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O sofrimento psíquico em tempos sombrios e sua dimensão política

Psychic suffering in dark times and its political dimension

Nos dias 9 e 10 de setembro deste ano de 2022, teremos o XVI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, organizado pela Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. O Congresso tem por tema e título “Sofrimento Psíquico em Tempos Sombrios”. Como tem sido já há alguns anos, nosso encontro será precedido por um Pré-congresso, composto por encontros científicos realizados com os membros da Associação sobre pesquisa científica, experiências clínicas contemporâneas e editoração científica. Já foram organizados 15 destes Congressos, que agora são bianuais, e em funcionamento desde 1996, desde o primeiro Congresso em São Paulo. Dado o caráter de grande interdisciplinaridade, intensa relação Universidade e Clínica Psicanalítica, rigor intelectual e interação entre estudantes e especialistas, os Congressos são uma contribuição rara no cenário da saúde mental brasileira.

A exemplo do último, em 2020, realizado em agudo momento da pandemia do novo coronavírus, o Congresso deste ano será outra vez na modalidade virtual, dando continuidade, assim, a um interessante aprendizado de vivência e intercâmbio virtuais. Eis uma das mais fortes motivações da escolha da expressão “tempos sombrios” do título, que tem uma clara referência às intensas perdas que assolaram a sociedade brasileira durante a pandemia. Foram centenas de milhares de brasileiras e brasileiros mortos. Falar em um número elevado de mortos expressa mal o intenso sofrimento de luto pelo desaparecimento de entes queridos: pais, filhos, irmãos, parentes e amigos. Foram muitos sobreviventes que sofreram a doença com internações hospitalares, às vezes em UTIs, e com vários tipos de sequelas. A dor é real. O empobrecimento da sociedade brasileira também é real. Há danos não apenas sanitários e médicos, não apenas materiais, mas espirituais e psíquicos. Estamos diante de uma grande crise de saúde mental, não apenas no Brasil, mas no planeta. O sofrimento psíquico é verdadeiro em tempos sombrios. A pandemia atinge o mundo todo. Se relacionamos a nossa Associação e pesquisa à psicopatologia fundamental, estamos prontos a reconhecer o enorme e desconcertante pathos, sofrimento em português, presente entre nós: um sofrimento no fundamento da experiência coletiva. É preciso entender do que se fala quando dizemos “sofrimento psíquico” e quando dizemos “tempos sombrios”.

Certamente o sintagma tempos sombrios, hoje circulando sem entraves, tem forte conexão com a obra de Hanna Arendt, em contexto histórico, em princípio diferente, já que com clara referência aos regimes totalitários. Mas seriam os tempos sombrios brasileiros distantes deste contexto? A pergunta procede, pois nossa sociedade se encontra, no momento, marcada por posições extremadas, pontuadas por muitas formas de manifestações de violência, violência esta cada vez mais instrumentalizada politicamente, de forma a tornar obsoleto o princípio ético da convivência com a diferença. Ao cansaço, à melancolia e ao desânimo como reações diante da precarização estrutural do trabalho foi acrescido o discurso de ódio a todas as vozes discordantes do hipnotismo generalizado das massas. Dentre tais vozes, encontra-se aquela da ciência, que ousa reconhecer que o rei está nu, donde seu perigo para esta forma de governo fundamentalmente baseada na gestão dos afetos, e inverdades repetidas até se tornarem verdades sob a forma de fake-news, recurso despudorado e covardemente utilizado pelo governo para minimizar a periculosidade da pandemia, e colocar em jogo uma nova versão da necropolítica, conforme nosso Editorial do número de junho de 2021(Moretto & Silva Junior, 2021, pp. 243-50Moretto, M. L. T., & Silva Junior, N. da (2021, jun.). Editorial. Os afetos na pandemia da Covid-19 e a política da imobilização psíquica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 24(2), 243-250. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p243.1.
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).

