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Considerações teóricas sobre o corpo e o fenômeno da dor em Nasio e Le Poulichet: da imagem ao corpo em negativo

Theoretical considerations about the body and the phenomenon of pain in Nasio and Le Poulichet: from image to body in negative

Considerátions théoretiques sur le corps et le phénomene de la douleur à Nasio et Le poulichet: de l’image au corps en négatif

Consideraciones teóricas sobre el cuerpo y el fenómeno del dolor en Nasio y Le Poulichet: de la imagen al cuerpo en negativo

Resumos

O presente artigo discute o papel do corpo e da imagem corporal no fenômeno da dor física a partir de J.-D. Nasio e Sylvie Le Poulichet. Aborda-se o estatuto do corpo através de um fenômeno muito presente nas subjetividades contemporâneas, como o problema da dor. O afeto da dor é pouco estudado no âmbito das escolas de psicossomática, assim como pela psicanálise. Nasio e Le Poulichet apresentam perspectivas próprias acerca do processo da dor e da compreensão sobre o corpo e sobre a imagem. Eles apropriaram-se, cada um a seu modo, dos legados do pensamento freudiano, bem como do referencial lacaniano. Para um dos autores, o corpo está mais ligado à imagem e às identificações do eu, enquanto, para o outro, o corpo é o lugar de um excesso de ordem sexual e narcísica.

Palavras-chave
Corpo; dor; imagem corporal; psicanálise; psicossomática


This article discusses the role of the body and body image in the phenomenon of physical pain from J.-D. Nasio and Sylvie Le Poulichet. It addresses the status of the body through a phenomenon very present in contemporary subjectivities, as the problem of pain, such as the problem of pain. The affect of pain is little studied in psychosomatic schools, as well as in psychoanalysis. Nasio and Le Poulichet present their own perspectives on the process of pain and understanding of the body and image. They incorporated, each one in their own way, the legacies of the Freudian thought, as well as the Lacanian referential. For one of the authors, the body is more connected to the image and the identifications of the self, while for the other, the body is the place of an excess of sexual and narcissistic order.

Keywords
Body; image body; psychoanalysis; psychosomatic


Cet article traite du rôle du corps et de l’image corporelle dans le phénomène de la douleur physique de J.-D. Nasio et Sylvie Le Poulichet. On aborde le statut du corps à travers un phénomène très présent dans les subjectivités contemporaines, comme le problème de la douleur. L’affect de la douleur est peu étudié dans le cadre des écoles de psychosomatique, ainsi que par la psychanalyse. Nasio et Le Poulichet présentent leurs propres perspectives sur le processus de la douleur et de la compréhension sur le corps et sur l’image. Ils s’approprient, chacun à sa manière, l’héritage de la pensée freudienne ainsi que du référentiel lacanien. Chez l’un des auteurs, le corps est plus lié à l’image et aux identifications du soi, tandis que pour l’autre, le corps est le lieu d’un excès d’ordre sexuel et narcissique.

Mots-clés
Corps; douleur; image corporelle; psychanalyse; psychosomatique


El presente artículo discute el papel del cuerpo y la imagen corporal en el fenómeno del dolor físico de J.-D. Nasio y Sylvie Le Poulichet. Se aborda el estatuto del cuerpo a través de un fenómeno muy presente en las subjetividades contemporáneas, como el problema del dolor. El afecto del dolor es poco estudiado en el ámbito de las escuelas de psicosomática, así como por el psicoanálisis. Nasio y Le Poulichet presentan perspectivas propias acerca del proceso del dolor y de la comprensión sobre el cuerpo y sobre la imagen. Ellos se apropiaron, cada uno a su modo, de los legados del pensamiento freudiano, así como del referencial lacaniano. Para uno de los autores, el cuerpo está más ligado a la imagen y a las identificaciones del yo, mientras que para el otro, el cuerpo es el lugar de un exceso de orden sexual y narcísica.

Palabras clave
Cuerpo; dolor; imagen corporal; psicoanálisis; psicosomática


Introdução

Este artigo se insere no campo das teorizações psicanalíticas e tem seu ponto de partida na interrogação sobre o papel do corpo e da imagem corporal na economia psíquica. A expressão “imagem corporal” foi criada por Paul Schilder em 1923, e também foi trabalhada por Françoise Dolto a partir de 1964 (Roudinesco, 1998Roudinesco, E. (1998). Dicionário de psicanálise. Zahar.). Mas não estamos nos referindo a nenhuma dessas acepções, mas sim como o corpo e imagem são pensados pelos psicanalistas Juan David Nasio e Sylvie Le Poulichet, através da comparação entre suas visões sobre o fenômeno da dor.

As relações entre o corpo e a economia psíquica estão colocadas desde a início da psicanálise em trabalhos de Freud como “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1996bFreud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol.1, pp. 29-397). Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]).), o qual contém os postulados sobre a vivência da dor, os estados desiderativos e a origem do Eu. A atenção freudiana também se deteve nas fontes somáticas do Eu, através da libido narcísica, como em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1990aFreud, S. (1990a). Sobre o narcisismo: uma introdução. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 14, pp. 83-119). Imago. (Trabalho original publicado em 1914).), na formulação da relação entre narcisismo e doença orgânica; narcisismo e hipocondria e, ainda, com a proposição de eu corporal em “O ego e o id” (1923/1996dFreud, S. (1996d). O ego e o id. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (vol. 19, pp. 13-18). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).). O corpo e a dor são postos em questão na histeria conversiva e na neurose de angústia. A histeria era marcada por sintomas conversivos motores e sensoriais (paralisias e dores físicas), que se ligavam a conflitos psíquicos. Na neurose de angústia, haveria um acúmulo de excitações não representadas psiquicamente e, por isso, geram sintomas corporais (Freud, 1895[1894]/1996aFreud, S. (1996a). Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada “neurose de angústia”. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 3, pp. 93-120). Imago. (Trabalho original publicado em 1895[1894]).). Por fim, Freud, em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926[1925]/1990bFreud, S. (1990b). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (vol. 20, pp. 93-201). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926[1925]).), aponta que a dor corporal pode ser compreendida pela concentração de investimento sobre a representação psíquica de área lesada no corpo. Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor, a dor é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada a uma lesão tecidual atual, potencial, ou descrita em termos de tal lesão” (ICS, 2011Institut for Clinical Improvement (ICS, 2011). Health Care Guideline: Assessment and Management of Chronic Pain. (5º ed.)., p. 7). A dor se relaciona a uma lesão nos órgãos ou tecidos e a danos corporais reais ou imaginados. Mesmo na definição médica, a dor é mais do que uma sensação e pode “existir apenas no plano do vivido e na queixa que a exprime” (Nasio, 2008Nasio, J.-D (2008). A dor física: uma teoria psicanalítica da dor corporal. Zahar., p. 11).

