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A fantasia política: a nova alternativa de interpretação do II PND

Political fantasy: the new interpretation of the II PND

RESUMO

Este artigo discute as conclusões do artigo “Uma alternativa de interpretação do II PND”, onde os autores tentam dar uma nova interpretação à racionalidade - ou à falta dela - do II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) da administração Geisel. Entendemos que ao II PND não faltou raciocínio econômico e que o referido artigo não atribuiu características de patrimonialismo ao planejamento e execução do Plano.

PALAVRAS-CHAVE:
II PND; história econômica do Brasil; planejamento econômico; crises econômicas

ABSTRACT

This paper discusses the conclusions from the article “Uma alternativa de interpretação do II PND”, where the authors try to give a new interpretation to the rationality - or the lack of it - to the II PND (Second National Development Plan) of the Geisel administration. We understand that the II PND did not lack economic reasoning and that the said article failed to attribute patrimonialism characteristics to the planning and execution of the Plan.

KEYWORDS:
II PND; economic history of Brazil; economic planning; economic crisis

Na Revista de Economia Política de outubro-dezembro/97, Basília Maria Baptista Aguirre e Fabiana da Cunha Saddi1 1 AGUIRRE, Basilia Maria Baptista & SADDI, Fabiana da Cunha (1997). “Urna alternativa de interpretação do II PND”, artigo na Revista de Economia Política (R.E.P.), vol. 17, nº 4 (68), out.-dez. São Paulo, Editora 34. apresentam uma interessante e criativa (talvez criativa demais) interpretação alternativa do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), realizado pelo governo Geisel.

São os seguintes os pontos básicos dessa nova interpretação.

Primeiro: O II PND foi um projeto “politicamente determinado”, em vez de um plano dotado de “alta racionalidade econômica”2 2 Idem, p. 79 .

Segundo: Para a adequada percepção desse condicionamento político do II PND, a noção de patrimonialismo, à la Max Weber, como componente importante do Estado brasileiro, é particularmente relevante.

Terceiro: O argumento que leva à conclusão do primeiro ponto se desdobra em duas partes.

De um lado, a fundamentação econômica do Plano não era suficiente para a sua adoção (argumentos em seção posterior). Se assim é, “deve( m) existir outro( s) motivo( s) que, somado(s) àqueles puramente econômicos - como analisado por Castro (Antonio Barros de Castro)-,justifique(m) melhor o tipo de “racionalidade” que levou o grupo no poder a adotar o II PND”3 3 Idem, p. 88.

De outro lado, a realização desse Plano não se deu de forma linear. Ao surgirem obstáculos ao seu desenvolvimento, o governo procurou estabelecer uma complexa “cooptação leal” de “novos” e de “velhos” grupos de interesses relevantes. Ou seja, adotou uma atitude patrimonialista, procurando construir “uma nova aliança política, formada, grosso modo, pelo capital financeiro nacional, pelas grandes empreiteiras e pelo Estado?4 4 Idem, p. 90 .

Quarto: A realização de um novo ciclo de substituição de importações “resultou em graves consequências político-econômicas para a sociedade brasileira”. E a conclusão: “Atesta-se, assim, que a crise socioeconômica brasileira da década de 80 teve sua origem, grosso modo, com o II PND”5 5 Idem, p. 92 .

Quinto: A suma das sumas é o fato de a análise feita do II PND mostrar que a forma pela qual o Estado brasileiro vem promovendo o desenvolvimento socioeconômico do País - a forma patrimonialista - “não condiz mais com as necessidades do Brasil nos anos 80 e 90”. Daí a importância do estabelecimento de novas bases, “que se aproximem mais do tipo racional-legal”6 6 Idem, p. 97 .

Nas próximas seções, cada um desses pontos será analisado. Antes, porém, um breve retrospecto da evolução do problema do patrimonialismo no Estado brasileiro.

O TIPO DE ESTADO, NO BRASIL, E O PATRIMONIALISMO

Antes de 19307 7 Deixamos de abordar, em relação ao período colonial, ao Império e à República Velha, toda a controvérsia sobre polarização (e, também interação) entre Estado patrimonialista centralizador e mandonismo local (matrizes de um Estado autoritário e de uma sociedade também autoritária, respectivamente). , o Brasil tinha um Estado eivado de características patrimonialistas (a despeito de a República haver feito considerável transferência de poderes na União para os estados, criando um regime federativo). A intervenção na economia, sem embargo, tinha em geral um caráter ad hoc.

Com a Revolução de 30, e ante as consequências da grande depressão sobre o País, começa o Estado brasileiro as suas metamorfoses, dentro da conhecida concepção do “Estado de compromisso”. Iniciavam-se assim as tendências que iriam consolidar-se nas décadas seguintes: a centralização de poderes na União, a intervenção sistemática na economia, a emergência gradual do Estado-empresário (empresas estatais), a criação de mecanismos para impulsionar o desenvolvimento econômico e social, e, posteriormente, para a coordenação da política econômica e, até, para o planejamento econômico, setorial e geral.

Tais tendências, voltadas para o desenvolvimento e a modernização, não significavam, por si, aumento do patrimonialismo no Estado. Tanto que foi o governo Vargas que, em 1938, criou o DASP, com o objetivo de, gradualmente, formalizar, no país, uma administração burocrático-legal moderna8 8 Para a análise que segue, parece-nos útil distinguir entre modelos de Estado, questão que diz mais respeito ao escopo das funções do Estado (atividades-fim), e tipos de gestão administrativa, assunto mais ligado à filosofia e às formas de gerir a administração pública (atividades-meio). Assim, quando falamos em “Estado gestor do desenvolvimento”, estamos tratando mais de um modelo de Estado. E quando examinamos os componentes patrimonialistas do Estado brasileiro e o esforço de implantação de uma “administração racional-legal” estamos mais no terreno dos tipos de gestão administrativa. .

Mas convém ver o assunto na sua complexidade.

Na origem, como é sabido, patrimonialismo significa a ausência de distinção clara entre patrimônio público e patrimônio privado (e a burocracia moderna, segundo Max Weber, se caracteriza exatamente por segregar a “atividade oficial” da “esfera da vida privada”: “recursos e equipamentos públicos são divorciados da propriedade privada do administrador oficial”)9 9 WEBER, Max (1978). Economy and society, Berkeley, Los Angeles e Londres, University of California Press, vol. 2, p. 957. .

