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Ela, Linn da Quebrada: travestilidade e representatividade no Big Brother Brasil 22

She, Linn da Quebrada: transvestility and representation in Big Brother Brazil 22

Resumos

Resumo

Neste artigo, partimos das lições de Foucault acerca da arte de governar como uma multiplicidade de formas de gerenciamento de si, do outro, dos bens, do estado ou de outros fenômenos, para compreendermos como ocorre o governo de si e do outro a partir da participação de Lin da Quebrada no BBB 22. O objetivo é analisar o modo de enunciar a travestilidade e a representatividade e as condições de emergência desse discurso. A discussão será empreendida com base nos estudos discursivos foucaultianos (Foucault, 1999a, 1999b, 2002, 2007, 2008, 2009, 2013a, 2013b, 2013c) e nos estudos de gênero e sexualidade (Louro, 2001; Butler, 2000). A metodologia utilizada é a análise enunciativa de Foucault (2008). Concluímos que o governo de si e do outro é empreendido no BBB 22 por intermédio de práticas discursivas que se inserem na ordem do discurso da travestilidade e da representatividade.

Palavras-chave:
Travestilidade; Representatividade; Governamentalidade


Abstract

In this article, we start from Foucault's lessons about the art of governing as a multiplicity of ways of managing oneself, others, goods, the state or other phenomena, to understand how the government of oneself and others occurs from the Lin da Quebrada's participation in BBB 22. The objective is to analyze the way of enunciating transvestility and representativeness and the conditions for the emergence of this discourse. The discussion will be undertaken based on Foucauldian discursive studies (Foucault, 1999a, 1999b, 2002, 2007, 2008, 2009, 2013a, 2013b, 2013c) and gender and sexuality studies (Louro, 2001; Butler, 2000). The methodology used is Foucault's (2008) enunciative analysis. We conclude that the government of self and others is undertaken in BBB 22 through discursive practices that fall within the order of discourse of transvestility and representativeness.

Keywords:
Transvestility; Representativeness; Governmentality


Introdução

Neste artigo, advertimos que não trataremos das diferentes modalidades em que vem se manifestando historicamente a resistência da população LGBTQIAP+. Trataremos, todavia, de apreendê-la através da voz de alguns sujeitos que encarnam, com suas vidas, a memória, o processo tortuoso de construção da identidade, os enfrentamentos com a travestilidade, a discriminação, a tomada de consciência individual e da dimensão política e coletiva desse processo, a construção da crítica e da autonomia que autores — pesquisadores — vêm tratando de diferentes aspectos dessa resistência, com os quais dialogamos aqui, de ação e pensamento em relação aos efeitos de poder/saber produzidos pelo dispositivo travestilidade.

Trazemos para o cenário deste texto a artista multimídia Linn da Quebrada, que é ao mesmo tempo, sobrevivente das estratégias do biopoder, das tecnologias de integração subordinada do dispositivo e das táticas de sequestro da razão e do epistemicídio. Ela é uma daquelas que, escapando do controle do dispositivo de travestilidade/biopoder, alcançaram a autonomia de ação e pensamento diante dos modos de subjetivação por ela proposto, bem como os limites e contradições em que se enredam esses processos. Trata-se de subjetividades produzidas pela dinâmica poder/saber e resistência e que na busca de autonomia frente ao dispositivo constroem, como processo e desafio, uma ética por meio da qual se afirmam simultaneamente o ser-consigo e o cuidado-de-si e dos seus.

A escolha de Linn da Quebrada tem interesse particular para este trabalho pelo que ela sintetiza de articulação de uma trajetória individual de mobilidade e sucesso com a condição de sujeitos coletivos de uma luta de emancipação. Essa escolha consiste na busca de superação dos mecanismos do dispositivo de travestilidade que permite a mobilidade individual minoritária e subordinada em oposição à mobilidade coletiva do agrupamento LGBTQIAP+.

Em muitos casos, as possibilidades ou acenos de mobilidade individual são convites de renúncia à memória coletiva da exclusão histórica, ao pertencimento a comunidade LGBTQIAP+. Portanto, o que nos faz arrolar essa pessoa — Linn da Quebrada — é o que ela sinaliza para estratégias de resistência e ruptura com as várias estratégias de subordinação do dispositivo de travestilidade e de sobrevivência ao biopoder.

