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“Aprender com”: ecologia dos saberes e a obra de Davi Kopenawa

“Learning with”: ecology of knowledge and the work of Davi Kopenawa

Resumos

Resumo

Este artigo busca promover um diálogo entre a abordagem teórica e analítica de algumas das teorias pós-coloniais, e a obra político, filosófica e crítica sobre o Brasil que o xamã e ativista indígena yanomami Davi Kopenawa, representante do povo yanomami, oferece para os “Brancos”. Este trabalho se insere dentro do programa de pesquisa delineado por Santos e Menezes (2010) com o intuito de promover a construção epistemológica de uma ecologia dos saberes. Para tanto, iremos analisar o livro “A queda do céu - palavras de um xamã yanomami” produzido e escrito conjuntamente por Davi Kopenawa e pelo antropólogo Bruce Albert. Utilizaremos uma metodologia qualitativa de cunho descritivo que tem como procedimentos a pesquisa bibliográfica e documental de fonte de dados.

Palavras-chave:
Davi Kopenawa; teoria pós-colonial; Ecologia dos saberes; insurgência epistêmica; questão indígena


Abstract

This article seeks to promote a dialog between the theoretical and analytical approach of some of the post-colonial theories, and the political, philosophical and critical work on Brazil that the Yanomami shaman and indigenous activist Davi Kopenawa, representative of the Yanomami people, offers to the “Whites”. This work is part of the research program outlined by Santos and Menezes (2010) with the aim of promoting the epistemological construction of an ecology of knowledge. To this end, we will analyze the book “The Fall of Heaven - Words of a Yanomami Shaman”, produced and written jointly by Davi Kopenawa and anthropologist Bruce Albert. We will use a qualitative, descriptive methodology, using bibliographical and documentary research as data sources.

Keywords:
Davi Kopenawa; postcolonial theory; Ecology of knowledges; epistemic insurgency; indigenous question


Introdução

Em 1930, antes de viajar para o Brasil o antropólogo e professor belga Claude Lévi-Strauss se encontrou em um jantar com o embaixador brasileiro na França, Luiz de Souza Dantas e lhe perguntou sobre os índios naquele país. O embaixador, com um tom melancólico, afirmou:

Ah, meu senhor, no Brasil há muito tempo não há mais índios. Essa é uma história muito triste, mas o fato é que os índios foram exterminados pelos portugueses, pelos colonizadores, e hoje não há mais índios no Brasil. É um capítulo muito triste da história brasileira. Há muitas coisas apaixonantes a serem vistas no Brasil, mas índios, não há mais um só […] (Viveiros de Castro, 2010).

Oitenta e sete anos depois, em 2017, o ainda deputado federal do PSC do Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro, afirmou em uma palestra no Clube Hebraica, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que afrodescendentes de comunidades quilombolas “não servem nem para procriar”. No decorrer de sua palestra o deputado prometeu que, caso eleito presidente da república, acabaria com todas as reservas indígenas e comunidades quilombolas do país (Jornal do Brasil, 2018).

Jair Bolsonaro foi eleito presidente da república em 2018 e cumpriu à risca o que prometeu. O seu governo ficou conhecido como o mais prejudicial aos interesses dos povos indígenas desde a redemocratização do país. Segundo o relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, de 2021, produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o período do governo de Jair Bolsonaro é marcado por um “contexto geral de ataques aos territórios, lideranças e comunidades indígenas” que por meio de suas medidas favoreceu “a exploração e a apropriação privada de terras indígenas” (Conselho Indigenista Missionário, 2021, pCONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Relatório: violência contra os povos indígenas no Brasil: Dados de 2021. 2021. . 8). A principal estratégia utilizada pelo poder executivo foi de fomentar sua base aliada para a aprovação de leis com vistas a promover o desmonte “da proteção constitucional aos povos indígenas e seus territórios” (Conselho Indigenista Missionário, 2021, pCONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Relatório: violência contra os povos indígenas no Brasil: Dados de 2021. 2021. . 8).

O que há em comum nesses acontecimentos, tão distantes entre si, que tanto dizem sobre o Brasil? Na primeira anedota, temos um desconhecimento por parte do embaixador brasileiro sobre as reais condições de existência de um grupo social historicamente explorado, silenciado e invisibilizado. No segundo, temos a mobilização de todo o aparato estatal brasileiro para a desconstrução dos direitos duramente conquistados por estes povos na Carta Magna de 1988, baseado num preconceito racial e étnico do presidente da república e que angariou grande apoio de setores relevantes da sociedade brasileira.

Passados 201 anos da Proclamação da Independência do País, podemos afirmar que no contexto brasileiro temos vivenciado na última década um aumento da segregação, violência e discriminação dos povos originários, perpetrada por um Sul Imperial que se mantém graças às benesses do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado globais (Santos; Mendes, 2010).