Ora, o governo Vargas agiu no assunto com ambiguidade típica. De um lado, através do instrumental corporativista criado, passou a cooptar interesses nas áreas patronal e sindical, colocando o Estado como árbitro do conflito social nas relações de trabalho. Atitude, pois, nitidamente patrimonialista.

De outro, a gradual implantação de uma administração burocrático-legal iria criar obstáculos a várias práticas patrimonialistas, como o clientelismo político dentro do Estado ou a privatização do Estado em favor de grupos de interesses. Uma outra forma de patrimonialismo moderno se tornaria importante nos anos 50 - o populismo econômico, com seu distributivismo: a concessão de benefícios a segmentos da população, principalmente urbana, sem a definição de receita para custeá-los.

As décadas a partir dos anos 40 passaram a assistir a um esforço de consolidação do Estado racional-legal, com o consequente retraimento das diferentes formas de patrimonialismo. Sem embargo, não se evitou, por exemplo, que no período Juscelino (1956-1960) fosse feita a entrega da gestão dos Institutos de Aposentadorias e Pensões ao PTB, e, pois, aos sindicatos trabalhistas. Nem que, até 1963, imperasse o populismo econômico, segundo já dito.

Por causa desses conflitos de interesses é que até 1963 não se conseguiu aprovar no Congresso Nacional nenhuma lei de reforma da administração. Foi apenas sob o regime autoritário, no final do governo Castelo Branco, que o decreto-lei 200/67 estabeleceu a reforma administrativa. Seu objetivo básico era procurar institucionalizar o “Estado gestor do desenvolvimento econômico e social”, dentro de uma estrutura racional-legal.

A reforma avançou nos governos seguintes, como instrumento da implantação do Estado racional-legal, até chegar-se a uma situação, no governo Geisel, caracterizada por duas realizações.

De um lado, nessa época se alcançou o máximo de institucionalização legal das funções econômicas e sociais do Estado, segundo definido na referida legislação - dentro, claro, da visão de Estado gestor do desenvolvimento10 10 A própria cúpula do governo era institucionalizada, através do COE e do CDS. Não havia eminências pardas: o presidente governava com os ministros, segundo disposto na lei. A administração direta e as autarquias funcionavam dentro do sistema de mérito e obedecendo a planos de carreira. As empresas estatais idem, com liberdade de gestão, dentro de limites de dispêndios e de investimentos aprovados em resoluções no COE. As funções de planejamento, orçamento e execução financeira eram operadas dentro de sistemas, coordenados por um órgão central (geralmente o Planejamento). Importa lembrar que as liberações de verbas orçamentárias eram automáticas. O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional era executado integralmente, sem cortes: execução orçamentária e execução de caixa eram a mesma coisa. .

De outro lado, nesse período, as diferentes formas de patrimonialismo haviam chegado ao seu nível mais baixo, com poucas exceções (talvez até por temor, num regime que, embora se estivesse abrindo, era ainda autoritário). Claro, clientelismo e privatização do Estado podem ocorrer em qualquer administração, mas essas formas de patrimonialismo haviam passado a constituir fenômenos isolados, e não práticas institucionalizadas.

Deve-se notar ainda que, dentro do espírito da abertura política, o governo se absteve de tentar fazer a cooptação política das organizações empresariais, mesmo diante de manifestações políticas de alguns dos líderes empresariais da Gazeta Mercantil, em favor, inclusive, de eleições diretas para presidente. O que se adotou foi uma atitude de diálogo em relação à política econômica, para suscitar certo espírito de cooperação, o que ocorreu, tanto por parte das federações de indústrias, principalmente de São Paulo e do Rio (que são organizações sindicais), como por parte das associações empresariais independentes, como ABDIB (Indústria de Bens de Capital) e ABINEE (Indústria Elétrica e Eletrônica). Até o setor mais afetado pelo ajuste, a Indústria Automobilística, revelou essa disposição de colaborar: foi a ANFAVEA que promoveu o seminário de Salzburgo, em 1975, destinado a motivar as grandes indústrias europeias a investir no Brasil.

Feito esse retrospecto, como pano de fundo, passemos à análise dos principais pontos da alternativa de interpretação.

O PROBLEMA DA FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA DO II PND

O artigo apresenta duas principais críticas à fundamentação econômica do II PND. A primeira é que o Plano estava fazendo um ajuste insuficiente às novas condições da economia mundial e à gravidade da situação da economia brasileira (neste caso, em face dos desequilíbrios potenciais herdados da fase do “milagre”). Em síntese, “o problema central - balanço de pagamentos deficitário - não estava sendo tratado por não incentivar a produção de tradeables (ou seja, de bens internacionais)”11 11 AGUIRRE & SADDI, p. 87.

A segunda crítica consistia em ter-se o II PND concentrado demais na substituição de importações, quando deveria ter havido mais ênfase na expansão de exportações. Como não existia capacidade ociosa, a “substituição de importações era demasiado intensiva em importações para funcionar no curto prazo como uma política efetiva de melhoria do balanço de pagamentos”12 12 Idem, p.87.

Para dar resposta a essas duas críticas, deve-se levar em conta que o ajuste completo às novas condições da economia internacional significava ajuste dos dois lados: do lado da demanda, principalmente através da mudança dos preços relativos (desvalorização cambial real e elevação dos preços reais de derivados de petróleo); e do lado da oferta-aspecto frequentemente negligenciado-, pela transformação da base produtiva, através de investimentos destinados a aumentar a produção de tradeables (produtos substitutivos de importações ou destinados a exportações).

A “estratégia de 74” (consubstanciada no II PND) não recorreu à recessão (por considerá-la uma não-solução), mas abrangeu um ajuste dos dois lados.

Do lado da demanda, desacelerou-se gradualmente a economia e fez-se razoável esforço de mudança de preços relativos. A maxidesvalorização chegou a ser considerada em 1976 (existe paper de Simonsen mencionando essa alternativa), mas foi descartada. Optou-se pela manutenção do sistema de minidesvalorizações, acoplado a ações diretas tanto para expandir exportações como para conter importações.