Da perspectiva foucaultiana entendemos a identidade travesti no Brasil como um domínio que produz e articula saberes, poderes e modos de subjetivação, conformando um dispositivo de travestilidade. Consideramos que tal como Foucault afirma para o caso da sexualidade, se a travestilidade se coloca como um domínio a conhecer, é porque, relações de poder a “instituíram como objeto possível; em troca, se o poder pode toma-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de procedimentos discursivos” (Foucault, 2008, pFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.. 93). Preliminarmente, a travestilidade é aqui compreendida como uma noção relacional que corresponde a uma dimensão social, que emerge da interação de grupos socialmente demarcados sob os quais pesam concepções histórica e culturalmente construídas acerca da diversidade humana. Disso decorre que ser homem e ser mulher são consideradas polaridades que encerram, respectivamente, valores culturais, privilégios e prejuízos decorrentes do pertencimento a cada um dos polos das identidades.

Diante do exposto, o objetivo aqui é analisar de que modo se enuncia a travestilidade e a representatividade da Linn da Quebrada no Big Brother Brasil 2022 (BBB 22) e as condições de emergência desse discurso em relação a esses sujeitos, neste momento da história, e não outro em seu lugar (Foucault, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.).

A metodologia utilizada é a análise enunciativa de Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., baseada nos princípios da dispersão, da descontinuidade, da regularidade e do campo associado, que permitem analisar enunciados dispersos segundo as relações que mantêm, em sua historicidade e na singularidade de sua existência material.

No plano de texto, este trabalho estrutura-se do seguinte modo: na seção que segue, discutiremos os pressupostos da análise enunciativa de Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. que nos auxiliarão nas análises. Posteriormente, serão realizadas as análises das repercussões da participação da Linn no reality show BBB 22, dedicados à discussão da travestilidade e representatividade e, por fim, apresentamos as considerações finais.

Pressupostos da análise enunciativa de Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

Desde nosso nascimento somos ensinados a viver socialmente e a determinar nossos próprios limites e características que terminam por nos definir. Se observarmos, percebemos que no espaço social ocorrem atos que são produtos das relações que criamos e construímos conosco e os outros. Um desses fenômenos debatidos por vários estudos é a sexualidade, que atua como um dispositivo de constituição dos sujeitos. Isso quer dizer que além do corpo e das genitálias, a sexualidade é também “a intensificação dos prazeres, a incitação aos discursos, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências” (Foucault, 1999aFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.). Logo, ela é produto e produtora dos discursos, de forma tal que eles atuam como um conjunto de “práticas que formam sistematicamente os objetos de [se] que fala” (Foucault, 1999aFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.).

E é por meio do discurso, por exemplo, que a sexualidade produz o sistema de sexo/gênero (Rubin, 2017RUBIN, G. Políticas do sexo: Gayle Rubin. São Paulo: Ubu Editora, 2017.; Butler, 2003BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.) em que tanto o sexo (até então relegado ao âmbito do natural) quanto o gênero (disposto do lado do cultural) são constituídos e funcionam como “arranjos por meio dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana” (Rubin, 2017, pRUBIN, G. Políticas do sexo: Gayle Rubin. São Paulo: Ubu Editora, 2017.. 11). Desse ponto, a sexualidade tem uma função normalizadora da realidade (Foucault, 1999aFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.), produzindo aquilo que deve ser mantido, ao mesmo tempo em que coíbe aquilo que deve ser suprimido, ou ao menos invisibilizado. Em termos práticos, no contexto desse trabalho, há um padrão de normalidade instituída com relação aos corpos, que é mantido e intensificado inclusive por aqueles corpos que não se enquadram nessa categoria, estabelecendo assim identidades e diferenças que se baseiam na configuração corporal das pessoas e a partir das quais elas são essencializadas.

A travestilidade pode ser definida como uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito ou subversão com as normas de gênero. Ou seja, a pessoa travesti não se identifica com o gênero ao qual foi nomeada/criada e a própria travestilidade. Pode-se afirmar que a travestilidade é um desdobramento inevitável de uma ordem de gênero que estabelece a inteligibilidade dos gêneros dos corpos. Ao se analisar esse processo, nota-se como as regras construídas são rompidas, por ver como os corpos tendem a não se adequar. Com isto, a travestilidade acontece no eixo do sistema sexo/gênero como uma posição que tende a fragmentar e eclodir com as formas binárias e institucionalizadas entre masculino e feminino. Dentro da lógica de gêneros construída socialmente, sujeitos travestis são tidos como desviantes da normalização binária.