O presente texto busca promover uma aproximação entre a abordagem teórica e analítica de algumas das teorias pós-coloniais, e a obra político, filosófica e crítica sobre o Brasil que o xamã e ativista indígena yanomami Davi Kopenawa, representante do povo yanomami, oferece para os “Brancos”. Para tanto, iremos analisar o livro “A queda do céu - palavras de um xamã yanomami” produzido e escrito conjuntamente por Davi Kopenawa e pelo antropólogo Bruce Albert. Trata-se de um processo de colaboração que envolveu um contexto histórico extremamente difícil para os Yanomami, transformações teórico-metodológicas da antropologia, além, é claro, das características pessoais de ambos os autores. Este trabalho busca conectá-lo à realidade sociopolítica latino-americana, de forma geral, e mais especificamente à brasileira, tendo como pano de fundo a proposta Boaventura de Sousa Santos (2010)SANTOS, B. de S. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo: Ediciones Trilce, 2010. de uma ecologia dos saberes e de uma insurgência político-epistêmica e a proposta desenvolvida por Catherine Walsh (2007)WALSH, C. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nómadas (Col), Colombia, Universidad Central Bogotá, n. 26, p. 102-113, 2007. sobre as ações de desobediência político-epistêmica.

O trabalho se divide em quatro partes, além desta introdução. Primeiramente, analisaremos um conjunto de fundamentos teórico-analíticos desenvolvidos por pesquisadores que fazem parte da paisagem teórica do pós-colonialismo (Quijano, 2010QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.; Santos, 2010SANTOS, B. de S. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo: Ediciones Trilce, 2010.; Walsh, 2007WALSH, C. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nómadas (Col), Colombia, Universidad Central Bogotá, n. 26, p. 102-113, 2007., 2010WALSH, C. Political epistemic insurgency social movements and the refounding of the state. In: MORAÑA, M.; GUSTAFSON, B. (ed.). Rethinking Intellectuals in Latin America, Iberoamericana Editorial Vervuert, SL 2010. p. 199-211.), com o intuito de compreendermos como a dominação política, econômica e cultural das antigas metrópoles sobre as suas colônias produziu hierarquias entre diferentes tipos de conhecimentos. Em seguida, exploraremos algumas dessas propostas com vistas à superação da situação de dominação presente no Sul global, mesmo após o fim do colonialismo político. Os elementos comuns a estas propostas são o reconhecimento da diversidade de conhecimentos existente no contexto global, buscando reconhecer que o conhecimento é interconhecimento (Santos; Menezes, 2010) e a importância de uma ação de desobediência político-epistêmica (Walsh 2007WALSH, C. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nómadas (Col), Colombia, Universidad Central Bogotá, n. 26, p. 102-113, 2007., 2010WALSH, C. Political epistemic insurgency social movements and the refounding of the state. In: MORAÑA, M.; GUSTAFSON, B. (ed.). Rethinking Intellectuals in Latin America, Iberoamericana Editorial Vervuert, SL 2010. p. 199-211.).

Na sequência, promoveremos um diálogo entre o enquadramento teórico-analítico desenvolvido nas seções anteriores e o manifesto xamânico-filosófico-político “A queda do céu - palavras de um xamã yanomami”, produzido por Davi Kopenawa e Bruce Albert. O objetivo desta seção é trazer à luz estes saberes milenares que vêm resistindo bravamente à sua total dissolução pelo liquidificador modernizante do Ocidente (Viveiros de Castro, 2010, p. 15). Trata-se de um esforço de “conhecer com” e não “conhecer sobre” as experiências narradas por Kopenawa. Por último, teceremos algumas considerações finais sobre esta empreitada, buscando reconhecer caminhos e limites às abordagens apresentadas.

Pensamento abissal e colonialidade do saber: mecanismos de dominação de corações e mentes

Nas últimas décadas temos presenciado um esforço coletivo de um conjunto de autores que buscam compreender a continuidade da existência de práticas coloniais em países latino-americanos mesmo após os seus processos de independência1 1 Referimo-nos especificamente aos autores pós-coloniais e decoloniais, tais como Arturo Escobar (2003); Anibal Quijano (2010); Ramón Grosfoguel (2011); Catherine Walsh (2007); Enrique Dussel (2004); Boaventura de Sousa Santos (2005); Santos e Menezes (2010). . Para esses autores o fim do colonialismo político não significou o fim da exploração e das desigualdades sociais, econômicas e políticas de minorias étnicas e raciais nesses países.

Uma vez reconhecida a manutenção de práticas coloniais, torna-se relevante analisarmos propostas que busquem superar estas formas de dominação, entre elas aquelas que buscam reconhecer a importância de conhecimentos produzidos para além do cânone ocidental moderno, “pois não pode haver justiça social global sem justiça cognitiva global” (Santos, 2010, pSANTOS, B. de S. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevideo: Ediciones Trilce, 2010.. 50). Santos e Meneses (2010, pSANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.. 31) sustentam a ideia de que o pensamento moderno é abissal2 2 O pensamento é abissal no sentido em que elimina qualquer realidade que se encontre do outro lado da linha. distinguindo o que é visível do que é invisível através de uma linha que determina o que existe do que não existe. O caráter fundante desse pensamento abissal é a impossibilidade da copresença de ambos os lados. A existência do “lado de cá” da linha (majoritariamente as ex-metrópoles coloniais) só é possível a partir da negação da existência do “lado de lá” da linha (majoritariamente países que são ex-colônias). Esta inexistência é compreendida como “não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível”. (Santos; Meneses, 2010, pSANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.. 32) que se sustenta na dicotomia baseada na apropriação e na violência, sendo que a apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência significa destruição física, material, cultural e humana.

