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Um pouco além de Thomas Kuhn Da história do pensamento econômico à história da ciência econômica

A little beyond Thomas Kuhn From the history of economic thought to the history of economic science

RESUMO

Este artigo sugere uma revitalização da História do Pensamento Econômico pela adoção de novos métodos no moderno estudo das ciências. Ele mostra os novos horizontes abertos por essa abordagem, que tem suas origens na obra clássica de Kuhn. Ele termina dando como exemplo um estudo de caso baseado na teoria ator-rede.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; revolução científica; Kuhn; teoria ator-rede

ABSTRACT

This article suggests a revitalization of the History of Economic Thought by the adoption of new methods from the modem study of sciences. It shows the new horizons open by this approach, which has its origins in the Kuhn’s classical work. It ends giving as an example a case study based on the actor-network theory.

KEYWORDS:
History of economic thought; scientific revolution; Kuhn; actor-network theory

1. INTRODUÇÃO

Para que serve a História do Pensamento Econômico? Da ótica de boa parte dos jovens economistas acadêmicos ligados ao mainstream, provavelmente para quase nada. No momento em que a arrogância de nossos menudos “mudemos” rejeita qualquer ideia com mais de uma década de idade, ensinar HPE aparece como uma obrigação burocrática indesejável. Já da ótica da jurássica tribo da economia política, a HPE frequentemente aparece como um refúgio não inteiramente desconfortável para velhos heterodoxos incapazes de enfrentar o desafio dos novos tempos, numa espécie de intermezzo entre os debates dos bons tempos do nacional-desenvolvimentismo e uma merecida aposentadoria.

Nem velharia indesejável nem arquivo morto, a HPE precisa recuperar o papel que sempre foi seu, o de ponto de referência essencial para o debate a cada momento histórico. Por que razões desempenha tal papel? Em recente artigo, Eduardo Giannetti da Fonseca (1994FONSECA, E. G. da (1994) “Reflexões sobre a historiografia do pensamento econômico”. Florianópolis, Anais do XXII Encontro Nacional de Economistas, ANPEC, dezembro de 1994.) enumera três, que apresento de maneira ultra sintética.

Primeiro, deve-se estudar a história da economia para compreender como a disciplina evoluiu para chegar ao que é hoje, através do levantamento e avaliação de seus métodos, limites, problemas e resultados. Segundo, para entender como a ciência se ajusta·às condições mutantes de cada momento histórico, legitimando a exploração de novos caminhos pela memória das tentativas feitas pelos clássicos e inspirando novas abordagens. Terceiro, porque o estudo da HPE é uma lição prática acerca do funcionamento da mente humana quando da seleção e abordagem de problemas científicos, da busca do conhecimento objetivo, dos julgamentos de valor e das maneiras empregadas para a persuasão dos demais. Em suma, para Giannetti a HPE permite que se veja a obra de cada clássico como um laboratório onde se produz o conhecimento da disciplina.

A HPE é este laboratório. Uma arena onde encontramos não o método de pesquisa e persuasão estritamente racionais - a ciência como ela deveria ser dos metodólogos e filósofos da ciência -, mas os métodos efetivamente praticados pelos economistas ao tentarem entender o mundo como ele é e movê-lo na direção almejada (Fonseca, 1994FONSECA, E. G. da (1994) “Reflexões sobre a historiografia do pensamento econômico”. Florianópolis, Anais do XXII Encontro Nacional de Economistas, ANPEC, dezembro de 1994.:570).

Estou de pleno acordo. Não é possível criar novos conhecimentos em economia sem levar em conta a herança histórica, sob pena de ficarmos reinventando a roda (e, frequentemente, quadrada). Acredito, porém, que para que a HPE possa desempenhar essas três funções, teremos que ampliá-la. Não basta ser história do pensamento: terá que ser a história da ciência como um todo. Terá que ser reconstruída nos termos praticados pelos historiadores de ideias contemporâneos: a história dos movimentos conscientes e inconscientes dos agentes e suas mentalidades, instituições e organizações; a história de suas coalizões e redes que viabilizaram o desenvolvimento e a hegemonia de determinados conjuntos de ideias - e a derrota de conjuntos rivais. As ideias são apresentadas e avaliadas não isoladamente em sua torre de marfim, mas como resultado do trabalho árduo de seus produtores. E estes são pessoas que sistematizavam seu pensamento para usá-lo como meio não apenas de compreender o mundo, mas também como meio de estabelecer seu próprio lugar no mundo.

É essa alternância entre objetivos estritamente ligados ao desenvolvimento da disciplina e os objetivos existenciais de seus produtores que marca a especificidade das histórias das ideias diante de outras formas de história. É esse aspecto, digamos, sociopolítico que falta à HPE, e que a torna incapaz de explicar por que determinada explicação foi abandonada em favor de outra escola, sem que tivesse sido “derrotada” de forma inequívoca no debate1 1 O que explica as sucessivas releituras que provocam ressurreições - neoclássicos, neo-ricardianos, neomarxistas, novos clássicos, novos keynesianos, quem sabe em breve novos marxistas ... . Essa abordagem ampla é praticamente inexistente no campo da história da economia, como mostra Margareth Schabas (1992SCHABAS, M. (1992) “Breaking away: history of economics as history of science”. History of Political Economy, vol. 24, p. 1.); a HPE estaria, portanto, notavelmente defasada em relação ao saber de ponta de nossa época.