Como essas medidas se incorporam ao conceito de câmbio real efetivo13 13 A respeito das medidas diretas de apoio às exportações e de contenção das importações, ver CYSNE, Rubens Penha, “A economia brasileira no período militar”, Ensaio Econômico, nº 227, Rio de Janeiro, EPGE (FGV), 1994. , tivemos, na verdade, um sistema de taxas múltiplas de câmbio, tanto no tocante às exportações como às importações. E assim, de fato, uma desvalorização real substancial. Não é, pois, de admirar que, a partir de 1975, as exportações tenham crescido bastante e as importações tenham sido fortemente contidas.

Do lado da oferta, é sabido que houve uma grande transformação produtiva, não apenas expandindo rapidamente o investimento em tradeables, mas também realizando o upgrading da estrutura industrial e das exportações. Isso se fez através dos programas prioritários do II PND, com investimento maciço em energia (petróleo, energia elétrica, álcool), insumos básicos (siderurgia, petroquímica, metais não-ferrosos, papel e celulose) e bens de capital/construção naval14 14 Como é natural em programas desse porte, verificaram-se atrasos na conclusão de vários projetos, por questões de ordem administrativa e logística, mas o governo Figueiredo teve a sabedoria de manter sua continuidade, e, até, de ampliar o esforço na área de petróleo. Daí, se tomarmos o período completo 1975-83, o alto grau de implementação dos programas prioritários do II PND. .

Todos esses programas eram, simultaneamente, competitivos com as importações e, potencialmente, geradores de novas linhas de exportações. A razão é representarem o desenvolvimento de novas vantagens comparativas dinâmicas (ou seja, novas especializações) para o País15 15 É oportuno ressaltar a importância, no ajuste brasileiro, desse programa de reestruturação da oferta. Seria irrealista esperar que apenas em consequência da mudança de preços relativos, contendo a demanda por importações e tornando mais rentáveis as exportações, fosse acontecer todo um gigantesco programa de investimentos da indústria nacional (às vezes, através de projetos que dobravam ou triplicavam a capacidade da empresa), em áreas ainda insuficientemente desenvolvidas no Brasil, como insumos básicos e bens de capital. E isso num ambiente de fortíssima recessão mundial. .

Desta forma, foi considerada a vulnerabilidade estrutural de balanço de pagamentos resultante da crise do petróleo (com a quadruplicação do preço) e também a que vinha de antes, consistente, em particular, no volume excessivo de importações de insumos básicos e petróleo (independentemente do aumento de preços), problema identificado desde o final dos anos 6016 16 Essa antiga vulnerabilidade está identificada em dois clássicos: o estudo. do IPEA sobre “A industrialização brasileira: diagnóstico e perspectivas” (p. 226), Rio de Janeiro, 1969, MPCG, e o livro de Maria da Conceição Tavares, Da substituição de importações ao capitalismo financeiro (p. 83), Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972 (11ª edição, 1983). .

De passagem, cabe esclarecer que uma estratégia voltada principalmente para a expansão das exportações, com papel secundário da substituição de importações, estaria fadada ao insucesso. A razão é que não só as importações mundiais estavam crescendo pouco como seria preciso responder à pergunta: Como obter um crescimento das exportações muito acima do que se conseguiu (15% a.a. nas exportações totais e 25% nas de industrializados)? Exportando o quê?

Até então, o que exportávamos, além de produtos primários, eram têxteis e calçados (e um pouco de indústria automobilística), perseguidos de perto pelos tigres asiáticos. Foi o II PND que nos abriu a perspectiva de exportações em insumos básicos e em bens de capital (criando, aliás, uma pauta que não foi ampliada, de 84 para cá). Em outras palavras: sem os seus programas prioritários, onde teria estado, nos últimos quinze anos, a nossa balança comercial? E onde estaria hoje?

O resultado do esforço realizado foi que, de um déficit, em 1974, de US$ 2,7 bilhões em matérias-primas (não-petróleo) e US$ 2,6 bilhões em bens de capital, passou-se a um déficit, em 1978, de US$ 1,05 bilhão em matérias-primas (não-petróleo) e US$ 2 bilhões em bens de capital. E a um superávit, em 1984, de US$ 6 bilhões em matérias-primas (não-petróleo) e US$ 0,9 bilhão em bens de capital. Claro, foi preciso esperar até 84 para ter o resultado completo (e a maxidesvalorização de 83 ajudou muito), sendo a perspectiva de curto prazo inadequada para um julgamento17 17 Os dados estão em VELLOSO, João Paulo dos Reis (1986). O último trem para Paris (p. 250), Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira. .

Em síntese, havíamos passado de grande importador líquido a grande exportador de matérias-primas (não-petróleo), e de grande importador a exportador líquido de bens de capital. E estávamos produzindo cerca de 50% do petróleo que consumíamos, em comparação aos 15% anteriores à crise do petróleo (com base principalmente na bacia de Campos, descoberta em fins de 74)18 18 Outra forma de se evidenciar o grande crescimento da área de tradeables, trazido pela execução da “estratégia de 74”, é através da análise das fontes de crescimento do produto industrial. Enquanto no período do “milagre” o crescimento da indústria de transformação resultou foi da expansão da demanda interna (que contribuiu com 96% do total) e da expansão das exportações (contribuição de 12%), tento por contrapartida uma contribuição negativa da substituição das importações((-) 8%), na fase do governo Geisel, a expansão da demanda interna já respondia por apenas 81% do total do crescimento industrial, enquanto a contribuição da substituição das importações se tornava significativamente positiva (10%), juntamente com a expansão das exportações (9,4%). E, no governo Figueiredo, a contribuição da expansão da demanda interna passava a dramaticamente negativa ((-) 138%), ao passo que a da substituição de importações e a da expansão das exportações se tornavam bastante positivas (22% e 16%, respectivamente). Os dados sobre as fontes de crescimento industrial na fase do “milagre” (1970-74) e no período Geisel (1974-79) estão no relatório do Banco Mundial, Brazil: Industrial policies and manufactured exports (p. 39), Washington, 1983. Os dados sobre o período 1980-83 se encontram no documento do IPEA (INPES), “Perspectivas de longo prazo da economia brasileira” (p. 210), Rio de Janeiro, 1985. .

