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Experiências da solidão no seio das violências conjugais. Alguns exemplos da literatura contemporânea

Experiences of loneliness within marital violence. Some examples from contemporary literature

Expériences de solitude dans la violence conjugale. Quelques exemples tirés de la littérature contemporaine

Experiencias de soledad dentro de la violencia conyugal. Algunos exemplos de la literatura contemporánea

Resumos

O artigo é fruto de uma pesquisa mais ampla e tem como objetivo principal compreender algumas características da solidão no seio da violência conjugal, a partir de casos narrados em romances da literatura contemporânea. Trata-se de perceber as experiências de humilhação e desamparo das vítimas, em diferentes contextos sociais e não apenas entre casais heterossexuais. A metodologia empregada é a análise comparativa e qualitativa dos romances selecionados, focalizando principalmente duas grandes experiências emocionais, bastante frequentes nas narrativas: primeiramente o medo, que muitas vezes leva ao isolamento e à dificuldade de falar sobre o que se passa e de romper a relação; e, em segundo lugar, a esperança de que tudo pode mudar, ou de que a violência é apenas acidental e não irá se repetir.

Palavras-chave
Violência conjugal; solidão; literatura; romance


The article is the result of broader research, and its main objective is to understand some characteristics of loneliness in the midst of marital violence based on cases narrated in novels of contemporary literature. It is about perceiving the experiences of humiliation and helplessness of the victims in different social contexts and not just among heterosexual couples. The methodology employed is the comparative and qualitative analysis of the selected novels, focusing mainly on two great emotional experiences, quite frequent in the narratives: firstly, fear, which often leads to isolation and the difficulty of talking about what is happening and breaking the relationship; and, secondly, the hope that everything can change, or that the violence is just accidental and will not be repeated.

Keywords
Domestic violence; loneliness; literature; novel


L’article est le résultat d’une recherche plus large et son objectif principal est de comprendre certaines caractéristiques de la solitude au milieu de la violence conjugale, à partir de cas racontés dans des romans de la littérature contemporaine. Il s’agit de percevoir les expériences d’humiliation et d’impuissance des victimes, dans différents contextes sociaux et pas seulement parmi les couples hétérosexuels. La méthodologie employée est l’analyse comparative et qualitative des romans sélectionnés, en se concentrant principalement sur deux grandes expériences émotionnelles, assez fréquentes dans les récits: premièrement, la peur, qui conduit souvent à l’isolement et à la difficulté à parler de ce qui se passe et à rompre la relation; et, deuxièmement, l’espoir que tout peut changer, ou que la violence est juste accidentelle et ne se reproduira pas.

Mots-clés
Violence conjugale; solitude; littérature; roman


El artículo es resultado de una investigación más amplia y tiene como principal objetivo comprender algunas características de la soledad en medio de la violencia conyugal, a partir de casos narrados en novelas de la literatura contemporánea. Se trata de percibir las experiencias de humillación e impotencia de las víctimas, en diferentes contextos sociales y no sólo entre parejas heterosexuales. La metodología empleada es el análisis comparativo y cualitativo de las novelas seleccionadas, centrándose principalmente en dos grandes experiencias emocionales, bastante frecuentes en las narraciones: en primer lugar, el miedo, que conduce muchas veces al aislamiento y a la dificultad para hablar de lo que sucede y para romper la relación; y, en segundo lugar, la esperanza de que todo pueda cambiar, o que la violencia sea accidental y no se repita.

Palabras claves
Violencia conyugal; soledad; literatura; romance


Os dramas familiares e as tragédias amorosas, incluindo violências conjugais, constituem a matéria-prima de numerosos contos e romances. Entretanto, desde meados do século XX, na medida em que a problematização da violência doméstica foi ampliada e intensificada socialmente, um número inusitado de narrativas ficcionais sobre o desenrolar da experiência violenta dentro da conjugalidade passou a ocupar um lugar de destaque no campo literário.