Em outra proposta teórica, temos o paradigma modernidade-colonialidade que também busca promover uma crítica à modernidade eurocêntrica. Como Alberto Quijano afirma, na América Latina o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade (2010). Para autores dessa corrente3 3 Para uma visão ampla do paradigma modernidade-colonialidade, veja: Castro-Gómez e Grosfoguel (2007). a manutenção da matriz de poder colonial se manifesta na exploração e dominação dos povos não europeus pelos povos dos países assim chamados de centrais. Desenvolvido por Quijano, o conceito chave para esta proposta é o de colonialidade, que é

Um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal (Quijano, 2010, pQUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.. 84).

Com a descolonização jurídico-política saímos de um período de “colonialismo global” para entrar num período de “colonialidade global” que se articula em torno de dois elementos: raça, entendida como uma categoria mental da modernidade; e o capitalismo, entendido como a nova estrutura de controle do trabalho (Grosfoguel, 2008, p. 126). A construção da ideia de raça surge junto com a ocupação da América a partir de 1492, baseada em supostas diferenças biológicas entre grupos, o que acabou por definir relações sociais hierárquicas entre os assim denominados índios, negros e mestiços e os brancos europeus, servindo como instrumentos de classificação social da população. Essa classificação permitiu a legitimação das relações de dominação entre europeus e não europeus4 4 Tal classificação legitimou o extermínio de aproximadamente 35 milhões de indígenas em um período menor de 50 anos pelos invasores europeus (Quijano, 1992). .

Dentro dessa linhagem de pensamento, a colonialidade do saber, conceito desenvolvido por Edgardo Lander (2000)LANDER, E. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO/UNESCO, 2000. é relevante para a compreensão desta hierarquização de conhecimentos e suas consequências nas relações entre os povos originários das Américas e os povos brancos europeus. Trata-se de um dispositivo que organiza em uma grande narrativa universal a totalidade do espaço e do tempo de todas as culturas, povos e territórios do planeta, passados e presentes, impedindo a compreensão do mundo a partir do próprio mundo onde vivemos, nos submetendo a uma lógica onde a Europa é o centro geográfico e a culminação do movimento temporal.

O campo de pensamento crítico pós-colonial tem buscado encontrar formas de resistência e desconstrução das linhas abissais nas sociedades pós-coloniais, reconhecendo assim a herança histórica do colonialismo nas estruturas de poder (Quijano, 2010QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.) e saber (Lander, 2000LANDER, E. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, E. (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO/UNESCO, 2000.) que mantém a exclusão de determinados grupos sociais nestas sociedades.

Das estratégias de superação do eurocentrismo: a ecologia dos saberes e a insurgência político-epistêmica

Santos e Meneses (2010)SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010. e Walsh (2007)WALSH, C. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nómadas (Col), Colombia, Universidad Central Bogotá, n. 26, p. 102-113, 2007. buscam desenvolver estratégias de superação da percepção de superioridade do conhecimento científico moderno ocidental. Os autores defendem a contemporaneidade dos processos e práticas culturais, sejam eles “modernos” ou não. Tratar-se de um processo coetâneo que acontece dos dois lados das linhas abissais (Santos; Meneses, 2010SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.) ou ainda do reconhecimento da importância dos conhecimentos produzidos no que Walsh (2007)WALSH, C. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nómadas (Col), Colombia, Universidad Central Bogotá, n. 26, p. 102-113, 2007. chama de “localidade histórica”, saberes estes derivados e produzidos a partir das racionalidades sociais e culturais distintas que são contemporâneos às práticas e saberes oriundos da racionalidade hegemônica ocidental.

Santos (2017)SANTOS, B. de S. Más allá de la imaginación política y de la teoría crítica eurocêntricas. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 114, 2017. reforça a importância de reconhecermos a inesgotável diversidade e experiência do mundo e a importância de exercermos uma sociologia transgressiva que consiste em contrapor as epistemologias do Sul às epistemologias hegemônicas do Norte global. Para tanto, devemos reconhecer a copresença radical, que sustenta a contemporaneidade em termos igualitários de práticas e atores dos dois lados da linha abissal (Santos; Meneses, 2010, pSANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.. 53), entendendo as Epistemologias do Sul como um conjunto de intervenções que denunciam a dominação epistemológica do colonialismo. Para tanto, o procedimento da ecologia dos saberes se baseia na ideia de que o conhecimento é interconhecimento, reconhecimento e autoconhecimento (Santos, 2006, pSANTOS, B de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura Política. São Paulo: Editora Cortez, 2006.. 157). Trata-se do reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos, se contrapondo à monocultura da ciência moderna.

