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A narrativa no mundo dos que cuidam e são cuidados

Narrative in the world of those who deliver and receive care

La narrativa en el mundo de los que cuidan y son cuidados

Resumos

Trata-se de um estudo mostrando a narrativa como metodologia para conhecer o mundo aparente e oculto do outro. Este outro pode ser o mundo do cliente ou mesmo o mundo dos integrantes da própria equipe de enfermagem. Na primeira parte apresenta-se uma visão geral dos autores que expõe a narrativa como uma forma de relatar o excepcional, os dramas que ocorrem num grupo, sendo a narrativa uma forma de atuar sobre a situação dramática. Na segunda parte são apresentados vários autores que utilizam a narrativa para representar doenças. Finalmente a autora apresenta a narrativa como uma possibilidade para a enfermagem interpretar e agir sobre sua prática.

metodologia; enfermagem


The purpose of the present study is to show the narrative as a methodology that enables the learning about the other's apparent and hidden world. The other may be a client or a member of the nursing team. At first, authors present their general view showing the narrative as a way of reporting the exceptional, the drama experienced by a group, and a form of acting upon a drama situation. Subsequently, authors who use the narrative to represent diseases are presented. Finally, authors show the narrative as a possibility offered to nursing to interpret and act upon its practice.

methodology; nursing


Se trata de un estudio que muestra la narrativa como metodología para conocer el mundo aparente y oculto del otro. Este otro puede ser el cliente, o los integrantes del equipo de Enfermería a que pertenece. En la primera parte se presenta una visión general de los autores en la que se expone la narrativa como una forma de relatar lo excepcional, los dramas que ocurren en un grupo, siendo la narrativa una forma de actuar sobre la situación dramática. En la segunda parte, se presentan varios autores que utilizan la narrativa para representar las enfermedades. Finalmente la autora presenta la narrativa como una posibilidad para que Enfermería interprete y actúe sobre su práctica.

metodología; enfermería


Artigo Original

A NARRATIVA NO MUNDO DOS QUE CUIDAM E SÃO CUIDADOS1 1 Trabalho apresentado à disciplina Antropologia Simbólica da Pós Graduação de Antropologia Social da UFSC; 2 Docente do Departamento de Enfermagem e aluna do curso de doutorado em Filosofia de Enfermagem da Pós-Graduação de Enfermagem da UFSC

Astrid Eggert Boehs2 1 Trabalho apresentado à disciplina Antropologia Simbólica da Pós Graduação de Antropologia Social da UFSC; 2 Docente do Departamento de Enfermagem e aluna do curso de doutorado em Filosofia de Enfermagem da Pós-Graduação de Enfermagem da UFSC

Trata-se de um estudo mostrando a narrativa como metodologia para conhecer o mundo aparente e oculto do outro. Este outro pode ser o mundo do cliente ou mesmo o mundo dos integrantes da própria equipe de enfermagem. Na primeira parte apresenta-se uma visão geral dos autores que expõe a narrativa como uma forma de relatar o excepcional, os dramas que ocorrem num grupo, sendo a narrativa uma forma de atuar sobre a situação dramática. Na segunda parte são apresentados vários autores que utilizam a narrativa para representar doenças. Finalmente a autora apresenta a narrativa como uma possibilidade para a enfermagem interpretar e agir sobre sua prática.

UNITERMOS: metodologia, enfermagem

NARRATIVE IN THE WORLD OF THOSE WHO DELIVER AND RECEIVE CARE

The purpose of the present study is to show the narrative as a methodology that enables the learning about the other's apparent and hidden world. The other may be a client or a member of the nursing team. At first, authors present their general view showing the narrative as a way of reporting the exceptional, the drama experienced by a group, and a form of acting upon a drama situation. Subsequently, authors who use the narrative to represent diseases are presented. Finally, authors show the narrative as a possibility offered to nursing to interpret and act upon its practice.