Apesar de pouco estudada na psicanálise, a dor é um tema presente na literatura psicanalítica desde a década de 1950. Dentre os poucos autores que abordaram a dor e sua relação com o ego e o corpo, estão Paul Federn (1952)Federn, P. (1952). Ego response to pain. In Ego psychology and the psychoses, (pp. 261-273). Basic Books. e Thomas Szasz (1955)Szasz, T. S. (1955). The ego, the body, and pain. Journal of the American Psychoanalytic Association, 3(2), 177-200.. A dor crônica foi discutida por Perlman (1996)Perlman, S. D. (1996). Psychoanalytic treatment of chronic pain: The body speaks on multiple levels. Journal of the American Academy of Psychoanalysis, 24(2), 257-271. e Taylor (2008)Taylor, G. J. (2008). The challenge of chronic pain: A psychoanalytic approach. Journal of the American Academy of Psychoanalysis and Dynamic Psychiatry, 36(1), 49-68., através da sua relação com o trauma. As experiências traumáticas seriam codificadas e localizadas em regiões corporais específicas, não estando ligadas à linguagem tampouco imagens, apenas podendo ser experimentados como dor física: “Eu chamo essas sensações corporais, que são sentidas, mas não lembradas conscientemente, de ‘recordações corporais’” (Perlman, 1996Perlman, S. D. (1996). Psychoanalytic treatment of chronic pain: The body speaks on multiple levels. Journal of the American Academy of Psychoanalysis, 24(2), 257-271., p. 262; trad. nossa). Mais recentemente, Hartung e Steinbrecher (2017)Hartung, T., & Steinbrecher, M. (2017). From somatic pain to psychic pain: The body in the psychoanalytic field. The International Journal of Psychoanalysis. trazem a noção de que, nas dores somáticas, o corpo atua como um entreposto intermediário entre cargas afetivas insuportáveis, não integradas ao ego (realidade psíquica), e a realidade externa. Hertzog e Razon (2020)Hertzog, S., & Razon, L. (2020). Les douleurs chroniques résistantes: quand l’inconscient prend corps dans le colloque médecin-patient. Douleur et Analgésie, 33(2), 113-118. discutem o tratamento da dor crônica e as falhas das abordagens terapêuticas no âmbito médico.

No âmbito nacional, Berlinck (2005)Berlinck, M. T. (2005). La douleur. Champ psychosomatique, 39, 86. destaca que a dor é inerente ao ser humano, ele habita na dor. A psicanálise tem lido a dor que perdura no tempo como um sintoma que comunica algo ao sujeito por meio de seu corpo (Zanotti et al., 2013Zanotti, S. V., Abelhauser, A., Gaspard, J. L., & Besset, V. L. (2013). Aux limites de l’hystérie, la douleur chronique. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16, 425-437.).

Na psicanálise pós-freudiana, há que se considerar diversas contribuições a essa ampla temática através dos estudos que vinculam o adoecimento orgânico aos fenômenos psicossomáticos, cujos principais referenciais teóricos são os expoentes da escola de medicina psicossomática de Chicago (Franz Alexander e George Pollock) e os psicanalistas do Instituto de Psicossomática de Paris (IPSO), como Pierre Marty e Michel M’Uzan (Bocchi & Campos, 2018Bocchi, J., & Campos, E. (2018). As somatizações e o problema da dor no pensamento psicossomático clássico. In P. Porchat, C. C. E. Mouammar, (Orgs.), Psicanálise e interfaces. Editora CRV/Cultura Acadêmica.).

Também encontramos contribuições da psicanálise francesa, como em Joyce McDougall, com seus trabalhos sobre a clínica psicossomática e com Françoise Dolto (1992)Dolto, F. (1992). A imagem inconsciente do corpo. Perspectiva., através do conceito de imagem inconsciente de corpo. As relações entre corpo e economia psíquica foram trabalhadas também por psicanalistas brasileiros, como Maria Helena Fernandes (2011)Fernandes, M. H. (2011). O corpo e os ideais na clínica contemporânea. Revista Brasileira de Psicanálise, 45(4), 43-55. e Liana Albernaz Bastos (1998)Bastos, L. A. M. (1998). Eu-corpando: o ego e o corpo em Freud. Escuta., com seus trabalhos sobre o corpo em psicanálise.

Bocchi e Campos (2018)Bocchi, J., & Campos, E. (2018). As somatizações e o problema da dor no pensamento psicossomático clássico. In P. Porchat, C. C. E. Mouammar, (Orgs.), Psicanálise e interfaces. Editora CRV/Cultura Acadêmica., ao enfatizarem que as teorias vigentes na área da psicossomática possuem limitações com relação à caracterização da especificidade da dor física, demonstram uma carência em relação a novas visões sobre o tema. Na psicossomática, os sintomas de somatização são resultantes de um déficit na simbolização e de uma falta de elaboração psíquica que, consequentemente, irá se manifestar na via corporal. Marty (1993)Marty, P. (1993). A psicossomática do adulto. (Trad. P. C. Ramos). Artes Médicas. aprofunda essa discussão considerando as noções de “má mentalização” e “boa mentalização”. Na primeira, há uma limitação na capacidade de elaboração psíquica; assim, frente a uma perda objetal, há uma descompensação severa no funcionamento somático. Por outro lado, na “boa mentalização”, os sintomas físicos são leves e passageiros, uma vez que a via somática substitui apenas pontualmente o aparelho mental e o aparelho sensório-motor (Peres & Bocchi, 2020Peres, R. S., & Bocchi, J. C. (2020). Psicanálise, clínica ampliada e dor física: algumas articulações. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 11(3supl), 117-131.).

O problema da dor deve ser pensado para além de um mero produto da somatização. A dor é um fenômeno complexo que envolve operadores conceituais, ainda não suficientemente explorados na metapsicologia freudiana: “a vivência de dor, a noção de trauma, a teoria da libido, o conceito de narcisismo, o conceito de eu corporal, a noção de erogenidade e o próprio papel do corpo no aparelho psíquico” (Bocchi & Campos, 2018Bocchi, J., & Campos, E. (2018). As somatizações e o problema da dor no pensamento psicossomático clássico. In P. Porchat, C. C. E. Mouammar, (Orgs.), Psicanálise e interfaces. Editora CRV/Cultura Acadêmica., p. 5). Freud e Lacan abordaram a dor, mas não fizeram nenhum estudo exclusivo a esse fenômeno (Bocchi, 2020Bocchi, J. C. (2020). As neuroses traumáticas e o modelo da dor física em “Além do princípio do prazer”: relações entre trauma e narcisismo no segundo dualismo pulsional freudiano. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, 11(2), 232-251.). Segundo Birman (2012)Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade. Civilização Brasileira., o mal-estar na atualidade não se mostra como conflito, mas como dor, nos registros do corpo e do que pode ser intensificado através das ações. Uma contribuição relevante do presente trabalho está em abordar o estatuto do corpo e de sua imagem a partir do fenômeno da dor, tão presente nas subjetividades contemporâneas, mas pouco estudado no âmbito da psicossomática e da psicanálise como um todo. Vale lembrar que a dor está associada a impasses relacionados à capacidade para os vínculos, capturadas pelas dinâmicas narcisistas de perda objetal e do risco de dissolução do eu.

