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A terceirização fragmenta, a luta unifica: a unificação sindical como um caminho para o enfrentamento à terceirização

Outsourcing fragments, the struggle unifies: union unification as a way to confront outsourcing

Resumos

Resumo

Este artigo aprofunda as reflexões de um estudo de caso que tem como objeto a relação entre: (i) uma greve no ramo do cultivo de eucalipto no estado da Bahia; (ii) um processo parcial de reversão das terceirizações (primarizações) no mesmo setor. O artigo parte de uma discussão teórica sobre o papel da terceirização dentro da estratégia atual de dominação do capital sobre o trabalho. Na sequência, trata da relação entre a terceirização e o sindicalismo, abordando as suas implicações para a organização e resistência dos trabalhadores. Em seguida, realiza uma breve reconstituição da greve e da luta pela primarização. Para isso, se baseia em uma pesquisa de campo (entrevistas com dez sindicalistas) e documental. A análise conduz à conclusão de que uma característica central do sindicato trabalhista foi essencial para o relativo êxito da greve no enfrentamento à terceirização: a organização conjunta entre trabalhadores terceirizados e nucleares.

Palavras-chave:
Sindicalismo; Trabalhadores; Greve; Terceirização; Primarização


Abstract

This article delves into the reflections of a case study that focuses on the relationship between: (i) a strike in the eucalyptus cultivation sector in the state of Bahia; (ii) a partial process of reversing outsourcing (primarization) in the same sector. The article starts with a theoretical discussion of the role of outsourcing in the current strategy of capital domination over labor. It then looks at the relationship between outsourcing and trade unionism, addressing its implications for workers' organization and resistance. It then briefly recounts the strike and the fight against primarization. To do this, it is based on field research (interviews with ten trade unionists) and documents. The analysis leads to the conclusion that a central feature of the labor union was essential to the relative success of the strike in confronting outsourcing: the joint organization of outsourced and nuclear workers.

Keywords:
Trade unionism; Workers; Strikes; Outsourcing; Primarization


Introdução

Foi a partir dessa greve justamente que [o sindicato] despertou para a questão da terceirização. Porque esses trabalhadores, [que começaram a mobilização] eram terceirizados. Aí a gente pode perceber, e eles também começaram a entender, a responsabilidade que tinha o tomador [a empresa nuclear] […]. (depoimento de Marcos1 1 Os nomes aqui utilizados são fictícios. , dirigente sindical entrevistado2 2 Todos os dirigentes sindicais entrevistados participaram da greve investigada, no ano de 2010, realizada pelo Sindicato dos Trabalhadores de Reflorestamento, Carvoejamento e Beneficiamento de Madeira (SINDIFLORA), da região do Litoral Norte da Bahia, contra uma empresa de cultivo de eucalipto e suas terceirizadas. ).

A epígrafe acima — trecho de uma entrevista sobre uma greve que envolveu trabalhadores terceirizados e nucleares, objeto deste estudo —, sinaliza a principal conclusão que aqui se pretende apresentar: que a organização sindical conjunta entre trabalhadores nessas duas condições pode ser um mecanismo central para o enfrentamento à terceirização.

Neste artigo, aprofundam-se as análises e reflexões de um estudo de caso em que se reconstituiu uma greve no setor cultivo de eucalipto na região do litoral Norte da Bahia em 2010. Reconstituiu-se também um processo de reversão parcial de terceirizações, a partir do ano 2011, no mesmo setor, e investigou-se a relação entre esses dois eventos.

As técnicas de pesquisa utilizadas foram: (i) uma pesquisa de campo com entrevistas semiestruturadas realizadas com dez sindicalistas que estiveram envolvidos nos dois eventos; (ii) uma pesquisa documental com análise de documentos da empresa, de Acordos Coletivos firmados entre a empresa e o sindicato e de três importantes documentos jurídicos: o Dissídio Coletivo de Greve (Brasil, 2010BRASIL. Poder Judiciário. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional da 5ª Região. Dissídio Coletivo de Greve. Processo nº 0000135-03.2010.5.05.0000 DCG. Suscitante: Enflors Empreendimentos Florestais Ltda. Suscitado: Sindiflora. 2010.), um Inquérito Civil do Ministério Público do Trabalho (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011.) e uma Ação Civil Pública Cível na Justiça do Trabalho (Brasil, 2019BRASIL. Poder Judiciário. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional da 5ª Região. Ação Civil Pública Cível. Processo nº 0000417-42.2019.5.05.0221 APCiv. Polo Ativo: Ministério Público do Trabalho. Polo Passivo: Bracell Bahia Florestal Ltda. 2019.); (iii) uma revisão bibliográfica de trabalhos teóricos e empíricos a respeito do tema.