No Brasil, por exemplo, a literatura passou a contar com um número significativo de tramas sobre agressões que ocorrem na vida íntima dos casais. Várias razões sociais, e especificamente literárias, podem explicar esse interesse. Entre elas, destacam-se as mudanças ocorridas na estrutura familiar (Leone et al., 2010Leone, E. T. et al. (2010). Mudanças na composição das famílias e impactos sobre a redução da pobreza no Brasil. Economia e sociedade, 19(1). https://doi.org/10.1590/S0104-06182010000100003.
https://doi.org/10.1590/S0104-0618201000...
), os movimentos de liberação - nacionais e internacionais - das mulheres, da sexualidade e do corpo, além do crescimento de romances baseados na autoficção, que valorizam uma escrita de si sobre os traumas vividos. As novas conquistas relativas aos direitos das mulheres, dentro e fora do espaço privado, também contribuíram intensamente para modificar as relações entre os sexos e o cotidiano conjugal. Conforme ressaltou Michelle Perrot em seu último livro, “hoje é o amor, a sexualidade, se eu quero, quando quero e como quero”, ao se referir às mulheres que já vivenciaram os movimentos de liberação e de afirmação de seus direitos, sobretudo após o #MeToo (Perrot & Castillo, 2023Perrot, M., & Castillo, E. (2023). Le temps des féminismes. Grasset., p. 174).

Paralelamente, a divulgação dos casos de assédio de homens em relação às mulheres e de violência entre casais nos quais a mulher é agredida, somada aos feminicídios denunciados por meio de manifestações e movimentos sociais, atualizaram e fortaleceram os alertas sobre o comportamento masculino em ambientes de trabalho, nas universidades, nos meios artísticos, em hospitais etc. Diversas maneiras até então usuais de aproximação dos homens em relação aos corpos das mulheres deixaram de ser toleráveis. Várias conversas, piadas, expressões verbais, comuns no universo masculino até recentemente, tornaram-se intoleráveis e tenderam a ser objeto de críticas. Costumes e atitudes situados dentro da normalidade masculina havia séculos, passaram a ser definidos como violentos e invasivos.

Juntamente com essas transformações, uma nova maneira de pensar o lugar social das mulheres - que não se restringe ao Brasil e atinge desigualmente o território nacional - tendeu a ampliar a conscientização dos seus direitos políticos, econômicos, culturais e sexuais, tornando ilegítimos e intoleráveis os antigos costumes que de certo modo normalizavam a violência conjugal na qual as mulheres tenderam - e ainda hoje tendem - a ser as maiores vítimas.

Entretanto, a crescente visibilidade das violências feitas às mulheres não tardou a provocar denúncias, assim como a escrita de narrativas nas quais as vítimas não são necessariamente elas, ou, então, não são exclusivamente mulheres heterossexuais. Ou seja, a presença de personagens masculinos, além de transexuais e lésbicas como sendo vítimas de violências conjugais, também passou a integrar o cenário literário dos últimos anos. Romances contendo cenas de violência conjugal ou narrando o abuso cotidiano de um dos parceiros que humilha e maltrata o outro, ou ainda, tramas que envolvem uma dependência amorosa prejudicial para um deles ou para ambos, contribuíram para formar um conjunto heterogêneo de relatos ficcionais sobre a complexidade das relações amorosas e de seus dilemas. E, com a voga dos romances baseados na autoficção, a complexidade que envolve a solidão vivida por quem se vê violentado e humilhado na vida do casal, revelou-se um dos pontos mais sensíveis das relações amorosas e que, portanto, merecem novas análises.

Solidão e rememoração

De toute manière, séparé ou dissous, je ne suis recueilli nulle part; en face, ni moi, ni toi, ni mort, plus rien à qui parler.

(Roland Barthes)

De fato, uma das dimensões da violência conjugal é a experiência da solidão experimentada pela pessoa violentada, e/ou agredida e inferiorizada. Em várias situações, a literatura mostra o quanto as vítimas se sentem sozinhas, podendo ser invadidas por sentimentos de culpa e desamparo, além de serem acometidas por uma fragilidade e uma desproteção altamente dolorosas.

Um primeiro exemplo a este respeito é o romance Divórcio, do escritor brasileiro Ricardo Lísias, publicado em 2013. Nele, o narrador, o personagem e o autor têm o mesmo nome e aparecem, já nas primeiras páginas do livro, na forma de “um corpo em carne viva”. A imagem do despelado havia sido abordada no livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, ao se referir à figura do escalpelado (Barthes, 1977Barthes, R. (1977). Fragments d’un discours amoureux. Seuil., p. 114). Aliás, a mesma figura presente no romance de Lísias e em Barthes já foi objeto de uma interessante análise publicada no artigo: “A figura do escalpelado: sobre Divórcio, de Ricardo Lisias” (Magalhães, 2015Magalhães, M. (2015). A figura do escalpelado: sobre Divórcio de Ricardo Lísias. Itinerários, 40, 61-74. https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/8166
https://periodicos.fclar.unesp.br/itiner...
, p. 61 ).