KEY WORDS: methodology, nursing

LA NARRATIVA EN EL MUNDO DE LOS QUE CUIDAN Y SON CUIDADOS

Se trata de un estudio que muestra la narrativa como metodología para conocer el mundo aparente y oculto del otro. Este otro puede ser el cliente, o los integrantes del equipo de Enfermería a que pertenece. En la primera parte se presenta una visión general de los autores en la que se expone la narrativa como una forma de relatar lo excepcional, los dramas que ocurren en un grupo, siendo la narrativa una forma de actuar sobre la situación dramática. En la segunda parte, se presentan varios autores que utilizan la narrativa para representar las enfermedades. Finalmente la autora presenta la narrativa como una posibilidad para que Enfermería interprete y actúe sobre su práctica.

TÉRMINOS CLAVES: metodología, enfermería

O PROPÓSITO

A enfermagem é a profissão na área da saúde em que seus integrantes tradicionalmente permanecem muito tempo com o cliente e a família em situações muitas vezes dramáticas. No hospital, enquanto o medico e outros profissionais fazem seu trabalho na forma de visitas ou sessões, a equipe de enfermagem permanece na unidade de internação durante 24 horas. Nos ambulatórios e postos de saúde a equipe de enfermagem está presente para fazer o seu atendimento e continua presente quando o cliente espera pelos outros profissionais de saúde. É a equipe de enfermagem que, com uma freqüência cada vez maior realiza o cuidado no domicílio e neste caso tem a oportunidade de ouvir histórias dos membros da família. Nestas situações que muitas vezes são situações de "não fazer" ou de espera para o cliente, as histórias fluem facilmente. Se tivermos tempo de ouvir, perguntamo-nos o que ele queria dizer com isto? E talvez teremos aquela resposta simplista: o cliente não queria ficar só por isto ficou contando história. Será que através destas histórias nós não poderíamos captar melhor sua experiência com a doença e o cuidado?

Por outro lado, nós como profissionais de enfermagem também temos muitas histórias para contar, a convivência com o sofrimento, as lutas junto ao paciente contra a morte, as precariedades das condições de trabalho fornecem um farto material de narração, que pode revelar algo do que permeia este mundo profissional.

Em 1967 dois antropólogos americanos Renato e Michele Rosaldo foram conviver e estudar um povo primitivo nas Filipinas: os Ilongot. Chegando lá, empregando as técnicas de pesquisa tradicionais da antropologia, fazendo perguntas, não conseguiam descobrir o significado de muitas práticas, pois eles respondiam de forma evasiva: porque fizemos assim. No entanto eles contavam muitas histórias sobre caçadas, migrações a outras partes da floresta. Com o passar do tempo, os Rosaldo entenderam que era nessas histórias que se encontrava um rico material para captar o mundo dos Ilongot, que era preciso prestar atenção nelas para conhecer este povo.

O propósito deste trabalho é apresentar alguns autores que colocam as narrativas como uma metodologia para conhecer o mundo aparente ou oculto do outro. Pretendo com isto chamar a atenção da equipe de enfermagem para as narrativas dos clientes, como forma de conhece-los melhor. E por outro lado chamar atenção para a narrativa da própria equipe de enfermagem, como um recurso para captar significados desta arena onde a doença, o sofrimento, a vida, a morte, a busca do bem estar, desempenham um importante papel. Para isto apresentaremos primeiramente alguns autores que tratam das narrativas de uma forma geral para depois apresentarmos estudos de autores que pesquisaram a narrativa de doenças, e finalmente alguns autores que utilizaram a narrativa de enfermeiras.

A NARRATIVA COMO FORMA DE CONHECER O MUNDO APARENTE E OCULTO DO OUTRO

ROSALDO (1993) explica que quando um antropólogo pretende estudar determinadas ações de um povo, como uma caçada por exemplo, ele anotará e descreverá detalhadamente os passos rotineiros desta ação: como é o preparo do material, quais as trilhas que os caçadores seguem, quem vai para a caçada e assim por diante utilizando a técnica da etnografia. Através deste método é possível fazer uma análise acurada porém, incompleta. Revela ainda, que nos estudos que empreendeu entre os Ilongot nas Filipinas, os estudos de caso combinados com as narrativas revelavam o que ficava oculto nos estudos etnográficos tradicionais. Enquanto que nas etnografias é feita a descrição do rotineiro, nas histórias que os Ilongot contavam eles descreviam o inesperado e sua capacidade de manejar estas situações.