Este trabalho justifica-se pela relevância das reflexões que tal análise pode oferecer na busca de caminhos possíveis para o enfrentamento ao problema da terceirização, em especial por parte do movimento sindical. Desafio cada vez mais urgente, diante da aprovação da Lei nº 13.429/2017 (Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm. Acesso em: 15 mar. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
), que estabeleceu uma liberação indiscriminada para terceirizações no país. E também diante da intensificação das descobertas de trabalho análogo ao trabalho escravo no Brasil, que muitas vezes se relaciona a uma forma tradicional de terceirização em nossas terras, o chamado sistema de “gato” (Druck et al., 2017DRUCK, G. et al. A terceirização no serviço público: particularidades e implicações. In: IPEA. A terceirização do trabalho no Brasil. 2017.)3 3 O sistema “gato” é uma forma de exploração de trabalho muito comum em atividades rurais, em que um intermediador alicia pessoas para trabalhar em troca praticamente de alojamento e alimentação, em condições degradantes e em geral privados de liberdade. Este sistema esteve muito presente no campo investigado nesta pesquisa, nas primeiras plantações de eucalipto na região do Litoral Norte da Bahia (década de 1970 e 1980), e foi uma das primeiras grandes questões enfrentadas pelo Sindiflora (Gonçalves; Machado, 1996). .

Nas seções seguintes se abordará: (1) uma breve discussão sobre o conceito de terceirização, que iluminou esta investigação. Conceito que dá ênfase ao seu aspecto político, considerando a terceirização como parte importante de uma estratégia maior de dominação do capital sobre o trabalho, vigente no capitalismo contemporâneo; (2) as principais implicações da relação entre a terceirização e a ação sindical, sistematizada a partir da literatura sobre o tema. Uma síntese dos principais resultados e análises da pesquisa, dividida em duas partes: (3) a reconstituição histórica da greve e (4) a reversão de parte das terceirizações no setor e luta pela sua primarização; (5) as principais reflexões e conclusões a partir da pesquisa, com ênfase nos desdobramentos de uma característica que se demonstrou muito singular e muito central neste estudo de caso: a vinculação de trabalhadores terceirizados e nucleares a um mesmo sindicato e a sua luta conjunta.

Terceirização e estratégia de dominação

O controle da força de trabalho é, historicamente, um grande desafio ao capital. É este desafio que estimula, segundo Braverman (1983)BRAVERMAN, H. Trabajo y capital monopolista: La degradación del trabajo en el siglo XX. Mexico: Editorial Nuestro Tempo, 1983. o desenvolvimento da chamada “administração científica”. Taylorismo, Fordismo, Toyotismo e seus desdobramentos se constituem não apenas em padrões técnicos e científicos voltados para desenvolver a melhor forma de realizar o trabalho, ou de organizar a produção, mas em respostas “ao problema específico de como controlar melhor o trabalho alienado, a força de trabalho” (Braverman, 1983, pBRAVERMAN, H. Trabajo y capital monopolista: La degradación del trabajo en el siglo XX. Mexico: Editorial Nuestro Tempo, 1983.. 61).

Mas cada modelo, cada padrão, cada tendência histórica no que diz respeito às formas de organização do trabalho e da produção são diferentes. É diferente a proporção dos componentes de um binômio sempre presente para esse controle, para essa dominação. Binômio identificado por Gramsci (1976)GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. como força e consentimento. Em cada momento histórico, diferentes táticas, mais coercitivas ou mais persuasivas, se articulam em uma dada estratégia de dominação. O chamado “padrão fordista” caracterizou-se, em certa medida, por ser um modelo em que altos salários e benefícios previdenciários e sociais “compensavam” a monotonia da veloz e frenética “esteira de produção”. É verdade que este alto padrão de condições salariais e de direitos não era universal. O Fordismo, na sua versão clássica, vigorou apenas nos países capitalistas centrais. E mesmo nestes, havia enormes desigualdades entre categorias e segmentos da classe trabalhadora. Mas havia um modelo, um exemplo, uma referência utilizada para persuadir o conjunto dos trabalhadores.

O momento atual é marcado por um outro “espírito”. Para Harvey (1992), aHARVEY, D. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992. rigidez que marca a época fordista passou a ser substituída pela flexibilidade. A lógica da acumulação, baseada na produção em massa de mercadorias parecidas, produzidas em grande escala, passa a ser “superada” (não sem combinações) por outra. A acumulação no capitalismo contemporâneo obedece a uma outra dinâmica. Ela se sustenta muito mais na diversificação do que é produzido e na sua descartabilidade, bem como no formato “enxuto” (com estoque mínimo) das plantas produtivas. Mas não são só as mercadorias e plantas produtivas que passam a ser descartáveis, enxutas e flexíveis. O atual padrão de acumulação se sustenta em relações de trabalho muito mais frágeis. O capital necessita aumentar suas taxas de lucro a partir das clássicas estratégias de ampliação da mais-valia: de forma absoluta e relativa (Marx, 2006MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. 24. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. v. 1.) ainda que com novas formas (Harvey, 1992HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992.). A precarização social do trabalho ganha, nesse contexto, uma grande centralidade (Alves, 2000ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.).

O capital consegue impor o controle do trabalho, hoje, utilizando como referência, como marco: as péssimas condições de trabalho, a precariedade, o desemprego estrutural, a perda de direitos. A persuasão se manifesta na narrativa que amedronta: “É preciso escolher entre ter direitos ou ter empregos”4 4 Fala do ex-presidente da república Jair Messias Bolsonaro (PL) ainda enquanto candidato no primeiro debate entre presidenciáveis em setembro de 2018, na rede Band. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9EnJeUKwX_c. Acesso em: 04 abr. 2023. . O medo de cair no trabalho precário, para os que ainda tem direitos, e o medo de cair no desemprego, para os já bastante precarizados, é o que faz o trabalhador se submeter aos imperativos do capital.