Dividido em quilômetros percorridos, Divórcio remete o leitor para a prática da corrida empreendida pelo personagem, o que também lembra uma frase de Barthes sobre o discurso amoroso: dentro da cabeça, aquele que ama “não cessa de correr” (Barthes, 1977Barthes, R. (1977). Fragments d’un discours amoureux. Seuil., p. 7). De certo modo, o romance trata de um percurso de reconstrução de uma nova epiderme para Ricardo à medida que ele escreve e corre.

A partir da imagem paradigmática de alguém sem pele, o romance tem início com uma descoberta chocante para Ricardo: o diário de sua esposa. Ao lê-lo, Ricardo é confrontado com uma verdade transformada no centro de sua dor: a esposa, que é uma jornalista bem-sucedida, tem dúvidas se o ama e em vários trechos manifesta desprezo pelo marido, além de uma traição. Ricardo escreve, mais de uma vez, algumas frases encontradas no diário: “o Ricardo é patético, qualquer criança teria vergonha de ter um pai desse. Casei com um homem que não viveu” (Lisias, 2013Lísias, R. (2013). Divórcio. Companhia das Letras., p. 28).

Se para muitas tramas conjugais o difícil é viver com o outro, no caso de Ricardo o sufoco sentido ocorre a partir do dia em que ele descobre as opiniões da esposa a seu respeito. Ao ler o diário, após quatro meses de casamento, ele se depara com revelações chocantes, tais como ela o acha simplório, um coitado, alguém que não tem ambições e que passou a vida lendo sem saber muita coisa sobre o mundo para além dos livros.

Entretanto, na medida em que ele rememora o seu casamento, começa a encontrar dentro dele sinais que julga importantes: “Minha ex-mulher já tinha me machucado uma vez, em Paris, quando namorávamos” (Ibid., p. 38). Tudo se passa como se, para reconstruir a si mesmo após o divórcio, fosse necessário encontrar as pistas ou as marcas de tudo o que não funcionava na relação com a mulher, em toda a extensão do tempo anterior à separação. O trabalho de rememoração se depara, evidentemente, com lacunas e esquecimentos, mas também frisa momentos que o ajudam a reconstruir a má relação com a ex-mulher e uma melhor relação com ele próprio.

Ora, todo esse trabalho de relembrar que aponta para dois caminhos que parecem opostos - encontrar sinais da má relação para entender melhor o divórcio e, ao mesmo tempo, conseguir reconstruir-se - tende a ser feito solitariamente, por meio da corrida e da escrita, no silêncio da experiência de rememorar. Ricardo se vê só na grande cidade e também fragilizado diante da crueza das palavras que leu nas páginas do diário daquela que foi a sua amada. De certo modo, contar para alguém o que lhe aconteceu, narrar a ofensa feita e a humilhação sofrida, não deixaria de ser uma maneira de tocar o seu corpo sem proteção alguma, machucando-o ainda mais. A solidão vivida parece ter relação com essa dificuldade de partilhar com outra pessoa uma dor que aumenta significativamente se ela for exposta, vista e pensada por outros. Nesse caso, a escrita não deixa de ser um modo de narrar a própria dor sem precisar mostrá-la imediatamente, um compartilhamento secreto, uma elaboração do vivido que cria, no ato mesmo de escrever, uma espécie de refúgio para a dor, circunscrevendo-a e delimitando-a.

Na medida em que Ricardo tenta fabricar para si uma nova epiderme (alguma proteção e um gosto inovador pela vida que tem à frente), ele também reconstrói a imagem da ex-mulher, lembrando de episódios desagradáveis vividos junto dela. Esse exercício de lembrar ajuda a dar sentido à separação e a marcar um antes e um depois, não apenas em relação à imagem da ex-mulher, mas também à sua própria imagem. Próximo ao final do livro, Ricardo escreve: “eu descobri o rosto da pessoa com quem casei assim que ela o mostrou para mim. Talvez o meu erro seja fazer a pergunta: por que não percebi antes?”( Ibid., p. 257). A seguir ele responde que não percebeu antes porque estava apaixonado, e a sinceridade desse sentimento “não deixava nenhuma pergunta aparecer” (p. 258).