Para LANGDON (1994) narrativa consiste em contar um acontecimento numa seqüência estruturada em que na sua forma mais simples possui uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão. Pode descrever um passado distante que pode ser o passado mítico, pode referir-se a tempos históricos explicando episódios que consideraríamos reais, assim como fatos recentes tais como narrativas de acontecimentos pessoais ou envolvendo outras pessoas. Narrativas podem relatar fatos que nunca aconteceram como os contos de fada.

Ainda segundo LANGDON (1993), existe a "não narrativa" que é também uma espécie de narrativa, quando sabemos que algo fora do comum aconteceu e ninguém fala, como a "lei do silêncio" que reina em algumas comunidades brasileiras quando alguém é assassinado ou a questão dos estupros dentro da esfera familiar que não são denunciados, são exemplos desta "não narrativa". Estas situações quando não contadas contribuem para a impunidade, para não resolução de problemas nos levando a pensar na utilidade das narrativas.

As narrativas tem uma performance isto é, elas se desenrolam num contexto com narrador e uma audiência. Para BAUMANN (1977) através da performance seremos capazes de compreender mais sobre a experiência humana. Assim a performance de uma história contada por um cliente a sós com o enfermeiro durante a noite, poderá ser muito diferente da história que um cliente conta para um grupo na sala de espera. A audiência e o contexto influem naquilo que vai ser contado. As narrativas portanto são necessárias e úteis não só para conhecer e sim para avançar e resolver situações.

TURNER (1984) um antropólogo inglês figura central da antropologia simbólica, foi um dos primeiros autores que se debruçou sobre as narrativas. Considerava as experiências como fundamentais para os seres humanos. Num grupo social os dramas que ocorrem são processos que são a base ou fontes das narrativas. Considera que estes dramas são universais, isto é, em todas as sociedades existem dramas que tem a fase onde ocorre uma quebra das regras do cotidiano, passando para uma fase de crise, para em seguida passar para uma fase de redireção, onde se discute soluções no qual um tenta impor seu ponto de vista para o outro. Para finalmente haver a reintegração ou seja a aceitação do ponto de vista do outro. Se nós nos imaginarmos no nosso cotidiano lembramos que os dramas acontecidos no interior do nosso grupo familiar, ou de trabalho, geram histórias ou "fofocas" que influem sobre a condução do próprio drama. Schechner um autor citado por TURNER (1984) mostra que há uma relação cíclica e não linear entre o drama e a cena dramática. Assim o drama alimenta a expressão que pode ser na forma de narrativa e por sua vez a expressão alimenta o drama. Para Turner a narrativa é uma atividade reflexiva que nos faz conhecer eventos passados e seu significado, permitindo compreender situações do presente.

Esta idéia se constitui numa das linhas para entender a narrativa, compartilhada por outros autores de que a narrativa reconstrói dramas e se constitui um equipamento para viver GOOD (1994), Burke apud LANGDON (1997). Também compactuando deste pensamento, ROSALDO (1993) refere que histórias ou narrativas ajudam a formar condutas mais do que refletem simples condutas. Assim nas histórias de fadas que se contam para as crianças, mesmo não sendo verdadeiras, elas se constituem em dramas sob os quais se ocultam regras sociais de conduta que devem ser seguidas numa sociedade. Ainda dentro desta linha temos a pesquisa de MALUF (1992) que ouviu histórias de bruxas numa localidade da ilha de Santa Catarina para extrair destas narrativas as relações de gênero. Ela se perguntava: o que se oculta nestas narrativas que são contadas pelos membros desta localidade como verdadeiras? Mostrando que estas histórias se constituem pequenos dramas sociais, conclui que há um poder dos homens visível e incontestável, porém nas histórias se oculta o poder das mulheres nas relações familiares e na comunidade. Para conviver com esta realidade onde visivelmente os homens mandam e as mulheres obedecem, mas invisivelmente há mulheres poderosas, as histórias de bruxas são contadas. Estas histórias se constituem assim uma forma de convivência entre os sexos neste grupo social.