A terceirização é, por sua vez, um dos principais instrumentos de precarização social do trabalho nesse contexto, especialmente no Brasil, afirma Druck (1999)DRUCK, G. Terceirização: (des)fordizando a fábrica. São Paulo: Boitempo, 1999.. Ela se constitui em um eficiente mecanismo para ampliar a exploração do trabalhador e reduzir seus direitos. É a terceirização que permite um enorme “enxugamento” de plantas, reduzindo os trabalhadores diretos de uma determinada empresa, e ampliando um quadro de trabalhadores que atuam indiretamente no seu processo produtivo.

É o que defende também Filgueiras e Cavalcanti (2015), que aprofundam o debate contestando uma definição muito comum, porém equivocada, de que a terceirização seria simplesmente a transferência de atividades de uma empresa para ser realizada por outras. Ou seja, seria uma “externalização" de atividades, transferindo-se para as terceirizadas parte do processo produtivo. O que acontece, na prática, é que não existe uma autonomia por parte das terceirizadas na realização das atividades. Não há, de fato, a externalização. O processo produtivo segue sob o controle da empresa contratante. É ela que impõe, não raro, a forma e até os ritmos do processo de produção. O que há na verdade, defende Filgueiras e Cavalcanti (2015), é uma externalização não das atividades, mas dos custos, conflitos e direitos trabalhistas. A terceirização permite, na verdade, ainda segundo os autores (Filgueiras; Cavalcanti, 2015, p. 19), a “contratação diferenciada da força de trabalho por parte da empresa tomadora de serviços" através de um ente interposto.

Terceirização e ação sindical

A terceirização, além disso, atinge os coletivos de trabalho, fragmentando-os (Alves, 2000ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.). A precarização social do trabalho e a terceirização atingem, assim, a dimensão política da classe trabalhadora, no sentido de enfraquecer o seu poder de ação enquanto classe, bem como seus instrumentos de organização.

É possível afirmar que a precarização tem, portanto, um duplo objetivo: (1) ampliar a exploração da classe, aumentar a mais-valia, ou, na linguagem empresarial, “reduzir o custo da mão de obra"; bem como, (2) enfraquecer o poder de ação político dos trabalhadores, atingir as “identidades individual e coletiva” com a “desvalorização real e simbólica" do trabalhador (Druck, 2011DRUCK, G. Trabalho, precarização e resistências: novos e velhos desafios? Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. spe. 01, p. 35-57, 2011.).

E nesse sentido a terceirização também é central. Primeiro porque ela inferioriza os trabalhadores que estão nesta condição, segmentando-os, criando os de “primeira” e os de “segunda” categoria, como afirma Druck (1999)DRUCK, G. Terceirização: (des)fordizando a fábrica. São Paulo: Boitempo, 1999.. A velha e eficiente tática de dividir para melhor dominar. Além disso, se pensarmos sobre o ponto de vista da organização sindical, a terceirização é muito eficaz em dificultar (ou mesmo inviabilizar totalmente) o envolvimento e a participação dos terceirizados. A própria condição mais flexível, instável e precária desencoraja o envolvimento desses trabalhadores. Sua condição mais frágil os torna mais suscetíveis a perseguições políticas por parte do patronato. É o que indica Silva e Franco (2007, pSILVA, S.; FRANCO, T. Flexibilização do trabalho: vulnerabilidade da prevenção e fragilização sindical. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (org.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 119-146.. 135) refletindo sobre uma pesquisa no polo petroquímico de Camaçari:

Na indústria da RMS/Bahia, verifica-se, também, que a terceirização facilita a alta rotatividade nas empresas, dificultando a organização coletiva e as ações reivindicatórias nos locais de trabalho, na medida em que a empresa utiliza o instrumento da demissão seja devido ao término/descumprimento do contrato de trabalho, seja para neutralizar trabalhadores militantes. Assim, no que tange ao primeiro aspecto, a empresa, ao demitir os trabalhadores por descontinuidade/término do trabalho, introduz uma cortina de fumaça no mundo sindical e os sindicatos que representam os trabalhadores terceirizados possuem extrema dificuldade para estimar sua base devido à rotatividade na categoria [...].

A terceirização também provoca uma separação política dos trabalhadores que, muitas vezes atuando em um mesmo espaço físico, são representados por sindicatos diferentes. Isso porque de acordo com a estrutura sindical brasileira é o Estado quem define as categorias para uma base sindical (Boito, 1991BOITO Jr., A. O Sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.) e essa definição tem como critério a atividade declarada pela empresa contratante. A consequência disso é uma pulverização imensa de trabalhadores em inúmeros sindicatos, mesmo estando diariamente lado a lado e até em um mesmo espaço físico (embora não tenham muitas vezes sem nenhuma relação).

Quase sempre os sindicatos aos quais correspondem as atividades das empresas nucleares tem uma tradição de organização e luta maior, sendo por isso mais fortes e acumulando Acordos Coletivos mais robustos (Marcelino, 2008MARCELINO, P. Terceirização e Ação Sindical: A singularidade da reestruturação do capital no Brasil. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.). Já com os terceirizados, além de sindicatos de menor tradição, também as empresas são em geral menores e mais frágeis. E há um distanciamento ainda maior entre o terceirizado e a empresa que o contrata, já que muitas vezes se trabalha na empresa contratante.

