apresenta-se quase como um representante de toda uma categoria, como se fosse todos e nenhum ao mesmo tempo, como se a sua voz fosse a de muitos. Mostra-se como “eu-depressivos”.

Um aspecto que não passa desapercebido é o modo como “Superman” se expressa. Por meio de expressões como “atirar pedra em cão sarnento”, “sacrificá-los” (os deprimidos), “sistema podre e ineficaz”, “nos consomem feito um câncer em fase terminal”, o enunciador constrói imagens carregadas de dramaticidade e que causam impacto. Isso corresponde a um aspecto do ethos: trata-se do tom. Esse tom permite ao leitor construir uma representação do “caráter” do enunciador. O aspecto agressivo e denunciador da escrita permite a assimilação de uma imagem do fiador não como alguém vulnerável, passivo, resignado, anulado pela depressão ou pela sociedade, como eventualmente se pudesse pensar, ou como o próprio “Superman” descreve uma pessoa deprimida. Ao contrário, é um sujeito ativo e altivo que emerge da leitura.

Parece-nos que um outro aspecto importante que a análise permite apontar é o efeito do ethos sobre o leitor. O colocar-se como representante de um grupo, o modo de escrever e organizar o texto, o tom e mesmo a imagem usada para apresentar o blog fazem parte dos elementos que constroem uma “personalidade” do blog e do enunciador que facultam ao leitor identificar-se com esse ethos. É dessa identificação que deriva a eficácia e o poder de persuasão do texto, pois constrói-se uma espécie de participação imaginária em uma experiência vivida. Esse processo, que Maingueneau (1995Maingueneau, D. (1995). Conferência. Discurso, corpo e voz: o ethos como vetor de análise. IP/CAC - Escolar Universidade de São Paulo.; 2013Maingueneau, D. (2013). Análise de textos de comunicação (6ª ed. ampl.). Cortez.; 2020Maingueneau, D. (2020). Variações sobre o ethos. Parábola.) chama de incorporação, pode ser entendido de três distintas e indissociáveis formas:

  1. É incorporação no sentido de que “dá corpo”, ou seja, confere um ethos ao fiador. O leitor do Mundo dos Depressivos pode conferir a “Superman” um ethos de altivez, denúncia e resistência. Na tipologia proposta por Aristóteles (segundo Maingueneau, 1995Maingueneau, D. (1995). Conferência. Discurso, corpo e voz: o ethos como vetor de análise. IP/CAC - Escolar Universidade de São Paulo.; 2020Maingueneau, D. (2020). Variações sobre o ethos. Parábola.), o ethos passível de ser atribuído ao autor do blog seria o da areté (virtude). Corresponde ao ethos do indivíduo franco, que diz a verdade crua, que fala com impetuosidade, que considera a impetuosidade necessária para falar.

  2. É incorporação no sentido de que o leitor assimila (incorpora) uma forma específica de se inscrever no mundo; é incorporação no sentido de mobilizar o leitor, de fazê-lo aderir a determinado universo de sentido, como o das injustiças produzidas contra o indivíduo depressivo.

  3. É incorporação no sentido da constituição de um corpo, ou seja, da formação do grupo dos que comungam na adesão a um mesmo discurso. Colocar-se no lugar proposto por “Superman”, ou seja, se identificar com esse fiador é se incorporar imaginariamente à comunidade dos indivíduos depressivos, à comunidade daqueles que sofrem a ação da sociedade sobre si, mas que também se opõem e resistem. O leitor pode se indignar, sentir-se representado, sentir-se defendido, sentir-se fazendo parte.

Gostaríamos agora de fazer nossa análise conversar com outros trabalhos. Pinheiro (2019)Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro., apresenta os indivíduos que falam de sua depressão por meio da internet como um exemplo da noção de “comunidades de sofredores”. Essas comunidades seriam “espaços biográficos onde questões individuais são transformadas em problemas coletivos, sobretudo a partir de narrativas retrospectivas que tentam compreender o passado através de uma disfunção” (Pinheiro, 2019Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro., p. 90). A partir dessas comunidades, formar-se-ia uma identidade de grupo. Em sua pesquisa, Pinheiro (2019)Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro. percebeu que no caso da depressão, essa identidade era marcada por elementos como tentativa de suicídio e automutilação, além de certa idealização do transtorno. Em alguma medida, podemos dizer que identificamos também esse último aspecto apontado em nosso trabalho. Uma das conclusões da autora é a seguinte:

A depressão, para além de uma mera doença, revela-se, nesta dissertação, um modo de ser, isto é, uma maneira de os indivíduos se fabricarem subjetivamente. Por conta da ênfase sobre seu caráter supostamente crônico, o transtorno depressivo possibilita a formação e a fixação de uma identidade sustentada em comunidades de sofredores, onde os indivíduos que se classificam como depressivos encontram, via testemunho, roteiros de subjetivação. (p. 138)

Podemos apontar certa proximidade entre o que Pinheiro (2019)Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro. coloca acima e nossa análise. Ao continuar suas considerações, a autora posiciona-se em relação a atitude dos depressivos:

(...) a identificação com a depressão impossibilita que os indivíduos se questionem e encarem o sofrimento como possibilidade de transformação, porque identificar-se com o diagnóstico da doença crônica significa identificar-se com uma identidade de vítima, na medida em que, na contemporaneidade, o diagnóstico constitui, ao invés de intervir e ser oportunidade de superar o sofrimento. (...) os indivíduos que se classificam como depressivos tendem a reafirmar esse modo de ser, em vez de superá-lo. E, mais do que reafirmá-lo, essas pessoas o reivindicam, pois é na classificação diagnóstica da depressão que encontram a legitimação e o sentido de seus estados interiores, afastando-os da moralidade e localizando-os no corpo. (...) Assim, pode-se dizer que os indivíduos que se classificam como depressivos demonstram certa idealização e romantização a respeito do transtorno, que aparece em seus discursos, por vezes, em referência à autenticidade, pois teria possibilitado que essas pessoas se tornassem, por exemplo, mais sensíveis e maduras e sobressaíssem como verdadeiras heroínas em uma história de superação. Mais uma vez, portanto, é reforçado o fechamento do futuro: se o depressivo não pode ser questionado e a depressão aparece como uma maneira de torná-lo autêntico, não existe possibilidade de (auto)crítica e reflexão. (pp. 141-142)

Neste ponto, vemos uma diferença entre nossa análise e o trabalho de Pinheiro (2019)Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro.. Parece-nos que, para a autora, a ênfase incide na identificação que os indivíduos constroem com o lugar de depressivo. A partir disso, Pinheiro parece reconhecer essa identificação como algo que deveria ser provisório, que deveria ser superado, pois representa um fechamento, uma espécie de aprisionamento. Em nossa análise, a ênfase é dada àquilo que se produz por meio da escritura (ou seja, pela enunciação).

Talvez possa-se dizer que no plano do enunciado (no plano do conteúdo, ou do “ethos dito”) há uma consonância com o trabalho de Pinheiro (2019)Pinheiro, R. B. (2019). Depressão, testemunho e subjetividade: relatos autobiográficos de indivíduos classificados como depressivos na internet. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Rio de Janeiro., pois seria possível apontar no texto o lugar de sofredor e o “paradigma vítima-herói” (Furedi, 2004Furedi, F. (2004). Therapy Culture - Cultivating vulnerability in an uncertain age. Routledge.). No entanto, no plano da enunciação, ou do “ethos mostrado”, a análise que configuramos faz recair a ênfase sobre o “falar de si depressivo”, caracterizando-o como forma de afirmação de si e de potência. Com isso, consideramos que: 1) a depressão é reconhecida pelo enunciador como força, sagacidade, lucidez e resistência; 2) o blog é visto como um lugar em que “Superman” pode ser potente; 3) e que a força que se produz pela própria enunciação, pelo ato mesmo de escrever.

Com nossa análise, acreditamos estar positivando certos contornos de subjetividade produzidos nesta mídia. Não uma subjetividade como algo imanente, intrínseca ao indivíduo e independente do contexto, mas sim a subjetividade que se produz por meio da escrita.

Seria interessante que novas pesquisas sejam realizadas para que a discussão a respeito desta temática possa ter continuidade.

Agradecimentos

A Marlene Guirado, não apenas por ensinar um modo muito original e profícuo de pensar e fazer psicologia, mas também pelo apoio e pelas recomendações na escritura deste artigo.

A Juliana Bustamante Kavakama pelo suporte e carinho incondicional, assim como pela leitura atenta deste artigo, pelas reflexões compartilhadas e pelas sugestões essenciais.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2023
  • Aceito
    22 Jul 2023
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