O ponto de partida para essa abordagem contemporânea encontra-se nos escritos de Thomas Kuhn, autor já aceito e consagrado por historiadores do pensamento econômico como Blaug (1980BLAUG, M. (1980) The Methodology of Economics or how Economics Explain. Tradução brasileira A metodologia da economia ou como os economistas explicam, São Paulo, EDUSP, 1993.) e Deane (1978DEANE, P. (1978) The Evolution of Economic Ideas. Cambridge University Press. Tradução brasileira A Evolução das Ideias Econômicas. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.). A amplitude do experimento de Kuhn permite a transcendência dos limites até então consensuais para os estudos de HPE. Como sintetizou recentemente um analista:

É ambicioso o projeto kuhniano: ir da história da ciência para a epistemologia passando por generalizações sobre as condições psicossociais que teimam possível a ciência. Daí conferir destaque à seguinte questão: é a comunidade especial que congrega os cientistas, que dá a unidade mínima às atividades de seus praticantes, ou é a existência de um método, ainda que tacitamente compartilhado, que gera a identidade peculiar dessa comunidade? (Oliva, 1994OLIVA, A. (1994) “Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade científica”. In Portocarrero.:68).

Ainda que se possa responder afirmativamente a ambas as alternativas, o que me interessa destacar é que estamos diante de duas estratégias de incorporação de elementos analíticos de duas disciplinas auxiliares à história, ou seja, a filosofia e a sociologia. E, sobretudo, que tais estratégias não são excludentes. Esse é o caminho das análises contemporâneas, na esteira de Kuhn.

De fato, a partir dos anos 80 difundiram-se os “estudos da ciência”, que integram história, filosofia e sociologia da ciência2 2 O mais flagrante caso desse tipo de estudo é a coletânea organizada por Portocarrero (1984). , os quais “têm como meta a compreensão integrada de todos os aspectos do fazer ciência: planejamento e processamento dos experimentos, instrumentos de construção, configuração dos instrumentos de pesquisa, quantificação e transcrição dos resultados, elaboração das teorias, negociação com os provedores, debates com colegas, estabilização do conhecimento” (Lowy, 1984LOWY, I. (1994) “Fleck e a historiografia recente da pesquisa biomédica”. In PORTOCARRERO (1984).:234).

Para avançar nessa direção, alerta Schwartzman (1994SCHWARTZMAN, S. (1994) “Os dinossauros de Roraima (ou a sociologia da ciência e da técnica de Bruno Latour)”. Novos Estudos CEBRAP, nº 39, julho.: 173), é preciso romper com as barreiras que a epistemologia e a sociologia tradicionais ergueram, ao longo de décadas, separando o laboratório da ciência, “reino da lógica, da razão, da técnica e da eficiência”, do mundo social, regido por normas completamente diferentes, englobando “conflitos, ideologias, mitos e imprecisões”. A ciência não nasce na torre de marfim, nem é um produto social como outro qualquer, que responda funcionalmente às exigências do meio. Existe uma autonomia relativa3 3 Perdão, caro leitor, pelo mofo althusseriano, mas falta-me expressão melhor. da produção científica que foge aos absolutismos epistemológico e sociológico.

Para fazer esse tipo de história de ciência, porém, é preciso investir contra a própria autoimagem da ciência defendida pelos cientistas, pois estes “escondem os rastros de seu trabalho, as tentativas e erros, os caminhos percorridos e abandonados, as disputas pela hegemonia na consagração de determinadas interpretações em detrimento de outras, enfim, a natureza essencialmente social de seu trabalho, e apresentam seus produtos acabados como necessários e definitivos” (Schwartzman, 1994SCHWARTZMAN, S. (1994) “Os dinossauros de Roraima (ou a sociologia da ciência e da técnica de Bruno Latour)”. Novos Estudos CEBRAP, nº 39, julho.:176). Com esse tipo de análise, em lugar da velha pretensão de tomar mais precisas e hard as ciências sociais, o que se está conseguindo é tomar mais sociais e soft as ciências (antes ditas) exatas ...4 4 Esses “estudos de ciência” estão centrados sobre a prática no laboratório. Não resisto ao trocadilho: para que a história da ciência econômica possa ser o laboratório das ideias pregado por Giannetti, ela deverá ser construída a partir dos métodos desenvolvidos nos estudos sobre a prática nos laboratórios das ciências exatas.

Após esta introdução, esboça-se o problema da aplicação do conceito de paradigma de Thomas Kuhn à ciência econômica, abrindo caminho para o uso de conceitos mais recentes, como caixa-preta e arena transepistêmica. Na seção 3 sintetiza-se uma das linhas de pesquisa passíveis de aplicação à economia, a chamada teoria ator-rede, com o objetivo de mostrar o campo de possibilidades que se abre ao historiador que queira abandonar o campo estrito do pensamento econômico e enfrentar o desafio de historiar a ciência econômica como um todo.

2. KUHN E O PENSAMENTO ECONÔMICO

Thomas Kuhn foi a figura central do debate meta-científico nas últimas três décadas. A partir da publicação da Estrutura das Revoluções CientificasKUHN, T. (1970) The Structure of Scientific Revolutions. Chicago, The University of Chicago Press, 2a edição revista; edição brasileira A estrutura das revoluções cientificas. São Paulo, Perspectiva, 1975. suas ideias propagaram-se rapidamente, deslocando corpos conceituais tradicionais e redirecionando as discussões dos especialistas. Foi assim no pensamento francês, com o deslocamento da epistemologia bachelardiana do eixo das especulações meta-científicas. O mesmo aconteceu no mundo anglo-saxônico, com o desafio lançado ao pensamento de Sir Karl Popper e o surgimento das alternativas criadas por Imre Lakatos e Paul Feyerabend5 5 Uma apresentação sucinta e recente do debate anglo-saxónico encontra-se em Oliva (1994) e em Regner (1994). .