Pode-se, assim, sistematizar três dificuldades centrais que a terceirização impõe à organização e à luta sindical: 1) a inferiorização dos terceirizados, dividindo e dificultando a solidariedade entre eles e os nucleares; 2) a condição mais precária, que limita o envolvimento com os sindicatos e com as lutas; 3) a divisão dos trabalhadores em categorias diferentes.

Essas dificuldades não são, contudo, intransponíveis. O movimento sindical pode e deve encontrar caminhos para enfrentar essas condições desfavoráveis. Caminhos que ajudem a minar esses mecanismos persuasivos e coercitivos que a terceirização impõe à organização dos trabalhadores. Carelli (2007)CARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68. identifica o que chama de “três dispositivos básicos” que podem ser adotados como mecanismos de enfrentamento à terceirização, tanto para um combate aos seus efeitos mais imediatos, quanto como parte de uma luta maior contra toda essa estratégia de dominação da qual a terceirização é parte. São eles: 1) responsabilizar a empresa contratante pelas condições de trabalho e cumprimento dos direitos trabalhistas dos empregados terceirizados”; 2) lutar por isonomia de direitos e condições de trabalho entre nucleares e terceirizados; 3) lutar pela sindicalização dos terceirizados nos sindicatos dos trabalhadores nucleares (Carelli, 2007, pCARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68.. 66).

Como será abordado nas próximas seções, esta pesquisa sinaliza uma atuação do Sindiflora sintonizada com essas três perspectivas, que Carelli (2007)CARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68. sistematizou muito bem. Indica também que a experiência de sindicalização, organização e luta conjunta entre terceirizados e nucleares foi a condição mais importante para as outras duas. Foi central para que o sindicato orientasse sua luta pela busca de isonomia de direitos. Foi central para pressionar o sindicato a responsabilizar a empresa contratante pelas precárias condições de trabalho e pelo descumprimento dos direitos trabalhistas por parte das terceirizadas.

Uma greve de terceirizados que enfrenta a empresa nuclear

No ano 2010 o Sindiflora realiza uma greve muito marcante contra a principal empresa5 5 Opta-se, neste artigo, por não citar nominalmente as empresas, tanto por não se considerar central para as reflexões, quanto porque houve diversas mudanças dos seus nomes ao longo do tempo, o que tornaria os relatos muito confusos. de produção de eucalipto na região Litoral Norte da Bahia e as terceirizadas que prestavam serviço a ela. Pelo que relatam os entrevistados, os problemas gerados pela terceirização consistiam nas questões centrais enfrentadas pelo sindicato desde suas origens. E a terceirização (e seus desdobramentos) vinha se intensificando enormemente nos anos anteriores à greve. A partir de 1995, não só as atividades-meio, mas o conjunto das atividades centrais da empresa (plantio, manutenção dos eucaliptos e colheita), passaram a ser terceirizadas (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011.). Os poucos trabalhadores contratados diretamente se ocupavam apenas com o “gerenciamento das atividades prestadas pelas empresas terceirizadas” (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011., [doc. 02]). Para se ter uma ideia mais precisa, ao final de 2009 a empresa nuclear tinha apenas 107 trabalhadores próprios (BSC, 2010BSC. Relatório de Sustentabilidade. 2010. Disponível em: http://www.bahiaspeccell.com/shared/relatorio-de-sustentabilidade-2010.pdf. Acesso em: 20 jul. 2018.
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), chegando a alcançar cerca de 4 mil terceirizados neste ano, considerando as contratações temporárias no período de colheita (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011.; BSC, 2010BSC. Relatório de Sustentabilidade. 2010. Disponível em: http://www.bahiaspeccell.com/shared/relatorio-de-sustentabilidade-2010.pdf. Acesso em: 20 jul. 2018.
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).

Nessas empresas terceirizadas ocorriam muitas situações de descumprimento de direitos trabalhistas mínimos, além de diversos outros problemas. Mas o sindicato já vinha conseguindo algumas conquistas no enfrentamento a estes descumprimentos. Em 2009, por exemplo, uma terceirizada que possuía quase 900 empregados abriu falência e só pagou rescisão aos trabalhadores porque o sindicato entrou com uma ação e conseguiu uma ordem judicial de bloqueio de fatura na empresa denunciada (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011., [doc. 01]). Os sindicalistas relatam que esta conquista foi muito importante para aumentar o respaldo do sindicato na base. Até então a entidade sindical ainda tinha pouca força, mas foi crescendo uma repercussão positiva na categoria à medida que esses trabalhadores vinham conseguindo tais rescisões. Isto também foi importante para a deflagração da greve no ano seguinte, e para sua força e ampla adesão.

A greve começou por conta de uma insatisfação na empresa terceirizada que gerenciava o viveiro6 6 O viveiro faz parte da empresa nuclear, embora fosse gerido por uma terceirizada. de produção de mudas. Ao que tudo indica, uma pressão da empresa contratante para aumento da produtividade (esta é uma interpretação dos sindicalistas, que parece muito pertinente e coerente inclusive com o desenrolar da greve) incidiu para que a terceirizada impusesse uma nova dinâmica de distribuição da carga horária semanal, estabelecendo trabalho aos sábados, o que não acontecia antes. Após a realização de duas assembleias, o envio de três ofício à empresa, não tendo havido resposta, os trabalhadores do viveiro iniciam uma paralisação. Desde esse primeiro momento, o movimento já se choca com a empresa nuclear, inclusive impedindo a entrada dos trabalhadores nucleares deste setor.

