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Ecologia do virtual1 1 Tradução da comunicação proferida por ocasião do evento Guattari +30, ocorrido na Université Paris VIII, Saint-Denis, em outubro de 2022.

Ecology of the virtual

Resumo

Félix Guattari se referiu a uma « ecologia do virtual ». Essa noção deve ser aprofundada segundo dois eixos. Um, conceitual, cruzando o tema da ecologia mental (ou subjetiva) de As três ecologias com os funtores de Cartografias esquizoanalíticas. O segundo eixo emerge de contextos concretos no Brasil atual, sobretudo das lutas ameríndias. Deve aparecer, ao final desse percurso, como a dimensão virtual em Guattari ou em outros propicia a abertura de processos heterogenéticos, com suas respectivas implicações ecopolíticas.

Palavras-chave:
Ecologia; Subjetividade; Virtual; Guattari.

Abstract

Félix Guattari already mentioned an "ecology of the virtual". This notion is developed here along two dimensions. The first one, which is conceptual, relates the mental or subjective ecology of The Three Ecologies to the 'functors' of Schizoanalytic Cartographies. The other dimension takes into consideration today's context in Brazil, especially Amerindian struggles. I focus on how Guattari's thinking of the virtual, in dialogue with other contemporary authors, opens way to heterogenetic processes, with their own ecopolitical consequences.

Keywords:
Ecology; Subjectivity; Virtual; Guattari.

“Eles têm o poder, nós temos o Encantado”, declarou o advogado Eloy Terena perante os seis mil indígenas reunidos em Brasília, em agosto de 2022, para defender seu direito constitucional aos territórios tradicionais. Não há melhor maneira de expressar a crescente articulação entre terra, espiritualidade e política, ou entre sonhos, pensamento e estratégia. Ailton Krenak usa a designação Yanomami para definir os brancos: povo da mercadoria. Ele afirma:

“A humanidade que exclui da vida aquilo que não está integrado no mundo da mercadoria coloca em risco todas as outras formas de vida”. Esta humanidade, acrescenta, “não reconhece que este rio que está em coma é também nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar na África ou na América do Sul e transformada em mercadoria é ao mesmo tempo o avô, a avó, a mãe, o irmão de uma constelação de seres que querem continuar a compartilhar a vida nesta casa comum chamada Terra” (Krenak, 2022, p. 47).

Como aponta Eduardo Viveiros de Castro, assim que separamos o mundo dos sujeitos e o mundo das coisas, estamos condenados a uma desvalorização metafísica do mundo e à sua destruição, tendo de um lado a humanidade e de outro a sub-humanidade constituída por aqueles que sempre se recusaram a compartilhá-la (Viveiros de Castro apud Krenak, 2022, p. 82). Em duas palavras, a batalha é entre os escravos da transcendência humana e os múltiplos povos chamados, por Bruno Latour, de os Terranos.

É óbvio que a mobilização dos povos indígenas não diz respeito apenas a seus territórios físicos, mas também a seus territórios existenciais, seus universos incorporais - suas formas de vida. Em As Três Ecologias, Félix Guattari se refere a uma ecologia ambiental, uma ecologia social e uma ecologia mental (ou subjetiva) (Guattari, 1989GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições.). As três juntas formariam o que ele chama de ecosofia. Eis como ele postula essa extensão do termo ecologia.

“Para mim, a defesa das espécies materiais, naturais, vegetais e animais é inseparável da defesa das espécies incorporais. Tomo sempre o exemplo do cinema autoral, dos valores da solidariedade, dos mundos da fraternidade, da sociabilidade e da vizinhança, do calor humano e da inventividade. Estas também são espécies ameaçadas que devem ser defendidas” (Guattari, 2013GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013., p. 236).