Os reflexos desse debate sobre a ciência econômica não poderiam tardar. Desde logo porque, em termos kuhnianos, a economia não pode ser considerada uma ciência, ou pelo menos não uma só. Para Kuhn, uma disciplina só ingressa na etapa científica quando a comunidade de especialistas adquire consenso quanto ao seu paradigma - ou seja, o elenco de problemas relevantes e os padrões estandardizados de abordagem6 6 “Ao aprender um paradigma o cientista adquire teoria, métodos e padrões conjuntamente, formando uma mistura inextrincável” (Kuhn, citado em Oliva, 1994:78). , Enquanto isso não ocorre estamos na época da pré-ciência, quando as diferentes correntes de pensamento se digladiam num mundo hobbesiano em busca da hegemonia7 7 Para uma defesa dessa interpretação ver Oliva (1994). . Ao formular suas ideias, o autor estava se referindo explicitamente ao mundo das ciências exatas; sua extensão ao campo das ciências sociais, embora viável, não é simples nem total, como mostrou Barnes (1982BARNES, B. (1986) T.S.Kuhn y las Ciencias Sociales. México, CNCT/Fondo de Cultura Económica.).

Para adotar as ideias de Kuhn no campo da economia teríamos que optar entre (i) considerar a economia como pré-científica e prosseguir no caminho kuhniano, ou (ii) tentar relaxar seu conceito de paradigma, afirmando que a convivência de diversos destes é uma característica das ciências sociais. A segunda dessas alternativas é a mais comum. Na verdade, o que se observa é a generalização de uma espécie de “kuhnianismo vulgar” no seio da linguagem corrente dos cientistas, em que a ideia de paradigma é aplicada a qualquer conjunto de noções legitimadas por um subconjunto da comunidade.

No entanto, essa versão menos rígida, “referente ao conjunto de conhecimentos aceito sem questionamento por uma parte da comunidade científica”, não expressa o pensamento kuhniano. Tal, no entanto, é exatamente o significado do conceito de caixa-preta de Bruno Latour (1987LATOUR, B. (1987) Science in Action. Cambridge, Harvard University Press.). Esse conceito parece bem mais aplicável ao estado da arte na ciência econômica do que ao de paradigma. Essa disciplina está, desde sua origem, dividida em diversas escolas que se fundem parcialmente em movimentos de grande plasticidade à medida que novas gerações conquistam a senioridade em seus centros de ensino e pesquisa.

Giannetti não associou a HPE apenas a um laboratório, mas também a uma arena onde encontramos os métodos efetivamente praticados pelos economistas em sua produção. Novamente não resisto à analogia com outro tipo de arena, a transepistêmica, presente nos “estudos de ciência” contemporâneos.

O conceito de arenas transepistêmicas (ou campos transcientíficos) é fundamental. Trata da relação entre os cientistas e destes com toda uma série de entidades com quem são obrigados a interagir, como agências de financiamento, administradores, indústrias, editores, diretores de centros de pesquisa, fornecedores de equipamentos.

As relações entre cientistas e não-cientistas não estão limitadas à transferência de todo tipo de recurso, elas implicam escolhas e decisões técnicas, em que métodos e interpretações são negociados com representantes das agências financiadoras e das indústrias fornecedoras de produtos para o laboratório. O caráter transepistêmico está na necessidade de tradução, que é uma negociação entre diferentes agentes sobre os problemas da pesquisa, como eles podem ser solucionados e avaliados (...) As arenas transepistêmicas são constituídas, dissolvidas e reconstituídas cotidianamente na atividade científica contextualizada (...). E o que está em questão não é o que se compartilha ou possui, mas o que pode ser transmitido pelos agentes para ser utilizado pelos outros para se converter em outras coisas (Hochman, 1994HOCHMAN, G. (1994) “A ciência entre a comunidade e o mercado: leituras de Kuhn, Bourdieu, Knorr-Cetina e Latour”. On Portocarrero.: 226).

Suspeito que será a partir desse conceito que poderemos, por exemplo, explicar por que em determinados momentos históricos aparecem conhecimentos científicos inequivocamente hegemônicos, porém, restritos a determinados espaços nacionais. Por maior que seja sua relevância, não conseguem penetrar e desenvolver-se nos mercados de ideias de outros países. Estou pensando em fatos como o dos limites nacionais para as diferentes ciências sociais, como os que relaciono em seguida.

Antes de mais nada temos a questão do estabelecimento da hegemonia teórica da economia política no Reino Unido ao longo do século XIX. Ainda que seus conceitos fundamentais tenham sido criados no último quartel do século XVIII e no primeiro quartel do século XIX, a disciplina não conseguiu penetrar nas universidades britânicas, dominadas pelos estudos teológicos. No primeiro meio século a economia política, malgrado seu reconhecimento como fundamento para a política econômica do Império, não conseguiu vencer a barreira filosófica e teológica que a mantinha fora de Cambridge e de Oxford. Só a partir da Universidade de Londres, fundada não por acaso por Bentham, a disciplina ganhou reconhecimento acadêmico - chegando mais tarde a Cambridge apenas nas franjas da filosofia moral, até vencer no reinado de Marshall8 8 Minha principal fonte é Skidelsky (1983), capítulos 2 e 6. .

Se foi capaz de manter a hegemonia em terras britânicas, a economia política não conseguiu conquistar os espaços intelectuais do Continente. Na França dominou a sociologia, com Comte e principalmente com Durkheim e Mauss, a qual só foi ameaçada na segunda metade do século XX, com a antropologia de Levi-Strauss e a história ecumênica da École des Annalles9 9 As referências são Wagner (1989) e Dosse (1987). . Na Alemanha dominou inicialmente a escola histórica, substituída na virada do século por um tipo muito especial de sociologia, uma socioeconomia desenvolvida por Georg Simmel e Max Weber como uma crítica ao historicismo e à economia política ao mesmo tempo. Por outro lado, na Itália predominava a filosofia de Benedetto Croce, que esmagou quase todos os concorrentes, exceto a tradicional “teoria legal do Estado”, peculiar forma italiana de ciência política dominada pela tradição do direito romano10 10 “Pareto, who in Lausanne lived less under the impact of Crece’s ‘dictadorship” in Italian culture, continued his project of a sociology as a general theory of society integrating economics as a theory of rational action, but his ideas did not guide further theoretical discussions.” (Wagner, 1989: 516) . Finalmente, na Suécia, nos anos 30, um grupo de acadêmicos foi retirado da Universidade de Estocolmo para criar o primeiro welfare state da história. Sem tempo para desenvolver a estrutura teórica subjacente, deixaram espaço para Keynes - que, na época, não tinha influência sobre a política econômica britânica11 11 Wittrock (1989: 502). Não deixa de ser uma ironia a péssima relação de Keynes com pelo menos alguns dos economistas suecos. Como ilustração, como editor do Economic Journal, em 1923, rejeitou um artigo de Bertil Ohlin, em que se introduzia o teorema que mais tarde renderia ao autor o prêmio Nobel, com a mensagem: “This amounts to nothing and should be refused. J.M.K.”. Ohlin, elegantemente, atribuiu o envio do bilhete a um equívoco da secretária de Keynes -mas ainda assim guardou-o como um documento valioso ... (Gans & Shepherd, 1994). .