Essa ausência de perguntas juntamente com a experiência de ter concordado em se relacionar com alguém que não merecia os seus sentimentos, são aspectos que dificultam a partilha em falar do casamento e das causas da separação. Achar-se implicado, e de certo modo responsável pelo sofrimento vivido, torna ainda mais constrangedor contar para os outros o que ocorreu.

Todo o processo de rememoração e de escrita levado a cabo por Ricardo, juntamente com o seu esforço no treino para a São Silvestre, fazem parte de uma complexa tentativa de superar o sofrimento experimentado solitariamente, como em tantos outros casos encontrados no contexto da violência conjugal. Ele afirma várias vezes que a separação o fez se sentir “sem pele” e com dificuldade para respirar. A relação com a escrita foi aqui fundamental para que ele pudesse criar uma nova epiderme. O livro escrito, no qual ele se viu dentro, provocou polêmicas e controvérsias ao ser publicado, tendo em vista que o autor elaborou ficcionalmente o divórcio ocorrido naquele momento de sua vida.

As narrativas literárias dessa natureza, nas quais a memória de si encontra-se no centro da trama, vêm se transformando em tema principal de inúmeros romances. A autoficção, tendência literária já mencionada, que ganhou importância principalmente depois da década de 1970, contribuiu para criar espaços à expressão da memória individual, a qual, evidentemente, inclui relações sociais e amorosas muitas vezes provocadoras de polêmicas e resultando até mesmo em processos judiciais movidos por aqueles ou aquelas que se vêem expostos em suas vidas íntimas nos romances publicados. Ocorre que, conforme escreveu Nabokov,

(...) literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de verdadeira é um insulto tanto à arte quanto à verdade. Todo grande escritor é um grande impostor. (Nabokov, 2021Nabokov, V. (2021). Lições de literatura (J. Dauster, Trad.). Fósforo., p. 61)

O que não significa que a literatura seja alheia aos vários aspectos da realidade que vão da política à religião, passando pela moral e a ética. Como bem definiu Tezza (2018)Tezza, C. (2018). Literatura à margem. Dublinense., a literatura é uma maneira “original de percepção da realidade”, e que não é

(...) um repositório de opiniões, ao modo de um ensaio filosófico ou de um estudo objetivo, mas cada sentença literária na boca de um personagem ou no torneio sintático de um narrador está sempre embebida de uma visão de mundo. (pp.79-80)

Várias memórias e livros de autoficção também foram escritos por mulheres. Para além das polêmicas que possam vir a provocar, esses romances contribuem para aguçar perguntas importantes, que frequentemente emergem diante dos casos de violência conjugal fora do campo ficcional: afinal, quais os limites do tolerável dentro de uma relação amorosa e por quais razões alguns se divorciam e outros não conseguem sair das relações abusivas?

No recente romance da francesa Emma Deruschi, initulado La femme que nous sommes, a personagem principal, Elisa, exerce uma profissão que a satisfaz, tem uma filha de três anos adorável e um marido. Em casa, esse marido é objeto de medo, tristeza e sofrimento, fazendo com que ela se sinta apenas uma extensão dos desejos dele. A situação vai se tornando cada vez mais insuportável até o momento em que ela decide deixá-lo. Aqui, diferentemente do romance anterior, todo o sofrimento é vivido antes da relação se romper, no decorrer dos dias e noites nos quais Elisa permanece casada. Além disso, o romance é contado a partir de várias mulheres que conhecem Elisa e demonstram suas personalidades e seus problemas.

Ao longo dos capítulos, o leitor percebe as humilhações as quais Elisa se submete em silêncio, e o autoritarismo violento de seu marido. Ressalte-se que Elisa tem dificuldade de partilhar o que se passa com ela e de perceber o que realmente acontece em seu casamento. Entretanto, a narradora refere-se a esse sofrimento solitário, já na primeira página do livro e, a seguir, na maneira de descrever Loic, seu marido. Eliza aparece como uma mulher completamente subjugada por ele em seu cotidiano doméstico:

Loic não suportava a desordem e o que Loic amava ou não amava era uma lei em seu reino. Ela, ela não era nada. Nem rainha, nem camponesa. Ela era a continuidade de tudo o que ele exigia. Nem mais nem menos. (Deruschi, 2023, p. 16)

A tendência é a de viver solitariamente uma relação cada vez mais tirânica e ameaçadora. As mulheres que aparecem no livro também revelam a solidão vivida diante do problema e os vários aspectos do sofrimento resultante de ter um marido autoritário e violento. O sofrimento de ordem íntima é várias vezes ressaltado no romance. A dor emocional é aqui um segredo e uma vergonha, muito mais difícil de suportar do que a dor física, localizada em um pedaço das costas machucado pelo marido, por exemplo. E essa dor íntima não encontra partilha suficiente, às vezes nem mesmo se dá a ver enquanto discurso, dificilmente se torna algo elaborado conscientemente. A dor emocional e psíquica, vivida silenciosamente, mantém-se enclausurada em todos os lugares do corpo e, portanto, sem localização precisa, tornando quase impossível a sua expressão em forma de palavras.