A partir de GEERTZ (1989),que ao lado de Turner é um dos fundadores da Antropologia Simbólica podemos dizer que as narrativas fornecem um mapa de interpretação e um mapa para a ação na realidade em que vivem. Segundo LANGDON (1997) falando dos Siona (um grupo indígena na Colômbia), suas narrativas se constituem numa forma de mediação entre a cosmologia xamânica como sistema conceptual e a realidade concreta em que vivem. Desta forma as narrativas contribuem para o fluir dinâmico na teia de significados que é a cultura de acordo com Geertz. Ainda que não seja possível captar a totalidade dos significados da teia que se constitui a cultura desta arena dos mundos da saúde e da doença, por tudo o que colocamos aqui, as narrativas se constituem num rico material de pesquisa que podem nos revelar o modo de ser e agir tanto do cliente como da equipe de enfermagem.

AS NARRATIVAS DA DOENÇA

No livro A MONTANHA MÁGICA editada pela primeira vez em 1924 do escritor alemão Tomas Mann, HANS KASTORP o protagonista principal da história que se desenrola no início deste século, chega a uma casa de repouso para tuberculosos no alto de uma montanha da Suíça para visitar seu primo que está com a doença. Ele afirma que é sadio, veio para ficar três semanas com o primo e descansar pois está de férias no seu curso de engenharia naval em Hamburgo. Nas duas primeiras semanas sempre reafirmando que é sadio atribui seu cansaço, calor no rosto, gosto amargo da boca, como coisas da mudança de vida do litoral para montanha. Insiste em não compartilhar da rotina dos doentes tuberculosos que verificavam a temperatura corporal seis vezes por dia, faziam passeios curtos etc. Somente após um forte resfriado, acentuação do cansaço e mal estar, conversando sobre seus sintomas com seu primo e outro tuberculoso, relacionando-os com os de outros familiares já falecidos de doenças pulmonares, ele conversa com a enfermeira, verifica sua temperatura, e finalmente se dispõe a ir ao médico onde o diagnóstico da tuberculose é confirmado primeiramente pela ausculta, depois pelo RX. Hans Kastorp agora sente-se tuberculoso, assume a rotina do cuidado com a doença, verificando diariamente sua temperatura, obedecendo rigorosamente os horários de repouso. Participa das conversas sobre a próxima radiografia a ser feita, sobre o resultado da verificação da temperatura. Até o tempo mudou para ele, agora ele pensa de acordo com o tempo dos "de cima da montanha" diferente do tempo apressado dos "lá de baixo" (MANN, 1980). A idéia da tuberculose foi sendo construída com base na relação dos seus sintomas com as lembranças familiares, conversas com o primo, observação de outros clientes. A experiência da doença foi se moldando aos poucos.

De acordo com KLEINMANN (1980); HELMANN (1994) e LANGDON (1997), existe a concepção da doença como experiência como um processo subjetivo "illness" em oposição ao órgão afetado em termos anatômicos e fisiológicos "a disease". A doença (illness) se constitui num drama social que segundo Turner se constitui fonte de narrativas. Hans Kastorp está envolvido no drama da experiência com a tuberculose que vai gerar uma narrativa na forma de uma carta que ele irá mandar para Hamburgo avisando a sua família e a sua escola que não retornará tão cedo, vai gerar outras e outras narrativas. Para o seu medico, que vê a "disease", Hans Kastorp está com várias cavernas abertas no pulmão que precisam se fechar para ele retornar a sua vida comum. GOOD (1994) argumenta que a disease é localizada no corpo dentro da área do processo fisiológico. A narrativa dos que estão sujeitos ao sofrimento da "illness" em contraste está presente na vida. A illness está enraizada na historicidade humana, na temporalidade das famílias e das comunidades. Está presente em memórias potentes e desejos, e por isto incorpora contradições e multiplicidade.