Para Butler (2003), oBUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. gênero é uma construção que se forma a partir das relações e convívios sociais em que indivíduo, ao longo do tempo, tende a constituir a identificação com aquele que melhor o representa. O binarismo sexual que é construído, dentre outros fatores, pela mídia, tanto fala de práticas desejáveis (normativas) como também cria estereótipos em torno, no caso desse trabalho, das travestis.

O aporte teórico que mobilizamos para a realização deste texto reside nas contribuições de Foucault para a Análise do Discurso (AD). A perspectiva arqueogenealógica do discurso, elaborada a partir dos estudos de Foucault, assinala as condições históricas de existência dos discursos em sua dispersão e segundo as regularidades que mantêm para investigar os “diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” (Foucault, 2009, pFOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 231-249.. 273).

Este texto considera as discussões empreendidas em três momentos das análises, assinaladas pelo próprio Foucault (2009)FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 231-249. e, posteriormente, denominados, didaticamente, por Gregolin (2004)GREGOLIN, M. do R. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso: diálogos e duelos. São Carlos, SP: Claraluz, 2004., entre outros, como as três épocas de Foucault, que são: a arqueologia, na qual são analisados os modos de objetivação do sujeito por saberes; a genealogia do poder, em que Foucault se voltou para as “práticas divisoras”, que objetivam os sujeitos por mecanismos de poder; e a genealógica da ética, em que ele analisou os modos de subjetivação por meio das quais o sujeito faz a experiência de si.

Do primeiro momento, destacamos as questões metodológicas da análise enunciativa. Foucault (2008, pFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.. 98) concebe o enunciado a partir de quatro características que o diferenciam de três elementos linguísticos, a qual são a proposição, a frase e o ato de linguagem. A primeira característica é o referencial do enunciado, que são as suas leis de possibilidade, o campo no qual ele surge. A segunda é que ele “mantém com um sujeito uma relação determinada” (Foucault, 2008, pFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.. 103-104), consistindo esse sujeito nas posições possíveis de serem ocupadas em uma série nunciativa. A terceira característica é o campo associado no qual o enunciado se realiza, que delimita sua relação com a história. A última característica é que o enunciado necessita ter uma existência material, que lhe garante uma singularidade e uma repetição, caracterizando-o por um regime de materialidade repetível.

Neste texto, estamos considerando, o reality show BBB 22 como enunciado, cuja materialidade é audiovisual, organizada em torno do conjunto material que lhe dá contorno: imagem, som, movimentos de câmera, enquadramento, ângulo e disposições dos corpos em ângulos, conforme a morfologia descrita por Milanez (2019)MILANEZ, Nilton. Audiovisualidades: elaborar com Foucault. Londrina, PR: Eduel; Guarapuava, PR: Ed. Unicentro, 2019. Disponível em: https://nilton-milanez.blogspot.com/2020/07/audiovisualidades-elaborar-com-foucault.html. Acesso em: 05 mar. 2022.
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A análise enunciativa proposta por Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. busca as condições nas quais se produziu um enunciado, em um campo de coexistência. Ela se ocupa de enunciados efetivamente produzidos, levando em conta um efeito de raridade, que procura determinar por que apareceu este enunciado, e nenhum outro em seu lugar, já que nem tudo é sempre dito, e os enunciados estão sempre em falta, devendo-se buscar o princípio da rarefação no não preenchimento das formulações possíveis. A análise enunciativa se faz, portanto, em sua raridade e segundo a sua dispersão e regularidade.

Em relação às formulações de Foucault (2009)FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 231-249. sobre a genealogia, situaremos o problema do poder, que nos conduzem ao tema do governo e do gerenciamento da vida. O poder é investigado em seu funcionamento, questionando “como” ele coloca em jogo relações entre pessoas e designa relações entre parceiros. O poder é um modo de ação de uns sobre outros, e por essa razão, o poder está em toda parte, pois é produzido constantemente, em todas as relações, exercido em diversos pontos de modo desigual. Essas relações de poder não são exteriores às outras formas de relações e sim imanentes a elas. Ao mesmo tempo, em toda rede de poder existem resistências possíveis e necessárias.

