Acessibilidade / Reportar erro

Liderança de mercados e entrada em tecnologia em sistemas agroalimentares de países semi-industrializados: o caso brasileiro

Market leadership and entry into technology in agro-food systemin semi-industrialized countries: the Brazilian case

RESUMO

O objetivo deste artigo é entender as condições específicas de entrada em tecnologia no sistema agroalimentar e como essas condições facilitaram a liderança de mercado nesse sistema pelos países recém-industrializados com recursos naturais. A análise está focada no caso brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE:
Biotecnologia; agronegócio; inovação

ABSTRACT

The aim of this paper is to understand specific entry conditions into technology in the agro-food system and how these conditions have facilitated market leadership in that system by newly industrializing countries with natural resource endowments. The analysis is focused on the Brazilian case.

KEYWORDS:
Biotechnology; agrobusiness; innovation

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é entender as condições específicas de entrada em tecnologia no sistema agroalimentar moderno e como essas condições têm facilitado a liderança de mercados internacionais por países em desenvolvimento cujo estágio mais avançado de industrialização (NICs) combina-se com dotações de recursos naturais. A ênfase será sobre a experiência brasileira recente de organização agroindustrial. Uma conclusão a ser retirada dessa experiência é que as vantagens competitivas acumuladas pela estrutura agroindustrial existente podem facilitar a entrada nas novas biotecnologias, as quais estão se constituindo no paradigma tecnológico emergente do sistema agroalimentar (Freeman, 1989; OECD, 1992OECD (1992) Biotechnology, agriculture and food. Paris.). Nesse caso, esse sistema evidenciaria o paradoxo de usar indústrias tradicionais para a entrada em tecnologias de fronteira. Esse paradoxo indicaria que as vantagens competitivas dos NICs centradas em dotações de recursos naturais, em vez de um entrave, podem constituir-se em janelas de oportunidade para a entrada em novos paradigmas tecnológicos.

A seção seguinte discute a relação estrita usada aqui entre liderança de mercado e entrada em tecnologia, sendo que a ideia de liderança de um mercado daí desenvolvida é usada na seção 3 para analisar as condições particulares de entrada tecnológica no sistema agroalimentar. Os resultados da difusão internacional sobre a estrutura agroindustrial brasileira são discutidos nas seções 4, 5, 6. Finalmente, a seção 7 faz uma análise prospectiva das oportunidades abertas para o sistema agroalimentar brasileiro entrar nas biotecnologias em uma posição favorável de liderança em mercados-chaves do “agribusiness” mundial.

2. LIDERANÇA DE MERCADO E ENTRADA EM TECNOLOGIA

A definição de liderança de mercado usada aqui baseia-se na ideia schumpeteriana do “empresário inovador”, o qual através de “nova combinação de fatores” é capaz de criar ou conquistar novos mercados para seus produtos (Schumpeter, 1934SCHUMPETER, J. (1934) The Theory of Economic Development. Cambridge, Harvard University.). “Nova combinação de fatores” significa a capacidade empresarial de introdução de inovações no sistema produtivo, as quais objetivam estabelecer algum tipo de liderança de vendas, através da redução de custos (inovação de processo e gerenciamento), da introdução de novos produtos (inovação de produto) ou da conquista de novos mercados de um produto existente (inovação de marketing).

Do investimento inovativo origina-se o “lucro· do inovador”, o qual tende a ser gradativamente eliminado em proporção inversa ao crescimento do número de imitadores. Assim, o lucro é um ganho transitório do inovador, que tende a ser eliminado pela competição ao longo de um período de tempo (que depende da natureza da inovação e do grau de oligopólio da indústria) suficiente para os imitadores colocarem produtos similares no mercado. O importante nessa definição estrita de lucro é seu caráter extraordinário dado pela sua transitoriedade; é um sobrelucro (lucro extra) do inovador decorrente do monopólio transitório da inovação.

Liderança de mercado pode então ser definida como a capacidade de uma firma (ou firmas) auferir no longo prazo lucro extraordinário em um mercado nacional específico. Se essas vantagens se reproduzirem no mercado internacional, a liderança das firmas nacionais nesse mercado específico transforma-se em liderança do país de origem, a qual constituir-se-á em vantagens puramente competitivas.

Cada mercado ou indústria possui uma ou mais tecnologias-chaves, e a liderança desse mercado depende em grande medida da condição de entrada nessas tecnologias. A entrada de uma firma ou país em uma indústria pode ocorrer em diferentes estágios de desenvolvimento (ciclo de vida) da tecnologia relevante. Segundo Perez & Soete (1988PEREZ, C., & SOETE, L. (1988) “Catching up in technology: entry barriers and windows of opportunity.” In Dosi, G. et al., eds. Technical change and economic theory. London, Nova York, Pinter Publishers.), o custo total definido como o piso de entrada não é limitado pelo preço do capital fixo, custo (I), mas inclui também outros custos referentes à capacitação tecnológica da firma entrante: custo (S) para adquirir o conhecimento científico e técnico relevante, custo (E) de aprendizado e experiência e custo (L) de localização geográfica da firma, definido em função da aglomeração dos serviços necessários para a geração e difusão de tecnologias.

Esses custos evoluem de forma particular para um “NIC”, ou seja, um país retardatário que possui a estrutura industrial básica, mas é periférico à geração tecnológica. No estágio de Introdução (I) entram os “primeiros inovadores”. Quanto maior a importância do conhecimento prévio para uma tecnologia, mais elevado é o custo total de entrada para os países com pouca capacitação científica, desde que o elevado custo (S) para fechar o diferencial de conhecimento entre os inovadores e os potenciais entrantes interage com o custo (L) de deseconomias de aglomeração. Quando o lucro de monopólio do inovador atrai o primeiro grupo de imitadores, “segundos inovadores”, no estágio de Crescimento Inicial (II), a esperada redução em (L) devido a retornos crescentes à adoção (Arthur, 1988ARTHUR, W. B. (1988) “Competing technologies: an overview”. In: DOSI, G. et ai. (eds.). Technical change and economic theory. London, Nova York, Pinter Publishers.) não atinge os potenciais imitadores dos países retardatários, que se beneficiam das economias de aglomeração da nova tecnologia. A situação desses potenciais imitadores fica ainda pior no estágio de Crescimento Final (III). A assimilação de aprendizado tácito pelas firmas estabelecidas (“primeiros” e “segundos” inovadores) através da acumulação de qualificação e experiência aumenta substancialmente o custo (E), em um período de forte competição no qual os recursos intangíveis específicos das firmas (derivados do aprendizado de como produzir e como vender) desempenham um papel decisivo. Finalmente, o piso do custo de entrada para os imitadores retardatários atinge o seu nível mais baixo no estágio de Maturidade (IV). Segundo Vernon (1966VERNON, R. (1966) “International investment and international trade in the product cycle.” Cambridge, Quarterly Journal of Economics. vol. 80, pp. 190-207.), a ampla padronização da tecnologia já incorporada em produtos e processos tende a restringir o custo total de entrada ao capital fixo e suas despesas de adoção, favorecendo assim a venda da tecnologia no mercado para os imitadores retardatários da periferia.