Os autores apresentam perspectivas próprias acerca do processo da dor e da compreensão sobre o corpo e sobre a imagem. J.-David Nasio, comentador de Freud, de Lacan e Dolto, possui trabalhos quanto ao papel da imagem para a constituição subjetiva do Eu e das representações sobre o corpo.

Sylvie Le Poulichet apresenta aportes no pensamento freudiano; ela assimilou seu conceito de narcisismo e a concepção do trauma como excesso “não ligado” no psiquismo. Optou-se pela investigação destes autores que apresentam uma leitura francesa não dogmática, descolando-se do referencial lacaniano ortodoxo e avançando no modelo do narcisismo a partir do estádio espelho e da noção de corpo.

Nossa hipótese é que a dor (física e psíquica) pode demonstrar o papel do narcisismo para a compreensão das noções de corpo e de imagem corporal em ambos os autores. O referencial psicanalítico delimita um campo de conhecimento e de práticas específico, definido por seu método, de caráter investigativo, interpretativo e terapêutico (Mezan, 1988Mezan, R. (1988). Problemas de uma história da psicanálise. In J. Birman (Org.), Percursos na história da psicanálise (pp. 15-41). Taurus-Timbre.). A finalidade deste trabalho é organizar um panorama sobre a temática, de modo a possibilitar novos estudos sobre operadores conceituais com valor para o trabalho clínico. Trata-se de uma investigação teórico-conceitual sobre os domínios do corpo e da imagem em textos de Nasio e Le Poulichet que abordam tais questões. O objetivo principal é investigar como corpo e imagem operam nos dois autores, utilizando o fenômeno da dor como um caso especial para essa demonstração.

A relação corpo e imagem para Juan David Nasio

Lacan formula o Imaginário em 1936, e avança suas formulações em 1949, quando apresenta o simbólico. As elaborações sobre o Imaginário em Lacan coincidem com as etapas da construção da noção de estádio do espelho (Simanke, 2002Simanke, R. T. (2002). Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. FAPESP/Discurso Editorial/Editora UFPR.). No estádio do espelho, há uma antecipação da criança sobre sua unidade corporal, a qual se dá pelo processo de identificação com a imagem do semelhante e da autopercepção do reflexo de sua imagem no espelho (Roudinesco, 1998Roudinesco, E. (1998). Dicionário de psicanálise. Zahar.). Ocorre, então, uma designação da experiência perceptiva originária do sujeito frente à sua imagem, concebida, primeiramente, como uma totalidade externa. Isto implicará, posteriormente, em uma tomada de consciência do seu corpo enquanto totalidade. Esse processo não depende do mirar-se no espelho concreto; indica, antes, uma relação especular e narcísica com a imagem de si (Laplanche, 1985Laplanche, J. (1985). Vida e morte em psicanálise. Artes Médicas.). Segundo Lacan (1964/1979Lacan, J. (1979). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).):

[...] o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo [...]. E é aí que a imagem do corpo dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu. (p. 96)

A função especular abre o horizonte da criança para a antecipação imaginária da unidade corporal e precipita uma identificação com a imagem do outro, permitindo a entrada do reconhecimento do semelhante como forma total. Nasio (1995)Nasio, J- D. (1995). O olhar em psicanálise. Zahar., em O olhar em psicanálise, apoia-se na ideia de Lacan de estádio do espelho e salienta que, ao olhar-se no espelho, a criança passa a compreender que aquela imagem não é ela. Assim, abre-se o lugar para o equívoco e duplicidade originária em relação à imagem de si, ao que Lacan entende como a alienação existente na constituição da imagem do eu a partir da captação de uma imagem alheia, o outro como uma forma externa semelhante. Essa diferenciação entre a imagem do espelho e o sujeito é a base do reconhecimento da alteridade, que o autor aponta como inexistente no sistema Imaginário. Em termos imaginários: “O eu é tão imagem quanto qualquer imagem percebida” (Nasio, 1995Nasio, J- D. (1995). O olhar em psicanálise. Zahar., p. 17).

A imagem, vista pela pessoa no espelho, não é apenas uma imagem. Refere-se a uma parte do eu, o eu é construído por uma miríade de imagens. Desse modo, a imagem e o eu são contínuos no Imaginário. O que Nasio está a dizer é que no imaginário as figuras são planas, não há arestas, descontinuidades, o eu é imagem como outras quaisquer. Ao ver um objeto, o eu enxerga-se a si mesmo: “[...] na perspectiva do Imaginário o eu é a imagem percebida, o eu está na imagem percebida, e essa imagem percebida é o eu” (Nasio, 1995Nasio, J- D. (1995). O olhar em psicanálise. Zahar., p. 17). É importante destacar que o eu não percebe todas as imagens, percebe aquelas em que se reconhece. Essas imagens reconhecidas são denominadas como “imagens pregnantes” (Nasio, 1995Nasio, J- D. (1995). O olhar em psicanálise. Zahar.).

Notamos que, para o Nasio, apoiando-se nos primórdios do pensamento lacaniano, a imagem e o sistema Imaginário têm um caráter fundamental na constituição do eu e no modo como o sujeito interage com a imagem alheia, percebe a própria imagem e se percebe no mundo. Assim, a dimensão corporal nas postulações de Nasio é atravessada pela questão das imagens. Sendo assim, seria o corpo tido como um corpo imagético?

O autor aborda o conceito de narcisismo, em especial, o narcisismo secundário, assim como Lacan buscou em Freud para fundamentar sua concepção de estádio do espelho, associado ao panorama da imagem e das identificações. Nasio (1995)Nasio, J- D. (1995). O olhar em psicanálise. Zahar. aponta que esse narcisismo consiste no amor sobre o eu sexual, é um amar-se a si mesmo por meio das imagens. Um neurótico, por exemplo, busca intensamente preservar seu eu sexual, gesto que está intimamente ligado ao complexo de Édipo e ao falo imaginário, o qual é o objeto de uma castração simbólica: “o narcisismo secundário será: amar a mim mesmo através de imagens como amo ao meu sexo, ou como me amo enquanto sexo, isto é, enquanto falo imaginário” (Nasio, 1995Nasio, J- D. (1995). O olhar em psicanálise. Zahar., p. 24). O eu percebe aquelas imagens em que reconhece a si mesmo, diante disso, sente prazer (de se amar) ou desprazer (ódio de si).

Quando toco, a maneira de sentir tem a ver com meu imaginário do eu, ou seja, o eu enquanto se nutre de imagens, não é apenas aquele que vê. O eu se nutre de formas sensíveis, sonoras, visuais, formas imaginárias cujo sentido ele assume. (p. 25)

Assim, as imagens são formas imaginárias que irão compor o eu, porém estando ligadas a elementos corporais, como o signo tátil, o grito e outras produções sensoriais, que imprimem uma movimentação nas imagens pregnantes e nas imagens do eu. Parece-nos que o sentido vinculado à imagem corporal na proposição de Nasio não implica apenas o sistema Imaginário, mas está articulado à relação entre o imaginário e o simbólico, pois já anuncia a chegada das marcas corporais, o toque e a voz do outro, o choro e o grito da criança. Ademais, o autor se apoia na concepção de Dolto de imagem inconsciente do corpo, a qual traz a ideia de uma imagem cinestésica e dinâmica do corpo, que não se unifica em uma ilusão imaginária.