Nada no interior apenas do campo do conhecimento parece justificar que esses saberes tenham reinado hegemônicos em seus territórios, sem que tenham sofrido a invasão dos demais, em uma Europa em que a circulação de ideias se firmara com os progressos da indústria gráfica do século XIX. Na verdade, muitas das questões respondidas ad hoc pela economia política tinham explicações bem mais competentes nas disciplinas continentais (e vice-versa), sem que houvesse qualquer colaboração entre elas. Mais do que a simples questão da integridade teórica parece ter existido algo como um quadro de “nacionalismo científico”, que preservou determinados campos do saber ao monopólio dos nativos, levantando barreiras à entrada de ideias estrangeiras.

Explorar esse tipo de questões, portanto, significa deslocar o foco da atenção das ideias para os produtores de ideias, a comunidade científica destacada por Thomas Kuhn como a construtora, usuária, legitimadora e defensora dos paradigmas. Mas tomar tal atitude significa avançar muito além do que foi Kuhn, penetrando no campo dos citados “estudos de ciência”. Na impossibilidade de resenhar as diversas alternativas desse campo de pesquisa, descrevo brevemente uma delas, a teoria ator-rede, bem como sua aplicação a um caso específico de debate econômico, convencido de sua utilidade para a explicação da evolução da ciência econômica.

3. A TEORIA ATOR-REDE E A HPE

Começarei com um brevíssimo resumo dessa teoria. Em seguida apresentarei uma síntese de um exemplo de sua aplicação em recentíssimo estudo de caso (Yonai, 1994YONAI, Y. P. (1994) “When black boxes clash: competing ideas of what science is in economics, 1924-39”, Social Studies of Science, vol. 24, nº 1, February, pp. 39-80.), que explica o conflito entre as escolas neoclássica e institucionalista nos Estados Unidos, entre meados dos anos 20 e a Segunda Guerra Mundial.

3.1 Elementos básicos da teoria

Essa abordagem vê os cientistas como personagens interessados em promover suas contribuições de forma a transformá-las em caixas-pretas, isto é, em conhecimento reconhecido e usado regularmente pelos membros da comunidade. As escolas de pensamento são vistas como redes que se consolidam em tomo de respostas diferentes dadas às mesmas grandes questões - frequentemente sob a forma de perguntas diferentes circunscrevendo aproximadamente os mesmos fenômenos.

The processus of making .a black box does not require consensus of opinion. (...) It is a sufficient condition that it is a constituent of any ongoing network. Engineers who design a new engine or a new computer do not have to convince all consumers to shift to their new products. Similarly, a historical account becomes a black box if some historians refer to it in their own accounts, even if other historians reject it and employ a competing account. (...) The promoters of neither side can afford to sit idle and let the other party weaken the links of their network (Yonai, 1994YONAI, Y. P. (1994) “When black boxes clash: competing ideas of what science is in economics, 1924-39”, Social Studies of Science, vol. 24, nº 1, February, pp. 39-80.:42).

Dentro de cada escola os princípios fundamentais são consensuais e não precisam ser discutidos, daí o termo caixa-preta. Alguns de seus membros dedicam-se ao desenvolvimento interno, isto é, à construção de novas caixas-pretas; outros empregam suas energias em testes de força contra adversários externos, buscando convencer os demais colegas de que as contribuições de seu grupo são válidas, úteis e promissoras - e assim ganhar novos adeptos para a rede12 12 “ ... o que importa é a transmissão de conhecimentos específicos e locais através de uma grande rede de mediações, de tal maneira que seja possível representar, de forma fidedigna, uma realidade longínqua ou uma experiência inusitada: prever um eclipse, registrar em um mapa um roteiro de viagem, produzir artefatos de forma consistente e estável.(...) Os mesmos conteúdos são transmitidos por sucessivas transformações, os conhecimentos se acumulam e concentram em ‘centros de cálculo’ que os organizam, compatibilizam e condicionam a busca de novas informações. A construção dessas grandes redes de conhecimento e informações depende da construção de ‘objetos’ técnicos e científicos que consolidam informações, procedimentos e experiências em conceitos, equipamentos, instrumentos e teorias, que, uma vez estabilizados, passam a funcionar como ‘caixas-pretas’, unidades aparentemente simples e independentes que se incorporam a processos de generalização, cálculo e integração de informações cada vez maiores.” (Schwartzman, 1994: 175). .

Cada cientista enfrenta, nesses testes de força, um ou mais rivais com o mesmo objetivo. Para vencer a concorrência cada um lança mão de todos os aliados que encontrar: adesão de colegas e discípulos, encaixe em teorias mais amplas, adesão a aspectos consagrados ou esquecidos de cientistas reconhecidos do passado, obtenção de financiamentos capazes de sustentar quantidades crescentes de equipamentos, laboratórios e pesquisadores, controle de instituições, definição de rotinas etc., formando uma rede que suporta e ratifica a cada um de seus elementos.