Outrossim, essas relações de saber-poder se articulam justamente no discurso, concebido como um conjunto de segmentos descontínuos (Foucault, 2009FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 231-249.). O exercício das relações de poder é correlato do governo, tema que Foucault (2013a)FOUCAULT, M. Governamentalidade. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 26. ed. São Paulo: Graal, 2013a, p. 407-431. investigou em diversos textos e outros ditos e escritos. Segundo esse autor, a preocupação com a arte de governar aparece no século XVI, em diferentes formas, desde a religiosa, o governo das crianças, em sua forma pedagógica, até o Estado pelo soberano.

De tal modo, na literatura de tratados de governo anti-Maquiavel, governar refere-se a “governar uma casa, almas, crianças, uma província, um convento, uma ordem religiosa, uma família.” (Foucault, 2013a, pFOUCAULT, M. Governamentalidade. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 26. ed. São Paulo: Graal, 2013a, p. 407-431.. 411). A prática de governar é múltipla e pode ser exercida por variados agentes, como o pai de família, o pedagogo e o professor. O governo do Estado é uma modalidade, entre tantas outras formas, no interior da qual as demais estão contidas. Por essas razões, compreendemos aqui que Linn da Quebrada exerce um poder de governar a partir de sua influência, visibilidade e audibilidade.

A finalidade do governo, resumidamente, é dispor as coisas de um modo correto para conduzi-las a um objetivo adequado a cada uma: fazer com que se produza mais riqueza, com que se forneçam às pessoas meios suficientes de subsistência. O que se entende por “[...] dispor as coisas” é “[...] utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas” (Foucault, 2013a, pFOUCAULT, M. Governamentalidade. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 26. ed. São Paulo: Graal, 2013a, p. 407-431.. 418), ou seja, de modo menos oneroso e menos visível possível.

Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. destaca que a partir do século XVIII, a população surge como problema econômico e político (vinculação da população com a riqueza, a mão de obra, a capacidade de trabalho e o equilíbrio do crescimento). Nessa situação, os governos compreendem a necessidade de lidar não apenas com o indivíduo, mas também com uma população e seus eventos e variáveis específicas, tais como: natalidade, morbidade, fecundidade, estado de saúde, etc. (Foucault, 2008FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.). Assim, nesse século, ocorre a passagem de um modelo de governo da soberania para uma forma política dominada pelas técnicas de constituição de um saber relativo aos fenômenos próprios da população.

Para Foucault (2009), oFOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 231-249. desenvolvimento do Estado como estrutura política fez surgir uma forma de poder ao mesmo tempo, individualizante e totalizadora, que utiliza técnicas de poder das instituições cristãs (pastoral), representado pela figura do pastor. Esse poder pastoral mudou de objetivo e agora não quer mais salvar a vida no outro mundo, e sim neste: garantir saúde, segurança, bem-estar, com base na Medicina, que tem o hospital como instituição que objetiva produção de conhecimento sobre o homem como população e indivíduo. Isso quer dizer que esse poder também passou a ser exercido por aparelhos do Estado, como a polícia, ou instituições privadas e filantrópicas, se disseminando por todo o corpo social, o que nos faz afirmar que Linn também o exerce.

É relevante ainda pontuar que o poder do soberano sobre a morte sofreu transformações na Época Clássica, dando lugar a uma forma de poder que visa gerir a vida. Foucault (1999aFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.; 1999bFOUCAULT, M. Aula de 17 de março de 1976. In: FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975/1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999b. p. 285-315.) situa no século XVIII o desenvolvimento do biopoder, que representa um modo de gestão da vida, manifestado em dois eixos principais: o governo dos corpos dos indivíduos, no caso, a disciplina; e o governo da população de forma geral, isto é, a biopolítica. É com essa forma de poder que são desenvolvidas técnicas diversas de sujeição e adestramento dos corpos e de gestão e controle das populações. Proliferam tecnologias políticas que investem sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, etc., que constituem a biopolítica da espécie humana.