No entanto, Nasio não integra o aspecto corporal como forma sensível assumida pelo eu. A imagem em Nasio é imagem do eu, pode até ser imagem do corpo, e possuir seu dinamismo, posto que não é fixa, mas não é uma imagem corporal contendo um fundo para além de si mesma. Parece-nos que a caracterização da imagem do eu se sobressai sobre a imagem corporal. Esse elemento é essencial para a compreensão da noção de corpo presente nesse autor.

A noção de corpo para Sylvie Le Poulichet: entre lugares e excessos

A autora traz uma noção de corpo atrelada ao que ela denomina de “figuras”, as quais assumem um caráter distinto da noção de “imagens”. Para ela, o corpo é figurativo, o que se refere às constantes transformações e passagens; esse corpo é perpassado pelo tempo. As figuras não são de caráter representacional, isto é, não estão associadas a complexos ideativos, como colocado na teoria das neuroses de Freud (histerias e neuroses obsessivas). As figuras são de caráter expressivo e dizem respeito a processos, fluidez e temporalidade.

Estabelece-se uma analogia entre figuras do corpo e as figuras do sonho, considerando os processos de condensação e deslocamento que vão transformando essas formações, provocando “figuras plurais não definitivas”. Conforme seus apontamentos:

O termo “figura” deveria aqui explicar uma atuação do tempo na imagem: lugar de passagem, ações de passar, depois de ligar, em e pela figura. No campo dos sonhos, as coisas não são para si mesmas nem para alguém, mas elas organizam passagens; e o próprio objeto da figuração não é uma coisa, mas o laço de uma coisa com a outra. O sonho não é em nada uma cópia louca ou fantasística do real deformado pelo desejo; ele dá, antes, olhar ao que não se pode ver: ele dá figura aos laços. O corpo pulsional jogado em figuras não é simples “imagem do corpo”. (Le Poulichet, 1996Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., p. 45; grifos nossos)

A noção de figurabilidade está presente no texto freudiano, A interpretação dos sonhos (1900/2001Freud, S. (2001). A interpretação dos sonhos. Imago. (Trabalho original publicado em 1900).), no qual está relacionada à construção de figuras compostas através da atuação da condensação nos sonhos. Conforme Freud (1900/2001Freud, S. (2001). A interpretação dos sonhos. Imago. (Trabalho original publicado em 1900).), “a imagem onírica contém traços que são peculiares a uma ou outra das pessoas em questão, mas não comuns a elas; de modo que a combinação desses traços leva ao aparecimento de uma nova unidade, uma figura composta” (p. 294). Segundo Le Poulichet (1996)Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., a temporalidade atua no material onírico, fazendo passagens, cujas figuras correspondem às composições que captam e ligam excitações; elas não são imagens constituídas. Essas figuras são fruto das manifestações pulsionais e estão organizadas a partir da polissemia presente na linguagem. O eu manifesta-se nos sonhos em figuras, assumindo traços dos objetos, sendo essas figuras como um espelho para o eu. O mesmo se dá no processo da fala, pela associação livre e, segundo a autora, verifica-se um atravessamento do corpo pelos processos de linguagem, re-apresentando significados ou adicionando-lhes novos fragmentos, alterando o seu sentido, decompondo e recompondo objetos e novas figuras. A noção de figurabilidade das imagens oníricas, no sentido freudiano, é fundamental para entender a natureza dos processos psíquicos.

Aqui, temos um ponto essencial para distinguir a noção de corpo de Le Poulichet em relação a J.-D. Nasio. Ela deixa claro que compreende o corpo em sua dimensão pulsional, indo além do corpo imagético. O corpo como imagem aparece bastante em textos de Nasio. Parece estar em jogo aqui o conceito de figurabilidade em oposição ao conceito de representação: “O corpo que se elabora no tempo não recobre exatamente o corpo no espaço” (Le Poulichet, 1996Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., p. 21). O corpo está no intervalo, na precipitação de presenças sobre um fundo de ausência: o corpo está e não está, tal como o fort-da de Freud (1920/1996cFreud, S. (1996c). Além do princípio de prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 18, pp. 17-75). Imago. (Trabalho original publicado em 1920).). Na brincadeira infantil do fort-da, Freud relata a situação da criança em relação à angústia de separação. Ela brinca com seu carretel quando a mãe não está fazendo um jogo de ausência (ao jogar o carretel) e presença (ao recuperá-lo).

Diante do exposto, Le Poulichet trabalha com uma concepção de identificação como um processo temporal e dinâmico, que afeta diretamente o corpo e a formação das imagens, o que ajuda a pensar o problema da imagem do corpo em um âmbito afetivo-tensional e não apenas imagético: “Esse tempo identificante que gera um lugar para um acontecimento psíquico constitui realmente uma experiência temporal, e não um dado espacial entendido como uma identificação com a imagem” (Le Poulichet, 1996Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., p. 16). A noção de identificação tem uma relação próxima com a discussão econômica devido ao registro pulsional, o que permite a Le Poulichet resgatar a noção freudiana de trauma como efração e a noção de excesso de excitações somáticas, presente na etiologia das neuroses, como a de angústia e a neurastenia.

A questão do corpo, em Le Poulichet, encontra-se na releitura da noção psicanalítica de corpo erógeno e de trauma. Através de um retorno à teoria pulsional e aos conceitos de Freud, como autoerotismo, narcisismo, eu corporal e identificação, ela formula uma noção de corpo por excesso. Ela não desenvolve essa noção, não de modo explícito e sistemático, mas pode ser inferida em diversos trabalhos da autora; e a expressão corpo por excesso é claramente identificada. O corpo por excesso, de forma aproximativa, é uma estrutura imanente a um contingente de excitações, energia em estado livre (“não ligado” psiquicamente) e que pode abrir espaço para aquilo que ainda não existe na realidade material (Galvão & Bocchi, 2021aGalvão, L. A., & Bocchi, J. C. (2021a). Uma análise teórica sobre o corpo e as formações narcísicas. In Anais da XVIII Semana e XV Congresso de Psicologia - Unesp Bauru, 171-178., 2021bGalvão, L. A., & Bocchi, J. C. (2021b). Apontamentos sobre o sonho e a noção de corpo como excesso em Sylvie Le Poulichet. In Anais do XXXIII Congresso de Iniciação Científica da Unesp: Agenda 2030 e as Perspectivas da Iniciação Científica da Unesp.).