Se pensamos no Brasil dos últimos seis anos, podemos dizer que é isso que foi mais sistematicamente combatido: os valores de fraternidade, de sociabilidade, de vizinhança, de calor humano, de inventividade. Espécies incorporais, tais valores foram deliberadamente desvalorizados, depreciados, em favor da indiferença, da truculência, da estigmatização, do retrocesso em direção à família, pátria, deus e propriedade. Mas outras espécies incorporais são elencadas por Guattari, tais como “a música, as artes, o cinema, a relação com o tempo, o amor e a compaixão pelos outros, o sentimento de fusão dentro do cosmos” (Guattari, 2013GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013., p. 60). Não há nada de óbvio nesta série, que mais parece a lista de Borges que Foucault menciona no início de seu livro As palavras e as coisas. Que relação haveria entre o amor e o tempo, para não falar do sentimento cósmico? Não é isso tudo um pouco vaporoso, nebuloso, até mesmo subjetivo? Sim, justamente, tudo isso é subjetivo, tudo isso diz respeito à esfera de nossa subjetividade e à sua capacidade de ser afetada, pelas artes, pelo tempo, pelo cosmos, pelas invenções - em suma, pela alteridade. A alteridade se encarna nos outros humanos aos quais somos sensíveis: vizinhos, sofredores, minorias. Também se encarna naquilo que não é gente, mas faz com que a gente seja gente, como a música, o cinema, as artes, o amor. E igualmente naquilo que nos leva para muito mais longe do que apenas ser gente, como o cosmos, o tempo. Parece abstrato, porém é o mais concreto do mundo, o mais cotidiano, o mais elementar, o mais prosaico, que por vezes também é o mais poético. Trata-se de uma ecologia do virtual. Ela diz respeito às formas vivas já existentes e às formas que virão, “que batem à porta da inteligência e da imaginação coletiva” (Guattari, 2013GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013., p. 61). Até mesmo o artista, definido pelo entrevistador de Félix como um "ecologista virtual", é assumido por ele como um “herói da defesa das espécies incorporais”. Não apenas da defesa, mas também de sua promoção, de sua proliferação. Não preservar só o que existe, mas o que está em estado nascente. Eis sua formulação:

[...] o estado nascente não é algo que se encontra pronto diante de nós. É algo que se constrói e se trabalha. Digamos que vivi em uma certa adolescência, uma certa juventude, durante todo um período de minha vida, e agora tenho que reconstruir outra juventude, um devir nascente nas condições do mundo de hoje, e em minhas condições de vida, de idade, de inserção social de hoje. É a própria ideia de uma prática ecosófica, de uma ecologia mental que se coloca. Precisamos reinventar a juventude de hoje, em um mundo que envelhece, que endurece, que se torna rígido... que se torna um mundo de maldade. É uma tarefa permanente redescobrir a emergência” (Guattari, 2013GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013., p. 88).

A pergunta então se coloca: Como encontrar “um ponto de emergência criacionista”? Trata-se do que ele batizou de heterogênese, a gênese da diferença, do novo, que não pode ser alcançado espontaneamente no contexto da economia de mercado, reino da homogênese, mas que implica arranjos, máquinas de enunciação criativa, máquinas de guerra específicas, que não fazem a guerra, mas que constroem novas dimensões ontológicas. A resistência, neste ponto, não é apenas uma resistência vinda de grupos sociais, é uma resistência das pessoas “reconstruindo a sensibilidade, através da poesia, da música... através de uma relação amorosa... reapropriação processual da produção do mundo...”. Mesmo a escolha ética é definida em favor de uma riqueza de possibilidades, que ele chamará de uma “ética e política do virtual”. Em um contexto clínico, trata-se de bifurcações existenciais em um paciente a partir de uma abertura de “novos campos de virtualidade”, ou “possíveis aberturas para o virtual e para a processualidade criativa” (Guattari, 1992GUATTARI, F. Caosmose. São Paulo: Ed. 34, 1992., pp. 41-42). E, no mesmo texto de Caosmose, ele insiste na importância das intensidades virtuais, ou composições virtuais, na avaliação dos sistemas de valor - religiosos, estéticos, científicos, ecosóficos.

Nietzsche reivindicava uma transvaloração de todos os valores. Acredito que Guattari é profundamente nietzscheano quando defende seu paradigma ético-estético. De fato, ele insiste no deslocamento dos sistemas de valor atuais, na importância de novos polos de valor (Guattari, 1989GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições., p. 50), em novas “trocas” de valor como contraponto aos sistemas de valorização capitalistas (Guattari, 1989GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições., p. 51), uma tarefa que a ecosofia deveria assumir. Acontece, e talvez aqui ele vá além de Nietzsche, que um sistema de valores só faz sentido quando é concretizado em um território existencial finito, quando encorpa ou se existencializa, quando há apreensão existencial - pode-se dizer, quando se subjetiva.