A solidão de Ricardo e a solidão de Elisa ocorrem em contextos e em casamentos bastante diversos, mas o ponto em comum talvez seja exatamente este: a dificuldade de transmitir e de partilhar a dor e, consequentemente, a tendência da vítima em se ver desamparada, sem pele como Ricardo, quase sufocada como Elisa. Se o sofrimento de Elisa ocorre no decorrer da relação a dois - enquanto o de Ricardo acontece com a descoberta do diário da esposa - ambos parecem diminutos diante de uma “verdade sensível” que se mostra muito maior do que eles.

Uma verdade sensível

A célebre escritora francesa Annie Ernaux, em vários de seus romances, aborda o tema da violência conjugal. O livro A vergonha, por exemplo, começa com a seguinte frase: “Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho no começo da tarde” (Ernaux, 1997Ernaux, A. (1997). La honte. Paris: Gallimard., p. 13). A narradora é a filha, pouco antes de completar 12 anos, e é ela quem expõe o choque e o horror vividos, assim como a dificuldade em compreender a atitude paterna. No decorrer da trama, ela pondera que o pai e a mãe a amavam e, apesar da cena traumatizante, a vida continuou o seu curso e seus pais não se separaram. Contudo, desde aquele dia, ela passou a ser assombrada pelo medo de ver a cena se repetir dentro de casa.

No livro Escrever a vida, Ernaux afirmou que havia a intenção de evidenciar a “verdade sensível” em seu trabalho. Essa verdade aparece em outros livros seus, revelando relações de dominação na vida conjugal e as diversas maneiras pelas quais a memória trabalha as mágoas, os medos e os traumas do passado (Ernaux, 2011Ernaux, A. (2011). Écrire la vie. Gallimard., p. 7). É provável que a “verdade sensível” possa se encontrar e coincidir com outros tipos de verdade mais conscientes e evidentes para quem sofre a violência conjugal. Os níveis e os modos de estabelecimento dessa consciência evidentemente variam. Em muitos romances, a violência narrada começa sorrateiramente, é quase imperceptível, pode ser negada ou dificilmente assumida como violência ao longo dos primeiros encontros amorosos, como se ao invés de pedir uma ruptura da relação, se tratasse apenas de uma desavença acidental ou um conflito considerado normal entre casais.

O livro Na casa dos sonhos, por exemplo, da norte-americana Carmen Maria Machado, traduzido e publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2021, mostra uma trama com relações abusivas na vida de mulheres lésbicas, tema, aliás, ainda pouco usual na literatura. Logo no começo do romance, a autora escreve: “o abuso doméstico entre casais que compartilham da mesma identidade de gênero é tanto possível quanto relativamente comum” (Machado, 2021Machado, C. M. (2021). Na casa dos sonhos. Companhia das Letras., p. 22).

A autora narra o relacionamento que considerou violento com a ex-namorada, cujo começo é dosado por meio de fragmentos da memória: vive-se, um dia, uma aproximação dos corpos sem amor, noutro “ela aperta com força, e começa a machucar” (p. 121). Há uma percepção de que aquela atitude e aquele gesto que machucam o corpo não são normais. Ou seja, a violência - psíquica e física - ocorre de modo progressivo: no começo há um estranhamento entrelaçado a certo medo, como se o outro se tornasse subitamente desconhecido, ou revelasse uma parte de si mesmo que sempre existiu, mas nunca havia sido percebida; depois, vem a explosão violenta, seguida, cedo ou tarde, de um pedido de desculpas, uma declaração de amor e, assim, uma espécie de roda do abuso cotidiano começa a girar, desembocando na repetição incessante do ato violento seguido de pedidos de desculpas e reconciliação. A certa altura, a narradora escreve que:

(...) uma característica comum da violência doméstica é a “deslocação”. Em outras palavras, a vítima acaba de se mudar para um novo lugar, ou está num lugar cujo idioma não fala, ou de alguma forma foi retirada de sua rede de apoio, seus amigos ou família, ou roubada de sua habilidade de comunicação. As circunstâncias em que vive e seu isolamento a tornam vulnerável. Seu único aliado é seu agressor ou agressora, o que equivale a dizer que ela não tem nenhum aliado. E assim ela tem de lutar contra uma paisagem inalterável que foi criada à força por nada menos que o próprio tempo. (p. 146)

A deslocação mencionada corresponde a uma solidão da vítima e a seu isolamento. O trecho acima mostra a tendência em realizar a violência dentro de contextos pouco acolhedores ou distantes da possibilidade da vítima obter apoio e compreensão social. O que só agrava o sofrimento: a violência sofrida aparece para a vítima como sendo muito maior e mais complicada do que as suas capacidades para se defender, sair da relação, denunciar o agressor ou a agressora.

A ideia de vítima também não é aceita de modo rápido nem fácil. E este parece ser um dos aspectos principais da verdade sensível expressa durante a violência conjugal. Pois para aceitar o lugar de vítima é preciso reconhecer a violência tal como ela ocorre. Mas, no momento em que se percebe pela primeira vez o abuso do outro sobre si mesmo, homens e mulheres parecem tender a não acreditar que se trata de algo verdadeiro. A interpretação recorrente é a de definir o que se passa como um gesto acidental, estranho ao romance, e que não mais acontecerá, como se fosse uma exceção. No entanto, quando a violência ocorre mais de uma vez, e depois novamente, percebe-se que se trata de um agressor, e que esse agressor possui uma insatisfação infinita em seu ato de agredir, como se ele fosse possuído por uma força destruidora incontrolável, gerando medo e insegurança. Portanto, a percepção do outro como um agressor nem sempre é rápida, tal como não é imediato o entendimento de que a insatisfação do agressor no ato de violentar talvez seja insaciável e que, portanto, não cabe à vítima ter expectativas de “curar” ou de melhorar o parceiro.

No livro de Machado, os sinais de violência e abuso aumentam na medida em que a pessoa amada vai se mostrando desconfiada, com raiva, ciumenta e agressiva: “você me odeia. Você quer que eu morra (...) sua vagabunda egoísta” (Ibid., p. 173). A atitude da parceira é a mesma encontrada em inúmeras situações de violência doméstica: uma demanda exagerada de provas de amor e uma desconfiança infinita sobre a fidelidade do outro. No caso da vítima, há sobretudo medo de perder o amor ou de constatar já o ter perdido; solidão, medo de dizer e de narrar, de admitir que o amor se tornou um ciclo infernal de violência, arrependimento e reconciliações cada vez mais breves:

Pela manhã, a mulher que te fez adoecer de medo faz café, brinca com você e te beija, e te faz cafuné como se nada tivesse acontecido. E, como se você tivesse dormido, mais um novo dia começa. (ibid., p. 179)

Segundo Jaime Ginzburg, na literatura, “encontramos manifestações de que o comportamento violento pode constituir um prazer, uma satisfação” (Ginzburg, 2017Ginzburg, J. (2017). Literatura, violência e melancolia. Autores Associados., p. 81). Esse prazer pode ser implícito e nem sempre evidente para quem sofre a violência ou para quem a exerce. Ainda segundo o mesmo autor,

Existem casos na literatura em que a violência ocorre sem que seu ato corresponda à expressão de uma honra ou de uma ambição. A força destrutiva voltada sobre o outro pode manifestar-se não de modo dirigido, mas intransitivo. Como uma associação de ideias sem controle, que não exige nenhuma antecipação explicativa. (Ibid., p. 24)

Nos casos literários vistos até aqui, a violência de um cônjuge sobre o outro é uma experiência que revela uma verdade referente a cada conjugalidade e a cada história dos parceiros envolvidos. Dentro dela, o estado de penúria afetiva atravessa o casal e tem efeitos deletérios para o que se entende como sendo amor. Evidentemente, enfrentar o problema não deixa de ser uma tarefa tão árdua quanto necessária para garantir que a vítima possa novamente reconstruir a sua vida.