Com a biopolítica, introduzem-se diversos aparatos de controle, dentre eles, o midiático, que terá como função o entretenimento, a informação, a massificação de cultura, dentre outras formas, por meio de programas de entretenimento para a população. É desse mecanismo que Linn da Quebrada lança mão para se constituir como sujeito que governa e exerce relações de poder sobre os corpos dos sujeitos travestis, por meio da representatividade, como discutiremos em outra seção.

De igual modo, estudar a diversidade de gêneros e sexualidades existentes na atualidade nos coloca diante de uma miríade de formas de denominação, condensadas na sigla LGBTQIAP+, que já constitui uma forma de instauração de uma identificação, visto que “[...] a nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma” (Butler, 2000, pBUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, G. L. (org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2000. p. 151-166.. 160).

Essa denominação também é fruto de um processo histórico, em que o discurso é mobilizado como arma em um jogo polêmico e estratégico, de ação e reação (Foucault, 2002FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.). Louro (2001)LOURO, G. L. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 9, p. 541-553, 2001. faz uma investigação histórica sobre a homossexualidade e considera-a, assim como o sujeito homossexual, uma invenção do século XIX. Antes, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo/gênero eram reduzidas ao pecado, concebidas como anormais, sob um julgamento moral, e precisou ser segregada, sob o risco da violência, por serem consideradas práticas desviantes e de sujeitos inferiores.

Foucault 1999a nos explica de que maneira a literatura cristã elaborou uma série de exegeses das Sagradas Escrituras, estabelecendo regularidades com a moral da Antiguidade greco-romana e com o discurso da natureza, para estabelecer argumentos de que existem práticas sexuais tidas como “natura” e “contranatura”. De modo que, esses discursos alicerçaram as bases do dispositivo de aliança (Foucault, 1999aFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.), que restringiu o sexo ao casamento e regulou aspectos da vida social como a família e a transmissão de bens, que são ainda hoje objetos de lutas.

Em lógica similar, as sociedades ocidentais modernas criaram, a partir do século XVIII, o dispositivo de sexualidade, o qual “funciona de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder” (Foucault, 1999a, pFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.. 101), engendra “uma extensão permanente dos domínios e das formas de controle” (Foucault, 1999a, pFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.. 101) e leva em consideração “as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a natureza das impressões, por tênues ou imperceptíveis que sejam” (Foucault, 1999a, pFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.. 101).

Foucault (1999a, pFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.. 100) teoriza sobre a história da sexualidade, compreendendo-a como um dispositivo histórico “em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder”.

Para Foucault (1999a), aFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a. partir do século XVIII, os discursos sobre o sexo não pararam de proliferar, pois ele está ligado a uma revelação da verdade. A prática da confissão do sexo, compreendida como a “colocação do sexo em discurso” (Foucault, 1999a, pFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.. 24) tornou-se uma regra desde a Idade Média, quando a confissão se consolidou como um dos rituais mais importantes para produzir a verdade. A confissão se estendeu aos domínios da medicina, da justiça, da pedagogia, das relações familiares e amorosas, entre outros, de modo que, consoante, a nossa sociedade se tornou “singularmente confessada” Foucault (1999a, pFOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999a.. 59).

Travestilidade e representatividade no BBB 22

O Big Brother Brasil é um programa de reality show que possui um elevado número de audiência e fãs, sendo o maior reality show da América Latina, ou seja, é um programa altamente lucrativo, com imenso engajamento nas redes sociais. Destaca-se também que o programa é popularmente conhecido por apresentar em seu conteúdo competição, conflitos, desentendimentos e propiciar que certos temas e acontecimentos recebam holofotes na mídia e nas mídias sociais.

Nessa acepção, quando se avalia a história desse programa, especialmente a composição de seus participantes é notável a maioria dos escolhidos para integrar o programa são sujeitos cisgênero, heterossexuais, brancos e que se encaixam no padrão estético, sendo inclusive, que esse perfil tende a receber maior aceitação e apoio do público. Ao se verificar a história do programa é perceptível que houve somente a participação de uma participante transexual, Ariadna Arantes, que participou da décima primeira edição. Todavia, a participação de Arantes já indicava a necessidade de discussões sérias e profundas em face à comunidade LGBTQIAP+, especialmente com pessoas transgêneros, travestis e transexuais.