Um elemento essencial para a constituição de cada escola é a sua metodologia, que deve adequar-se à reprodução dos cânones aceitos, compatibilizando os elementos considerados como conhecimento sólido, e ser vista como útil e promissora, validando o conhecimento praticado pelo grupo. Quando as diferentes metodologias entram em conflito, nos testes de força, cada uma das partes usa como armas argumentos como: o passado da disciplina, mostrando como se está em continuidade com a melhor tradição, ou, ao contrário, se se rompe com seu lado podre; a compatibilidade com visões filosóficas aceitas por grupos mais amplos que a simples escola; a compatibilidade com métodos adotados por disciplinas prestigiadas; a compatibilidade com teorias desenvolvidas por disciplinas vizinhas, com as quais se possa intercambiar ideias; a relevância de sua abordagem para problemas práticos.

Uma rede é mais forte que qualquer de seus elos; é impossível minar um só sem atingir os demais - e receber a devida resposta. Assim, a habilidade para tecê-la é essencial para garantir o sucesso nos testes de força. Por isso, para construir uma caixa-preta não é necessário obter o consenso de toda a comunidade científica: basta obter uma rede que a suporte.

Essa abordagem requer que o analista concentre sua atenção em todos os elos pertinentes. No caso da ciência econômica isso implica estudar, além dos aspectos metodológicos supracitados, pelo menos os seguintes aspectos: os recursos sobre os quais os economistas tinham comando, inclusive para atividades que nada tinham a ver com seu trabalho como economistas; os cargos ocupados pelos economistas nas universidades, nas grandes empresas e no governo; as personalidades e autoridades com quem os economistas tinham contato; as ferramentas e planos econômicos construídos para seus clientes; as diferenças internas a cada rede, expressas em sub-redes.

Desconheço estudos sobre economia que tenham utilizado todo o potencial dessa abordagem. No entanto, ainda que limitado, o estudo de caso que sintetizo abaixo serve para ilustrar a amplitude do campo que está sendo aberto.

3.2 O debate norte-americano dos anos 3013 13 Este item é quase que inteiramente baseado em Yonai (1994).

O conflito entre institucionalistas e neoclássicos no período entre as duas guerras mundiais pertence a uma família de debates científicos que trata de controvérsias quanto ao método e às estratégias efetivas de pesquisa. Foi travado em um momento em que o uso da linguagem matemática era pouco difundido e intensamente contestado, antes, portanto, de ser considerado tão “natural”, para a ciência econômica, como o experimento de laboratório o é para a fisica, a química e a biologia.

A polêmica girava sobretudo em tomo da questão “o que deve ser a ciência econômica?” Tema tão amplo envolve uma grande quantidade de contendores, interessados em definir o escopo de seu próprio campo de atividade. Haverá tantos grupos organizados quantas forem as escolas de pensamento envolvidas - cada uma com sua rede. Tomaremos duas delas apenas, a neoclássica e a institucionalista, ainda que sob pena de deixar de lado uma corrente de ideias tão importante quanto o marxismo.

Dentro de cada escola, como visto, os princípios fundamentais não são questionados e orientam as pesquisas, mas alguns membros de cada escola dedicam-se aos testes de força em sua competição com as rivais. Estes debatem os princípios, pressupostos e métodos envolvidos nas proposições que definem a escola. Quando a atenção está voltada para o desenvolvimento da ciência normal o foco deve concentrar-se nos desenvolvimentos da caixa-preta. Já quando, como agora, queremos focalizar um debate, é sobre os guerreiros e seus testes de força que se concentra o foco.

Neoclássicos e institucionalistas, antes da Segunda Guerra Mundial, não eram tão antitéticos quanto atualmente. Ao menos os discípulos de Marshall estavam longe do laissez-faire dos marginalistas, buscando maneiras de corrigir falhas de mercado para tomar o sistema mais eficiente e mais igualitário14 14 É conhecida a proximidade do próprio Marshall com o socialismo fabiano (ver Skidelsky, 1983). . Por seu lado, nem todos os institucionalistas pretendiam construir uma teoria em oposição extrema aos neoclássicos - ainda que Veblen, Tugwell e Ayres tivessem posições radicais, o mesmo não se pode dizer de autores como Commons, Mitchell, Copeland e J.M. Clark.

Se ambas eram relativamente parecidas, qual o eixo de seu conflito? Tratava-se da importância relativa da teoria diante da pesquisa empírica. Os institucionalistas consideravam as hipóteses neoclássicas aceitáveis, mas apenas para condições muito especiais15 15 A pretensão keynesiana de estar produzindo uma teoria geral, da qual os ditos “clássicos” seriam um mero caso especial, parece ter sido acompanhada do outro lado do Atlântico. . Pretendiam ampliar o escopo da teoria incorporando comportamentos irracionais, instituições rígidas e noções de dinâmica econômica. E pretendiam fazê-lo a partir de uma clara opção pela pesquisa empírica, com amplo recurso à história e à estatística, que deveriam mostrar quais os elementos mais relevantes para a análise econômica.

Os neoclássicos achavam que tal tipo de abordagem traria pouca contribuição para os problemas econômicos:

They were aware of irrational behavior and of the role of institutions in channelling human actions, but they believed that deductive analysis based on the assumption of rationality was nevertheless the most profitable course of economics. They never mistook their analysis for a description of reality. They viewed orthodox value theory only as a starting point, and fully agreed that empirical research was essential for accounting for specific phenomena and for policy making. Because of their more reistrained expectations of economic research, the neoclassicists were more cautious in their polity recommendations. They had the same goals as institutionalists, but they favoured more restrained intervention, because they doubted the ability of economists to ensure the realisation of these goals (Yonai, 1994YONAI, Y. P. (1994) “When black boxes clash: competing ideas of what science is in economics, 1924-39”, Social Studies of Science, vol. 24, nº 1, February, pp. 39-80.:47).