Como é bem conhecido pela história da industrialização dos países latino-americanos (Mello, 1981; Fajnzylber, 1983FAJNZYLBER, F. (1983) La Industrializacion Trunca de America Latina. México, CET.), a passagem do círculo vicioso do imitador retardatário para o círculo virtuoso do inovador é uma tarefa complexa que foge do escopo deste trabalho. No entanto, seria uma simplificação grosseira pensarmos que o modelo de condições de entrada descrito acima aplica-se indiscriminadamente a todos os sistemas tecnológicos. Pelo contrário, a natureza do regime de apropriação tecnológica determina em grande medida as condições de entrada em um sistema específico de tecnologia. A seção 4 discutirá que esse é o caso da tecnologia genética, que devido às suas particularidades abriu para países como o Brasil a oportunidade de sair do ciclo vicioso do imitador retardatário para a condição de “segundo inovador”.

3. REGIME TECNOLÓGICO E SISTEMA NACIONAL DE INOVAÇÃO

A capacitação endógena do Brasil na geração e melhoramento de variedades de plantas e animais resultou do reforçamento mútuo entre o regime de apropriação da tecnologia genética e a tradição institucional brasileira de pesquisa nessa ciência, o que resultou num sistema nacional de inovação agrícola relativamente desenvolvido.

A singularidade do regime tecnológico da genética é a combinação de uma alta intensidade de inovação com um baixo nível de apropriação do lucro extra pelo inovador.

Ao contrário das inovações industriais, a intensidade das inovações biológicas não decorre da pressão competitiva, mas da pressão ambiental. As mudanças e diversidades ambientais impõem um contínuo processo de experimentação com novas variedades com características genéticas específicas, tais como resistência a doenças e adaptabilidade climática (Goodman & Wilkinson, 1990GOODMAN, D., & WILKINSON, J. (1990) “Patterns of research and innovation in the modem agri-food system”. In Marsden, T., & Whatmore, S., eds. Technological Change and the Rural Environment. London, David Fulton.: 9). Assim, ecossistemas altamente específicos restringem grandemente o espectro geográfico de utilização de variedades, particularmente no caso de híbridos, que devem ser adaptados às condições regionais e locais. O elevado custo resultante do esforço inovativo não é recompensado por um lucro extra duradouro, o qual é rapidamente erodido pelos imitadores. Isso porque a tecnologia genética até recentemente foi, em grande parte, baseada nas técnicas clássicas de melhoramento, as quais preservam a reprodutibilidade das sementes melhoradas e assim tomam virtualmente impossível a efetivação dos direitos de propriedade intelectual (Kloppenburg, 1990KLOPPENBURG, J. (1990) First the Seed: the Political Economy of Plant Biotechnology. Cambridge, Cambridge University Press.). Mesmo no caso da técnica de dupla hibridização (o “híbrido”), que resultou na não-reprodutibilidade das variedades melhoradas, o ganho de monopólio do inovador é efêmero devido à inadaptabilidade eco geográfica das novas variedades (ibid.).

A barreira biológica para a apropriação privada dos frutos do progresso técnico no melhoramento genético está na raiz do papel decisivo do setor público na pesquisa e desenvolvimento da genética animal e de plantas nos países desenvolvidos (Hayami & Ruttan, 1985HAYAMI, Y., & RUTTAN, V. (1985) Agricultura/Development: an International Perspective. Baltimore, London, The Johns Hopkins University.). A divisão do trabalho entre pesquisa pública e privada tem evoluído de acordo com a capacidade de o capital estabelecer algum tipo de barreira à entrada na tecnologia de melhoramento genético. É nesse sentido que a descoberta do milho híbrido nos anos 30 foi considerada pela indústria de sementes americana como a “suprema realização da pesquisa agrícola pública” (Kloppenburg, 1990KLOPPENBURG, J. (1990) First the Seed: the Political Economy of Plant Biotechnology. Cambridge, Cambridge University Press.: 91). Ainda assim, quanto maior o peso do setor público na produção de linhagens puras, menor tendem a ser as barreiras de entrada no mercado de híbridos (ibid.).

O desenvolvimento de um sistema público internacional de inovação agrícola (CGIAR) baseado em centros regionais de pesquisa (IARCs) resultou desse caráter fortemente público e regional da pesquisa genética. Do ponto de vista das condições de entrada1 1 Sem entrar em julgamento de valor sobre o caráter socialmente perverso da “Revolução Verde”. Ver a esse respeito De Janvry (1981) e Silva (1982). , a principal consequência desse papel supranacional do setor público na geração e difusão da pesquisa agrícola foi a redução substancial das barreiras à entrada na tecnologia genética, particularmente na indústria de sementes.

Entretanto, a experiência brasileira mostra que a exploração dos IARCs para a capacitação tecnológica endógena de um país depende do desenvolvimento de um forte sistema nacional de inovação liderado pelo setor público, pois esse é um passo decisivo para o desenvolvimento de variedades adaptadas aos diferentes ambientes agroecológicos. A priorização da difusão em detrimento da inovação durante a fase inicial da modernização da agricultura brasileira resultou no viés da “quimificação” (Silva, 1985SILVA, J. F. G. da. (1985) A relação setor público-privado na geração de tecnologia agrícola no Brasil. Brasília, Cadernos de Difusão de Tecnologia, 2(2): 185-232.). A superação desse viés iniciou-se apenas quando o setor público organizou um forte aparato institucional para capitalizar a tradição acumulada em pesquisa biológica de culturas tropicais (algodão, café e arroz) na diversificação em produtos agroindustriais (soja, milho, cítricos, árvores para polpa e frango). Como é sabido, esse aparato de pesquisa pública inseriu-se como uma peça importante para a consolidação de programas que estruturaram o sistema nacional de inovação agroindustrial brasileiro, da modernização agrícola ao programa de substituição de energia, Proálcool.

No início dos anos 80 o Brasil consolidou o domínio das técnicas clássicas de melhoramento genético. No segmento de variedades melhoradas das grandes culturas autógenas domina a rede de pesquisas pública (incluindo cooperativas) encabeçada pela Embrapa (Silveira et al., 1990SILVEIRA, J. M.; SALLES FILHO, S. L.; FUTINO, A. M., & BONACELLI, M. B. (1990) “Inovações biotecnológicas e a indústria de sementes.” Campinas, IE-Unicamp, mimeo.). Como nos países desenvolvidos, o setor privado prepondera no segmento de híbridos (além da forte presença da pesquisa pública): nas sementes híbridas a Agroceres tem mantido suas vantagens de primeiro inovador em relação às firmas estrangeiras (Castro, 1989CASTRO, A. C. (1989) “Inovação tecnológica e crescimento da firma: o caso Agroceres”. In Encontro Nacional de Economia, 17, Fortaleza. Anais... [s.l.], ANPEC, pp. 3-29.); na genética animal, o estabelecimento de joint ventures e licenciamento entre firmas e instituições nacionais de pesquisa e firmas especializadas estrangeiras predomina, particularmente no desenvolvimento de linhagens puras (Shiki, 1991SHIKI, S. (1991) “Agro-food policies and petty commodity production in Brazil: some implications of changes in the 1980s.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.).

4. CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA E CONDIÇÕES DE ENTRADA

A estrutura agroindustrial da produção moderna de alimentos baseia-se umbilicalmente no sistema tecnológico da ciência genética. Isso decorre da excepcionalidade da produção de alimentos em relação a outras atividades produtivas, pois depende de processos de produção biológicos e é estruturalmente constrangida pelos requerimentos fisiológicos do consumo humano (Goodman et al., 1987GOODMAN, D.; SORJ, B., & WILKINSON, J. (1987) From Farming to Biotechnology: a Theory of Agro-industrial Development. Oxford, Basil Blackwell.). O caráter sistêmico da tecnologia genética decorre não apenas do fato de compreender um agrupamento de inovações derivadas do mesmo princípio científico da evolução das espécies, mas de sua capacidade de estabelecer complementaridades tecnológicas com inovações químicas, mecânicas e agronômicas. Como força galvanizadora do desenvolvimento dessas complementaridades, o progresso técnico liderado pela genética estabeleceu o padrão tecnológico para a industrialização da produção alimentar através de uma forma de organização sistêmica. De uma base técnica comum na agricultura (complementaridades química-mecânica-biológica) esse sistema agroindustrial desdobra-se em diversos encadeamentos produtivos agroindustriais organizados rigidamente segundo a origem dos produtos agrícolas.

A análise da estrutura agroindustrial brasileira vai refletir a base tecnoeconômica que levou o País à liderança de mercados num amplo espectro de produtos alimentares que compõem o núcleo do padrão internacional de consumo de alimentos (complexos soja-milho-carne-, óleos e frutas).

4.1 Convergência tecnológica

Um método simples e eficiente usado pela literatura para medir o padrão de desenvolvimento da estrutura produtiva de um país é compará-la à estrutura de outros países na fronteira tecnológica, verificando até que ponto o processo de difusão tendeu a estabelecer uma convergência tecnológica entre eles. De acordo com a metodologia desenvolvida em Lemos (1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.), a questão é comparar a estrutura agroindustrial do país estudado com uma “estrutura padrão”, ou seja, aquela que está na fronteira da produção agroindustrial. Assim, o sistema americano será tomado como a estrutura padrão.

O método estatístico utilizado é o de correlação matricial baseado nas matrizes brasileira e americana. Para diminuir a margem de distorções, quatro variáveis foram usadas alternativamente: valor da produção (VP), valor agregado (VA), coeficiente técnico dos insumos (CT) derivado da matriz de coeficientes, e coeficiente da estrutura de demanda final (DF) derivado da matriz de transações. O nível de agregação correspondeu a 24 setores, compreendendo 4 indústrias fornecedoras de insumos agrícolas (fertilizantes, defensivos, máquinas agrícolas, rações), 3 subgrupos da agropecuária (agricultura, pecuária e reflorestamento) e 17 indústrias processadoras (alimentos, bebidas, fumo, papel/celulose, madeira/mobiliário, fios e tecidos de algodão, couro).

Como mostra a Tabela 1, existe uma alta correlação estatística entre as duas estruturas agroindustriais, tanto no nível da estrutura de produção (VP e VA) como da estrutura técnica (CT) e composição da demanda final (DF), o que indica uma grande convergência tecnológica do sistema agroindustrial brasileiro de 1980 para o padrão internacional.

Tabela 1
Correlação estatística entre as estruturas agroindustriais do Brasil e dos Estados Unidos

Apesar de os resultados das duas variáveis de estrutura de produção (VP e VA) serem bem consistentes, o nível de agregação obscureceu a grande diferença da participação da agricultura no total do PIB (VA) agroindustrial, que varia de 22% no Brasil para apenas 6% nos Estados Unidos. Essa diferença se reflete principalmente entre os agricultores não integrados ao “agribusiness”, que em grande parte representam o amplo bolsão de excluídos da modernização conservadora.

O mais surpreendente é que o efeito dessa estrutura “dual” na agricultura brasileira não afeta o altíssimo coeficiente de correlação das duas estruturas técnicas de insumos (0,9267), sendo esse o indicador mais consistente de convergência tecnológica. Esse resultado robusto da correlação dos coeficientes técnicos evidencia que a massa dos agricultores excluídos tem pouca influência nos indicadores técnico-econômicos, principalmente quando todas as atividades agroindustriais são computadas.

A forte correlação da estrutura de demanda indica que os dois sistemas são relativamente voltados para o consumo interno, sendo principalmente fechados para as importações, com um coeficiente de importação2 2 Importações/total do consumo interno (produção interna-exportações+importações). para os Estados Unidos e para o Brasil de apenas 3,4% e 2,7%, respectivamente. No entanto, seus respectivos coeficientes de exportação3 3 Exportação/produção interna. , de 5,8% e 9,1%, indicam uma grande presença no mercado externo, principalmente quando o tamanho absoluto do mercado interno de ambos os países é levado em conta.

4.2 Condições de entrada nos bens de produção

A convergência do sistema agroindustrial brasileiro para o padrão tecnológico internacional necessita, entretanto ser qualificada. Desde que esse padrão tecnológico não é estático, mas desloca-se como uma fronteira móvel, essa convergência deve levar em conta a capacidade endógena de o País liderar parte do processo de mudança estrutural em curso do sistema agroindustrial. Tal capacidade depende não apenas da internalização no País das indústrias que constituem a base técnica desse sistema produtivo (“entrada na indústria”), mas também do nível de domínio das tecnologias relevantes (“entrada na tecnologia”). Como vimos na seção 2, esse nível varia em função das condições tecnológicas de entrada.

As tecnologias relevantes para a análise das condições de entrada são as que compõem a base técnica do sistema agroindustrial: o sistema tecnológico genético (sementes e genética animal); as tecnologias de outros sistemas tecnológicos, ou seja, as máquinas agrícolas, do sistema automotivo; fertilizantes, defensivos e produtos veterinários, da química; e os bens de capital para processamento industrial, da mecânica pesada. Foram considerados para a análise empírica apenas os bens de produção diretamente pertencentes ao sistema agroalimentar (alimentos, bebidas e fumo), sendo que aqueles relacionados às agroindústrias de celulose, madeira, têxtil e couro foram excluídos. Os dados utilizados foram fornecidos por tabulações especiais do IBGE, compondo-se de 11 setores a 4 ou 6 dígitos (dg), conforme discriminado na Tabela 2, sendo incluídos sementes e genética animal como 2 setores ad hoc.