Diante disso, cabe perguntar se nossos tempos sombrios não são os mesmos daqueles de Hannah Arendt. E isso em um ponto preciso, aquele do sentido de “sombrio” instaurado por essa grande pensadora. Desde Bertold Brecht, em seu poema Aos que vão nascer (1966, pp. 91-3)Brecht, B. (1966). Poemas e canções. Civilização Brasileira. o viver em tempos sombrios deu nome ao não sentido que marca nosso tempo. Aberta a várias traduções, a expressão “tempos sombrios” se cristalizou em nossa língua graças à notável tradução de Manoel Bandeira desse poema. Hannah Arendt, em seu livro Homens em tempos sombrios (1987)Arendt, H. (1987). Homens em tempos sombrios. Companhia das Letras. a retoma para contar vidas de pessoas que viveram sob as formas prevalentes de totalitarismo da metade do século XX, o stalinismo e o nazismo. Mas é ali que Arendt a ressignifica de modo definitivo: nossos tempos sombrios não o são em vista da falta de luz, mas sim do excesso de visibilidade, excesso de luz que ofusca e anestesia o sentido do absurdo e banaliza o mal do que vivemos. Pois tanto no stalinismo quanto no nazismo, casos maiores do totalitarismo do século passado, diz ela, “tudo ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E, no entanto, não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido (...)” (pp. 7-8).

Nenhuma descrição seria mais atual para o que vivemos. Esta é, sem dúvida, a mensagem na garrafa que constitui o título “Narcisismo em tempos sombrios”, (1988) texto de Jurandir Freire Costa, um dos psicanalistas mais contundentes para nomear o nosso momento histórico, a cultura narcísica da violência que desde os anos 1980 é fomentada em nosso país. Pois o narcisismo, cuja lógica depende da visibilidade, é precisamente o pivô de uma nova inflexão dos discursos de dominação, agora sob a égide individualizante do neoliberalismo. Com efeito, cabe lembrar que nossa economia pulsional e as formas como sofremos não são apenas soluções singulares do inconsciente de cada um, mas seguem caminhos previamente traçados pelas contradições estruturantes de cada cultura. Freud o assume já 1908, em “A moral sexual civilizada e a neurose moderna”, ao demonstrar que os valores de uma cultura não podem ser dissociados de sua geografia psicopatológica. No caso, Freud articula a moral sexual da sociedade vienense do início do século XX à produção das neuroses. Altere-se a cultura, e suas formas prevalentes de sofrimento seguirão novas vias. Foi essa a aposta de Freud, ao propor nesse texto uma verdadeira terapêutica da cultura, a saber, que os assuntos sexuais fossem tratados com franqueza pelas escolas e pelas famílias para ambos os gêneros, homens e mulheres. Bandeiras do conservadorismo para as massas do governo atual de nosso país, que apresenta a educação sexual nas escolas e o reconhecimento de um desejo feminino para além da maternidade como formas de degenerescência moral, foram, há mais de cem anos, apontadas por Freud como simples hipocrisia. Forma de dizer que a psicanálise está profundamente implicada na política praticamente desde seu início, mas que o faz a partir de um ponto de vista específico: aquele do sofrimento psíquico.

Assim, as abordagens marcadas pela perspectiva social de questões de costumes, de sexualidade, de desigualdade de gênero, de religião e de racismo estrutural, são traduzidas seja como impotência ou indolência, seja como inimigas dos ideais de soberania e de autonomia egoicas na conjuntura política ofuscantemente clara de nossos tempos. Esperemos que o Congresso no início de setembro amplie e nos ajude a melhor entender e, talvez, intervir junto à dimensão política do sofrimento psíquico em tempos sombrios.

Referências

  • Arendt, H. (1987). Homens em tempos sombrios Companhia das Letras.
  • Brecht, B. (1966). Poemas e canções Civilização Brasileira.
  • Costa, J. F. (1988). Narcisismo em tempos sombrios. In J. Birman (Org.), Percursos na história da psicanálise (pp. 151-75). Taurus.
  • Moretto, M. L. T., & Silva Junior, N. da (2021, jun.). Editorial. Os afetos na pandemia da Covid-19 e a política da imobilização psíquica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 24(2), 243-250. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p243.1
    » http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p243.1
  • Freud, S. (1982). Die “kulturelle” Sexualmoral und die moderne Nervosität. Studienausgabe (Vol.IX). Frankfurt-am-Main: Fisher Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1908).
Editores/Editors: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr. e Profa. Dra. Maria Livia Tourinho Moretto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2022
  • Aceito
    12 Jun 2022
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