Um corpo a ser refeito

As elaborações teóricas de Le Poulichet em torno da noção de corpo, aliadas aos dados da sua experiência clínica com adolescentes e toxicômanos, indicam que o corpo como uma estrutura passível de transições e de transformações, podendo ser excedido ou reduzido, saturado ou esvaziado, não separado do outro, um corpo próprio ou dissociado, mas nem por isso ele é um ente passivo. Em situações de sofrimento que incidem sobre o corpo, a autora diz que o corpo precisa ser constantemente refeito, no ato da incorporação dos objetos. Fica enunciado que o corpo é como um campo permanente de tensões. Ele pode ser objeto delas e sujeito ao mesmo tempo:

Esse “corpo para si” não seria um corpo por excesso, desde sempre sob perfusão? Seria necessário interrogar ainda esse impasse narcísico no qual se esgota esse corpo por excesso, tanto mais que o recurso ao tóxico se entende muitas vezes como uma maneira de fazer-se a cada dia um corpo estranho. (Le Poulichet, 1996Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., p. 105)

A autora vincula corpo e excesso narcísico a partir de déficits de simbolização, como veremos, e cunha a noção de “tóxico” (extraída da neurastenia e toxinas sexuais). O tóxico ao qual Le Poulichet se refere é o excesso pulsional. Ela trabalha com a noção de um corpo intensivo, sob a perfusão dos excessos das pulsões, tais como excitações não inscritas e restos mnêmicos:

Nessa perfusão, o excesso pulsional não cessa de investir uma figura de corpo, realizando em ato um devir circular. Como se o ritmo de uma perfusão substituísse qualquer forma de tempo, trata-se a cada dia de tornar-se aquilo que se incorpora, sobre a pena de desaparecer. (Le Poulichet, 1996Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., p. 105)

Notamos que a autora retoma também o trauma como resultado das excitações pulsionais não ligadas. Para ela, toda pulsão gera uma falta, simultaneamente, provoca um “excesso em errância” que vai de vestígios a vestígios em busca de figuras do corpo. A pressão ou esforço (Drang) é uma das características que definem a pulsão na concepção freudiana, juntamente com o objeto (objekt), meta (Ziel) e fonte (quelle). O Drang é o elemento motor da pulsão, isto é, a soma de forças que diz sobre o caráter impulsivo presente na essência das pulsões (Freud, 1915/2004Freud, S. (2004). Pulsões e destinos das pulsões. In Obras Psicológicas de Sigmund Freud (vol. 1). Imago. (Trabalho original publicado em 1915).).

A noção de excesso que recai sobre o corpo aparece nos estudos de Le Poulichet (1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., 1996) sobre as toxicomanias, as quais são marcadas por um excesso narcísico, que desencadeia um retorno ao órgão, ao corpo real. Nesses casos, diante da insuficiência de um investimento de caráter simbólico, que operaria como uma alternativa para manejar o excesso de excitação, surge uma angústia e um vazio relacionados à separação com o objeto do mundo exterior. Há uma ausência de palavras para lidar com tais sensações relacionadas a essa separação. O excesso narcísico corresponde a não substância que intoxica na operação pharmakon. Le Poulichet emprega esse recurso em O tempo na psicanálise (1996), para apontar o caráter paradoxal do tóxico: ao mesmo tempo, veneno e remédio. A expressão pharmakon é resgatada da farmácia de Platão, caracterizado como algo de essencialmente instável, que não se reduz à substância em si, mas diz sobre um paradoxo: intoxicar para se curar (Pereira, 2016Pereira, D. R. (2016). Elementos do complexo de Édipo na toxicomania: a droga como afastamento da castração na neurose. Cadernos de psicanálise, 38(35), 113-128.). Na operação do pharmakon descrito na clínica da toxicomania, existe a ideia de uma não substância na base da intoxicação. Haveria a busca de uma saída pelo excesso narcísico, através do retorno ao órgão, em vez de um investimento simbólico (Bento, 2010Bento, V. E. S. (2010). Introdução às justificativas clínicas e teóricas da hipótese das paixões “tóxicas”. Estudos de Psicologia, 27, 109-120.). Para Le Poulichet (1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987).):

Nada do corpo se perde e nem se elabora simbolicamente quando se concebe a ordem de uma suplementaridade real. Mais precisamente, a operação do pharmakon engendra a figura de um excesso de corpo ou de uma criação alucinatória (p. 76; tradução nossa).

Nesse processo, ocorre um reduplicamento do narcisismo por meio do desinvestimento dos objetos exteriores. Entendemos que esse reduplicamento do narcisismo parece se assemelhar ao mecanismo de regressão do narcisismo secundário (objetal) para o narcisismo primário, que pode coincidir com as identificações narcísico orais do desenvolvimento do psiquismo do sujeito. Para Le Poulichet (1996)Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar., o elemento tóxico é, de fato, o excesso narcísico que recai sobre o eu e se expressa no plano corporal, por exemplo, na crise de abstinência, nas recaídas, na voracidade.

O corpo aparece como uma saída para esse excesso de excitação por meio do narcisismo. O órgão terá a função de uma ligação destas excitações, na ausência de uma cadeia de significantes, e de um trabalho de ligação feito pelo eu. Aqui, tem-se uma concepção de corpo que não é uma representação ou uma imagem, mas o corpo é algo sobre o qual se depositam excitações advindas do narcisismo do eu, portanto, narcisismo primário e narcisismo secundário.

Subentende-se, após essas colocações, que o excesso narcísico se forma a partir de déficits de simbolização. Dessa maneira, podemos entender o que Le Poulichet (1996)Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. (Trad. L. Magalhães). Jorge Zahar. coloca como a não substância que intoxica no pharkmon. Esta não substância propõe a noção de uma toxicomania sem drogas ou substâncias químicas, em que o tóxico é o excesso narcísico não simbolizado. Não se trata mais da noção inicial freudiana do corpo histérico, mas de um corpo intensivo e excessivo, apto a metamorfosear e transbordar.

Notamos que Le Poulichet aborda o corpo sob as intensidades orais, anais, fálicas e narcísicas, marcado pela perfusão de um excesso pulsional, um corpo no qual o sexual aparece de forma enigmática, e sobre o qual os incrementos de excitação psíquica, sobretudo os excessos de demandas narcísicas do outro, podem transbordar através do próprio corpo, no que ela chama de figuras de corpo. Essas figuras seriam as formações narcísicas que retornam sobre a imagem corporal e sobre o órgão hipocondríaco (zonas erógenas).

Com isso, chegamos a uma concepção de corpo que não é uma imagem, mas um corpo sobre o qual se depositam excitações advindas do narcisismo do eu e que, mais uma vez, neste trabalho, denominamos de corpo por excesso.

O fenômeno da dor e sua relação com o corpo: uma breve discussão

A dor, fenômeno articulado com a dimensão corporal, é abordada por Nasio como dor física (de ordem nociceptora, tecidual) e dor psíquica, também relacionada à perda do objeto ou perda do amor, enquanto Le Poulichet discorre sobre a dor no campo das toxicomanias. A autora refere-se à dor, não exatamente em sentido físico ou psíquico, mas na dimensão da fantasia, cuja analogia é com o membro fantasma.