Tabela 2
Classificação das condições de entrada segundo o tipo de indústria

Como mostra a Tabela 2, entrada efetiva existe além de “implementos”, apenas para a indústria de sementes, cujas condições especiais de transferência e assimilação tecnológica capacitaram as empresas nacionais (privadas e públicas) a exercer uma clara posição de liderança. Enquanto no segmento de híbridos o regime de apropriação permite algum controle de mercado por parte de empresas genéticas nacionais com vantagens de primeiros inovadores de variedades locais, no segmento de sementes melhoradas, o peso do setor público na pesquisa básica reduz substancialmente as barreiras à entrada (Silveira et al., 1990SILVEIRA, J. M.; SALLES FILHO, S. L.; FUTINO, A. M., & BONACELLI, M. B. (1990) “Inovações biotecnológicas e a indústria de sementes.” Campinas, IE-Unicamp, mimeo.).

Entrada parcial através de licenciamento ou joint venture é a forma predominante de entrada no Brasil das indústrias de bens de produção do sistema agroalimentar. Muito embora as empresas nacionais exerçam posições de liderança nesses mercados, o controle da tecnologia relevante é em grau menor ou maior parcial. O acesso do licenciado ao know-how dá-se através do mercado de tecnologia, mas sujeito ao monitoramento ou assistência técnica do licenciador ou investidor estrangeiro. Como ocorre nas indústrias de bens de capital, o controle do desenho básico fica nas mãos do licenciador, o qual transfere apenas a capacitação de manufatura e desenho detalhado do maquinário (Erber, 1984ERBER, F. (1984) “The capital goods industry and the dynamics of economic development in LDCs: the case of Brazil”. Rio de Janeiro, IEI-UFRJ. Texto para discussão nº 8.; The Capital, 1985UNITED NATIONS/UNCTAD (1992) “THE CAPITAL goods sector in developing countries: technology issues and policy options”. Nova York.).

É interessante notar que a condição de entrada parcial se combina com um espectro amplo e heterogêneo de padrões competitivos, do mercado atomístico de máquinas-ferramentas especializadas até o mercado altamente concentrado de tratores e colheitadeiras. Essas últimas indústrias exemplificam bem o caráter evolucionário das condições de entrada. Até a metade dos anos 80 elas eram dominadas pelas empresas multinacionais, as quais desde os anos 50 controlavam os mercados nacionais de maquinário agrícola de países desenvolvidos e em desenvolvimento através de uma estrutura produtiva integrada mundialmente.

Entretanto, o amadurecimento tecnológico dessas indústrias resultou num amplo processo de reestruturação industrial e na consequente retirada gradativa das empresas líderes de vários mercados nacionais de países em desenvolvimento, nos quais, de produtores diretos (equivalente a “acesso sem entrada” para o país hospedeiro), passam para licenciados de desenho básico (“entrada parcial” para o produtor do país hospedeiro). No Brasil esse processo resultou na venda da subsidiária da Massey Ferguson, EMN líder do mercado nacional, para a Maxion, do grupo brasileiro Iochpe (Fonseca, 1990FONSECA, M. G. D. (1990) “Concorrência e progresso técnico na indústria de máquinas para a agricultura: um estudo sobre trajetórias tecnológicas”. Campinas, Unicamp. Tese de Pós-doutorado.).

Finalmente, acesso sem entrada através de investimento estrangeiro direto fica restrito à indústria de defensivos, a qual, como as demais indústrias de especialidades químicas no Brasil, tem a liderança exclusiva das EMNs do complexo químico/farmacêutico. O tamanho relativo dessas firmas internacionais é muito grande e as economias de escala técnica e sinergias são realizadas através de uma organização industrial vertical em nível global, envolvendo significantes complementaridades técnicas entre países. Por essa razão, a estrutura industrial, desse complexo nos países periféricos é “incompleta” (Naidin, 1985NAIDIN, L. C. (1985) “Crescimento e competição na indústria de defensivos agrícolas no Brasil.” Rio de Janeiro, UFRJ. Dissertação de Mestrado.).

Fica claro na Tabela 2 que o gargalo para a internalização da geração tecnológica e consequente superação da condição de “imitador retardatário”, no sistema agroalimentar brasileiro, encontra-se em indústrias provenientes de sistemas tecnológicos da química e da mecânica, os quais são fornecedores genéricos de tecnologia para toda a estrutura industrial. Esse gargalo tecnológico não é, portanto, específico da produção agroindustrial, mas característico do caráter tardio da industrialização brasileira como um todo. O específico da produção agroindustrial é, pelo contrário, a relativa internalização do seu sistema tecnológico básico.

5. A ESTRUTURA ENCADEADA: OS COMPLEXOS AGROINDUSTRIAIS

Os agrupamentos hierárquicos de insumos-produtos constituem-se na forma de organização da estrutura agroindustrial moderna, os quais têm-se reproduzido de uma forma desigual, mas generalizada no Brasil.

Como os estudos clássicos de Chenery & Watanabe (1958CHENERY, H. & WATANABE, T. (1958) “International comparisons of the structure of production”. Econometrica, Avon, v. 26, pp. 487-521.) e Simpson & Tsukui (1965SIMPSON, D., & TSUKUI, J. (1965) “The fundamental structure of input-output tables, an international comparison.” Cambridge, The Review of Economics and Statistics, 47(4): 434-446.) demonstraram, essa forma de agrupamentos, longe de ser específica da estrutura agroindustrial, é a forma típica de organização industrial do capitalismo moderno, resultando do paradoxo entre a tendência à crescente especialização produtiva e a manutenção do princípio geral da interdependência das trocas no sistema econômico (princípio da circularidade). Um complexo industrial pode ser entendido, portanto, como um agrupamento de indústrias engajadas na produção de mercadorias interdependentes, fortemente relacionadas entre si e fracamente relacionadas com outras mercadorias fora do agrupamento. O princípio de quase autonomia das relações de troca (incluindo transações intrafirmas) é o critério básico para selecionar os setores de um complexo, ou seja, a intensidade e interdependência das trocas são as variáveis-chaves para a composição do grupo de indústrias pertencentes a um complexo. Os complexos agroindustriais podem ser tratados como um caso particular dos complexos industriais, à medida que a relação indústria-agricultura se constitui na base principal das trocas intersetoriais.

Neste estudo, a matriz de insumo-produto do Brasil de 1980 constituiu-se no instrumento metodológico básico para a identificação dos complexos. O nível de agregação dessa matriz é particularmente uma séria limitação para a identificação dos complexos agroindustriais, à medida que todas as atividades agrícolas estão agregadas na atividade denominada “agropecuária”. O expediente usado pelos estudos já realizados no Brasil com a matriz de insumo-produto tem sido tratar os complexos agroindustriais como “macrocomplexos” e até mesmo como um único complexo4 4 Ver, por exemplo, os resultados obtidos por Haguenauer et al. (1984) e Prado (1981) para as matrizes de 1975 e 1970, respectivamente. , o que na prática impede um estudo intersetorial das relações indústria - agricultura. A solução proposta por Lemos (1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.) é a abertura da matriz de insumo-produto na coluna “agricultura”, desagregada em 12 atividades agrícolas.