A QUESTÃO DOS OBSTÁCULOS À EXECUÇÃO DO PLANO

O ponto seguinte refere-se à misteriosa “nova aliança política”, resultante da “cooptação leal” de grupos de interesses relevantes (principalmente “capital financeiro nacional e grandes empreiteiras”), para superar os obstáculos à realização do II PND.

Havia, realmente, uma dificuldade na execução do Plano, mas era ela inerente à estratégia definida (nada tendo a ver com pressões externas). Tratava-se da difícil questão da sintonia fina (segundo, aliás, percebeu Castro)19 19 Evidentemente, o livro de Castro referido duas vezes neste artigo é o já clássico CASTRO, Antonio Barros de & SOUZA, Francisco Eduardo Pires de (1985). A economia brasileira em marcha forçada, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra. : como conservar a economia numa trajetória de desaceleração gradual que, ano a ano, evitasse a recessão - permitindo, com isso, ter o setor privado com motivação para fazer os investimentos planejados-, mas mantendo sob controle a inflação e o balanço de pagamentos.

Foi pela dificuldade de realizar essa sintonia fina que, na verdade, houve duas desacelerações: uma em 1974, mas que foi revertida em 75, porque havíamos entrado em recessão; e outra em fins de 76, porque crescemos demais naquele ano. Desta última é que resultou, nos anos de 77 e 78, uma taxa de crescimento do PIB de apenas 5% - o nível considerado adequado.

Essa segunda desaceleração, que implicou um esquema de contenção no total dos investimentos governamentais, exigiu um acordo entre a Fazenda e o Planejamento. Em setembro de 76, o ministro Mario Henrique Simonsen escreveu uma nota ao presidente, dizendo que o país estava crescendo demais e, em consequência, tanto a inflação como o balanço de pagamentos se encontravam fora de controle. E propôs uma contenção monetária e fiscal, inclusive no tocante ao programa de investimentos públicos. Respondi estar de acordo com o diagnóstico e a solução proposta, desde que os setores prioritários do II PND (petróleo, energia elétrica, insumos básicos) fossem excetuados dos cortes. O Simonsen concordou e nós apresentamos uma proposta conjunta de plano de ação para 1977, que o presidente aprovou (sem afetar os investimentos prioritários do Plano).

Desta forma, cabe assinalar, a execução dos citados programas prioritários se manteve normal em todos os anos do governo Geisel, e para eles não houve falta de recursos. Trimestralmente, fazia-se uma reunião especial do CDE para apreciar o relatório sobre a sua implementação, e pode-se constatar essa normalidade.

E por que não faltaram recursos? Porque, de um lado, as estatais se financiavam principalmente através de recursos próprios (as tarifas) e dos impostos únicos (sendo moderada a captação de recursos externos). Tanto que, no final de 78, a relação entre despesas financeiras (amortização mais juros) e investimentos das empresas estatais era de apenas 22%, no grupo PETROBRÁS, 23% no grupo SIDERBRÁS e 24% no grupo ELETROBRÁS20 20 VELLOSO, João Paulo dos Reis, op. cit., p. 314. .

De outro lado, a empresa nacional dispunha de amplos financiamentos do BNDE (além de aportes de equity, através das suas subsidiárias de capitalização), que tinha à sua disposição a totalidade dos recursos do PIS-PASEP e destinava 80% de suas aplicações à área privada. A verdade é que, se considerarmos o que foi investido em siderurgia de não-planos, petroquímica, celulose/papel, minerais não-metálicos, bens de capital/construção naval e álcool21 21 Isso sem contar os investimentos em indústrias tradicionais (têxteis, calçados, alimentação), minerais não-metálicos, mineração, agroindústria. , o setor privado, nacional e estrangeiro, fez o maior esforço de investimento de todo o período “nacional-desenvolvimentista”22 22 Notar que o governo Geisel manteve a divisão de trabalho já existente entre empresas estatais e empresas privadas (nacionais e estrangeiras). Nenhum novo setor foi, pois, estatizado. E a limitação da correção monetária a 20%, nos empréstimos do BNDES aprovados em 75 e 76, foi reservada a empresas privadas nacionais, não beneficiando, portanto, as estatais (nem as multinacionais). .

Se foi essa a realidade da execução do II PND, onde está o sentido de falar na necessidade de uma “cooptação leal” de grupos de interesses, para poder implementá-lo? E logo com o capital financeiro nacional e as grandes empreiteiras. A verdade é que nenhuma evidência se apresentou da tal “nova aliança de classes”, e nem sequer se formulou o raciocínio que a explicasse e lhe desse plausibilidade.

Qual o critério para presumir tal “cooptação leal”?23 23 Talvez convenha o registro de que, em matéria de alianças (a interpretação é minha), o governo Geisel não estava atrás de nenhum grande pacto político. Havia consciência de ser aquele um governo com dois compromissos básicos, segundo torna claro o próprio Presidente Geisel, no seu depoimento ao CPDOC: a abertura política e o desenvolvimento (representado este pelo II PND, que se propunha reestabelecer as condições normais para o desenvolvimento). Buscar-se-ia, então, apoio específico que viabilizasse cada um dos compromissos. Para a abertura, no Congresso Nacional (além da ação de neutralizar os focos de radicalismo nas Forças Armadas), onde, aliás, o governo dispunha de ampla maioria, a despeito dos avanços do MDB na eleição de 74 (de passagem, o “pacote de abril” foi para “viabilizar o novo governo”, na expressão do próprio Geisel) (GEISEL, Ernesto (1997). “Depoimento ao CPDOC.” In D’ ARAÚJO, Maria Celina & CASTRO, Celso (orgs.), Rio de Janeiro, Editora da FGV, p. 422. Para a execução do Plano, como já foi dito no retrospecto sobre patrimonialismo, o que se buscou foi, pelo diálogo, criar certo espírito de colaboração por parte das entidades mais representativas do empresariado. Além, é claro, da viabilização do esforço de investimentos das empresas (que dependia do sistema de incentivos). E isso foi obtido (sem “cooptação leal” de grupos). A elevação da taxa de juros a partir de 1976, quando se decidiu fazer a contenção monetária e fiscal? Nesse caso, como fica a situação do FED, nos Estados Unidos, que em 1979-81 provocou a elevação da prime rate, de um nível normal de 7% para algo como 20% a.a.? E a situação atual do Brasil, que, para fazer face à crise da Ásia, passou a adotar uma taxa de juros que talvez seja a mais alta no mundo?