Por sua vez, Catherine Walsh reafirma a necessidade de dialogar com outras formas de conhecimento para além daquelas produzidas nas universidades e do cânone científico, supostamente neutro e deslocalizado, através da insurgência político-epistêmica, que tem por objetivo não só resistir a uma ofensiva dos mecanismos de dominação, “mas também intervir e transgredir principalmente na arena intelectual” (2010). A proposta de Walsh se contrapõe ao projeto abstrato europeu de conhecimento que se quer universal. Esta estratégia possui três implicações: (i) questiona o papel da autoridade acadêmica; (ii) reafirma a postura proativa e não apenas reativa dos movimentos sociais; (iii) promove a ruptura dos enquadramentos universais, decolonizando as condições de poder, conhecimento e vida (2010).

Fica clara aqui a conexão entre a primeira das implicações de Walsh, quando questiona o papel da autoridade acadêmica, e a proposta de Santos, ao afirmar que a ecologia dos saberes “dificilmente poderá ocorrer em espaços convencionais de produção do conhecimento científico”, ou seja, as universidades e os centros de pesquisa científica (Santos, 2006, pSANTOS, B de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura Política. São Paulo: Editora Cortez, 2006.. 167). Para que a ecologia dos saberes possa se desenvolver é fundamental que ocorra em espaços próximos das práticas transformadoras, de forma tal que “os protagonistas da acção social sejam reconhecidos como protagonistas da criação do saber” (Santos, 2006, pSANTOS, B de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura Política. São Paulo: Editora Cortez, 2006..168).

Com o objetivo de promover estas mudanças, Walsh clama por uma virada epistêmica e sociopolítica, que já aconteceria em países andinos, como o Equador e a Bolívia. A autora afirma que no caso da Bolívia a chegada ao poder de Evo Morales em 2006 teve dois significados importantes: primeiro, a ocupação do Estado pelo movimento social “Movimento al Socialismo” (MAS) que tem suas origens na organização dos cocaleros bolivianos; segundo, pela contestação do modelo hegemônico neoliberal e pelo desenvolvimento de uma proposta alternativa para conter seu avanço (Walsh, 2010, pWALSH, C. Political epistemic insurgency social movements and the refounding of the state. In: MORAÑA, M.; GUSTAFSON, B. (ed.). Rethinking Intellectuals in Latin America, Iberoamericana Editorial Vervuert, SL 2010. p. 199-211.. 205). No caso equatoriano, as mobilizações promovidas pelo movimento indígena com vistas a conter por um lado, o avanço neoliberal e por outro, as imposições de um Estado Nação excludente, transformaram os indígenas em atores políticos relevantes.

Por sua vez, ao refletir sobre o Século Americano Nuestra América e o papel das lutas contra hegemônicas do século XX, Santos reafirma a importância do movimento indígena encabeçado por Quintin Lame na Colômbia em 1914 e do movimento zapatista em Chiapas no México desde 1994. Já pensando no século XXI, o autor reconhece que o movimento indígena tem um papel relevante nas iniciativas contra hegemônicas na tentativa de fazer frente à globalização neoliberal. Segundo Santos e Meneses (2010)SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.:

De entre os movimentos que tem vindo a participar no Fórum Social Mundial, os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensamento pós-abissal (Santos; Menezes, 2010, p. 51).

Promoveremos a seguir o diálogo entre as propostas dos autores e o trabalho de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Seguindo os passos das propostas acima descritas, o objetivo da próxima seção é aplicar estas propostas às falas de Kopenawa, buscando “aprender com” e não um “aprender sobre”.

Davi Kopenawa e a ecologia dos saberes

De acordo com Walter Mignolo (2007), aMIGNOLO, W D. Introduction. Cultural Studies, v. 21, n. 2-3, p. 155-167, 2007. história do pensamento decolonial pode ser traçada levando em consideração dois movimentos distintos: por um lado, um conjunto de indivíduos pensadores e ativistas5 5 Mignolo cita, entre outros, Waman Puma de Ayala no Peru; Mahatma Gandhi na Índia; Amilcar Cabral nas colônias portuguesas na África; e Frantz Fanon no Caribe francês (2007). ; e por outro, um sem-número de movimentos sociais e revoltas6 6 Zapatistas no México, movimentos indígenas no Equador, Bolívia, Nova Zelândia e Canadá. .

Em relação ao primeiro movimento, já há um conjunto de intelectuais indígenas latino-americanos que possui uma produção relevante sobre a reivindicação de direitos epistêmicos, tais como o sociólogo Aymara Felix Patzi Paco (2004) e a advogada, política e ativista quíchua Nina Pacari (2006). No Brasil, dos trabalhos mais contemporâneos e relevantes destacamos os livros de Ailton Krenak (2015, 2019), e o livro de narrativas produzido por Davi Kopenawa, e pelo antropólogo francês que conviveu com os Yanomami, Bruce Albert.