A Tabela 3 mostra os resultados de identificação dos complexos agroindustriais brasileiros. Dos 42 setores classificados como atividades do sistema agroindustrial, 35 foram incluídos nos 11 complexos identificados e 7 foram classificados como indústrias isoladas. O número de complexos foi prejudicado devido à inclusão de algumas culturas importantes na coluna “outros”, impedindo assim a identificação de alguns complexos, tais como o complexo emergente da laranja. Além disso, o número de indústrias de alguns complexos foi artificialmente reduzido devido ao nível de agregação, tal como “abate e preparação de carnes” (que engloba produtos derivados da carne) e “laticínios” (que engloba também os produtos derivados). Finalmente, os 4 fornecedores genéricos para a agricultura (“fertilizantes”, “defensivos”, “produtos farmacêuticos” e “máquinas agrícolas”) foram excluídos dos complexos individuais, indicando que a difusão de insumos industriais foi relativamente ampla, embora desigual, sobre as atividades agrícolas no Brasil. Apesar das dificuldades acima, os complexos resultantes são consistentes com a metodologia usada. Em contraste com os complexos de fibras, os complexos de alimentos e fumo têm mantido uma dependência de mais de 50% dos insumos agrícolas, com um papel central na reprodução destes complexos.

Tabela 3
Os complexos agroindustriais brasileiros-1980

Existe uma ampla variedade de formatos e tamanhos de complexos. O formato cadeia ou filière está presente em complexos baseados em um produto agrícola com duas ou três indústrias, tais como “arroz” e “carne”, enquanto que o formato de duas cadeias com base agrícola ampla, como “grãos-aves”, ou com uma base agrícola que é bifurcada no segmento industrial, como “floresta”, está presente em complexos com várias indústrias. Os complexos “têxtil” e “floresta” do sistema de fibras são os maiores dos 11 identificados, e “grãos-aves” e “carne” são os maiores do sistema de alimentos.

Em geral, os complexos agroindustriais mostram um índice de autonomia de vendas mais alto do que o índice de autonomia de compras5 5 Definidos como o percentual das vendas e compras intracomplexo sobre o total das vendas e compras, respectivamente. . Assim, eles são mais dirigidos pela demanda final que pela oferta. Uma comparação entre os índices de autonomia na Tabela 3 mostra que os complexos grandes tendem a ter um índice menor que o dos complexos pequenos. Uma variável crucial para explicar essas diferenças é o número de indústrias de cada complexo, o qual tende a variar inversamente aos índices de autonomia dos complexos. O fato de haver menores índices entre os grandes complexos significa que existe uma distribuição mais equilibrada entre fornecedores de insumos de “dentro” e de “fora” do complexo.

A capacidade de indução de um complexo sobre o sistema econômico pode ser medida pelos impactos de encadeamentos para “trás” e para “frente” sobre a economia decorrentes de uma mudança unitária não simultânea na demanda final e no valor agregado, respectivamente, de todas as indústrias de um complexo. Para isso é necessário o uso da matriz inversa de insumos R (“Leontief ‘) e a inversa de produção P (inversa da transposta da matriz de produção B), conforme metodologia apresentada em Lemos (1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 173-81).

As tabelas 4 e 5 indicam que o complexo “grãos-aves” é de longe a força motriz do sistema agroindustrial brasileiro. Mesmo quando os índices de encadeamento são ponderados pela participação no produto, esse complexo preserva sua posição de liderança na capacidade de indução intersetorial. O deslocamento dos complexos tradicionais, como o de exportação “café” e o de mercado interno “carne”, constitui-se numa mudança estrutural significativa, a qual tem tido um efeito disseminado sobre a estrutura de produção agrícola e os hábitos de consumo, ou seja, dos agricultores aos consumidores. A reestruturação industrial de alguns complexos é também refletida nos índices de encadeamentos, como ocorre com o complexo “açúcar-álcool” revitalizado pelo programa do Proálcool a partir de 1975, e com os complexos “têxtil” e “calçados” revitalizados pelos programas de promoção de exportações a partir do final dos anos 60.

Tabela 4
Encadeamento para trás dos complexos agroindustriais brasileiros-1980
Tabela 5
Encadeamento para a frente dos complexos agroindustriais brasileiros-1980

Como sugere Possas (1988POSSAS, M. (1988) “Complexos industriais na economia brasileira: uma proposta metodológica.” Campinas, IE/Unicamp.), a capacidade de indução de um complexo pode ser decomposta em indução “interna” e “externa”. A primeira mostra o nível de “endogenia” (E) de um complexo, medido pela proporção dos encadeamentos internos de um complexo em relação ao total de seu poder de encadeamento. A segunda mostra o nível de “externalidade” ou “vazamento” (V) de um complexo, medido pela proporção dos encadeamentos externos do complexo em relação ao total de seu poder de encadeamento6 6 Assim, E+V=1. Ver metodologia em Lemos (1992). . Por meio desses índices é possível medir quanto do impacto de crescimento total de um complexo será internalizado dentro do complexo (nível de endogenia) e quanto de crescimento será “vazado” para outras indústrias de fora do complexo (nível de vazamento ou contágio). As tabelas 4 e 5 mostram altos níveis de endogenia para todos os complexos, particularmente o efeito endogenia para a “frente”, o qual é consistente com a característica de complexos dirigidos pela demanda.

Mais surpreendente é o nível relativo de endogenia dos complexos grandes com várias indústrias, principalmente se forem levados em conta seus menores índices de autonomia. Isso mostra uma grande capacidade desses complexos de indução simultânea de crescimento para “dentro” e para “fora”.

Uma questão interessante é como a estrutura encadeada de cada complexo relaciona-se com a dinâmica dos mercados industriais. Na próxima seção discutiremos sucintamente como o desenvolvimento desses encadeamentos intersetoriais vai interferir na organização dos mercados e em particular no tipo de empresa líder dominante em cada mercado.

6. LIDERANÇA DE MERCADOS

A Tabela 6 apresenta os resultados da classificação dos mercados agroalimentares do Brasil com base nas tabulações especiais do IBGE para 45 setores do Censo Industrial de 1985 e uma amostra de 371 empresas líderes7 7 Ver metodologia e discussão dessa classificação em Lemos (1992: 321-55). . Existem três grupos claramente distintos de indústrias: as pertencentes aos complexos agroindustriais; as de processamento final em mercados diferenciados não pertencentes aos complexos; as de processamento primário em mercados homogêneos também não pertencentes aos complexos.