Foi quando a gente falou que pra a gente ter êxito não era pra ninguém entrar, mesmo que um nosso, um supervisor, um encarregado, viesse falar com a gente. E eles vieram, diziam que a gente tinha que trabalhar, se não a empresa ia mandar a gente embora, e ameaçavam a gente de toda maneira. O sindicato veio e disse: “Olha, vocês não vão trabalhar, se vocês trabalharem perdem o direito de vocês. Aí a gente vai acabar sem força. Então, ninguém pode entrar. Não deixe ninguém entrar.” Então eu e outras colegas fomos lá e tomamos a frente do portão da empresa até pra não deixar o próprio pessoal que era da [empresa nuclear] entrar, na época a gente era terceirizado (depoimento de Maria, dirigente sindical entrevistada, trabalhadora do viveiro na época da greve).

Como o sindicato estava em campanha salarial e negociação com as empresas para um Acordo Coletivo, articula uma associação da pauta da paralisação do viveiro com as demais pautas da categoria. Os segmentos das outras áreas também tinham várias demandas acumuladas. Isso levou a um processo de adesão e unificação dos trabalhadores das diversas empresas terceirizadas, e inclusive da empresa nuclear (que à época, como já mencionado, eram bem poucos).

Foi uma época de Acordo Coletivo. Aí juntamos uma coisa com a outra. Como já estava o movimento para tirar o dia de sábado, como não tinha negociado, as empresas estavam amarrando, aí unificamos as lutas para retirar o dia de sábado e também para negociar acordo coletivo. (depoimento de José, dirigente sindical entrevistado).

Nisso apresentamos a pauta [da negociação do Acordo Coletivo]. Os trabalhadores começaram a se interessar pela pauta reivindicatória. Aí outros trabalhadores que iam chegando de outros setores, da colheita, do plantio, da manutenção, iam chegando e iam vendo a pauta lá e foram também aderindo aos que já estavam paralisados. (depoimento de Paulo, dirigente sindical entrevistado).

[Os] outros trabalhadores, inclusive trabalhadores de outras empresas [terceirizadas], além dos trabalhadores do viveiro empregados pela [terceirizada que gerenciava o viveiro], começaram a aderir ao movimento, e eles pararam também, porque eles também tinham reclamações nos seus setores de trabalho. (depoimento de Marcos, dirigente sindical entrevistado)7 7 Há sintonia entre os trechos citados, mas as entrevistas foram realizadas separada e individualmente. .

Assim, como as empresas resistiam em negociar, a paralisação se desdobrou em uma greve, que durou oito dias. À interrupção das atividades do viveiro, se somaram outras ações para pressionar, tendo como desfecho a interrupção total do carregamento de madeira para uma fábrica de celulose (fábrica essa também ligada à empresa principal, e para a qual se destinava a quase totalidade da produção). Só assim, depois também de uma disputa judicial, se chegou a um acordo. Foi aceita a retirada do trabalho aos sábados, além de incorporadas algumas outras reivindicações no Acordo Coletivo.

Houve duas táticas do sindicato na greve que, na interpretação deste pesquisador, foram muito importantes para o desfecho favorável aos trabalhadores: (1) articular as diferentes pautas para unir e mobilizar o conjunto da categoria; (2) o envolvimento do conjunto das empresas no conflito, em especial a empresa nuclear. O primeiro já foi abordado acima. Ele se relaciona com o segundo, porque a unidade das pautas direciona a luta e as reivindicações não apenas para as empresas terceirizadas, mas especialmente para a nuclear.

O fato de o sindicato lidar cotidianamente com o conjunto das empresas o permitia visualizar o poder que a contratante exercia sobre as demais. Inclusive para ser possível o atendimento das demandas:

[...] Sem contar que a empresa [terceirizada] fica meio que refém da ‘tomadora’ [do serviço]. No contrato tem o valor do serviço que tem que cobrir tudo. Então, “se eu tiver que garantir qualquer direito, tenho que negociar com a ‘tomadora’ e com o trabalhador”. A ‘tomadora’ por sua vez diz que a relação com a terceira é comercial, que não tem como discutir relação. (depoimento de Marcos, dirigente sindical entrevistado).

Há várias evidências do esforço desta estratégia do sindicato, de trazer a empresa principal para o conflito. Ainda antes do início da paralisação do viveiro o sindicato passa a incorporar como destinatário dos ofícios de comunicado do movimento a empresa nuclear e o sindicato patronal (os dois primeiros ofícios foram destinados especificamente à empresa terceirizada) (Brasil, 2010BRASIL. Poder Judiciário. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional da 5ª Região. Dissídio Coletivo de Greve. Processo nº 0000135-03.2010.5.05.0000 DCG. Suscitante: Enflors Empreendimentos Florestais Ltda. Suscitado: Sindiflora. 2010.). Depois, passa a reivindicar a incorporação do atendimento da pauta “do sábado”, no Acordo Coletivo. Além disso, as ações da greve deixam de focar apenas o viveiro de produção de mudas, e tentam incidir em todo o processo produtivo.