A vantagem do estudo das narrativas das doenças revela nítidas vantagens sobre outras técnicas de pesquisa pois o conhecimento de saúde não profissional não se constitui um corpo abstrato em destaque, ele se encontra profundamente mergulhado no contexto de ação. O estudo das narrativas permite que seja mantido o elo fundamental entre o saber e o contexto (RABELO,1994).Com os estudos que apresentaremos a seguir tentaremos mostrar nas narrativas este elo da doença (illness) como experiência integrada ao contexto, bem como a narrativa como forma de entender os acontecimentos e se constituírem numa forma de reordenar a vida dentro da realidade da doença.

Entre os vários estudos temos o de GOOD (1994) que estudou as narrativas de 37 pessoas na Turquia que se enquadravam como sofredoras de ataques. Este estudo foi realizado procurando conhecer a visão antropológica de casos em oposição aos estudos de casos clínicos, realizados com mais freqüência. Centrou sua análise em três aspectos: 1-no roteiro da narrativa, 2- na subordinação das histórias ao transcurso da doença e 3- a posição do sofredor no discurso local.

Quanto aos roteiros das narrativas considera dois eixos: o roteiro como uma estrutura que sublinha a história e a roteirização como atividade do leitor que se engaja na história. Roteiro é o que dá ordem a história com sua seqüência de eventos. Identificou cinco tipos de roteiros organizados em termos de estabelecimento da doença, sua revelação temporal na vida do sofredor e suas expressões. Nos casos estudados, a forma mais comum de roteiro, foi o início da doença ligado com um grande trauma emocional como um susto ocasionando um desmaio que depois continuou durante anos. A segunda forma mais comum de história, foram os ataques começando na infância com uma febre ou doença ou injúria como queda e conseqüente trauma craniano. A terceira forma é o ataque que começa sem causa aparente, neste caso as histórias focalizavam a doença na vida do sofredor mas sem um roteiro ordenado. A quarta forma era de mulheres que enfatizaram uma vida de sofrimento com episódios de desmaios que mais se caraterizavam com crises nervosas do que ataques epilépticos. Finalmente, histórias sobre o estabelecimento da doença sendo causada pelo olho do diabo.

O segundo aspecto levantado por Good foi a subordinação da história ao evento da doença, daí a história ter um caráter aberto, para múltiplas leituras e perspectivas, com enredos alternativos, com lacunas onde está o não dito ou o não explicado, em resumo a história vai mudando. Estas táticas subordinadas da representação mostra a natureza da experiência da doença, subjetiva cheia de contradições.

Finalmente o terceiro aspecto é a posição do sofredor na narrativa, em alguns casos de sua pesquisa, o próprio sofredor mesmo adulto não tinha o direito de contar sua história, ela era contada por outras pessoas com mais poder na família, sendo o próprio sofredor o ouvinte de sua história. Assim, diferentes pessoas contavam diferentes versões do caso, falando do sofredor.

Finalmente Good mostra que os entrevistados relacionavam os ataques como fraqueza nas narrativas como forma de moldar a experiência da doença do ataque para uma doença mais aceitável na sociedade turca. A narrativa molda, ajusta a doença na sociedade, diminui a distância entre a ficção e a realidade e entre o aparente e o oculto.

RABELO (1994) fez um estudo num bairro de camada popular na Bahia onde ouviu histórias de mulheres que tinham filhos com "problemas de cabeça" sendo chamados de "malucos" na localidade, com comportamentos estranhos e as vezes até agressivos. Concentrou seu foco no narrador e sua fala, buscando compreender como os indivíduos identificam, explicam e lidam com problemas relativos a saúde mental. Verificou que estas mulheres construíam narrativas sobre a doença dos filhos, procurando atenuar o estigma de maluco. Elas procuravam por um lado dizer que os filhos eram doentes e como doentes tinham a compreensão dos outros para seus atos estranhos e agressivos, e por outro lado debatiam-se em atestar a sua normalidade. Enquanto narradoras, as mães se transformavam também em personagens procurando mostrar que não eram responsáveis pela doença dos filhos, justificando tratamentos feitos, pleiteando outros tratamentos que consideravam necessários. A autora chama atenção para o fato de que estas histórias eram abertas a modificações, a múltiplas leituras de forma semelhante a que Good encontrou nos casos estudados na Turquia.