Tabela 6
Classificação das estruturas dos mercados agroalimentares segundo o tipo de empresas líderes e participação nos complexos - Brasil, 1985

As indústrias pertencentes aos complexos concentram-se em mercados relativamente desconcentrados de produtos homogêneos com grande escala de produção. Elas controlam em torno de 80% da produção processada de alimentos no Brasil e dominam quase que exclusivamente o mercado de exportação agroalimentar. Esse domínio das exportações só não é absoluto porque o setor de “frutas e sucos” não foi identificado como um “complexo”, devido a problemas de desagregação da matriz de insumo-produto brasileira. No entanto, nem todos os complexos são exportadores, nem todos os seus produtos são homogêneos. A estrutura de organização desses mercados vai refletir em que medida a fonte de crescimento das empresas líderes dos complexos está baseada nas exportações ou na diferenciação de produtos. Mesmo não sendo excludentes, uma destas estratégias tende a ser a força motriz do crescimento das empresas líderes e do consequente desenvolvimento da base produtiva dos complexos.

O complexo “grãos-aves” corporifica o paradigma da “estratégia de integração exportadora”. Mesmo que parte de seus produtos não seja para exportação e o mercado interno absorva parte significativa de sua produção, a expansão do mercado externo é crucial para a reprodução dinâmica desse complexo. Ou seja, o sobrelucro dos “líderes” refletido nas taxas diferenciais de lucro em relação ao conjunto da “indústria” se realiza fundamentalmente no mercado internacional, enquanto no mercado interno o diferencial de lucratividade é reduzido pelo nível relativamente desconcentrado das vendas (CR) e o baixo grau de diferenciação de produtos (GD)8 8 ‘Isso vai refletir no diferencial relativamente reduzido das margens médias de lucro entre os “líderes” e a “indústria”, em particular no diferencial de mark-up (Lemos, 1992: 287). . À medida que a “escala ótima de planta” é também reduzida no nível das indústrias individuais (Lemos, 1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 287), as vantagens de custos dos líderes na produção e comercialização são obtidas via integração vertical, do controle do fornecedor da matéria-prima agrícola à “trading”, O elevado requerimento de capital para a verticalização restringe a liderança desses mercados às empresas multinacionais líderes no comércio mundial de grãos e às empresas nacionais de grande porte9 9 Incluídas entre as 500 maiores empresas do Brasil. .

As primeiras concentram sua estratégia de integração na cadeia de grãos, especialmente soja, em que residem suas vantagens globais de comercialização, em particular acessibilidade à informação (Green, 1990GREEN, R. (1990) Lucha entre Multinacionales: Bunge y Born frente Cargill, Nestlé y Unilever. Paris, INRA-Economia, mimeo.). Em contraste, as nacionais, a partir de uma área inicial de especialização, têm direcionado suas estratégias ou para a integração dos dois segmentos do complexo (como Hering-Ceval, soja e aves-rações) e/ou para a diferenciação de produtos (como produtos congelados) e diversificação horizontal em mercado de produtos substitutos (como Sadia e Perdigão, de aves e suínos os para carne bovina e produtos derivados “fabricados”) (Lemos, 1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 285-306).

A “estratégia de diferenciação” é paradigmática no complexo “laticínios”. Nessa estratégia, a fonte de crescimento das empresas líderes vem da diferenciação de produtos, e a realização do sobrelucro é centrada no mercado interno. Como bem ilustram as experiências das duas empresas multinacionais líderes dos submercados diferenciados (incluídos na indústria “laticínios”), Nestlé Suíça e CPC-BSN França, a integração vertical via capital próprio da empresa é prescindível desde que o fornecimento da matéria-prima tenha qualidade e estabilidade. A forte presença da rede de cooperativas locais e regionais no fornecimento a partir dos anos 70 tem levado não só a um substancial desinvestimento da líder estabelecida, Nestlé, nas etapas pouco lucrativas de resfriamento e pasteurização10 10 Em contraste com os mark-ups médios de 10% e 24% nas indústrias de “resfriamento” e “pasteurização”, respectivamente, o mark-up médio da indústria de “laticínios” fica em tomo de 50% (Lemos, 1992: 304). como também ao direcionamento da líder recém-chegada, CPC-BSN, para a área principal de especialização dessas empresas, ou seja, produtos-prêmio de marcas com alto valor agregado. Mesmo que o índice moderado de concentração da indústria de “laticínios” (CR dos 4 maiores de 45%, Lemos, 1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 305) indique uma forte pressão competitiva interna, as líderes exercem seu poder oligopolístico em nichos de produtos com preços-prêmio que propiciam margens diferenciais de lucro de até 50% (ibid, p. 304). O interessante dessa “estratégia de diferenciação”, presente em grau maior ou menor nos complexos “laticínios”, “café” e “fumo”, é que as empresas líderes das indústrias finais dão a dinâmica de todo o complexo, mesmo não atuando em todas as etapas da cadeia. Isso é possível porque as etapas intermediárias crescem por indução da indústria final, em particular pela capacidade de as líderes introduzirem regularmente “novos” produtos no mercado. No entanto, o poder de encadeamento “para trás” dos complexos “diferenciados” é limitado em países retardatários com alta concentração de renda, como o Brasil. Mesmo que as indústrias intermediárias vendam parte de sua produção ao mercado consumidor, como o leite pasteurizado, elas ainda terão menor capacidade dinâmica de criar novos mercados.

Em contraste com as empresas líderes dos complexos “exportadores”, a área de especialização (ou atividade principal) das líderes dos complexos “diferenciados” não está nas atividades de um complexo específico, mas em atividades com “vocação” para diferenciação de produtos a partir da base de capacitação tecnológica da empresa. Em vez da estratégia de crescimento vertical via integração, essas empresas seguem a estratégia de crescimento horizontal via diversificação produtiva, entendida aqui como entrada em novos mercados diferentes da área original de especialização da empresa (Guimarães, 1982GUIMARÃES, E. (1982) Acumulação e Crescimento da Firma: um Estudo de Organização Industrial. Rio de Janeiro, Zahar.)11 11 Segundo Penrose (1959), a estratégia de crescimento direcionada para a diversificação de uma firma significa a utilização plena de recursos tecnológicos, gerenciais, mercadológicos, etc., até então subutilizados na sua área original de especialização. . Assim, as empresas líderes dos complexos “diferenciados” tendem a atuar em todas as atividades dos complexos ou indústrias “isoladas” que propiciem sinergias para a diferenciação de seus produtos.