Vejamos agora as posições ocupadas por cada grupo. Os neoclássicos estavam solidamente instalados na maior parte das universidades, com destaque para Harvard (apesar da presença de Hansen e Schumpeter) e Chicago (com Frank Knight). É conhecida a trajetória turbulenta do enfant terrible da síntese neoclássica do pós-guerra, Paul Samuelson, em sua passagem por ambas as instituições - em particular seu ódio por Knight (ver Silk, 1976SILK, L. (1976) The economists, Basic Books. Tradução brasileira Os economistas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.). Os neoclássicos detinham, portanto, a hegemonia acadêmica.

Os institucionalistas, porém, longe de ser um pequeno grupo de críticos, detinham importantes posições. Controlavam dois dos mais importantes cursos de economia, em Columbia (com Mitchell e J.M. Clark) e em Wisconsin (com Commons). Mitchell criou e dirigiu o National Bureau of Economic Research, de 1920 a 1945. Mitchell e J.M. Clark foram os dois primeiros ganhadores da importante medalha Walker, distribuída a cada cinco anos ao mais importante economista do país. Os institucionalistas estiveram à frente de inúmeros estudos sobre intervenção estatal, bem como participaram e dirigiram institutos de estatística. Foi um institucionalista, Galbraith, quem organizou o controle de preços durante a Segunda Guerra Mundial. Arthur Bums, conselheiro de Eisenhower e presidente do FED no governo Nixon, foi um dos últimos institucionalistas a ocupar um cargo de destaque.

Pela ótica da legitimidade de seus expoentes, portanto, nenhum dos contendores podia desbancar o outro. A supremacia neoclássica na academia, além de não ser absoluta, era contrastada pela predominância dos institucionalistas no seio da máquina estatal. O combate tinha que deslocar-se para outros campos.

Antes de mais nada, combateu-se no campo filosófico. Os institucionalistas acusavam seus adversários de permanecer atados ao século XIX, buscando leis naturais, em uma postura dita “metafisica”16 16 “The interesting point is that neoclassisists had to pay the price for their past reliance upon natural law, although none of them seemed to retain their support for natural-law philosophy during the struggle with institutionalism. When the classical economists had initially built their theories, the association with natural-law philosophy had served them well. Alliances, however, had a lingering effect. Once a party has recruited an ally, it is not easy to renounce its association with an ally. That is what happened to the orthodox economists, who were associated with the old philosophy. (...) even the more ‘orthodox’ type of contemporary economists were much more modest and cautious about economic ‘laws’, but institutionalists kept asserting that neoclassical theory was based on the antiquated natural-law philosophy” (Yonai, 1994:50). . Os institucionalistas, por seu lado, tentavam apoiar-se na filosofia pragmática, bastante respeitada nos Estados Unidos no início do século. No entanto, não puderam impedir seus adversários de apropriar-se do mesmo aliado.

De fato, Frank Knight tomou tal recurso para legitimar uma posição diametralmente oposta, atacando a capacidade de a pesquisa empírica fornecer elementos úteis para a formação de generalizações capazes de alimentar previsões. Ao contrário, afirmava que o mais importante instrumento para a análise prospectiva era a hipótese do comportamento racional maximizador. Em suma, os dois contendores apropriaram-se do pragmatismo para seus próprios fins, eliminando pelo menos parte da vantagem que o outro poderia obter.

O combate também se travou no campo da apropriação dos métodos de outras disciplinas. Os institucionalistas acusavam seus adversários de permanecer apegados aos métodos dedutivos, enquanto as ciências naturais modernas (como a física, fetiche maior dos cientistas sociais) baseavam-se na coleta de fatos, busca de padrões, tentativas de generalização e, finalmente, na construção de teorias que encadeassem todos esses elementos. Frank Knight reagiu mostrando que a teoria econômica não era a mesma coisa que a física teórica - mas que a aplicação dos princípios daquela era feita mais fielmente pelos neoclássicos.

Assim, ambas as partes afirmavam a seu público que era possível agir como os físicos e atingir o mesmo grau de sucesso que eles. Mas para isso seria preciso agir da maneira “correta”. Para os institucionalistas, fazer como os físicos significava dar mais importância à pesquisa empírica, pois não era possível deduzir a complexidade das instituições humanas a partir de uns poucos postulados. Os neoclássicos, de seu lado, argumentavam que a simplicidade era sua maior arma para analisar a complexidade do social, pois destacava um aspecto essencial: a racionalidade. Knight dizia que, assim como a física teórica trabalha sobre o vácuo, para depois acrescentar as imperfeições que constituíam a fricção, também a economia podia trabalhar sobre a racionalidade, para depois acrescentar as aberrações do comportamento irracional. O debate prosseguiu com a apresentação de similitudes e diferenças entre a economia e as ciências naturais.

Outra arma usada foi o aproveitamento de contribuições de outras ciências. Os institucionalistas argumentavam que o homo economicus era fruto da psicologia hedonista dos utilitaristas britânicos do início do século XIX, numa transposição tão fora de época como fora a da filosofia das leis naturais. Contra essa posição, recorriam a estudos interdisciplinares, formando redes sólidas com o conjunto do campo das ciências humanas e sociais. Em particular tentaram ligar-se à psicologia alternativa que estava nascendo, o behaviorismo. Os neoclássicos reagiram mostrando que a psicologia reforçava seu lado, em particular a recém-criada psicanálise, com seu destaque para a relação entre estados conscientes e não conscientes. Novamente se anulava uma arma reapropriando-a segundo seus próprios parâmetros17 17 Não deixa de ser irônico que atualmente o behaviorismo se tenha tomado a base psicológica para a ortodoxia, enquanto a psicanálise, com seu destaque sobre o inconsciente, seja um elemento essencial da crítica heterodoxa ... Ver, sobre o tema, Earp (1994), cap. 4. .