O princípio comum às três ecologias consiste, pois, em que os Territórios existenciais com os quais elas nos põem em confronto não se oferecem como um em si, fechado em si mesmo, mas um para si precário, finito, finitizado, singular, singularizado, capaz de bifurcar em reiterações estratificadas e mortíferas ou em uma abertura processual apoiada na práxis que permita torná-lo ‘habitável’ por um projeto humano (Guattari, 1989GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições., p. 37).

Guattari reivindica uma lógica de intensidades, ele diz até mesmo uma lógica ecológica, centrada na existência e no processo.

Declinações

A ecologia mental tem recebido várias declinações ou extensões. Ecologia do virtual, ecologia da imanência, ecologia cognitiva, ecologia dos fantasmas, ecologia da ressingularização, ecologia maquínica, ecologia das práticas, ecologia dos sentimentos, ecologia dos efeitos... Se, como diz Isabelle Stengers, a ecologia é a ciência das relações e das condições de existência, ela nos obriga a buscar as condições de existência de cada ser (Stengers, 2019STENGERS, I. Résister au desastre. Dialogue avec Marin Schaffner. Paris: Wildproject, 2019). Como estas condições não são dadas, elas devem ser objeto de intuição, imaginação, criação e proteção. Portanto, a ecologia é a arte da sensibilidade, do cuidado. Isto não está longe da definição ética dada por Guattari, para quem é sempre uma questão de relacionamento com o outro.

Esta ética não trata apenas da alteridade humana constituída, da relação com os indivíduos, com os semelhantes, mas da consideração da dissimilaridade, do dissenso, da diferença na ordem humana, animal e vegetal, da relação com o cosmos, dos valores incorporais como a música, as artes plásticas, etc. ... [É uma] vontade de construir a vida, a consciência, de engendrar a existência (Guattari, 2013GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013., p. 230).

Para tanto, se requer uma atenção aos seres, à sua interdependência, à singularidade das situações, aos eventos, processos, metamorfoses, ressurgências. Portanto, trata-se sempre de práticas que implicam cuidado, atenção, sensibilidade para com os seres que precisam de um determinado ambiente para existir, respirar, compor-se com os outros, produzir efeitos. Não necessariamente tais seres são dados - basta pensar na relação que Vinciane Despret reivindica para com os mortos em seu livro Brinde aos mortos (Despret, 2023) - como devolver-lhes certa existência para que possam “existir a seu modo” e assim nutrir os vivos. Daí a solicitude como uma atitude ética elementar em uma ecologia dos sentires, segundo ela.

Guerra de mundos

Resta saber até que ponto somos capazes de manter uma hospitalidade para com esta dimensão invisível, virtual, até mesmo espectral, assim como para com os universos incorporais e territórios existenciais os mais diversos - esquizos ou indígenas, minoritários ou moleculares. Perguntando-se de onde viria tal mudança, Guattari explicita: “De empreendimentos fragmentados, de iniciativas às vezes precárias, de experimentos tateantes... [trata-se] de apreender e criar virtualidades existenciais mutantes em modo pático” (Guattari, 2013GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013., p. 88). Quando argumenta que a ecosofia deveria substituir antigas formas de compromisso religioso, político e associativo, eu me pergunto se isto não foi mais uma intuição antecipatória do que um projeto prescritivo. Talvez nossa sensibilidade ecopolítica atual seja disso um forte indício.

Se projetarmos isto a uma dimensão de geopolítica subjetiva, não nos surpreenderemos com o lugar reservado aos povos indígenas.

Não seria uma reviravolta fabulosa se as antigas subjetividades africanas, pré-colombianas e aborígines se tornassem o último recurso para a reapropriação subjetiva da auto-referência maquínica? Os próprios negros, estes mesmos índios, ou nativos da Oceania, cujos antepassados escolheram a morte em vez da submissão aos ideais de poder, escravidão e depois intercâmbio, cristianismo e capitalismo (Guattari, 1989GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições., p. 24).

O Brasil é mencionado como um exemplo da reconversão de subjetividades arcaicas, com suas “ondas de caráter animista, com religiões sincréticas como o Candomblé... que tendem a emergir de seu confinamento original nas populações negras para contaminar toda a sociedade” (Guattari, 1989GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques. Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições., p. 24).