Na indústria de alimentos as sinergias de processos e comercialização são particularmente importantes, as quais têm dado a direção do processo de diversificação das multinacionais alimentares em nível global. Combinações diferentes dessa mesma estratégia podem ser bem exemplificadas pela estratégia de diversificação das duas maiores empresas de produtos alimentares diferenciados do mundo e do Brasil, Nestlé (Suíça) e Unilever (Reino Unido-Holanda). Mantendo sua área de especialização em alimentos, a Nestlé tem-se diversificado usando duas bases tecnológicas complementares (desidratação de alimentos e processos de misturação), cujas inovações têm sido direcionadas para uma mesma área de comercialização (mercados de alto valor agregado de bebidas instantâneas e refeições prontas) em diferentes linhas de produto (laticínios, chocolates, café, sorvetes, sopas etc.). A Unilever, ao contrário, tem explorado a mesma base tecnológica (processos químicos de separação de gorduras) para diversificar sua área de especialização para outros bens de consumo não duráveis (de margarinas e alimentos preparados para detergentes e cosméticos) com áreas complementares de comercialização (bens diferenciados de consumo não durável). Além do mais, essa base em químicos de especialidades tem capacitado essa companhia a explorar sinergias de P&D em processos de extração e fracionamento de gorduras através de integração vertical para trás em esmagamento de oleaginosas e produtos de pesca. Isso explica, por exemplo, o reforço recente da presença da Unilever na cadeia de soja no Brasil através da compra pela sua subsidiária Gessy-Lever da subsidiária brasileira da Anderson Clayton. Essa aparente estratégia de “verticalização” no complexo grãos-aves constitui-se, na sua ausência, na exploração de sinergias dentro de sua estratégia global de “horizontalização”.

É essa natureza “global” da empresa multinacional que a distingue de suas congêneres nacionais (Dunning, 1974DUNNING, J. (1974) “The distinctive nature of the multinational enterprise”, In Dunning, J., ed. Economic Analysis and the Multinational Enterprise. London, George Allen & Unwin.). Sua superioridade empresarial reside menos em vantagens absolutas de custos de produção do que em vantagens relativas provenientes da exploração dinâmica de sinergias de seus recursos intangíveis, como aprendizado tecnológico, patentes, marcas, gerenciamento, propaganda, etc. (Caves, 1982CAVES, R. E. (1982) Multinational Enterprise and Economic Analysis. Cambridge, Cambridge University Press.). São esses recursos transferidos a custo “quase zero” para suas subsidiárias que garantem a reprodução de suas vantagens em relação aos rivais domésticos nos mercados diferenciados de alimentos e correlatos, particularmente em países periféricos, que raramente são a base “doméstica” desse tipo de multinacional. Como mostra a Tabela 6, a presença de empresas de capital nacional (ENG, ENP, CO e COP) nos mercados alimentares diferenciados do Brasil é restrita, particularmente naqueles altamente concentrados, exceto em casos como “cervejas” em que fatores excepcionais favoreceram a liderança inconteste (CR4>85) de grandes empresas nacionais (Brahma e Antarctica). As empresas nacionais de grande porte chegam aos mercados diferenciados mais como resultado de estratégias de verticalização em complexos específicos12 12 Dois casos ilustrativos são do grupo Cacique no complexo “café” e do grupo Sadia no complexo “grãos-aves” e “carne”. A partir de uma estratégia de “verticalização”, o grupo Cacique deixou de investir nas etapas intermediárias de beneficiamento e torrefação para se concentrar na liderança do segmento de cafés solúveis finos, principalmente para exportação. O grupo Sadia, ao contrário, tem combinado a estratégia recente de diferenciação em produtos de aves e carnes com o reforço da verticalização via indústrias de “rações” e “frigoríficos” (Lemos, 1992). do que de uma estratégia deliberada de crescimento via diversificação horizontal13 13 O grupo Bunge & Bom, única multinacional de alimentos com sede no Brasil, é um interessante exemplo de como uma estratégia aparentemente deliberada de “diversificação” representa efetivamente “conglomeração”. Ou seja, seu controle de capital de um conjunto amplo de atividades mais ou menos desconexas (de grãos e alimentos finais até têxteis, fertilizantes e tintas) está longe de representar uma exploração sinergética de sua área inicial de especialização no comércio internacional de grãos, ao contrário do sugerido por Green (1990). . Uma estratégia bem diferente é seguida pelas empresas nacionais médias e pequenas, as quais, através de alta especialização produtiva em poucas linhas de produto, conseguem dividir, mesmo que em posição secundária, a liderança de vários mercados “altamente” ou “moderadamente” diferenciados (GD=A ou M) com níveis de concentração “moderados” (35~CR4<50) ou “desconcentrados” (20~CR4<35).

Por fim, as indústrias de processamento primário não pertencentes aos complexos constituem-se de produtos agrícolas marginais do centro dinâmico do sistema agroalimentar brasileiro, muito embora eles possam, paradoxalmente, ser componentes da dieta básica da população, como são os produtos de mandioca e o feijão. Nesse caso, a falta de dinamismo desses mercados decorre menos da incapacidade inata de esses produtos desenvolverem relações interindustriais do que do descaso das políticas públicas com a massa de agricultores excluídos do “agribusiness” e a massa de subnutridos com níveis crônicos de subconsumo alimentar.

Após essa análise sucinta dos atores principais do desenvolvimento industrial do sistema agroalimentar brasileiro, a seção de conclusão faz uma análise prospectiva de como esse aparato institucional (empresas e instituições públicas) e produtivo (em particular os complexos) pode facilitar a entrada efetiva do Brasil como “segundo inovador” nas agrobiotecnologias.

7. JANELAS DE OPORTUNIDADE PARA REESTRUTURAÇÃO TECNOLÓGICA

Até agora existe uma concordância na literatura de que as novas biotecnologias baseadas em biologia celular e molecular cumpriram apenas o primeiro pré-requisito para consolidar-se como um novo sistema ou paradigma tecnológico, no sentido de que esse conjunto de inovações propiciadas pelas técnicas de DNA recombinante fornecem potencialmente para vários agrupamentos industriais um amplo espectro de novos produtos acompanhados de melhoramento das características técnicas de muitos produtos e processos existentes (Freeman, 1989). Entretanto, a falta de competitividade desses novos produtos e/ou sua controversa aceitabilidade têm atrasado a difusão das biotecnologias e reduzido assim seu potencial de difusão no sistema econômico (Biotechnology agriculture and food, 1992). Em vez de uma redução no esforço de P&D, esses gargalos socioeconômicos têm efetivamente acelerado o deslocamento da fronteira das novas técnicas biológicas, particularmente em áreas com maior potencial de aplicabilidade imediata, como a manipulação celular de plantas e animais, que atinge diretamente o sistema agroalimentar (ibid.). Para países como o Brasil, com grandes vantagens acumuladas nesse sistema, esse momento de atraso no processo de difusão constitui uma grande oportunidade para o apanhamento tecnológico dos “primeiros inovadores” (maior parte dos países desenvolvidos), pelo menos nos nichos da agrobiotecnologia, em que existem capacidade tecnológica e institucional já acumuladas.

7.1 Dotação natural de recursos genéticos e capacidade tecnológica acumulada

No presente momento o Brasil parece ter a melhor estrutura institucional para o desenvolvimento de pesquisa agrobiotecnológica entre os países do Terceiro Mundo (Clark & Juma, 1991CLARK, C. JUMA, C. (1991) Biotechnology for Sustainable Development: Policy Options for Developing Countries. Nairobi, ACTS.; Junne, 1992JUNNE, G. (1992) “The impact of biotechnology on international commodity trade.” In Silva, R. da C., & Sasson, A. Biotechnology: Economic and Social Aspects. Issues for Developing Countries. Cambridge, Cambridge University.).