Em O livro da dor e do amor, Nasio (2010)Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar. trata sobre a dor psíquica, a qual decorre da perda de uma pessoa, que ele denomina como “ser amado”, ou da perda da integridade corporal. Em contrapartida, a dor corporal envolve necessariamente um ferimento físico. Nasio (2010)Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar. aponta que o corpo atua como um invólucro de proteção do eu, uma vez que a partir de um ferimento físico, gera-se um superinvestimento da representação do local lesado. Por outro lado, na dor psíquica, a causa está para além do corpo. Ela se encontra em um lugar imaterial, em um intenso laço de amor. Nesses casos, há um superinvestimento na representação do sujeito amado que foi perdido. Como colocado, o eu é como um espelho formado por uma miríade de imagens, cada uma dessas reflete uma parte do corpo ou dos objetos vinculados afetivamente ao eu. Quando há uma perda, gera-se um superinvestimento na imagem do que foi perdido, como forma de buscar uma compensação narcísica. Nesse sentido, a supervalorização afetiva da imagem desencadeia sensações dolorosas e provoca a alucinação, ao ejetar a imagem para fora do eu (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar.).

O autor aponta que o sofrimento não vem, precisamente, da falta do outro, mas sim da força do desejo que fica privada do excitante provocado pela sensibilidade do corpo vivo do outro, e do significado que isso tinha para o sujeito. Nasio faz uma comparação entre a pessoa amada e um membro do corpo amputado. Pensando na perda de um membro corporal e no próprio fenômeno do membro fantasma, quando a pessoa amada é perdida, o eu ressuscitaria o ser amado como um “fenômeno do amado fantasma”. A pessoa enlutada sente o ser amado perdido como se ele estivesse vivo (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar.).

De fato, a alucinação das sensações fantasmas provenientes do braço amputado, ou a alucinação da presença fantasma de um marido desaparecido se explicariam, ambas, por um superinvestimento tão desproporcional da imagem desses objetos perdidos, que esta acaba sendo ejetada para fora do eu. E é ali, fora do eu, no real, que a representação reaparecerá sob a forma de um fantasma. Diremos então que a representação foi foracluída, isto é, sobrecarregada, expulsa e alucinada. (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar., p. 32)

Nasio (2010)Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar. aponta que a dor, física ou psíquica, sempre será um fenômeno misto que ocorre no limite impreciso entre o corpo e a psique, entre o eu e o outro e entre um funcionamento psíquico regulado e desregulado. O autor aborda a dor tida como “psicogênica” e descreve três etapas da dor: lesão, comoção e reação. No processo da dor, enquanto lesão, há uma percepção do ferimento como imagem, o que gera uma representação mental. A sensação de uma excitação dolorosa se localiza na periferia e depende da lesão, mas ela não está na lesão em si, ela se situa no eu, na imagem que representa o local lesado:

A dor não está na lesão, está no cérebro quanto à sensação dolorosa, e nos alicerces do eu - no Isso - quanto à emoção dolorosa. Em suma, a dor da lesão comporta três aspectos: real, simbólico e imaginário. (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar., pp. 73-74)

Na dor da comoção, Nasio baseia-se no texto “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1950[1895]/1996bFreud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol.1, pp. 29-397). Imago. (Trabalho original publicado em 1950[1895]).). Ele ressalta que no caso de uma queimadura, por exemplo, o calor que agride a pele se transforma prontamente em uma corrente de energia interna, a qual é violenta e incontrolável. Diante disso, o eu entra em um estado de choque traumático. Através da ferida aberta na barreira de proteção, surge, no seio do eu, um afluxo repentino e maciço de energia que inunda o psiquismo, em seu núcleo, nos neurônios da lembrança. Consequentemente, há uma desregulação e ruptura na homeostase do sistema psíquico e o princípio regulador, princípio do prazer, é suspenso. A emoção dolorosa será resultado dessa autopercepção do eu, uma percepção somato-pulsional do estado de comoção interna (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar.). Diante disso, do mesmo modo que na dor da lesão forma-se uma imagem do local lesado, a violência na comoção provoca marcas (traços mnêmincos) e imagens. A comoção se refere à repercussão gerada pelo abalo da ruptura e, como consequência, imprime-se a imagem desse abalo interno perturbador e doloroso, tanto na consciência como no inconsciente. Essa dor pode ressurgir de diversos modos, como convertida em outra dor, ou em uma lesão psicossomática, assim como transfigurada em outros afetos e transformada em ações impulsivas (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar.).

Tratando sobre a terceira etapa do processo doloroso, na qual há a reação, ocorre um intenso esforço defensivo do eu contra o transtorno gerado pelas etapas anteriores. O eu envia toda sua energia para o ferimento, na tentativa de fechar a brecha em que o fluxo maciço está entrando, de modo a detê-lo. As sensações dolorosas físicas exprimem essa tentativa de defesa. Nesse sentido, há um contrainvestimento defensivo que atua, não na lesão física, mas sim na imagem da lesão. Esse aspecto é fundamental para compreender a ordem psíquica de toda lesão corporal:

Ora, o fato de que o contrainvestimento defensivo não se refere ao próprio ferimento, mas à representação do ferimento, revela a natureza incontestavelmente psíquica de toda dor corporal. Por quê? Porque a resposta a uma agressão física não é somente de ordem fisiológica, mas consiste também e principalmente em um deslocamento de energia no seio da rede das representações psíquicas constitutivas do eu. O corpo é ferido e o eu trata dele, ocupando-se da representação da sede da lesão. (Nasio, 2010Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar., pp. 86-87)

Nasio (2010)Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar. afirma que não há dor corporal sem representação. A hipótese de Nasio é que, quando ocorre uma privação sobre a integridade do corpo ou de algum objeto de apego, gera-se um excesso de investimento afetivo da imagem da parte do corpo ferida. Nasio (2010)Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar. aponta que na psicanálise, o superinvestimento da imagem psíquica sobre uma parte do próprio corpo é denominada de “superinvestimento narcísico”.

Por outro lado, Le Poulichet descreve o fenômeno da dor com outros elementos através do seu trabalho no campo das toxicomanias. Ela destaca que nesses quadros ocorre o retorno ao corpo real como uma saída a um excesso narcísico. Em Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo (1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987).), Le Poulichet, através da fórmula da operação pharmakon, irá caracterizar a especificidade do ato que desencadeia a toxicomania.

Na clínica das toxicomanias, há um “espírito do tóxico” que permeia os discursos, fator clínico determinante para a autora em seus trabalhos. Segundo Le Poulichet, o pharmakon parece pegar um corpo emprestado e, através da ausência da substância, haveria algo experienciado como uma sensação de mutilação. Consequentemente, os discursos sobre a abstinência irão se referir a uma falta, associada à figura de uma lesão. A autora analisa frases de pacientes toxicomaníacos: “a droga é meu braço direito”; “sou como uma esponja, recupero minha forma com a cocaína” e “sem droga agora, é como se eu estivesse amputado, como se me faltasse um membro do corpo e me doesse... é um membro fantasma” (Le Poulichet, 1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., p. 53; tradução nossa). Nota-se que ambos os autores possuem certa semelhança ao pensar na dor associada ao excesso de investimento narcísico e a uma imagem (para Nasio) ou à figura (para Le Poulichet), compreendendo as distinções entre eles expostas anteriormente.