A conclusão a tirar é que, ou estamos de volta às formulações de tipo reducionista-classista (que, por exemplo, Boris Fausto procurou colocar no passado, em sua análise da Revolução de 30)24 24 Ver, a propósito, particularmente o prefácio à edição de 1997 do livro de Boris Fausto, A Revolução de 1930 - historiografia e história, São Paulo, Companhia das Letras (16ª edição). , ou diante de uma curiosa fantasia política.

O II PND E A CRISE DOS ANOS 80

No artigo, a conclusão de “que a crise socioeconômica brasileira da década de 80 teve sua origem, grosso modo, com o II PND foi alcançada através de algumas ideias confusas (não necessariamente das autoras) e de non sequiturs. A única ideia mais articulada é que o Estado se encontrava num “processo de expansão desordenada”, e sem financiamento adequado. E por isso teria entrado em crise.

Já se mostrou não ser verdadeira a primeira parte: o investimento das estatais ocorreu apenas nas áreas já de sua responsabilidade. Não se verificou a estatização de novos setores. E o financiamento foi adequado: não havia recurso excessivo ao endividamento externo, até 1978, segundo referido.

Quanto à ilação final, não existe evidência de que o Estado brasileiro estivesse em crise, naquela época. Hélio Jaguaribe, aliás, diz exatamente o contrário: “O Brasil logrou, da década de 40 à de 70, edificar o mais moderno Estado do Terceiro Mundo”. “A partir de fins da década de 70 e, de forma acelerada, no curso da década de 80, verifica-se crescente deterioração do Estado brasileiro”25 25 JAGUARIBE, Helio (1990). “Sociedade, Estado e partidos na atualidade brasileira: sucinta aproximação preliminar.” In VELLOSO, J. P. R. “A crise brasileira e a modernização da sociedade”, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, p. 92.

Se quisermos realmente apurar as causas da crise dos anos 80, devemos atentar para dois tipos de fatores.

Em primeiro lugar, para certos fatores específicos da década de 80. Podemos destacar os principais, começando pelo fato de que, segundo reconheceu o então senador Fernando Henrique Cardoso, em conhecido discurso no Senado, em 1991 - “as forças políticas que lutaram contra o regime autoritário e tiveram seu momento de grandeza ao restaurar a democracia e a liberdade, falharam redondamente na tarefa de governar. Não conseguiram fazer com que os esforços convirjam para a solução de quatro ou cinco problemas básicos sem os quais a ‘crise’ será como um moto contínuo que arruína as esperanças de construção de uma sociedade melhor”. As duas descontinuidades, no segundo semestre de 1979 e de 1985, dois momentos em que se reacelerou a economia, ao invés de desacelerá-la. A sistemática desmontagem que se fez, do Estado e das estatais (“o assalto clientelístico a que é submetido o Estado a partir da instauração da Nova República”; o uso abusivo das estatais para captar recursos externos e o estrangulamento tarifário a que foram submetidas; o corporativismo da CUT). A sucessão de choques heterodoxos, a partir do Plano Cruzado, desestruturando o sistema de mercado. O distributivismo da Constituição de 1988, que elevou brutalmente os benefícios da Previdência, da Saúde e do funcionalismo público, sem definir qualquer fonte de recursos para financiá-los.

Em segundo lugar, cabe analisar em que medida a estratégia de 74 deixou para o futuro um legado de vulnerabilidades, relativas, principalmente, à dívida externa e à situação fiscal.

Quanto à dívida, em avaliação realizada em 1983, Malan e Bonelli reconhecem o sucesso do governo Geisel em reduzir o desequilíbrio da conta corrente, e principalmente da balança comercial. Mas argumentam haver se criado uma vulnerabilidade na conta de capital, por causa do grande aumento da dívida externa, realizado em larga medida através de empréstimos a taxas de juros flutuantes26 26 MALAN, Pedro Sampaio & BONELLI, Regis (1983). “Crescimento econômico, industrialização e balanço de pagamentos: o Brasil dos anos 70 aos 80.” Textos para Discussão Interna, nº 60, Rio de Janeiro, IPEA (INPES).

A questão, aqui, é saber se esse problema da dívida externa, deixado como herança, teria tornado quase inevitável o colapso financeiro externo de 1982.

Em resposta, deve-se assinalar que a dívida externa líquida, no final de 1978, era de US$ 31,6 bilhões (chegaria a US$ 80 bilhões em 1984). Estudo da assessoria do CDE, realizado em fins de 78 (pressupondo uma elevação gradual do preço do petróleo e um comportamento razoável da taxa de juros), mostrava tendência à continuação de declínio do déficit em conta corrente, para algo como US$ 2 a US$ 3 bilhões em 1982 ou 1983. Sem, pois, revelar nenhuma tendência a crescimento explosivo da dívida externa.

Os dois novos choques internacionais não foram previstos, porque eram, na verdade, imprevisíveis. O que definiu a sorte de cada país foi, particularmente, a sua estratégia de reação aos choques.

O segundo legado de vulnerabilidade potencial poderia referir-se à situação financeira do setor público.