Esses testes de força baseavam-se no uso de critérios internos ao campo da ciência e da filosofia para conferir validade às escolas em luta. Existem, porém, testes de outra natureza, relativos à utilidade de cada programa de pesquisas para o tratamento de problemas práticos. Ambos os lados, novamente, conseguem “demonstrar” sua supremacia neutralizando ao menos temporariamente a crítica adversa.

Os institucionalistas acusavam seus adversários de ser acadêmicos estéreis, incapazes de tratar das questões concretas do mundo. E essas questões tomavam-se dramáticas diante das mudanças que sucederam a Primeira Guerra Mundial, que nada tinham a ver com as hipóteses neoclássicas e que exigiam rigorosa investigação empírica, com destaque para o uso de métodos quantitativos. Tentavam ligar-se às principais metas de reforma social, mostrando que seus adversários estavam afastados do interesse público e que as conquistas institucionalistas eram sólidas. Com isso, pretendiam estar conduzindo os neoclássicos a um lugar de honra num museu da ciência.

Os neoclássicos contra-atacaram mostrando que as conquistas dos institucionalistas eram mais intenções do que descobertas efetivas. Os métodos quantitativos seriam capazes de apresentar resultados muito menos confiáveis do que previam seus adeptos. A fraqueza de tais métodos residia na rápida e imprevisível mutabilidade das variáveis econômicas e de sua importância relativa, minando a validade de qualquer modelo. A única constante, reiteravam, era a defesa racional do interesse próprio. A teoria neoclássica podia ter problemas, admitiam, mas não estava estagnada. Aqui, parece que os institucionalistas marcaram um tento, embora não decisivo.

A mobilização de economistas do passado foi outra arma utilizada no debate. Muitos dos institucionalistas, longe de ser heréticos, como alguns manuais os apresentam, consideravam-se os legítimos sucessores dos clássicos. Ricardo, Jevons, Pareto e sobretudo Marshall eram invocados como autores cuja obra estava sendo prosseguida, uma vez corretamente interpretada18 18 Evidentemente isso não se aplicava à ala mais radical dos institucionalistas. Thorstein Veblen, por exemplo, recusava-se a conferir valor a esses autores. . Mitchell, por exemplo, afirmava que os clássicos não eram adeptos da livre competição nem da propriedade privada por si só, mas apenas como instituições necessárias para atingir o crescimento econômico em um dado contexto - passíveis, portanto, de atuar nocivamente em outros ...

O combate não se encerrou em 1939. A Segunda Guerra Mundial explodiu antes que algum dos contendores pudesse derrotar o outro, trazendo novos problemas à ordem do dia. A coordenação das decisões sob uma economia de guerra baseou-se em contribuições dos institucionalistas, mas o debate teórico saiu de moda, ou melhor, deslocou-se para o desenvolvimento do instrumental matemático indispensável. No pós-guerra o debate recomeçou, mas foi brutalmente atropelado pela emergência da síntese neoclássica, que incorporava à teoria marshalliana (inclusive com sua vertente keynesiana) defendida pelos neoclássicos todo aquele estoque de métodos quantitativos pregados pelos institucionalistas.

Com isso, o debate foi abandonado sem que se tenha verificado a vitória inequívoca de qualquer das partes. Na verdade, o conflito entre institucionalistas e neoclássicos continua até nossos dias - mas sempre à margem do mainstream, consumindo as migalhas de recursos deixados para alimento dos que preferem temas exóticos.

4. CONCLUSÕES

Creio ter mostrado que a teoria ator-rede é um instrumento capaz de contribuir para o conhecimento da história da ciência econômica. Essa é uma das diversas vertentes que os modernos estudos da ciência colocam à nossa disposição. Devemos usá-los sem medo; são capazes de ajudar bastante na compreensão de nosso próprio presente.