Posto isso, o ingresso de Linn da Quebrada na 22ª edição propiciou inúmeros impactos, sendo um deles o enfoque na travestilidade e na representatividade com a população LGBTQIAP+, especialmente com a população transexual, no entanto, antes de se debruçar sobre as discussões e efeitos produzidos pela participação da Linn no programa, é fundamental explanar conceitos como travestilidade e representatividade, categorias que estão em destaque no contexto atual, especialmente advindos da participação da artista no programa e da articulação dos movimentos sociais em prol do debate com essas pautas.

Ampliando o debate, Abílio (2016, pABÍLIO, A. G. M. Travestilidade e transexualidade: o reconhecimento jurídico das identidades sociais. Revista Hispeci & Lema On-Line, São Paulo, v. 7, n.1, p. 126-142, jan./fev. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/libertas/article/view/408. Acesso em: 27 mar. 2022.
https://periodicos.ufop.br/libertas/arti...
. 128-129) assevera que As travestis, por sua vez, não possuem essa desconexão, embora sua identidade de gênero se volte mais para o sexo oposto, o que se verifica nas suas formas de ser, agir, vestir-se e comportar-se”. Logo em seguida, a autora elucida que “travestis e transexuais são pessoas que desafiam as convenções de performances de gênero e fogem aos padrões impostos pelo binarismo feminino/masculino nas maneiras de ser, de agir e de se comportar” (Abílio, 2016, pABÍLIO, A. G. M. Travestilidade e transexualidade: o reconhecimento jurídico das identidades sociais. Revista Hispeci & Lema On-Line, São Paulo, v. 7, n.1, p. 126-142, jan./fev. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/libertas/article/view/408. Acesso em: 27 mar. 2022.
https://periodicos.ufop.br/libertas/arti...
. 128).

Com base na citação supracitada, é possível tecer algumas colocações. A primeira delas é que a travestilidade está relacionada com vivências cotidianas do gênero feminino, além disso, as pessoas que se autodenominam de travestis geralmente apresentam uma aparência, comportamento que socialmente e historicamente são atribuídos ao gênero feminino, esse é um dos fatores que o conceito do que significa ser mulher/homem deve ser recorrentemente problematizado.

As pessoas travestis tendem a apresentar uma preferência por ser tratada no feminino, ou seja, querem ser chamadas por pronomes femininos, etc. Também é interessante mencionar que a travestilidade busca além do próprio reconhecimento de sua identidade, a superação de estereótipos e parâmetros binários do que significa ser homem, mulher, definições e regras impostas pela sociedade patriarcal, sexista e cisnormativa, ou seja, a travestilidade assim como a transexualidade representam uma fuga e ruptura com os padrões binários, simplórios e permeados de estigmas e assimetrias de poder que atravessam os gêneros.

Partindo desse ponto, quando Linn entra no programa e se apresenta para os seus companheiros de confinamento, ela (re)afirma sua identidade com orgulho e empoderamento. Ela também ressalta que deseja ser chamada por pronomes femininos e explica as razões pelas quais tatuou em sua testa o pronome ela, contudo alguns participantes se referem de forma inadequada com Linn, o que desencadeia reclamações e críticas do público com o tratamento transfóbico por parte de certos participantes, com isso, o apresentador do programa intervém e pede para Linn novamente reforçar e esclarecer as razões que preferem ser chamada por pronomes femininos. As falas e explicações da artista repercutem nacionalmente e têm como um dos impactos despertar a atenção e sensibilidade da sociedade com a população trans, visibilizando principalmente a existência, os direitos e as violências, estigmas que esses segmentos sociais enfrentam no cotidiano.

Além de sua participação ser algo histórico, visto que, é a primeira participante travesti no reality, a participação da cantora também ganha contornos de representatividade. Antes de explicitar os elementos que indicam que Linn é um símbolo de representatividade, é essencial compreender o que é representatividade e distinguir, o conceito de representação e representatividade.

Concomitantemente, há equívocos e dúvidas em relação ao conceito de representação e representatividade, apesar de parecerem similares seus significados, há diferenças significativas entre eles, nesse sentido, conforme elucida Bastos e Batista (2014, pBASTOS, D.; BATISTA, P. Representatividade x Representação: entenda a diferença e a importância. 2014. Disponível em: https://push.com.br/post/representatividade-x-representacao-entenda-a-diferenca-e-a-importancia. Acesso em: 20 abr. 2022.
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. 1) “quando alguém que faz parte de uma minoria aparece nas telas, nas capas de revista, etc., muitas vezes é dito que representatividade importa, porém, isso não é representatividade e sim representação, que é quando uma pessoa representa um grupo de pessoas. Representação também é importante”.