Isto tem se tornado cada vez mais verdadeiro nos últimos anos, já que assistimos a um entrelaçamento de vozes de intelectuais, artistas, ativistas, povos indígenas e afrodescendentes, reivindicando um tipo diferente de subjetivação, que alguns chamam de decolonial, outros de contracolonial. Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Lélia Gonzales, Nego Bispo, Cacique Babau, Geni Nuñez, Denilson Baniwa, Jaider Esbell, Rufino, Simas, Grada Kilomba, e a lista é longa. Da parte de antropólogos, não menos importantes são as contribuições de Goldman, Sztutman, Vanzolini. Quatro milhões de africanos trazidos à força ao Brasil nos últimos 300 anos não poderiam deixar de se encontrar com os povos indígenas, nem evitar as destruições e criações, fusões e comparações que ocorreram em um dos processos mais maciços de desterritorialização e reterritorialização da história humana. Isso justifica a observação de Bastide: “Os antropólogos se interessaram sobretudo pelos fenômenos de adaptação dos candomblés africanos à sociedade dos brancos e à cultura luso-católica”. Como nota Goldman, isto

“quer dizer que a maior parte do que se escreveu sobre o que Bastide denominava “o encontro e o casamento dos deuses africanos e dos espíritos indígenas no Brasil” (Bastide, 1976BASTIDE, R. La Rencontre des Dieux Africains et des Esprits Indiens. AfroAsia, v. 12, p. 31-45, 1976 [1973].) foi escrito a partir de um ponto de vista que subordinava a relação afroindígena a um terceiro elemento que estruturava o campo de investigação na mesma medida em que dominava o campo sociopolítico: o ‘branco europeu’” (Goldman, 2017GOLDMAN, M. Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem Estudos Etnográficos. Revista de @ntropologia da UFSCar, r@u, v. 9, n. 2, p. 11-28, jul./dez. 2017.).

Deixo a discussão para os especialistas e volto à questão do virtual, do invisível, do incorporal e até mesmo do encantamento, como definido por Simas e Rufino, por exemplo:

O encantamento nos diz como as gramáticas sobreviventes estão inscritas nas dobras de um vasto repertório de assassinatos. Neste sentido, o encantamento dribla e enfeitiça as lógicas que querem apreender a vida em um único modelo, quase sempre ligado a um sentido produtivo e utilitário. Daí o fato de que o encanto dilacera o ser humano para transformá-lo em um animal, um vento, uma fonte de água, uma pedra de rio ou um grão de areia. O encantamento pluraliza o ser, descentralizando-o, tornando óbvio que ele nunca será total, mas ecológico e inacabado (Simas; Rufino, 2020SIMAS, L.; RUFINO, L. Encantamento: por uma política de vida. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2020.).

Os autores deixam isso claro desde o início: “O encantamento é uma política de vida”. E é parte de uma guerra “contra os espectros da colonização”. Como “o oposto da vida não é a morte, mas o desencanto”. É um devir-indígena do pensamento que desloca o conhecimento e desafia nossa ontologia antropogênica e epistemologia objetivista. Como o nota a pesquisadora guarani Geni Nuñes:

“As consequências das críticas indígenas convocam não apenas a uma ressignificação do que é mente e corpo, natureza e cultura, selvagem e civilizado, humano e animal, a uma desistência/desobediência ao binarismo que as formula” (Nuñez, 2002, p. 96).

Por exemplo, é óbvio que

“o corpo do guarani não termina nele mesmo, o corpo se faz em teias de interconexão com os demais seres, de maneira que o ecocídio não deixa, novamente, de também ser parte do epistemicídio, do etnogenicídio” (Nuñez, 2002, p. 96).

Já podemos refletir sobre o diagnóstico de Krenak a respeito da esquerda no Brasil. O problema é que, ao lado da ideologia de esquerda, ela mantém uma epistemologia de direita. E ele insiste nas “novas formas de fazer política que estão surgindo em pequenas comunidades” que conseguem estabelecer experiências em rede, que cooperam entre si e que, de certa forma, constituem um contra-governo, um governo de afeto, de solidariedade, de ajuda mútua (ele se referia às iniciativas tomadas em meio à pandemia), uma mobilização para levar comida, abrigo, conforto às pessoas pisoteadas pelo aparelho estatal (Krenak, 2021KRENAK, A.; SANTOS, B. O sistema e o antissistema: Três ensaios, três mundos no mesmo mundo. São Paulo: Português, 2021.).