O livro “A queda do céu” foi escrito a partir das conversas realizadas durante uma relação de amizade e confiança que se construiu entre Davi Kopenawa e Bruce Albert durante mais de 30 de convivência. Além de um prefácio escrito por Eduardo Viveiros de Castro, um prólogo e um post-scriptum de Bruce Albert, o livro se organiza em três partes: “Devir Outro”, onde há a descrição do processo de transformação do yanomami Davi em xamã de sua comunidade; ”Fumaça do Metal”, que discorre sobre suas percepções acerca da chegada das estradas na floresta e o surgimento do garimpo e com eles todas as mazelas que trazem os homens brancos (doenças, violência, destruição); e por último “A Queda do Céu”, que discorre sobre o ativista Davi Kopenawa e sua militância para mostrar aos brancos a destruição de seu povo.

Por 12 anos Davi Kopenawa e Bruce Albert desenvolveram conjuntamente este projeto político e filosófico. A imbricação entre os dois se dá em muitos níveis. Da história pessoal de cada um, visível pela comparação dos relatos de ambos (de Davi em toda a narrativa principal, e de Albert sobretudo no posfácio), entre a antropologia e os conhecimentos tradicionais, entre pesquisa científica e militância política (como negar a densidade etnográfica e a inovação metodológica do livro?). Como resultado, temos uma interpretação do mundo, incluindo o “nosso” mundo, produzida no coração da floresta, transformando o livro em um empreendimento xamânico que opera uma tradução, “que desloca, inverte e renova o discurso da antropologia sobre os povos ameríndios, redefinindo suas condições metodológicas e pragmáticas de enunciação” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS de CASTRO, E. Apresentação. In: COHN, S. (org.). Ailton Krenak. 1. ed. Rio de Janeiro: Azougue Editora, 2015.).

O texto principal, construído a partir de relatos e entrevistas gravadas em dois grandes blocos, buscou com grande rigor e preocupação com o detalhe, reconstruir a narrativa indígena a partir de um ponto de vista sintético, operando uma tradução extremamente sofisticada. A leitura do posfácio, no qual o processo de produção do livro é descrito com cuidado, acrescenta à narrativa principal (de Kopenawa) a trajetória de Albert, nos mostrando dois percursos paralelos inseridos no mesmo contexto a partir de universos autônomos e relativamente independentes. Por um lado, a mitologia sobre a origem dos brancos, criados por Omamë, e por outro, o imaginário criado em Albert pelas leituras juvenis dos volumes da coleção Terre Humaine, são testados na experiência, na qual a realidade se impõem ao imaginário de ambos7 7 Para uma belíssima análise acerca da evolução das representações Yanomami sobre os brancos ver também Albert (1992). .

Seguindo os preceitos propostos pela insurgência político-epistêmica (Walsh, 2010WALSH, C. Political epistemic insurgency social movements and the refounding of the state. In: MORAÑA, M.; GUSTAFSON, B. (ed.). Rethinking Intellectuals in Latin America, Iberoamericana Editorial Vervuert, SL 2010. p. 199-211.) e da ecologia dos saberes de Santos (2006)SANTOS, B de S. A gramática do tempo: para uma nova cultura Política. São Paulo: Editora Cortez, 2006. e Santos e Meneses (2010)SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010. buscaremos neste tópico “aprender com” o que este ativista indígena tem a nos dizer sobre os séculos de exploração, violências e silenciamentos a que os povos indígenas foram submetidos no Brasil; as relações entre os homens da floresta e os homens da mercadoria; as relações de ambos com a natureza; suas críticas em relação à ideia de desenvolvimento dos homens brancos e a um ativista que se fez ouvir a partir de seu tratado filosófico-político.

Partindo da análise do texto de Kopenawa e Albert, fica aparente a ausência de uma concepção de desenvolvimento linear, de progresso e avanço para uma sociedade imaginada, um futuro que deva ser buscado a partir das mudanças que fazemos no presente. Para os autores, o mundo é o que é vivido e experimentado como seus antepassados assim o faziam

(Omama) Ele apenas nos diz: “Vocês são como eram seus antigos! Continuem seguindo os rastros deles! Um dia, vocês morrerão; por isso, enquanto estão vivos, não devem temer nada!” Assim é. Ignoramos aquilo que a gente de Teosi, para nos assustar, chama a todo instante de pecado. Não somos ruins; só não somos brancos! Somos como nossos antepassados sempre foram antes de nós (Kopenawa; Albert, 2015, p. 278).

Outra importante questão presente nas teorias pós-coloniais é a tendência à desvalorização do próprio conhecimento dos povos originários para adotarem o conhecimento do colonizador. Como vimos na parte teórica deste texto, trata-se da colonialidade do saber, que nos impede de compreendermos o mundo a partir do próprio mundo onde vivemos.

Foi então que (os missionários) começaram a nos amedrontar com as palavras de Teosi, e a nos ameaçar constantemente: “não masquem folhas de tabaco! É pecado, sua boca vai ficar queimada! Não bebam o pó de Yakoana, seu peito ficará enegrecido de pecado! Não riam e não copulem com as mulheres dos outros, é sujo! Teosi só ficará satisfeito com vocês se responderem a ele!” Essas más palavras, repetidas sem descanso, acabaram assustando os xamãs, que não mais ousaram beber yakoana, nem cantar durante à noite. [...] as novas palavras que diziam os deixavam confusos e ansiosos. Então, um a um, começaram a rejeitar seus próprios espíritos, que foram embora. Os últimos grandes xamãs não tinham coragem de chamá-los nem mesmo para curar os doentes. Emudeceram eles também. Diante disso, todos os outros moradores de nossas casas, pouco a pouco, acabaram aceitando as palavras de Teosi (Kopenawa; Albert, 2015, p. 257).