As empresas, por outro lado, adotam a estratégia oposta: agem conjuntamente, mas fazem parecer que o conflito é individualizado, como evidenciam os fatos. Vamos a alguns deles. A empresa nuclear entra com uma ação de Interdito Proibitório (quatro dias após o início da greve) para liberar o piquete à frente do viveiro, alegando se tratar de um conflito entre os trabalhadores e a terceirizada, com a qual ela não tinha a ver (Brasil, 2010BRASIL. Poder Judiciário. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional da 5ª Região. Dissídio Coletivo de Greve. Processo nº 0000135-03.2010.5.05.0000 DCG. Suscitante: Enflors Empreendimentos Florestais Ltda. Suscitado: Sindiflora. 2010.). Contudo, assim que a ação é negada (no dia seguinte), a empresa terceirizada faz um requerimento de Dissídio Coletivo de Greve postulando, por um lado, a abusividade da greve, por outro solicitando uma audiência de conciliação. Este requerimento imediatamente após a negativa do Interdito Proibitório, bem como após o avanço do movimento para paralisação de outros setores da empresa nuclear, sinaliza uma atuação conjunta. Esta atuação conjunta fica ainda mais evidente nas participações na audiência e na assinatura do Termo de Acordo de Conciliação. Ainda que se identifique como parte no Dissídio apenas a empresa terceirizada, quem assina o Termo é uma Comissão de Negociação do sindicato patronal (Brasil, 2010BRASIL. Poder Judiciário. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional da 5ª Região. Dissídio Coletivo de Greve. Processo nº 0000135-03.2010.5.05.0000 DCG. Suscitante: Enflors Empreendimentos Florestais Ltda. Suscitado: Sindiflora. 2010.).

A concepção de terceirização na qual este trabalho se baseia, a entende não como uma externalização do processo de trabalho, mas dos custos, direitos e conflitos (Filgueiras; Cavalcante, 2015FILGUEIRAS, V. A.; CAVALCANTE, S. M. Terceirização: debate conceitual e conjuntura política. Revista da ABET, João Pessoa, v. 14, n. 1, p. 15-36, 2015.). O Sindiflora atinge este, que é um dos objetivos políticos da terceirização, ao trazer a empresa nuclear para dentro do conflito. Além disso, atua em consonância com o primeiro dispositivo de enfrentamento à terceirização (responsabilizar a empresa contratante pelas condições de trabalho e cumprimento de direitos de suas terceirizadas), sistematizado por Carelli (2007)CARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68., também mencionado anteriormente.

Ainda com base em Carelli (2007)CARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68., identifica-se uma atuação deste sindicato norteada pelo segundo dispositivo (lutar por isonomia entre nucleares e terceirizados). E essa luta é levada às últimas consequências quando o sindicato parte para uma batalha pela primarização das atividades terceirizadas pela empresa central.

A luta pela primarização

Em abril de 2011 o sindicato faz uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho (MPT) das terceirizações na empresa, alegando ilicitude. Em maio, o MPT instaura um Inquérito Civil (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011.) e conclui, em parecer, que as terceirizações são ilícitas, tanto por se tratar de atividades-fim8 8 Ainda vigorava como entendimento maior sobre o tema a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que não legitimava a terceirização em atividades fins. , mas também por haver precarização nas condições de trabalho. Para isso recolhe depoimentos em audiências administrativas e documentos das partes envolvidas. Por isso, a empresa se comprometeu, em Acordo Coletivo de Trabalho, em apresentar um plano gradual de primarização das suas atividades, como ela mesma declara ao MPT:

[...] manifesta interesse do grupo econômico em projeto de primarização das atividades fins da empresa [...], notadamente silvicultura, viveiro, pesquisa e desenvolvimento e colheita; que tal projeto será implementado de forma gradativa, respeitando-se a capacidade econômica do grupo e disponibilidade de recursos humanos, haja vista a necessidade de qualificação para execução dos serviços; que no referido projeto existe intenção da empresa em aproveitar o máximo dos quadros das empresas terceirizadas; que já foi feito estudo de viabilidade, o qual já foi apresentado ao Sindicato; que acredita que em 2013 consegue concluir esse projeto; que a primarização iniciará com a colheita, posteriormente viveiro, pesquisa e desenvolvimento, por fim silvicultura [...]. (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011., [doc. 02]).

Houve, de fato, o início desta primarização. Ainda em 2011 foram contratados e treinados 60 trabalhadores para operarem os tratores de colheita (BSC, 2011). Entre 2011 e 2012, o viveiro deixou de operar temporariamente9 9 De acordo com informações dos entrevistados por conta da contaminação por um fungo. e novas instalações passaram a funcionar em outro município próximo, já com empregados diretos da empresa nuclear10 10 Os entrevistados afirmaram que parte dos incorporados eram terceirizados do viveiro anterior, atendendo a reivindicação do sindicato. . Ao final deste processo a empresa saltou de cerca de 100 para próximo a 600 trabalhadores diretos. Porém, a primarização parou nestes dois setores, que são os que empregam o menor número de trabalhadores e ainda foram os setores que passaram por uma maior automação neste período (o que implicou em redução de funcionários, e uma necessidade de maior qualificação destes). (BSC, 2013BSC. Relatório de Sustentabilidade. 2013. Disponível em: http://www.bahiaspeccell.com/shared/relatorio-de-sustentabilidade-2013.pdf. Acesso em: 20 jul. 2018.
http://www.bahiaspeccell.com/shared/rela...
).