GARRO (1994) colheu narrativas com clientes portadores de doenças crônicas que aponta um achado importante na posição do narrador como protagonista da situação de doença na família. O narrador procura mostrar o mérito de suas ações como certas, mesmo quando o doente morre. Desta forma a narrativa ajuda a fazer sentido sobre o que aconteceu com o familiar.

LANGDON (1997) examinou a tradição narrativa dos indígenas Siona da Colombia, verificando como eles organizam a experiência da doença e como esta experiência proporciona um modelo narrativo pessoal. A narrativa para este povo é uma importante expressão cultural. A grande preocupação expressada através das narrativas é relacionado com as influencias e forças ocultas que causam as doenças, porém ao mesmo tempo buscam o tratamento físico. Na tentativa de achar as forças ocultas, eles pesquisam os conflitos sociais, políticos e espirituais que podem estar imbricados com a doença. As narrativas operam para estruturar a interpretação final. Langdon conclui concordando com Burke que as narrativas são um equipamento para viver dos Siona.

As narrativas tradicionais entre os Siona são aquelas que são comuns a um grupo, porém existem pequenas variações dependendo quem conta a história se é mulher, homem, se tem poder xamânico ou não, se é pessoa jovem ou idoso. Há também dois tipos de contextos sociais onde as narrativas são feitas: o contexto da performance formal onde todos sentam, trabalham e ouvem alguém mais velho contar a história e o outro contexto mais informal durante as atividades cotidianas onde vão contando os eventos como doenças, desencontros, e outros. Estes contextos de narrativas estão mudando na medida que o estilo de vida destes indígenas vem se transformando rapidamente nos últimos tempos.

A NARRATIVA COMO POSSIBILIDADE PARA A ENFERMAGEM

Retorno ao propósito deste trabalho, que foi o de chamar a atenção para as histórias contadas no mundo onde atua a equipe de enfermagem. Dos autores que abordam a narrativa é importante resgatar a idéia de Turner (1984) de que o drama social se constitui a base da narrativa e de que a própria narrativa tende a influir sobre o transcurso do drama. A partir de GEERTZ (1989) é importante pontuar de que os homens tem "um modelo de" e "um modelo para", onde a narrativa se constitui um importante modelo de interpretação e um importante modelo para ação na realidade prática.

Dos autores apresentados anteriormente que pesquisaram as histórias de doença, estes se situam dentro da visão de que a narrativa se constitui num instrumento que auxilia a interpretar a situação e realizar ações que permitiriam um melhor convívio com a doença tanto aguda como crônica. Neste ponto acredito que a enfermagem pode atentar para as narrativas.

Por outro lado, a enfermagem pode compreender melhor sua própria prática, estando atenta para as próprias narrativas da equipe de enfermagem. Quantas vezes não ouvimos os colegas contando os dramas vividos no dia a dia. Estas narrativas que muitas vezes parecem desabafos, se constituem uma forma de estruturar as interpretações vividas, são um equipamento para viver de acordo com LANGDON (1997).

Este recurso ainda pode ser explorado com mais freqüência na realidade da enfermagem brasileira. Alguns trabalhos, no entanto, apontam nesta direção, como o de GRÜDTNER (199 ) uma enfermeira que narrou sua experiência de estar junto a um cliente no momento da morte. Ela conta, ao ser chamada pela família para participar deste momento derradeiro de sua vida, ela pediu para que todos se retirassem do quarto, e como enfermeira assistiu da melhor forma o cliente na sua morte. Através da narrativa deste drama, a enfermeira procura interpretar suas ações naquele momento, proporcionando a oportunidade de repensar uma outra forma de assistir o cliente e sua família no momento da morte. Ainda GUALDA (1998) na sua tese de Livre Docência, fez um estudo de caso etnográfico no qual entrevistou enfermeiras obstétras do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo. Os relatos destas enfermeiras foram apresentados em forma de narrativa mostrando as experiências, significados e a realidade, possibilitando assim pensar em mudanças e novas direções para a prática.