Dessa forma, a defesa do modo de vida e seus conhecimentos do povo yanomami é uma temática recorrente no texto de Kopenawa e Albert (2015). A passagem a seguir demonstra que querem defender o direito de continuarem vivendo da maneira como vivem em sua relação com a floresta, pois assim também viveram seus antepassados:

Vocês não entendem por que queremos proteger nossa floresta? Perguntem-me, eu responderei! Nossos antepassados foram criados com ela no primeiro tempo. Desde então, os nossos se alimentam de sua caça e de seus frutos. Queremos que nossos filhos lá cresçam rindo. Queremos voltar a ser muitos e continuar a viver como nossos antigos. Não queremos virar brancos! Olhem para mim! Imito a sua fala como um fantasma e me embrulho em roupas para vir lhes falar. Porém, em minha casa, falo em minha língua, caço na floresta e trabalho em minha roça. Bebo yãkoana e faço dançar meus espíritos. Falo a nossos convidados em diálogos wayamuu e yãimuu! Sou habitante da floresta e não deixarei de sê-lo! Assim é! (Kopenawa; Albert, 2015, p. 389).

Os autores também discorrem sobre iniciativas de ensinar aos brancos sobre os malefícios que estão provocando ao explorarem de forma violenta as florestas onde vivem os povos indígenas. Nesse caso, a hierarquia que se manifesta entre as formas de conhecimento se faz presente, ao citar a dificuldade dos brancos em compreenderem o que está acontecendo. No texto, fica clara a tentativa de contrapor seu conhecimento a uma visão que considera equivocada da relação do branco com a natureza. Está presente aqui a insurgência epistêmica e uma tentativa de desconstrução da colonialidade do saber.

Assim, meu sogro costuma me dizer: “você deve contar isso aos brancos! Eles têm de saber que por causa da fumaça maléfica dessas coisas que eles tiram da terra estamos morrendo todos, um atrás do outro!” É o que agora estou tentando explicar aos brancos que se dispuserem a me escutar. Com isso, talvez fiquem mais sensatos? Porém, se continuarem seguindo esse mesmo caminho, é verdade, acabaremos todos morrendo. Isso já aconteceu com muitos outros habitantes da floresta nesta terra do Brasil, mas desta vez creio que nem mesmo os brancos vão sobreviver (Kopenawa; Albert, 2015, p. 372).

As consequências nefastas decorrentes da expansão das fronteiras de exploração de recursos naturais e agronegócio são explicitadas em várias passagens do texto de Kopenawa e Albert. Com o advento dos governos militares pós-1964, a voracidade desenvolvimentista chegou definitivamente à Amazônia abrindo veios para a ocupação da região por meio de projetos de grande vulto. Em 1974-75, o chamado Plano de Integração Nacional (PIN) atinge o então Território de Roraima por meio de três frentes principais: o Projeto Fundiário Boa Vista, as obras da rodovia Perimetral Norte, e as empresas de mineração e garimpo atraídas pelas riquezas minerais encontradas na região (Ramos, 1979RAMOS, A R. Yanomama indians in northern Brazil threatened by highway. In: RAMOS, A. R.; TAYLOR, K. I. (ed.). The Yanomama in Brazil 1979. Copenhagen: ARC/IWGIA, 1979. p. 1-41.; Taylor, 1979TAYLOR, K I. Development against Yanomama, the case of mining and agriculture In: RAMOS, A. R.; TAYLOR, K. I. (ed.) The Yanomama in Brazil 1979. Copenhagen, ARC/IWGIA, 1979. p. 43-98.; Davis, 1978DAVIS, S. Vítimas do milagre: o desenvolvimento e os Índios no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.). Kopenawa percebe mais que nunca os custos socioambientais a que estão sujeitos os povos indígenas, povos tradicionais e a própria floresta.

Os brancos espalham suas fumaças de epidemia por toda a floresta à toa, sem se dar conta de nada, só arrancando o ouro e os outros minérios da terra. Os vapores que saem desses metais são tão fortes e perigosos que até a fumaça da cremação dos ossos de suas vítimas é envenenada. Assim, as poucas pessoas que sobrevivem a uma epidemia também morrem logo depois de respirar essa fumaça. Mas não somos só nós que sofremos dessa doença do minério. Os brancos também são contaminados e no fim ela os come tanto quanto a nós, pois a epidemia xawara, em sua hostilidade, não tem nenhuma preferência! Embora pensem morrer de uma doença comum, não é o caso. São atingidos, como nós, pela fumaça dos minérios e do petróleo escondidos por Omama debaixo da terra e das águas (Kopenawa; Albert, 2015, p. 365).