Le Poulichet (1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987).) utiliza o “membro fantasma” como metáfora para representar a operação presente na relação entre corpo e palavra, o que foge do sentido dicotômico de psíquico e somático. Tanto Le Poulichet como Nasio utilizam esta concepção de membro fantasma. Nasio utiliza essa noção para tratar da perda de uma pessoa amada. No entanto, aqui a autora se refere à sensação gerada pela ausência da substância tóxica, o que cria o paradoxo de um órgão ausente e sensivelmente doloroso: “designa, sem dúvida, uma forma de paradoxo situado no centro desse questionamento sobre a abstinência. Isso me servirá de apoio para articular duas dimensões essenciais da operação do pharmakon: a alucinação e a dor” (Le Poulichet, 1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., p. 54; tradução nossa).

A dor se manifesta como um negativo e como a principal afecção provocada pela abstinência. A ausência do tóxico faz emergir a figura de um membro doloroso, o que põe em risco o investimento das zonas corporais. A formação do membro fantasma tem um caráter alucinatório, como em toda alucinação, o membro fantasma, no discurso dos toxicômanos, atua como um modo de satisfação primária do desejo. O que participa da lógica dos processos primários é a satisfação obtida pelo reaparecimento da imagem mnêmica do objeto de desejo. Na alucinação, há um investimento no sistema perceptivo e uma busca por uma “identidade de percepção”, de forma similar aos sonhos. Voltando aos discursos de pacientes toxicomaníacos, a autora descreve como o corpo aparece nesses quadros:

[...] o que mais frequentemente se menciona é uma forma de urgência corporal, mesmo que uma necessidade fisiológica já não exista mais depois de uma cura de desintoxicação. O corpo parece, então, onipresente desde que a palavra não seja velada nem tomada por representações. É um órgão que lhe falta para recuperar sua completude! Ao mesmo tempo, uma forma de investimento alucinatória da memória da satisfação parece invalidar todo ato de fala. (Le Poulichet, 1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., pp. 56-57; tradução nossa)

Nesse sentido, na ausência do tóxico, há um desvalimento. O corpo, ao invés de modelar-se nas cadeias de significantes, requisitará a restituição de um órgão para ligar as excitações. O tóxico atua como uma reestruturação que busca a proteção para acontecimentos e pensamentos difíceis de serem suportados. A autora aponta que “[...] esse modelo de efração parece representar uma constante clínica quando o uso de tóxicos é transformado em uma operação do pharmakon” (Le Poulichet, 1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., p. 57; tradução nossa). Essa efração se relaciona ao desinvestimento narcísico que a operação do pharmakon efetua. O pharmakon provoca uma espécie de semivigilia, como uma retirada do investimento do mundo exterior. Esse afastamento narcísico, que busca ligar as excitações, demonstra a falha de um elo mais estruturante, o qual se relaciona à noção freudiana de efração que “implica uma falta de ancoragem do corpo nas cadeias de significantes” (Le Poulichet, 1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., p. 58; tradução nossa).

Ademais, até na abstinência o órgão é ressuscitado de modo semelhante ao membro fantasma. Há um retorno contínuo ao órgão e, a partir desse circuito descrito, Le Poulichet defende que a reabilitação não deve separar o sujeito de seu objeto, não devendo colocá-lo em abstinência, privado da substância tóxica. No entanto, a operação pode falhar mesmo com o uso de substâncias tóxicas. Segundo a autora, baseando-se em “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1996cFreud, S. (1996c). Além do princípio de prazer. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 18, pp. 17-75). Imago. (Trabalho original publicado em 1920).), essa falha ocorre quando o narcisismo não é mais preenchido pelo superinvestimento narcisista do órgão. O tóxico se manifesta nos discursos dos pacientes como órgão em suspensão, ausente e doloroso: “Neste caso, o corpo não está ausente, nem é tecido pela linguagem: é apreendido graças à operação do pharmakon em uma circularidade essencial.” (Le Poulichet, 1987/2019Le Poulichet, S. (2019). Toxicomanías y psicoanálisis: Las narcosis del deseo. (2º ed.,1ª reimp.). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1987)., p. 60; tradução nossa).

O trabalho de Le Poulichet com as toxicomanias e a descrição da operação do pharmakon constituem uma demonstração do corpo como um lugar de acontecimentos perpétuos, no sentido de processos contínuos e descontínuos que envolvem efrações, perfusões e a busca de ligações para excitações excessivas, psiquicamente difíceis de tolerar. Essa busca se dá através do campo de presença criado pelos investimentos libidinais dos órgãos e regiões erógenas. Assim, o excesso pulsional encontra-se com o corpo narcísico. O retorno repetido ao órgão nas sensações viscerais de abstinência e na dor física (estados dolorosos crônicos, nos sintomas hipocondríacos, por exemplo) revelam a ausência de um suporte significante a partir do corpo real e da sua imagem corporal narcísica. A falta de consistência dessas estruturações leva o sujeito à vivência fantasmagórica com o tóxico. A insuportável ausência do tóxico é, no fundo, a dor pela insustentável ausência do objeto. A dor, assim como o tóxico, se manifestam como um negativo, e assim podem fazer vir a ser a partir daquilo que ele não é, uma falta incessante que pede um vir a ser.

Considerações finais

Os autores apresentam semelhanças e diferenças em relação à problemática do corpo e da imagem corporal. Ambos trazem perspectivas não dicotomizadas em relação ao corpo e ao psiquismo, posto que são elementos indissociáveis e interligados. Para Nasio (2010)Nasio, J.-D. (2010). O livro da dor e do amor. (Trad. L. Magalhães). Zahar., a dor (física ou não) se relaciona a um superinvestimento da imagem do local do corpo lesado, assim como investimento da representação mental da pessoa que se perdeu, respectivamente. Esta acepção deriva da teoria da libido e da noção de erogenidade em Freud, no que diz respeito ao modo como a libido narcísica e libido objetal se comportam nas situações de perda do objeto. Freud (1926[1925]/1990bFreud, S. (1990b). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (vol. 20, pp. 93-201). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926[1925]).) diz que a região dolorida e a percepção da ausência do objeto se distribuem libidinalmente de forma semelhante. Nasio também pontua que o corpo é como um invólucro de proteção do eu, sendo o eu um espelho formado por um complexo de imagens. As considerações de Nasio sobre a dor, portanto, reúnem elementos da teorização freudiana sobre a libido e da formulação de Lacan sobre a alienação pela imagem, isto que marca a origem do eu. Destacamos que a contribuição efetiva de Nasio é deixar mais clara a formulação de que a dor é essencialmente psíquica - mesmo a dor física -, tendo em vista que a dor corporal está relacionada ao superinvestimento da imagem, criada pelo eu, do local lesado. Para Nasio, a dor não está no ferimento, mas na sua imagem. Quando ocorre uma lesão no corpo físico, o eu busca uma reparação na representação fantasiada da lesão. Nasio aborda o corpo sempre ligado ao eu e às suas representações, como elementos indissociáveis. Ele trata da dor relacionada a um superinvestimento narcísico, o que se assemelha a Le Poulichet no que se refere ao excesso narcísico presente na clínica das toxicomanias e do trauma. Nasio, todavia, refere-se ao investimento de uma imagem, enquanto Le Poulichet aborda o investimento da sensação corporal, portanto, do afeto.