Tendo em vista as colocações feitas por Bastos e Batista (2014)BASTOS, D.; BATISTA, P. Representatividade x Representação: entenda a diferença e a importância. 2014. Disponível em: https://push.com.br/post/representatividade-x-representacao-entenda-a-diferenca-e-a-importancia. Acesso em: 20 abr. 2022.
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, é indispensável pontuar que, representação diz respeito à representação de um grupo social, essa representação pode ser positiva ou negativa, por exemplo, se for uma propaganda com uma mulher, porém o discurso e ideologia presentes na propaganda remetem e defendem de forma implícita ou não ideais sexistas e misóginas, logo esse conteúdo não possui representatividade, tampouco sua mensagem terá efeitos positivos, pelo contrário, essa propaganda pode corroborar a manutenção de estruturas e assimetrias de poder e a naturalização do machismo e violência de gênero; por isso, é imprescindível fazer ressalvas e pontuar as diferenças entre representação e representatividade, para que se evite equívocos e associações simplistas e errôneas acerca dessas categorias.

Em relação ao conceito de representatividade, Andrade (2020, pANDRADE, R. Representatividade: o que isso significa? Politize, 2020. Disponível em: https://www.politize.com.br/representatividade/. Acesso em: 15 abr. 2022.
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. 1) leciona que “a representatividade tem como fator a construção de subjetividade e identidade dos grupos e indivíduos que integram esse grupo”. Logo em seguida, a autora acrescenta: “O que isso significa? Significa que a representatividade não é apenas a organização de grupos buscando que seus interesses sejam representados e garantidos, mas é, sobretudo, parte da formação do que é o indivíduo que compõe esse grupo”.

Em face ao exposto acima, é possível compreender que representatividade significa, de modo geral, que os interesses, demandas de um grupo social, classe, público sejam representados de forma política, ou seja, a representatividade não é algo individual, é coletiva, isto é, um indivíduo que compõe uma minoria social, por exemplo, que se encontra no campo político apresenta as demandas, visibiliza as vulnerabilidades, opressões que seu grupo social enfrenta no dia a dia e defende a implementação de políticas públicas para a melhoria nas condições de vida e a erradicação de violências, estigmas e subalternidade que esse grupo sofre recorrentemente.

No que concerne à representatividade de Linn, é basilar pontuar que antes mesmo de entrar no BBB 22, Linn já era apontada como um símbolo de representatividade, pois por seu legado artístico, sua inteligência, posicionamentos contundentes, sua militância e sua defesa dos direitos das minorias, ela torna-se um símbolo de respeito, referência e inspiração para a comunidade LGBTQIAP+. Além disso, Linn nunca omitiu, tampouco menospreza as pautas e vivências dolorosas e geralmente excludentes e violentas que pessoas travestis enfrentam no cotidiano. Também é importante ressaltar que dentro do programa, Linn relata dificuldades de inserção, tolerância, acesso a direitos básicos, vulnerabilidades socioeconômicas, que a população LGBTQIAP+ lida diariamente.

A artista, por meio de suas falas, sensibilidade, afeto e inteligência demonstra a importância de abordar identidade de gênero, de combater discursos e práticas socioculturais que incentivam e perpetuam violências e desrespeito contra pessoas trans, além disso, Linn defende de forma firme e coerente a relevância de refletir sobre diversidade sexual, desigualdade de gênero, racismo, direitos das minorias, a negação do afeto contra pessoas que não são cisgênero, ademais, ela também discorre e analisa temas como representatividade e a colonização e o ódio contra determinadas identidades, corpos e culturas.

Há que se ressaltar que desde sua entrada no programa, Linn não apenas defendeu sua identidade travesti, como chamou a atenção para a importância da utilização do nome social, pronome feminino com as pessoas travestis. Inclusive, ela provocava frequentemente os demais participantes e o público da violência presente na negação de pessoas travestis de terem seus nomes sociais rejeitados e serem alvos de piadas, comentários jocosos, ataques verbais, físicos que visam à negação, extinção das identidades, corpos, existências de grupos sociais historicamente invisibilizados e alvos de ódio.