No caso de uma epidemia que abateu a sua casa, Kopenawa descreve como vários parentes foram morrendo, tais como o tio, a mãe, a irmã mais velha, o padrasto, todos doentes em função da proximidade com os missionários, que iam enterrando os mortos à revelia das tradições dos indígenas. Além disso, junto com a abertura da Rodovia Perimetral Norte na década de 60, chegaram ao interior do território Yanomami centenas de trabalhadores totalmente despreparados para o trato com os índios, que até então permaneciam preservados de um contato maciço com as frentes de expansão da sociedade nacional.

Nenhuma providência em relação à prevenção de doenças contagiosas foi tomada no início, e nos seus primeiros 50 km, a rodovia já havia atingido três aldeias da região do rio Ajarani, causando mortes e uma violenta desestruturação social e sanitária entre seus habitantes (Ramos, 1979RAMOS, A R. Yanomama indians in northern Brazil threatened by highway. In: RAMOS, A. R.; TAYLOR, K. I. (ed.). The Yanomama in Brazil 1979. Copenhagen: ARC/IWGIA, 1979. p. 1-41.). Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a construção da Perimetral causou a

eclosão de diversas epidemias com alta letalidade, como sarampo, gripe e malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por DSTs, vitimando, já no primeiro ano da construção da estrada, cerca de 22% da população de quatro aldeias. Dois anos depois, mais 50% dos habitantes de outras quatro comunidades na área de influência da estrada sucumbiram a uma epidemia de sarampo. No rio Apiaú, no extremo leste do território Yanomami, estima-se que cerca de 100 índios já teriam morrido em meados da década de 70, restando apenas 30 sobreviventes (Ramos, 1993RAMOS, A. R. O papel político das epidemias: o caso Yanomami. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1993. 38 p. (Série Antropologia)). Apenas no vale do rio Ajarani a população foi reduzida de cerca de 400 nos anos 1960 a 79 indivíduos em 1975. (Pateo, 2014PATEO, R. D. Relatório Sobre a Violação de Direitos Humanos na TIY 1960 - 1988. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Não Publicado, 2014.).

Após décadas de luta contra a expansão da xawara em suas terras, recentemente Kopenawa teve que reiniciar sua luta contra um inimigo que, se nunca havia sido completamente derrotado, parecia pelo menos controlado. Com o advento do governo Bolsonaro a força do demônio da epidemia foi renovada com vigor. Uma nova corrida do ouro, agora potencializada pelo poder de fogo do crime organizado, tomou a floresta contaminando a água, destruindo as matas e matando os animais, levando a fome e a morte para as aldeias dos indígenas. Segundo o relatório “Yanomami Sob Ataque” (2022), produzido pela Hutukara Associação Yanomami em parceria com o Instituto Socioambiental, cerca de 20 mil garimpeiros se instalaram em diferentes partes da Terra Indígena. A área destruída pelo garimpo mais do que dobrou de outubro de 2018 a outubro de 2021, atingindo cerca de 3.272 ha. Como nos anos 1980-1990, as denúncias “de papel” passaram desapercebidas pelos corações e mentes dos habitantes das cidades, até que, após a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, imagens chocantes de crianças famélicas, claramente vítimas da ação genocida do Estado brasileiro, mancomunado aos interesses do garimpo ilegal, finalmente tocaram a sociedade e um grande esforço de retomada da área invadida e reconstituição das condições de vida dos indígenas teve início, trazendo promessas de tempos melhores mas também de grandes desafios.

Nessa tarefa, as palavras e o conhecimento xamânico de Kopenawa voltaram a fazer diferença, dessa vez acompanhadas de novas lideranças indígenas e ferramentas de divulgação e pressão (entre elas o próprio livro A Queda do Céu), dando impulso a uma nova forma de política indígena. Nesse contexto, os povos indígenas deram mais um passo na direção de indigenizar a política, dessa vez por dentro do Estado, e sua luta transcendeu os antigos limites geográficos e de gênero, anunciando seu papel permanente de agentes plenos da sociedade brasileira para aqueles que os queriam como categoria transitória na formação de um Brasil no qual os indígenas seriam apenas parte de um passado romântico, mas superado.

Por fim, uma última análise sobre o texto de Kopenawa relativa à sua percepção sobre o que é a política. A conexão entre o que ele define como política e cacique xavante Mario Juruna, deputado federal entre 1982 e 1986 é imediata. Em sua luta pela demarcação das TIs, Juruna percorria os gabinetes da FUNAI buscando apoios para a sua causa. Sempre com um gravador cassete dizia “registrar tudo o que o branco diz” e posteriormente constatar que as autoridades, na maioria das vezes, não cumpriam a palavra. Kopenawa corrobora a percepção de Mario, ao afirmar que a política é só um emaranhado de palavras para lhes confundir e prejudicar.

Quando eu era mais jovem, costumava me perguntar: “Será que os brancos possuem palavras de verdade: será que podem se tornar nossos amigos?” Desde então, viajei muito entre eles para defender a floresta e aprendi a conhecer um pouco o que eles chamam de política. Isso me fez ficar mais desconfiado! Essa política não passa de falas emaranhadas. São só as palavras retorcidas daqueles que querem nossa morte para se apossar de nossas terras.” [...] para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo (Kopenawa; Albert, 2015, p. 390, grifo dos autores).