Não creio que cheguemos ao ponto de negar o conhecimento anterior formulado sobre a HPE; na verdade, creio que a History of Economic Analisys de Schumpeter seguirá sendo lida com proveito por pelo menos mais uma geração. Mas tenho certeza de que teremos de reinserir tais antigas contribuições em espectros analíticos mais amplos. E já estamos vinte anos atrasados em relação aos colegas de outras disciplinas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WAGNER, P. (1989) “Social science and the state in continental Westem Europe: the political structuration of disciplinary discourse”. International Social Science Journal, nº 122, November.
  • WlTTROCK, B. (1989) “Social science and state development transformations of the discourse of modemity”. International Social Science Journal, nº 122, November.
  • 1
    O que explica as sucessivas releituras que provocam ressurreições - neoclássicos, neo-ricardianos, neomarxistas, novos clássicos, novos keynesianos, quem sabe em breve novos marxistas ...
  • 2
    O mais flagrante caso desse tipo de estudo é a coletânea organizada por Portocarrero (1984PORTOCARRERO, V. (org.) (1994) Filosofia, História e Sociologia das Ciências: Abordagens Contemporâneas. Rio de Janeiro, Fiocruz.).
  • 3
    Perdão, caro leitor, pelo mofo althusseriano, mas falta-me expressão melhor.
  • 4
    Esses “estudos de ciência” estão centrados sobre a prática no laboratório. Não resisto ao trocadilho: para que a história da ciência econômica possa ser o laboratório das ideias pregado por Giannetti, ela deverá ser construída a partir dos métodos desenvolvidos nos estudos sobre a prática nos laboratórios das ciências exatas.
  • 5
    Uma apresentação sucinta e recente do debate anglo-saxónico encontra-se em Oliva (1994OLIVA, A. (1994) “Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade científica”. In Portocarrero.) e em Regner (1994REGNER, A.C.K.P. (1994) “Feyerabend/Lakatos: ‘adeus à razão’ ou construção de uma nova racionalidade”. In Portocarrero.).
  • 6
    “Ao aprender um paradigma o cientista adquire teoria, métodos e padrões conjuntamente, formando uma mistura inextrincável” (Kuhn, citado em Oliva, 1994OLIVA, A. (1994) “Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade científica”. In Portocarrero.:78).
  • 7
    Para uma defesa dessa interpretação ver Oliva (1994OLIVA, A. (1994) “Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade científica”. In Portocarrero.).
  • 8
    Minha principal fonte é Skidelsky (1983SKIDELSKY, R. (1983) John Maynard Keynes. Volume one: hopes betrayed, 1883- 1920. Tradução espanhola John Maynard Keynes, 1. Esperanzas frustradas: 1883-1920. Madrid, Alianza Editorial, 1986.), capítulos 2 e 6.
  • 9
    As referências são Wagner (1989WAGNER, P. (1989) “Social science and the state in continental Westem Europe: the political structuration of disciplinary discourse”. International Social Science Journal, nº 122, November.) e Dosse (1987DOSSE, F. (1987) L histoire en miettes - des “Annales” a la “Nouvelle Histoire”, Paris, La Découverte.).
  • 10
    “Pareto, who in Lausanne lived less under the impact of Crece’s ‘dictadorship” in Italian culture, continued his project of a sociology as a general theory of society integrating economics as a theory of rational action, but his ideas did not guide further theoretical discussions.” (Wagner, 1989WAGNER, P. (1989) “Social science and the state in continental Westem Europe: the political structuration of disciplinary discourse”. International Social Science Journal, nº 122, November.: 516)
  • 11
    Wittrock (1989WlTTROCK, B. (1989) “Social science and state development transformations of the discourse of modemity”. International Social Science Journal, nº 122, November.: 502). Não deixa de ser uma ironia a péssima relação de Keynes com pelo menos alguns dos economistas suecos. Como ilustração, como editor do Economic Journal, em 1923, rejeitou um artigo de Bertil Ohlin, em que se introduzia o teorema que mais tarde renderia ao autor o prêmio Nobel, com a mensagem: “This amounts to nothing and should be refused. J.M.K.”. Ohlin, elegantemente, atribuiu o envio do bilhete a um equívoco da secretária de Keynes -mas ainda assim guardou-o como um documento valioso ... (Gans & Shepherd, 1994GANS, J. S. & SHEPHERD, G. B. (1994) “How are the might fallen: rejected classic articles by leading economists”. Journal of Economic Perspectives, vol. 8, nº 1, winter.).
  • 12
    “ ... o que importa é a transmissão de conhecimentos específicos e locais através de uma grande rede de mediações, de tal maneira que seja possível representar, de forma fidedigna, uma realidade longínqua ou uma experiência inusitada: prever um eclipse, registrar em um mapa um roteiro de viagem, produzir artefatos de forma consistente e estável.(...) Os mesmos conteúdos são transmitidos por sucessivas transformações, os conhecimentos se acumulam e concentram em ‘centros de cálculo’ que os organizam, compatibilizam e condicionam a busca de novas informações. A construção dessas grandes redes de conhecimento e informações depende da construção de ‘objetos’ técnicos e científicos que consolidam informações, procedimentos e experiências em conceitos, equipamentos, instrumentos e teorias, que, uma vez estabilizados, passam a funcionar como ‘caixas-pretas’, unidades aparentemente simples e independentes que se incorporam a processos de generalização, cálculo e integração de informações cada vez maiores.” (Schwartzman, 1994SCHWARTZMAN, S. (1994) “Os dinossauros de Roraima (ou a sociologia da ciência e da técnica de Bruno Latour)”. Novos Estudos CEBRAP, nº 39, julho.: 175).
  • 13
    Este item é quase que inteiramente baseado em Yonai (1994YONAI, Y. P. (1994) “When black boxes clash: competing ideas of what science is in economics, 1924-39”, Social Studies of Science, vol. 24, nº 1, February, pp. 39-80.).
  • 14
    É conhecida a proximidade do próprio Marshall com o socialismo fabiano (ver Skidelsky, 1983SKIDELSKY, R. (1983) John Maynard Keynes. Volume one: hopes betrayed, 1883- 1920. Tradução espanhola John Maynard Keynes, 1. Esperanzas frustradas: 1883-1920. Madrid, Alianza Editorial, 1986.).
  • 15
    A pretensão keynesiana de estar produzindo uma teoria geral, da qual os ditos “clássicos” seriam um mero caso especial, parece ter sido acompanhada do outro lado do Atlântico.
  • 16
    “The interesting point is that neoclassisists had to pay the price for their past reliance upon natural law, although none of them seemed to retain their support for natural-law philosophy during the struggle with institutionalism. When the classical economists had initially built their theories, the association with natural-law philosophy had served them well. Alliances, however, had a lingering effect. Once a party has recruited an ally, it is not easy to renounce its association with an ally. That is what happened to the orthodox economists, who were associated with the old philosophy. (...) even the more ‘orthodox’ type of contemporary economists were much more modest and cautious about economic ‘laws’, but institutionalists kept asserting that neoclassical theory was based on the antiquated natural-law philosophy” (Yonai, 1994YONAI, Y. P. (1994) “When black boxes clash: competing ideas of what science is in economics, 1924-39”, Social Studies of Science, vol. 24, nº 1, February, pp. 39-80.:50).
  • 17
    Não deixa de ser irônico que atualmente o behaviorismo se tenha tomado a base psicológica para a ortodoxia, enquanto a psicanálise, com seu destaque sobre o inconsciente, seja um elemento essencial da crítica heterodoxa ... Ver, sobre o tema, Earp (1994EARP, F. S. (1994) “A esfinge monetária. Ensaio sobre a inflação brasileira.” Rio de Janeiro, IE/UFRJ, tese de doutorado.), cap. 4.
  • 18
    Evidentemente isso não se aplicava à ala mais radical dos institucionalistas. Thorstein Veblen, por exemplo, recusava-se a conferir valor a esses autores.
  • 19
    JEL Classification: B00; B31; A20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1996
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