Desse modo, defende-se que a participação de Linn no BBB 22 implica em avanços positivos, sendo indiscutivelmente uma representatividade. Pondera-se também que os avanços gerados pela participação de Linn dizem respeito à visibilidade sobre determinados assuntos e uma reflexão crítica e densa sobre a existência e a importância do poder estatal assegurar direitos a população LGBTQIAP+.

Conclusão

O corpo de Linn é “arruinado de história” (Foucault, 2013cFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 26. ed. São Paulo: Graal, 2013c. p. 55-86.), enquanto é resultado das formas de coerção da sociedade em torno dos prazeres sexuais, mas também é um corpo que está arruinando essa história, ao possibilitar novas posturas aos sujeitos, promovendo uma insurreição de identidades por tanto tempo reprimidas. A escalada desse poder de visibilidade e audibilidade é contraditória, pois, ao mesmo tempo, em que causa aceitação entre setores sociais, que passam a consumir os produtos da cultura dessas diversidades sexuais, há também uma renovação dos ataques de setores conservadores, que clamam pelos valores tradicionais da família e também partem para agressão e violência, como alerta Louro (2001)LOURO, G. L. Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 9, p. 541-553, 2001. .

No caso da travestilidade negra em que o corpo negro é em si, na sua existência, uma transgressão no âmbito de um ideal de ego de uma sociedade que se deseja cisnormativa, branca, civilizada nos parâmetros da cultura ocidental e herdeira de seus códigos prescritivos no plano moral os ajustes impostos aos corpos travestis e negros constituem um código prescritivo cujo tipo ideal seria o negro de alma branca, ou seja, um negro ajustado, governado por um alter-ego branco. Inegavelmente que em toda situação de sujeição o opressor é parte constitutiva da psicologia do oprimido, fato exaustivamente estudado e demonstrado por Frantz Fanon cujo título de um de seus livros é autoexplicativo sobre esse tema: peles negras, máscaras brancas.

No processo de sua construção dessa visão do cuidado de si, o sentido de pertencimento a uma causa, decorre, na participação de Linn no reality show BBB 22, do papel que ela exerce na construção da consciência de uma identidade travesti como instrumento de luta política voltada para a emancipação coletiva. Ela emerge como condutora de um rito de passagem da consciência travesti individual para a consciência coletiva mobilizadora para a ação política. No caso de Linn, ela advém primeiramente de quem, para ela, naquele momento, afigura-se como alguém que, “já é uma artista multimídia”, por ser alguém que embora circule nos espaços das mídias, não havia conseguido concretamente se defrontar com o papel de representatividade da travestilidade, em um espaço de grande repercussão midiática. Note-se que é no BBB 22, que Linn se confronta com a invisibilidade da travestilidade, expressão que em Foucault diz respeito aos saberes sepultados pelo saber/poder hegemônico.

O momento de inflexão vem, então, do reconhecimento do Outro/Mesmo que reorganize os sentidos da existência, que sinaliza o projeto para a vida, que responde, organiza e articula, as experiências, angústias de um processo de vida. Esse processo é mediado pelas contradições do pertencimento da identidade travesti, a identificação da luta como o único caminho possível de redenção individual e coletiva para o segmento oprimido e de que isso não é conjuntural, mas parte integrante da vida, condição necessária para ser e permanecer, condição emancipatória da vida no plano individual e coletivo. Por isso tem que ser feito e refeito todos os dias, porque as contradições estão presentes no cotidiano de cada um e de todos. A travestilidade não descansa. Por isso mesmo a luta tem que ser permanentemente contínua.

Como otimista, credita também expectativa neste fortalecimento da identidade política (ser negra e travesti no mundo do branco cisnormativo), a possibilidade de formação de uma pauta mínima de ação da população travesti, vencendo armadilhas interiores de vitimização que alicerçam “os danos causados à subjetividade em sua plenitude”, como também capacitados a enfrentar as propostas naturalizadas no espaço público, fazendo “um acerto de contas com essa história”.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação As (Os) autoras(es) consentem a publicação do presente manuscrito.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Revisado
    14 Fev 2024
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