Isto mostra que não se trata de forma alguma de um movimento regressivo ou nostálgico, mas de uma guerra de mundos ou entre formas contrastantes de vida que coexistem no presente em uma tensão geopolítica, geofilosófica, geoepistemológica. Nos anos de devastação pandêmica, de ecocídio necropolítico, o inconsciente político brasileiro deu a ver cada vez mais um filão de há muito recalcado. Trata-se do que resultou do mencionado cruzamento entre o pensamento afrodiaspórico e o indígena. É daí que nos vêm a percepção aguda de que o que está em jogo hoje não é apenas um regime político, ou uma opção ideológica, mas um modo de vida. Que vida desejamos nesta terra? A que mundo aspiramos? Que relação queremos com o corpo da Terra, com o espírito do coletivo, com o sonho, com o desejo, com os afetos comunitários, com o cosmos, com o tempo? É de acúmulo e predação infinitos, ou como o sugere Viveiros de Castro, de suficiência intensiva?

Uma fronteira de chumbo vai ficando cada vez mais visível entre um certo Norte branco, masculino, antropocêntrico, eurocêntrico, racionalista, por um lado, e um Sul perspectivista, antropofágico, espectrofágico, espiritual, seja ameríndio ou afrodiaspórico. Mas não nos enganemos: o Norte ou o Ocidente não necessariamente se situam no Norte ou no Ocidente: não é uma região, é um projeto, como diz Ingold. É, portanto, uma luta muito assimétrica na qual estamos todxs metidos. É David contra Golias. Kopenawa contra a Queda do Céu. E ainda assim o primeiro turno eleitoral no Brasil mostrou um aumento expressivo de representantes negros, indígenas, LGBTIAQ+ e mulheres, apesar do aumento simultâneo de deputados policiais e pastores evangélicos. Em qualquer caso, é um sinal de que algo está se movendo, apesar de tudo. Um deslocamento das placas tectônicas, partindo de conhecimentos menores, práticas minoritárias, subjetividades que se dizem dissidentes ou ancestrais, provenientes da floresta ou dos quilombos, das favelas ou dos sem-teto, das mulheres ou dos desertores, e das formas de vida e de cuidado com a vida que lhes correspondem. Isto atravessa os circuitos acadêmicos, artísticos, ativistas, políticos, rituais, urbanos ou não - vai-se formando uma sensibilidade outra. Embora a macropolítica tenha se tornado mais sinistra nos últimos anos, os experimentos nesta direção se multiplicaram. Eu me pergunto se a associação entre os movimentos quilombolas, indígenas, feministas, dissidências de gênero, ocupações, favelados, e tantos outros não estaria em vias de inventar um neozapatismo tupiniquim. Um sopro cosmopolítico tem atravessado nossas mentes e corpos. Novos seres-terra têm aparecido, diz Marisol de la Cadena. Novas confluências estão surgindo, diz Nego Bispo. Outras alianças com as margens da filosofia são, portanto, possíveis.

Referências

  • BASTIDE, R. La Rencontre des Dieux Africains et des Esprits Indiens. AfroAsia, v. 12, p. 31-45, 1976 [1973].
  • GOLDMAN, M. Contradiscursos Afroindígenas sobre Mistura, Sincretismo e Mestiçagem Estudos Etnográficos. Revista de @ntropologia da UFSCar, r@u, v. 9, n. 2, p. 11-28, jul./dez. 2017.
  • GUATTARI, F. As três ecologias Campinas: Papirus, 1990.
  • GUATTARI, F. Cartographies Schizoanalytiques Paris: Galilée, 1989. A ser publicada pela n-1 edições.
  • GUATTARI, F. Caosmose. São Paulo: Ed. 34, 1992.
  • GUATTARI, F. Qu´est-ce que l´écosophie ? Paris: Lignes/Imec, 2013.
  • KRENAK, A. Idéias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
  • KRENAK, A.; SANTOS, B. O sistema e o antissistema: Três ensaios, três mundos no mesmo mundo. São Paulo: Português, 2021.
  • NUÑEZ, G. Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude. 2022. 132 f. Tese (doutorado) - Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022. A ser publicada pela n-1 edições.
  • SIMAS, L.; RUFINO, L. Encantamento: por uma política de vida. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2020.
  • STENGERS, I. Résister au desastre Dialogue avec Marin Schaffner. Paris: Wildproject, 2019

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2023
  • Aceito
    17 Nov 2023
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