Mas no período 1974-78 a conta corrente do governo (no conceito das contas nacionais, que abrange a União, estados e municípios, mas exclui as estatais) ainda era bastante superavitária: 5,9% do PIB, na média do período (em 1984, ela já havia caído para 0,14% e nos anos finais da década se tornou negativa). Como a formação bruta de capital do governo, naquele quinquênio, foi, em média, de 5% do PIB, o superávit final ainda era positivo (cerca de 1 % do PIB)27 27 Os dados são da tabela “Poupança do governo em conta corrente”, elaborada pelo Departamento Econômico do BC. Atualização em 25/11/96. 28 28 Ao lado disso, a dívida pública interna ainda era relativamente pequena (6,4% do PIB em junho/79, baixa em qualquer comparação internacional). E a conta de juros, tanto da dívida interna como da externa, também ainda era baixa, até 1978 (0,47% e 0,19% do PIB, respectivamente, somando 0,66%) (em 1984, a soma das duas contas alcançou 4,1% do PIB). . E o orçamento da Previdência Social também era superavitário29 29 Existe uma qualificação a fazer, em matéria de resultados orçamentários. É que havia subsídios no orçamento monetário (financiados, em parte, por recursos não-monetários). Se se tivesse feito a consolidação dos três orçamentos (fiscal, da Previdência e monetário), o resultado seria, provavelmente, um pequeno déficit. E, como dissemos, os subsídios estavam em sistemático declínio, a partir de 76 (podendo-se, como exemplo, citar o esquema de extinção progressiva do crédito fiscal às exportações, aprovado em janeiro de 1979). .

De qualquer modo, o governo estava atento às duas vulnerabilidades potenciais.

Em 1976, na definição do plano de ação para 1977, o presidente havia adotado a decisão de que o objetivo básico era manter sob controle o balanço de pagamentos e a inflação. O crescimento do PIB seria o maior possível, feito isso (assumindo, pois, caráter residual).

Entretanto, a resposta à questão suscitada não deve se limitar à apresentação dos dados comparativos (1978 e 1984). Cabe, além disso, indagar qual seria a estratégia implícita de continuidade da estratégia de 74 (período Geisel). E que estratégia se adotou, em verdade, no novo governo.

Na transição (dezembro de 78), entregou-se ao novo presidente um documento de perspectivas da economia, que fazia explicitamente a indagação: “Quando será possível elevar essa taxa (de crescimento do PIB)?”. E a resposta foi: “Isso dependerá essencialmente de podermos apresentar superávits crescentes na balança de comércio, com a observação suplementar de ser a taxa de inflação declinante” (grifos nossos). Estavam definidas as condições para voltar a crescer a taxas elevadas.

A gestão do ministro Simonsen, no início do governo Figueiredo, foi uma continuação e aprofundamento das tendências e ajustes do governo Geisel. Assim é que, vendo que as coisas não tendiam para atender àqueles dois requisitos, ele quis fazer logo em 1979 um expressivo ajuste, que beneficiasse tanto o resultado fiscal como o do balanço de pagamentos, desacelerando o crescimento para 3 a 4%. Mas não houve condições políticas para realizar tal programa.

A partir da saída de Simonsen, duas estratégias macroeconômicas foram adotadas: uma entre agosto de 79 e fins de 80; e a outra a partir de 1981.

A primeira estratégia representou uma descontinuidade em relação à estratégia do governo Geisel: ao contrário do que queria Simonsen, fez-se a reaceleração do crescimento, para cerca de 8% ao ano, em 1979 e 1980. Com isso, o duplo choque internacional teve sobre a economia enorme efeito, cumulativo com a primeira crise do petróleo (e sua consequência: uma já elevada dívida externa).

Com todas essas turbulências, a expansão da dívida externa tornou-se explosiva: o crescimento elevado do PIB levava a um salto na taxa de expansão do volume de importações, inclusive de petróleo; o preço do petróleo disparava novamente; e a crise da taxa de juros fazia a conta de juros crescer vertiginosamente, mesmo com valor constante da dívida (mas na verdade ela estava disparando). Em consequência de tudo isso, o déficit em conta corrente saltou para a média de US$ 11,8 bilhões, no biênio 79-80 (quando já havia estado em US$ 5,5 bilhões, em 77-78).

A nova estratégia, a partir de 81, é que fez o ajuste necessário, tanto quanto ao crescimento do PIB (recessão), quanto à área fiscal e ao balanço de pagamentos (inclusive a maxidesvalorização de 1983). E manteve os programas prioritários do II PND. Mas não houve mais como evitar o colapso externo de 82, na esteira do colapso mexicano.

Em resumo, o novo governo optou por não desacelerar a economia e, pois, não fazer o necessário ajuste macroeconômico em 79. Se o tivesse realizado (como, por exemplo, o fez a Coréia), talvez houvesse podido escapar ao colapso externo. Ou não.

Como quer que seja, no final de 84, a economia brasileira já havia completado o seu ajuste à sucessão de crises internacionais, e começara a fase dos megasuperávits comerciais (US$ 12 a US$ 13 bilhões por ano). Ajuste tanto do lado da demanda (preços relativos), quanto do da oferta (nível e estrutura das exportações e das importações). Claro, havia o problema orçamentário, resultante da estatização da dívida externa, e faltava completar a renegociação da dívida. E tínhamos, ainda, uma inflação de 230% ao ano, embora estável; o crescimento estava bem, novamente (5% em 84).

Sem embargo, nova descontinuidade nos esperava em 1985: o governo da Nova República resolveu reacelerar o crescimento, perdeu o controle da inflação e assim começou, com o Plano Cruzado, a sucessão de choques heterodoxos.

CONCLUSÃO

Mostrou-se que o II PND dispunha de fundamentação econômica suficiente. E que teve execução normal, além de financiamento adequado (através de recursos próprios das empresas, estatais e privadas, e de financiamentos internos (BNDE) e externos. De passagem, não houve, por exemplo, o problema do Plano de Metas (período Juscelino), que, sem ter fontes definidas de financiamento, acabou sendo maciçamente financiado por métodos inflacionários.