Foi realizada uma nova audiência, em agosto, entre a empresa e o MPT, e este propôs a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para um compromisso de avanços e prazos nas primarizações. A empresa pediu um prazo maior para estudar a proposta. Novas audiências foram realizadas. A empresa seguiu pedindo mais prazos. Um prazo final foi estabelecido pelo MPT e a empresa não mais respondeu. Logo após a aprovação da Lei das Terceirizações (Lei nº 13.429/2017), em julho de 2017, a empresa reivindica o arquivamento do Inquérito alegando perda do objeto do procedimento, reivindicação não atendida. (Brasil, 2011BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria do Trabalho no Município de Feira de Santana. Inquérito Civil. Processo nº 000194.2011.05.006/1 IC. Inquirido: Bahia Specialty Cellulose SA, Copener Florestal Ltda. 2011.).

Em 2019 o MPT, partindo deste inquérito, e atualizando o seu parecer, em base à novos contratos solicitados à empresa, ingressa com uma petição de Ação Civil Pública na Justiça do Trabalho. Argumenta que, ainda que a nova lei possibilite a terceirização de atividades fins, as terceirizações referidas continuariam sendo ilícitas, porque, com base nas análises dos contratos, compreende-se que não há de fato "prestação de serviços", mas "intermediação de mão-de-obra”, que segue sendo impedido pela legislação vigente (Brasil, 2019, pBRASIL. Poder Judiciário. Justiça do Trabalho. Tribunal Regional da 5ª Região. Ação Civil Pública Cível. Processo nº 0000417-42.2019.5.05.0221 APCiv. Polo Ativo: Ministério Público do Trabalho. Polo Passivo: Bracell Bahia Florestal Ltda. 2019.. 11):

A análise dos contratos firmados pelas reclamadas demonstra que elas exercem total controle das atividades, ditando todas as ordens técnicas, operacionais e de pessoal das prestadoras de serviços, não havendo qualquer autonomia de gestão, inclusive quanto aos trabalhadores, pelas contratadas.

O processo segue tramitando, desde então, com vários procedimentos e audiências, mas até a data da escrita deste texto, ainda não tinha sido julgado.

Algumas conclusões e reflexões

A primarização que aconteceu no setor até então é bastante parcial e ilimitada. Mas, ainda que limitada, significou uma conquista importante, especialmente no fortalecimento da luta travada por este sindicato, e por todos os agentes que combatem a precarização do trabalho. O contexto imediatamente posterior à greve impôs uma resposta da empresa, que além de concordar com a primarização e elaborar um plano inicial para isso, incorpora esse compromisso no Acordo Coletivo de Trabalho. Com o passar do tempo, com o desenvolvimento de uma conjuntura maior desfavorável a esta causa, especialmente com aprovação da Lei das Terceirizações (Brasil, 2017BRASIL. Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm. Acesso em: 15 mar. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a...
), a postura da empresa muda.

A força da greve, assim, incidiu na forma como a empresa respondeu ao tema das primarizações. Mas, antes disso, a greve foi importante para impulsionar o sindicato na iniciativa de lutar, e recorrer ao MTP pela primarização das atividades. Como mencionado na epígrafe deste artigo, para os sindicalistas, a greve os "despertou" para a centralidade da terceirização. O enfrentamento às consequências da terceirização já existia desde o início da atuação do Sindiflora, mas é com a greve que o entendimento passa a ser da necessidade de enfrentar a própria terceirização. Como afirmado anteriormente, a experiência de atuação cotidiana do Sindicato no enfrentamento ao conjunto das empresas, incluindo a nuclear, os fez perceber desde o início da mobilização a necessidade de trazer a empresa principal para o centro do conflito e de responsabilizá-la pelas demandas pleiteadas pela greve, que na sua maioria decorriam da terceirização.

É perceptível, no decorrer das entrevistas, que há uma concepção do sindicato (que a greve fortaleceu, ou mesmo desenvolveu) que corresponde aos dois primeiros “dispositivos” de enfrentamento à terceirização sistematizados por Carelli (2007)CARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68., como já aqui abordado11 11 São eles: (1) responsabilizar a empresa contratante pelas condições de trabalho e cumprimento de direitos de suas terceirizadas; (2) lutar por isonomia entre nucleares e terceirizados (Carelli, 2007). . Mas nos parece que é o terceiro dispositivo, uma condição já vivenciada por este sindicato, que está na base desta orientação maior de sua atuação. A “sindicalização conjunta de terceirizados e nucleares” é uma condição fundamental para uma atuação consequente do sindicalismo no enfrentamento às terceirizações. Esta condição é importante porque reduz o impacto da fragmentação dos coletivos de trabalhadores e de sua solidariedade que a terceirização impõe. Importante também porque direciona o enfrentamento das lutas destes terceirizados contra a empresa nuclear, confrontando assim a “externalização dos conflitos”. E acaba por direcionar a atuação do sindicato ao enfrentamento contra a própria condição terceirizada, e a luta pela primarização, com evidencia esta experiência e esta greve.