Violência e penúria afetiva

A violência conjugal também pode ocorrer por quem se vê como tendo sido abandonado pelo cônjuge, antes ou depois de uma separação. A célebre escritora que utiliza o pseudônimo de Elena Ferrante, publicou em 2002, “Os dias do abandono”, traduzido em diversas línguas e publicado em Portugal em 2014 e, dois anos mais tarde, no Brasil. A trama ocorre em meio à raiva e o ressentimento de Olga, mãe de dois filhos, que se vê como uma mulher abandonada pelo marido. O primeiro parágrafo do livro já revela muito do estilo claro e direto da autora:

Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor. Disse-me que estava confuso, que vivia maus momentos de cansaço, de insatisfação, talvez de covardia. Falou por muito tempo dos nossos quinze anos casados, dos filhos, e admitiu que não tinha o que reclamar deles nem de mim. Manteve a compostura de sempre, contendo um gesto de excesso com a mão direita quando me explicou com uma careta infantil que vozes leves, certo sussurro, o levavam para outro lugar. Depois assumiu a culpa de tudo que estava acontecendo e fechou com cuidado a porta atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado da pia. (Ferrante, 2014Ferrante, E. (2014). Os dias do abandono. In E. Ferrante, Cronicas do mal de amor. (M. C. Abreu et al, Trad.; pp. 133-289). Relógio D´Agua., p. 8)

À princípio Olga mostra que tinha esperanças de um retorno do Mario, seu marido. Mas rapidamente o leitor percebe o quanto Olga está tomada pelo medo de ficar sem o marido, pavor em não poder mais situar-se como uma mulher casada, com uma estrutura familiar preservada do divórcio. Esses sentimentos mobilizam uma ferocidade crescente em Olga, um desarranjo completo de sua vida refletida em episódios comezinhos que tomam a dimensão de uma retumbante tragédia: desde uma invasão de formigas na sua casa, até uma fechadura de porta que se rompe, tudo o que acontece com ela se transforma na confirmação do seu desamparo. Tais sentimentos contaminam todo o ambiente doméstico e extrapolam os limites do tolerável para ela mesma. Certo dia, não aguentando mais de aflição, ela perguntou ao marido, em tom desafiador, se ele tinha outra; ao que ele acabou por dizer que sim, havia outra mulher em sua vida. A partir desse momento, a ferocidade de Olga explode:

Agredi-o e voltei a agredi-lo sem parar, e ele acabou por cair no passeio. Ataquei-o a pontapé, uma e duas e três vezes, mas - não sei porquê - Mario não se protegeu, os seus movimentos eram descoordenados. (Ibid., p. 187)

O romance mostra uma situação bastante comum na realidade de milhares de mulheres nas quais o cônjuge apaixona-se por outra mulher e a dita paixão contribui, ou se torna a alavanca, para a separação. Mas Olga passa por um processo de transformação importante ao longo do romance, o qual lhe garante maior autonomia sem o marido, conseguindo, enfim, separar-se do casamento que já estava terminado. No decorrer dessa transformação, há a passagem paulatina de uma mulher que se vê como vítima abandonada, para um sujeito de si, mais sereno e amadurecido em relação à vida e ao amor. Nesse romance, o lugar da vítima é assumido rapidamente, e até mesmo utilizado como arma contra a separação e a nova vida do marido com outra mulher.

De certo modo, Olga exprime uma maneira tradicional de conceber as relações conjugais, herdadas de uma moralidade patriarcal que, desde o final do século passado, vem sofrendo transformações em diferentes regiões e culturas. O papel de mãe e esposa de Mario lhe grudou à pele e à alma de tal forma que ela encontrou uma imensa dificuldade para se ver como alguém capaz de viver sozinha ou com outros parceiros.

Na mesma direção, o romance intitulado Foi assim, de Natalia Ginzburg, publicado na Itália, em 1947, mostra uma personagem presa a antigos papéis sociais, resumidos em uma eterna espera do homem amado. A personagem, que nem nome possui, vive segundo a suposição de que o destino das mulheres deveria ser, sempre, casar, ter filhos e se manter como a rainha do lar, dependente do marido. Nesse caso, a mulher seria supostamente incompleta até o momento de se casar e completar-se na realização daquele sonho doméstico. Enquanto Olga, apesar de ainda viver imersa a essa tradição, consegue ultrapassá-la, a personagem de Ginzburg em Foi assim não sai desse antigo modelo e o romance começa da mesma maneira com que vai terminar, anunciando uma tragédia. Já na primeira página do livro, o leitor descobre que a esposa mata o marido e esse ato é apresentado da seguinte maneira:

Disse-lhe: - Diz-me a verdade - e disse: - qual verdade - e desenhava apressadamente qualquer coisa no bloco e mostrou-me o que era, era um comboio muito comprido com uma grande nuvem de fumo negro, com ele a debruçar-se da janela para dizer adeus com um lenço. Disparei-lhe nos olhos. (Ginzburg, 1992Ginzburg, N. (1992). Foi assim (A. A. Caruso, Trad.). Cotovia., p. 9)

Diferente de Olga, essa personagem não consegue sair da relação destruidora, terminando por matar o cônjuge. O fato de ela não possuir um nome já revela a sua limitada espessura pessoal, exprimindo, portanto, algo comum na vida de muitas mulheres: seu destino é interpretado como sendo o de esperar, sempre, pelo homem amado. Essa tendência também foi mostrada por Ernaux, no romance intitulado Uma paixão simples (Ernaux, 1992Ernaux, A. (1992). Passion simple. Gallimard.). Manter-se constantemente à espera do homem amado aparece de modo insistente no romance de Ginzburg (1992)Ginzburg, N. (1992). Foi assim (A. A. Caruso, Trad.). Cotovia.:

Não lhe perguntava nada. Ele voltava para casa tarde, à noite, e eu não lhe perguntava o que tinha feito. Mas tinha esperado por ele tanto tempo que o silêncio se adensava dentro de mim. Procurava inutilmente alguma coisa para lhe dizer com medo que se aborrecesse comigo. (p. 37)

Percebe-se não apenas uma desigualdade ou uma desproporção dos sentimentos e expectativas da personagem, como também uma falta de naturalidade e de descontração em suas atitudes. Ela não consegue mostrar-se descontraída diante do amado porque teme perdê-lo, tem medo do que ele vai pensar dela e do que ele vai fazer nos próximos minutos. A violência conjugal é aqui um ato emocional e psíquico dela para com ela mesma, que a oprime e a mantém constantemente ansiosa e em estado de alerta:

(...) certo dia em que lhe fiz uma observação pareceu-me que não tinha gostado e explicou-me longamente que eu não tinha razão. Tive vontade de morder a língua de raiva pelo que tinha feito. (Ibid., p. 86)

Viver com medo do que se pode dizer ou do que o outro pode pensar, assim como viver em função do outro, levam à constatação de uma imensa penúria afetiva. A certa altura, a narradora conclui que era “demasiado tarde” para mudar, começar qualquer coisa de novo, “um amor ou um filho”. Trata-se de uma mulher dedicada aos serviços da casa, sem realização profissional, com um círculo social limitado. Também Olga, no romance de Ferrante, exprime esse receio de que seja muito tarde para mudar, o que não a impede, contudo, de fazê-lo.

Interessante observar o quanto esse tipo de sofrimento feminino, que certamente ainda existe, passou a ser sobreposto por outro contexto, mais característico dos últimos anos: aquele de mulheres autônomas, independentes financeiramente, realizadas profissionalmente mas que, mesmo assim, vêem-se subjugadas por uma relação amorosa que as inferiorizam e as entristecem, tal como foi ilustrado no caso de Elisa, do romance francês.

Dentro e fora da literatura, relações muitas vezes abusivas, violentas e altamente desgastantes acometem mulheres e homens, incluindo suas diferentes opções sexuais, suas diversas profissões e culturas. Se, conforme Illouz, o amor contemporâneo, valorizado como sendo uma experiência que deve ser de livre escolha, exerce um papel importante no desenvolvimento do individualismo moral e também no avanço do sistema capitalista, a violência conjugal tem necessariamente efeitos sobre a esfera íntima dos indivíduos, mas também sobre a economia e o domínio público (Illouz, 2020Illouz, E. (2020). La fin de l´amour. Enquête sur un désarroi contemporain. Seuil.). A solidão e o enfrentamento doloroso das verdades em situações de violência conjugal expressos pelos romances aqui mencionados também indicam o quanto a literatura pode contribuir, não para a resolução do problema, mas para uma percpeção das emoções em jogo em situações violentas e constrangedoras da vivência conjugal e amorosa as quais, até recentemente, não eram consideradas uma questão, menos ainda um problema.

Referências

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  • Nabokov, V. (2021). Lições de literatura (J. Dauster, Trad.). Fósforo.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2023
  • Revisado
    13 Jun 2023
  • Aceito
    14 Jun 2023
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