Diante dessa verificação, e das características específicas do governo Geisel, talvez não tenha sido escolha feliz tentar caracterizar o comportamento patrimonialista do Estado brasileiro (que ainda persiste, em várias formas) exatamente a propósito do plano talvez mais bem financiado e executado de décadas recentes. E de um governo caracterizado pelo alto nível de institucionalização legal das funções do Estado e pelo refluxo sensível das diferentes formas de patrimonialismo30 30 O depoimento dado pelo presidente Geisel ao CPDOC, e atualmente um livro de grande sucesso, é muito útil para caracterizar o tipo de governo impessoal, imune a clientelismo, que procurou realizar. Veja-se, por exemplo, sua definição de critérios para escolha de auxiliares: “Parti do princípio - era uma ideia arraigada - de que não se governa com parentes nem com amigos. Pode-se fazer amigos na presidência, mas não se deve levar pessoas para junto do poder apenas porque são amigos, nem distribuir cargos entre parentes. São fatores negativos para quem quer governar. É preciso ter muita isenção e capacidade para resistir. A escolha da pessoa é feita em função de sua capacidade para o cargo. Ela tem que ter suas qualidades, méritos, ideias que justifiquem a escolha. Sempre pensei assim e procurei, dentro do meu governo, fazer isso’?”. Geisel, Ernesto (1997). Depoimento ao CPDOC”., In D’Araújo, Maria Celina & Castro, Celso (orgs). Rio de Janeiro: editora da FGV, p.422. . Mais ainda: exatamente o governo que iniciou e avançou substancialmente no processo de abertura política (a despeito das resistências dos focos de radicalismo nas Forças Armadas), chegando a extinguir o AI-5 (“que era uma das excrescências que tínhamos”)”. Abertura que afastou a tutela do Estado sobre amplos aspectos da sociedade brasileira. Não foi por acaso que grande número de movimentos sociais independentes passaram a manifestar-se, a partir de então.

A despeito disso, o artigo adotou um ângulo de análise interessante. Valeu.

E é fora de dúvida que a reconstrução e a reforma do Estado, em bases não-patrimonialistas, têm que estar entre as grandes prioridades de um plano como o Real (para que seja, efetivamente, um plano de desenvolvimento, e não apenas um programa de estabilização).