Conclusão

No presente trabalho partimos do pressuposto de que é necessário reconhecermos que ativistas devam assumir o protagonismo para a criação, construção e intervenção de novas formas de articulação social e política, promovendo assim um diálogo com o conhecimento acadêmico. Nosso intuito foi o de promover um diálogo entre a abordagem teórica e analítica de algumas das teorias pós-coloniais, e a obra político, filosófica e crítica sobre o Brasil que o xamã e ativista indígena yanomami Davi Kopenawa, com o intuito de compreendermos suas percepções acerca da relação dos povos da floresta e os povos da mercadoria; a ideia de desenvolvimento e a percepção que os povos indígenas possuem das mineradoras, petroleiras, dos latifundiários e do extrativismo predatório da floresta. Kopenawa nos transmite todo um conjunto de percepções relativas tanto ao mundo da floresta quanto ao mundo dos brancos.

A crise ambiental a que todos estamos sujeitos é fruto do processo contínuo de destruição das nossas florestas, e nos obriga a questionar as formas de vida sustentadas por uma modernidade construída a partir das linhas abissais da modernidade. Modernidade essa responsável pelo silenciamento e ausências de outras formas de conhecimento humano, e pela hegemonia epistemológica europeia que cria as hierarquias manifestas na colonialidade do saber.

O pensamento pós-colonial busca defender a contemporaneidade dos processos e práticas culturais, sejam eles “modernos” ou não. Tratar-se de um processo coetâneo que acontece dos dois lados das linhas abissais (Santos; Meneses, 2010SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.). A ecologia dos saberes privilegia a produção de conhecimentos de outros povos, sejam eles indígenas, quilombolas, populações tradicionais, africanos, indianos entre outros. Como contraponto às formas de dominação, as insurgências político-epistêmicas e as ecologias do saber são práticas não somente defensivas, mas também ofensivas e que tem como objetivo intervir e transgredir o campo da produção do conhecimento. Essas práticas permitem que vozes como a de Kopenawa questionem as práticas do homem branco, nos convidando a refletir sobre possíveis alternativas para a preservação socioambiental.

Com a análise por nós empreendida neste trabalho, buscamos “aprender com” Kopenawa, ciosos da necessidade de reconhecermos a inesgotável diversidade e experiência do mundo e a importância de exercermos uma sociologia transgressiva que consiste em contrapor as epistemologias do Sul às epistemologias hegemônicas do Norte global. Necessário se faz, portanto, o reconhecimento da copresença radical, que sustenta a contemporaneidade em termos igualitários de práticas e atores dos dois lados da linha abissal.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer ao Professor Doutor Fernando Antonio de Carvalho Dantas, Professor Titular de Teoria do Direito da Universidade Federal de Goiás, pelas importantes contribuições para a elaboração deste texto.

Notas

  • 1
    Referimo-nos especificamente aos autores pós-coloniais e decoloniais, tais como Arturo Escobar (2003); Anibal Quijano (2010)QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, P. (org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez, 2010.; Ramón Grosfoguel (2011); Catherine Walsh (2007)WALSH, C. ¿Son posibles unas ciencias sociales/culturales otras? Reflexiones en torno a las epistemologías decoloniales. Nómadas (Col), Colombia, Universidad Central Bogotá, n. 26, p. 102-113, 2007.; Enrique Dussel (2004)DUSSEL, E. Sistema mundo y transmodernidad. In: SAURABH, D., BANERJEE, I.; MIGNOLO, W. (ed.). Modernidades coloniales. México: El Colegio de México, 2004. p. 201-226.; Boaventura de Sousa Santos (2005); Santos e Menezes (2010).
  • 2
    O pensamento é abissal no sentido em que elimina qualquer realidade que se encontre do outro lado da linha.
  • 3
    Para uma visão ampla do paradigma modernidade-colonialidade, veja: Castro-Gómez e Grosfoguel (2007).
  • 4
    Tal classificação legitimou o extermínio de aproximadamente 35 milhões de indígenas em um período menor de 50 anos pelos invasores europeus (Quijano, 1992).
  • 5
    Mignolo cita, entre outros, Waman Puma de Ayala no Peru; Mahatma Gandhi na Índia; Amilcar Cabral nas colônias portuguesas na África; e Frantz Fanon no Caribe francês (2007).
  • 6
    Zapatistas no México, movimentos indígenas no Equador, Bolívia, Nova Zelândia e Canadá.
  • 7
    Para uma belíssima análise acerca da evolução das representações Yanomami sobre os brancos ver também Albert (1992)ALBERT, B. Fumaça do metal: história e representação do contato entre os Yanomami. Anuário Antropológico/89, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992. p. 151‐90..
  • Agência financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) APQ-02053-18 - “Entre a violência e as redes - as eleições de 2018 e a questão indígena na internet” Data de início: 16/03/2018, Data de término: 07/07/2024
  • Consentimento para publicação: Os autores consentem a publicação do artigo.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação: Não foi necessário.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
  • Revisado
    03 Fev 2024
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