A questão do membro fantasma, nos dois autores, refere-se a um fenômeno doloroso que não recai sobre o corpo físico, mas sim sob uma imagem. No entanto, a diferença entre ambos, no que se refere à dor está justamente na distinção entre a concepção de figura e de imagem. Para Le Poulichet, esses são elementos distintos e, embora ela não os diferencie formalmente, propõe que o processo de figuração envolve sensações corporais difusas, tanto no sujeito como no corpo do analista, o que não necessariamente se traduz na forma de imagens, mas traduz como atos, palavras e novas criações mentais. Em Nasio, as imagens têm um papel fundamental, inclusive no narcisismo secundário em que o amor próprio ocorre por meio das imagens. A imagem tem um caráter organizador, o ideal do eu resulta da relação do eu com a imagem pregnante - fragmentos de imagem que o sujeito reconhece no semelhante -, e é por meio dessa relação que essa instância se estabelece.

Ambos os autores têm uma perspectiva dinâmica da imagem. Contudo, enquanto Nasio relaciona o corpo à dimensão imaginária do eu. Le Poulichet se aprofunda na questão das imagens pela via da temporalidade e da figurabilidade e, primordialmente, impulsionadas pelo registro das pulsões, como a fonte (Quelle) e o Drang (pressão).

Na segunda teoria pulsional, Freud (1923/1996dFreud, S. (1996d). O ego e o id. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (vol. 19, pp. 13-18). Imago. (Trabalho original publicado em 1923).) destacou que o Eu era um Eu corporal, tendo em vista que ele se constituía a partir de sensações advindas do corpo e estímulos captados pelo sistema percepção-consciência. A dor aparece, na segunda tópica, como elemento importante na constituição subjetiva. Ela pode informar ao Eu que existe um corpo. A imagem deixa de ser a forma exclusiva pela qual o corpo se apresenta. A partir do segundo dualismo pulsional de Freud, a dor poderá ser pensada como uma nova modalidade pela qual a pulsão se apresenta à superfície do corpo e dos objetos. Essa colocação requer desenvolvimentos pertinentes, mas ficará como ensejo para trabalhos futuros. Por ora, destacamos que o corpo, impossível de ser totalmente representado, aponta para o imperativo da mediação do outro na constituição subjetiva (Sales & Herzog, 2019Sales, J. L., & Herzog, R. (2019). O estatuto de corpo na obra de Freud pós-1920. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 35.). Esta última noção freudiana parece estar bem presente nos apontamentos de Le Poulichet, mas não em Nasio.

A proposta de um comparativo entre os autores, no que tange às elaborações de ambos para as noções de corpo, imagem e, eventualmente, de imagem corporal, aponta que Nasio trabalha com uma concepção forte de imagem e com a ideia de um corpo como imagem, o que pode ser pensado como um corpo representado. Le Poulichet se baseia em uma perspectiva do corpo por excesso; ela se refere àquilo que está na ordem do não representável, da perfusão e do transbordamento. Ademais, no campo das toxicomanias, o tóxico aparece como aquilo que, segundo nossa autora, faz uma perfusão no corpo, para atualizar-se e adquirir uma realidade distinta de si mesma, por isso o tóxico equivale a um corpo estranho. Eis um corpo por processos de estranhamento, o que vem elucidar a natureza última do corpo para Le Poulichet, qual seja: ser um espaço de acontecimentos que confere atualidade, plasticidade e persistência a fatos psíquicos imateriais, como restos pulsionais ou mensagens do código sexual externo que não são inscritos simbolicamente, tampouco traduzidos em signos psíquicos, tais como sonhos, imagens com significado, palavras e pensamentos.

Em Le Poulichet, encontramos uma acepção ampliada de imagem, incluindo figuração e temporalidade, ao mesmo tempo que há uma acepção forte de corpo pulsional, como último destino do excesso traumático.

A imagem, em Nasio, possui aspectos sonoros, visuais e táteis. As imagens são formações imaginárias que compõem o eu, estando ligadas a marcas corporais, como o signo tátil, o grito e outras produções sensoriais que imprimem movimento nas imagens egoicas e naquelas imagens em que o sujeito se reconhece no outro (ditas pregnantes). O sentido da imagem corporal, na proposição de Nasio, não implica apenas o imaginário, mas está articulado à relação desse com o plano simbólico e a possibilidade de reconhecimento do semelhante. Todavia, a imagem corporal, em Nasio, parece ser a imagem do eu somente; e a dor para ele se dá sobre o investimento intenso na imagem da pessoa perdida ou de um local dolorido no corpo. Nesse autor, até existem imagens do corpo, mas elas partem do eu e não contêm uma densidade ou uma extensão para além de si mesmas. Enquanto, em Le Poulichet, as imagens adquirem o peso real do corpo. Esse que realiza em figuras a passagem do tempo, as inscrições desejantes e mutações do eu ideal, do ideal de eu, do eu corporal, e que se voltam sobre o próprio sujeito por meio do fenômeno do “reduplicamento narcísico”. As formações narcísicas, em última instância, caracterizam um retorno de excitações flutuantes (não ligadas) que não podem ser sustentadas pelas imagens do eu (deficitárias de um trabalho de simbolização). Por esse motivo, a autora demonstra que o retorno do excesso traumático é diretamente para o órgão, o corpo ele mesmo.

Por fim, essa perspectiva ajuda a pensar o problema do corpo não apenas no limiar das imagens representadas, como proposto por Nasio, mas o corpo como um dado imediato e sensorial. A visão de Le Poulichet de corpo por excesso, noção de tóxico e de transbordamento retoma Freud do início da teoria sexual das neuroses e traz novos desdobramentos para a atualidade, principalmente no campo das adicções e dos sintomas que encontram passagem através do corpo. Ambos os autores trazem contribuições para a problemática do corpo e da imagem, apropriando-se, cada um a seu modo, de legados do pensamento freudiano e pensamento lacaniano. E como parte das contribuições específicas deste trabalho, concluímos que Nasio não desenvolve o corpo como uma modalidade sensível assumida pelo eu. Nele, temos uma noção de corpo cuja dimensão sensorial não preserva seus ritmos e autonomia em relação ao complexo de imagens do eu, ao contrário do que extraímos da leitura comparada. Nessa outra visão, o corpo é uma tensão permanente, uma realidade e uma negatividade que não cessam de acontecer e pode mudar a composição do próprio eu.

Agradecimentos:

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (processo n. 2020/07437-9) e aos revisores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Dez 2022
  • Revisado
    01 Jun 2023
  • Aceito
    28 Jun 2023
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