  • 1
    AGUIRRE, Basilia Maria Baptista & SADDI, Fabiana da Cunha (1997). “Urna alternativa de interpretação do II PND”, artigo na Revista de Economia Política (R.E.P.), vol. 17, nº 4 (68), out.-dez. São Paulo, Editora 34.
  • 2
    Idem, p. 79
  • 3
    Idem, p. 88.
  • 4
    Idem, p. 90
  • 5
    Idem, p. 92
  • 6
    Idem, p. 97
  • 7
    Deixamos de abordar, em relação ao período colonial, ao Império e à República Velha, toda a controvérsia sobre polarização (e, também interação) entre Estado patrimonialista centralizador e mandonismo local (matrizes de um Estado autoritário e de uma sociedade também autoritária, respectivamente).
  • 8
    Para a análise que segue, parece-nos útil distinguir entre modelos de Estado, questão que diz mais respeito ao escopo das funções do Estado (atividades-fim), e tipos de gestão administrativa, assunto mais ligado à filosofia e às formas de gerir a administração pública (atividades-meio). Assim, quando falamos em “Estado gestor do desenvolvimento”, estamos tratando mais de um modelo de Estado. E quando examinamos os componentes patrimonialistas do Estado brasileiro e o esforço de implantação de uma “administração racional-legal” estamos mais no terreno dos tipos de gestão administrativa.
  • 9
    WEBER, Max (1978). Economy and society, Berkeley, Los Angeles e Londres, University of California Press, vol. 2, p. 957.
  • 10
    A própria cúpula do governo era institucionalizada, através do COE e do CDS. Não havia eminências pardas: o presidente governava com os ministros, segundo disposto na lei. A administração direta e as autarquias funcionavam dentro do sistema de mérito e obedecendo a planos de carreira. As empresas estatais idem, com liberdade de gestão, dentro de limites de dispêndios e de investimentos aprovados em resoluções no COE. As funções de planejamento, orçamento e execução financeira eram operadas dentro de sistemas, coordenados por um órgão central (geralmente o Planejamento). Importa lembrar que as liberações de verbas orçamentárias eram automáticas. O orçamento aprovado pelo Congresso Nacional era executado integralmente, sem cortes: execução orçamentária e execução de caixa eram a mesma coisa.
  • 11
    AGUIRRE & SADDI, p. 87.
  • 12
    Idem, p.87.
  • 13
    A respeito das medidas diretas de apoio às exportações e de contenção das importações, ver CYSNE, Rubens Penha, “A economia brasileira no período militar”, Ensaio Econômico, nº 227, Rio de Janeiro, EPGE (FGV), 1994.
  • 14
    Como é natural em programas desse porte, verificaram-se atrasos na conclusão de vários projetos, por questões de ordem administrativa e logística, mas o governo Figueiredo teve a sabedoria de manter sua continuidade, e, até, de ampliar o esforço na área de petróleo. Daí, se tomarmos o período completo 1975-83, o alto grau de implementação dos programas prioritários do II PND.
  • 15
    É oportuno ressaltar a importância, no ajuste brasileiro, desse programa de reestruturação da oferta. Seria irrealista esperar que apenas em consequência da mudança de preços relativos, contendo a demanda por importações e tornando mais rentáveis as exportações, fosse acontecer todo um gigantesco programa de investimentos da indústria nacional (às vezes, através de projetos que dobravam ou triplicavam a capacidade da empresa), em áreas ainda insuficientemente desenvolvidas no Brasil, como insumos básicos e bens de capital. E isso num ambiente de fortíssima recessão mundial.
  • 16
    Essa antiga vulnerabilidade está identificada em dois clássicos: o estudo. do IPEA sobre “A industrialização brasileira: diagnóstico e perspectivas” (p. 226), Rio de Janeiro, 1969, MPCG, e o livro de Maria da Conceição Tavares, Da substituição de importações ao capitalismo financeiro (p. 83), Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972 (11ª edição, 1983).
  • 17
    Os dados estão em VELLOSO, João Paulo dos Reis (1986). O último trem para Paris (p. 250), Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira.
  • 18
    Outra forma de se evidenciar o grande crescimento da área de tradeables, trazido pela execução da “estratégia de 74”, é através da análise das fontes de crescimento do produto industrial. Enquanto no período do “milagre” o crescimento da indústria de transformação resultou foi da expansão da demanda interna (que contribuiu com 96% do total) e da expansão das exportações (contribuição de 12%), tento por contrapartida uma contribuição negativa da substituição das importações((-) 8%), na fase do governo Geisel, a expansão da demanda interna já respondia por apenas 81% do total do crescimento industrial, enquanto a contribuição da substituição das importações se tornava significativamente positiva (10%), juntamente com a expansão das exportações (9,4%). E, no governo Figueiredo, a contribuição da expansão da demanda interna passava a dramaticamente negativa ((-) 138%), ao passo que a da substituição de importações e a da expansão das exportações se tornavam bastante positivas (22% e 16%, respectivamente). Os dados sobre as fontes de crescimento industrial na fase do “milagre” (1970-74) e no período Geisel (1974-79) estão no relatório do Banco Mundial, Brazil: Industrial policies and manufactured exports (p. 39), Washington, 1983. Os dados sobre o período 1980-83 se encontram no documento do IPEA (INPES), “Perspectivas de longo prazo da economia brasileira” (p. 210), Rio de Janeiro, 1985.
  • 19
    Evidentemente, o livro de Castro referido duas vezes neste artigo é o já clássico CASTRO, Antonio Barros de & SOUZA, Francisco Eduardo Pires de (1985). A economia brasileira em marcha forçada, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra.
  • 20
    VELLOSO, João Paulo dos Reis, op. cit., p. 314.
  • 21
    Isso sem contar os investimentos em indústrias tradicionais (têxteis, calçados, alimentação), minerais não-metálicos, mineração, agroindústria.
  • 22
    Notar que o governo Geisel manteve a divisão de trabalho já existente entre empresas estatais e empresas privadas (nacionais e estrangeiras). Nenhum novo setor foi, pois, estatizado. E a limitação da correção monetária a 20%, nos empréstimos do BNDES aprovados em 75 e 76, foi reservada a empresas privadas nacionais, não beneficiando, portanto, as estatais (nem as multinacionais).
  • 23
    Talvez convenha o registro de que, em matéria de alianças (a interpretação é minha), o governo Geisel não estava atrás de nenhum grande pacto político. Havia consciência de ser aquele um governo com dois compromissos básicos, segundo torna claro o próprio Presidente Geisel, no seu depoimento ao CPDOC: a abertura política e o desenvolvimento (representado este pelo II PND, que se propunha reestabelecer as condições normais para o desenvolvimento). Buscar-se-ia, então, apoio específico que viabilizasse cada um dos compromissos. Para a abertura, no Congresso Nacional (além da ação de neutralizar os focos de radicalismo nas Forças Armadas), onde, aliás, o governo dispunha de ampla maioria, a despeito dos avanços do MDB na eleição de 74 (de passagem, o “pacote de abril” foi para “viabilizar o novo governo”, na expressão do próprio Geisel) (GEISEL, Ernesto (1997). “Depoimento ao CPDOC.” In D’ ARAÚJO, Maria Celina & CASTRO, Celso (orgs.), Rio de Janeiro, Editora da FGV, p. 422. Para a execução do Plano, como já foi dito no retrospecto sobre patrimonialismo, o que se buscou foi, pelo diálogo, criar certo espírito de colaboração por parte das entidades mais representativas do empresariado. Além, é claro, da viabilização do esforço de investimentos das empresas (que dependia do sistema de incentivos). E isso foi obtido (sem “cooptação leal” de grupos).
  • 24
    Ver, a propósito, particularmente o prefácio à edição de 1997 do livro de Boris Fausto, A Revolução de 1930 - historiografia e história, São Paulo, Companhia das Letras (16ª edição).
  • 25
    JAGUARIBE, Helio (1990). “Sociedade, Estado e partidos na atualidade brasileira: sucinta aproximação preliminar.” In VELLOSO, J. P. R. “A crise brasileira e a modernização da sociedade”, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, p. 92.
  • 26
    MALAN, Pedro Sampaio & BONELLI, Regis (1983). “Crescimento econômico, industrialização e balanço de pagamentos: o Brasil dos anos 70 aos 80.” Textos para Discussão Interna, nº 60, Rio de Janeiro, IPEA (INPES).
  • 27
    Os dados são da tabela “Poupança do governo em conta corrente”, elaborada pelo Departamento Econômico do BC. Atualização em 25/11/96.
  • 28
    Ao lado disso, a dívida pública interna ainda era relativamente pequena (6,4% do PIB em junho/79, baixa em qualquer comparação internacional). E a conta de juros, tanto da dívida interna como da externa, também ainda era baixa, até 1978 (0,47% e 0,19% do PIB, respectivamente, somando 0,66%) (em 1984, a soma das duas contas alcançou 4,1% do PIB).
  • 29
    Existe uma qualificação a fazer, em matéria de resultados orçamentários. É que havia subsídios no orçamento monetário (financiados, em parte, por recursos não-monetários). Se se tivesse feito a consolidação dos três orçamentos (fiscal, da Previdência e monetário), o resultado seria, provavelmente, um pequeno déficit. E, como dissemos, os subsídios estavam em sistemático declínio, a partir de 76 (podendo-se, como exemplo, citar o esquema de extinção progressiva do crédito fiscal às exportações, aprovado em janeiro de 1979).
  • 30
    O depoimento dado pelo presidente Geisel ao CPDOC, e atualmente um livro de grande sucesso, é muito útil para caracterizar o tipo de governo impessoal, imune a clientelismo, que procurou realizar. Veja-se, por exemplo, sua definição de critérios para escolha de auxiliares: “Parti do princípio - era uma ideia arraigada - de que não se governa com parentes nem com amigos. Pode-se fazer amigos na presidência, mas não se deve levar pessoas para junto do poder apenas porque são amigos, nem distribuir cargos entre parentes. São fatores negativos para quem quer governar. É preciso ter muita isenção e capacidade para resistir. A escolha da pessoa é feita em função de sua capacidade para o cargo. Ela tem que ter suas qualidades, méritos, ideias que justifiquem a escolha. Sempre pensei assim e procurei, dentro do meu governo, fazer isso’?”. Geisel, Ernesto (1997). Depoimento ao CPDOC”., In D’Araújo, Maria Celina & Castro, Celso (orgs). Rio de Janeiro: editora da FGV, p.422.
  • 31
    JEL Classification: N16; O21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1998
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