Contudo, é preciso fazer uma ressalva importante: esta condição encontrada neste estudo de caso é excepcional. A estrutura sindical corporativa e atrelada ao estado (Boito, 1991BOITO Jr., A. O Sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. Campinas: Editora da Unicamp, 1991.), impõe que cabe ao estado determinar a quais sindicatos os trabalhadores podem pertencer. Como já mencionado, essa determinação tem como um dos critérios a definição das categorias dos trabalhadores a partir da atividade econômica declarada por cada empresa à qual se vinculam estes trabalhadores. Na maioria das vezes as empresas terceirizadas declaram atividades totalmente diferentes daquelas exercidas pelas empresas nucleares. No caso em questão, todas as empresas pertenciam ao ramo da silvicultura, e, por isso, tanto elas faziam parte de um mesmo sindicato patronal, quanto seus empregados, de um mesmo sindicato trabalhista.

É preciso pensar e debater como enfrentar este elemento (e não só este) da estrutura sindical, para buscar uma sindicalização conjunta entre trabalhadores terceirizados e nucleares. É preciso pensar formas de articulação, mas também de unificação, de sindicatos que representam e organizam trabalhadores fragmentados por essa estratégia política da atual fase do capitalismo. A organização conjunta entre trabalhadores terceirizados e nucleares, assim, parece ser um grande desafio e mesmo uma necessidade para o sindicalismo na sua luta contra a terceirização.

Este artigo sistematiza, desenvolve e aprofunda os resultados de uma pesquisa finalizada em 2020 e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (2017/1711947).

Notas

Agradecimentos

Esse artigo se desdobra de uma dissertação de mestrado e por isso cabe o reconhecimento às reflexões estimuladas pelo orientador Prof. Dr. Jair Batista da Silva e pela coorientadora Prof. Dra. Selma Cristina Silva de Jesus. Pelas componentes da banca avaliadora, a Prof. Dra. Maria das Graças Druck de Faria e a Prof. Dra. Renata Queiroz Dutra. Foi também fundamental o apoio dado pelo sindicato Sindiflora para a realização das entrevistas e acesso a documentos. A todos eles registram-se aqui profundos agradecimentos.

  • 1
    Os nomes aqui utilizados são fictícios.
  • 2
    Todos os dirigentes sindicais entrevistados participaram da greve investigada, no ano de 2010, realizada pelo Sindicato dos Trabalhadores de Reflorestamento, Carvoejamento e Beneficiamento de Madeira (SINDIFLORA), da região do Litoral Norte da Bahia, contra uma empresa de cultivo de eucalipto e suas terceirizadas.
  • 3
    O sistema “gato” é uma forma de exploração de trabalho muito comum em atividades rurais, em que um intermediador alicia pessoas para trabalhar em troca praticamente de alojamento e alimentação, em condições degradantes e em geral privados de liberdade. Este sistema esteve muito presente no campo investigado nesta pesquisa, nas primeiras plantações de eucalipto na região do Litoral Norte da Bahia (década de 1970 e 1980), e foi uma das primeiras grandes questões enfrentadas pelo Sindiflora (Gonçalves; Machado, 1996GONÇALVES, M. T.; MACHADO, C. W. da C. Reflorestamento e mudanças nas condições de vida no Litoral Norte da Bahia. Caderno do CEAS, Salvador, n. 161, p. 23-34, jan./fev. 1996.).
  • 4
    Fala do ex-presidente da república Jair Messias Bolsonaro (PL) ainda enquanto candidato no primeiro debate entre presidenciáveis em setembro de 2018, na rede Band. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9EnJeUKwX_c. Acesso em: 04 abr. 2023.
  • 5
    Opta-se, neste artigo, por não citar nominalmente as empresas, tanto por não se considerar central para as reflexões, quanto porque houve diversas mudanças dos seus nomes ao longo do tempo, o que tornaria os relatos muito confusos.
  • 6
    O viveiro faz parte da empresa nuclear, embora fosse gerido por uma terceirizada.
  • 7
    Há sintonia entre os trechos citados, mas as entrevistas foram realizadas separada e individualmente.
  • 8
    Ainda vigorava como entendimento maior sobre o tema a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que não legitimava a terceirização em atividades fins.
  • 9
    De acordo com informações dos entrevistados por conta da contaminação por um fungo.
  • 10
    Os entrevistados afirmaram que parte dos incorporados eram terceirizados do viveiro anterior, atendendo a reivindicação do sindicato.
  • 11
    São eles: (1) responsabilizar a empresa contratante pelas condições de trabalho e cumprimento de direitos de suas terceirizadas; (2) lutar por isonomia entre nucleares e terceirizados (Carelli, 2007CARELLI, R. L. Terceirização e direitos trabalhistas no Brasil. In: DRUCK, G.; FRANCO, T. (ed.). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização. Boitempo, 2007. p. 59-68.).
  • Agência financiadoraCoordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (2017/1711947) (março de 2017 a março de 2019).
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoAutorizo a publicação do presente trabalho.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2023
  • Aceito
    21 Ago 2023
  • Revisado
    04 Dez 2023
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