Finalizando, se as narrativas operam para estruturar as interpretações e ações na vida dos homens, elas são também uma importante possibilidade para a interpretação e ação daqueles que cuidam e são cuidados. Razão para estarmos atentos para aquilo que estamos ouvindo no dia a dia, para aquilo que às vezes não prestamos muita atenção, para aquilo que mais uma vez parece uma história....

Recebido em: 19.2.1999

Aprovado em: 7.12.1999

  • 01. BAUMANN, R. Verbal art as performance Massachussets: Newbury House Publischer, 1977.
  • 02. GARRO, L.C. Narrative representation of chronic illness experience: cultural models of illness, mind, and body in stories concerning the temporomandibular joint (TMJ). Soc. Sci. Med., v. 38, n. 6, p. 775-788,1994.
  • 03. GEERTZ, C. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,1989.
  • 04. GOOD, B.J. Medicine, rationality and experience. An anthropological perspective Cambridge: University Press, 1994.
  • 05. GUALDA, D.M.R. A experiência, o significado e a realidade da enfermeira obstetra: um estudo de caso. São Paulo, 1998. Tese (Livre Docência) - Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo.
  • 06. GRÜDTNER, D. I. Por que não se deseja morrer sozinho - precisa-se do cuidado invisível. In: ARRUDA, E.N.; GONÇALVES, L.T. (Org). Enfermagem e a arte de cuidar Florianópolis: Editora da UFSC, 1999. p. 185-190.
  • 07. HELMANN, C. Cultura, saúde e doença Tradução Eliane Mussnich. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
  • 08. KLEINMANN, A. Patients and Healers in the context of the culture An exploration of the borderland betwen anthropology, medicine and psychiatry. Califórnia: Regents, 1980.
  • 09. LANGDON, E.J. O "dito e o não dito"; Reflexão sobre narrativas que famílias de classe média não contam. Estudos Feministas, n. 1, p. 155-158, 1993.
  • 10. LANGDON, E.J.M. A negociação do oculto: xamanismo, família e medicina entre os siona no contexto pluri-étnico. /Trabalho apresentado para Concurso de Professor Titular na Universidade Federal de Santa Catarina, 1994/.
  • 11. LANGDON, E.J.L. Shamanism, narratives and structuring of illness. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 3, n. 6, p. 187-214, out.1997.
  • 12. MALUF. S. Gênero, poder feminino e narrativas de bruxarias. In: OLIVEIRA COSTA, A.; BRUSCHINI, C. (Org.). Entre a virtude e o pecado Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/ Fundação Carlos Chagas, 1992. p 191-212.
  • 13. MANN, T. A montanha mágica Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
  • 14. RABELO, M.C. A construção narrativa da doença. /Trabalho apresentado no 18º Encontro da ANPOCS, GT- Saúde Corpo e Pessoa. Salvador Bahia, 1994/.
  • 15. ROSALDO, R. Culture and truth.The remarking of social analysis Boston: Beacon Press, 1993.
  • 16. TURNER, V. Social dramas and stories about them. In: MITCHEL, W.J.T. On narrative Chicago: University of Chicago Press, 1984.
  • 1
    Trabalho apresentado à disciplina Antropologia Simbólica da Pós Graduação de Antropologia Social da UFSC;
    2
    Docente do Departamento de Enfermagem e aluna do curso de doutorado em Filosofia de Enfermagem da Pós-Graduação de Enfermagem da UFSC
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jul 2000

    Histórico

    • Recebido
      19 Fev 1999
    • Aceito
      07 Dez 1999
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