À medida que as novas técnicas celulares e moleculares, antes de superar, complementam e potencializam as técnicas clássicas de melhoramento de variedades (Kloppenburg, 1990KLOPPENBURG, J. (1990) First the Seed: the Political Economy of Plant Biotechnology. Cambridge, Cambridge University Press.), o longo esforço de pesquisa já acumulado nas instituições públicas e privadas de pesquisa pode significar um piso efetivo de entrada no paradigma biotecnológico14 14 Além disso, o País possui uma vasta e diversificada reserva natural de germoplasma e o maior banco de coleção e conservação genética da América Latina (Embrapa-Cenargem), o que representa um enorme potencial para pesquisa celular e molecular. . Em vez da “queima de etapas”, como sugerido por Perez & Soete (1988PEREZ, C., & SOETE, L. (1988) “Catching up in technology: entry barriers and windows of opportunity.” In Dosi, G. et al., eds. Technical change and economic theory. London, Nova York, Pinter Publishers.)15 15 A hipótese da “queima de etapas” baseia-se na ideia de que países retardatários têm maiores chances de entrar em um novo paradigma tecnológico nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, já que eles estão menos comprometidos com o aparato institucional e socioeconómico dos paradigmas já existentes (Perez & Soete, 1988). , “janelas de oportunidade” nesse caso vêm do conhecimento acumulado em P&D e do aprendizado tácito das instituições públicas e privadas de pesquisa no Brasil.

Ao contrário de outros países do Terceiro Mundo ainda fortemente dependentes dos Centros Internacionais de Pesquisa Agrícola (IARCs), a pesquisa pública agrícola no Brasil tem feito substanciais progressos em melhoramento genético adaptado a ecossistemas tropicais e semitropicais através de uma ampla rede de instituições de pesquisa encabeçada pela Embrapa. Mais recentemente, esforços em níveis intermediários de pesquisa agrobiotecnológica resultaram na introdução de novas variedades de plantas (cultura de tecidos para frutas e tubérculos), controle biológico de insetos (pesticidas biológicos para soja, cana-de-açúcar e milho) e fixação biológica de nitrogênio atmosférico na soja (Silveira et al., 1990SILVEIRA, J. M.; SALLES FILHO, S. L.; FUTINO, A. M., & BONACELLI, M. B. (1990) “Inovações biotecnológicas e a indústria de sementes.” Campinas, IE-Unicamp, mimeo.).

Por outro lado, as vantagens competitivas obtidas pelas empresas nacionais de semente e genética animal em relação às suas congêneres estrangeiras decorrem do longo período de maturação das pesquisas de técnicas de hibridização em diferentes ambientes ecológicos. A Agroceres, em particular, tem explorado sua posição de liderança para diversificar-se horizontalmente na área de híbridos, de semente de milho a linhagens puras de suínos (Castro, 1989CASTRO, A. C. (1989) “Inovação tecnológica e crescimento da firma: o caso Agroceres”. In Encontro Nacional de Economia, 17, Fortaleza. Anais... [s.l.], ANPEC, pp. 3-29.). Embora o P&D da Agroceres tenha sido basicamente “defensivo” (Silveira et al., 1990SILVEIRA, J. M.; SALLES FILHO, S. L.; FUTINO, A. M., & BONACELLI, M. B. (1990) “Inovações biotecnológicas e a indústria de sementes.” Campinas, IE-Unicamp, mimeo.: 146), sua capacidade acumulada em variedades melhoradas é o mais promissor ponto de partida para investimentos no nível intermediário de pesquisa celular e no nível mais sofisticado de pesquisa molecular.

No entanto, a trajetória turbulenta das novas empresas de biotecnologia (NEB) no Brasil enfatiza as dificuldades de consolidar o modelo americano de pesquisa privada biotecnológica com a participação importante de pequenas e médias empresas altamente especializadas. A onda de fechamentos de recém-criadas NEBs no início dos anos 9016 16 As duas NEBs líderes no Brasil, Biomatrix e Bioplanta, foram fechadas em 1990 e 1991, respectivamente. Embora fossem filiadas à empresa genética brasileira líder, Agroceres, e à subsidiária de um conglomerado internacional, Souza Cruz, do grupo BAT (Reino Unido), o fechamento dessas empresas parece irreversível (Silveira et al., 1990: 143-5). aponta para as dificuldades de países periféricos desenvolverem capacidade tecnológica autônoma em pesquisa genética fora do setor público. Na raiz do colapso “prematuro” das NEBs brasileiras está o crônico problema de tamanho de mercado dos países periféricos para produtos tecnológicos, e no caso específico os produtos biotecnológicos. Segundo Rosenberg (1976ROSENBERG, N. (1976) Perspectives on Technology. Cambridge, Cambridge University Press.: 142-3), a dificuldade do desenvolvimento de indústrias especializadas de bens de produção em países periféricos decorre da descontinuidade entre o mínimo requerimento de escala para internalizar essas indústrias e a demanda efetiva das indústrias usuárias de bens de consumo. No caso de novos produtos tecnológicos, como os biotecnológicos, o problema do mercado é ainda mais sério, já que os riscos e incertezas para fornecedores e usuários são inerentes à absorção efetiva dos novos produtos pelo mercado. Parece, assim, evidente que a incorporação desses produtos na reprodução dinâmica dos encadeamentos intersetoriais do agribusiness brasileiro é uma condição vital para consolidar a bioindústria nacional nascente.

7.2 Encadeamentos, interações e criação de um “novo” mercado

A criação de um mercado para serviços e produtos agrobiotecnológicos suficiente para gerar economias mínimas de especialização passa em primeiro lugar pelo estabelecimento de interações entre a nascente bioindústria e os complexos agroindustriais, o que em grande parte depende da reestruturação tecnológica desses complexos. Um poderoso mecanismo indutor dessa reestruturação tem sido pelo lado da oferta os excedentes crônicos dos países produtores, principalmente os desenvolvidos (Goodman & Redclift, 1991GOODMAN, D., & REDCLIFT, M. (1991) Refashioning Nature. London, Nova York, Routledge.), e pelo lado da demanda a combinação entre uma baixa elasticidade-renda da demanda por commodities agroindustriais e uma crescente elasticidade-substituição entre óleos e entre produtos temperados e produtos tropicais, em parte devido à própria difusão biotecnológica (Chesnais, 1989CHESNAIS, F. (1989b) “Prospective impacts on international trade and competitiveness”. In Biotechnology: economic and wider impacts. Paris, OECD.b).

A intrínseca versatilidade dos novos produtos biotecnológicos facilita a intercambiabilidade dos insumos no mercado de um produto e a flexibilização do uso de um insumo em vários mercados de produtos. O resultado é que a rigidez da oferta de insumos e da demanda de produtos finais tende a ser crescentemente rompida, e assim complexos baseados em cadeias rígidas de produtos agrícolas, como açúcar e cereais, entram em competição direta nos mercados substitutos de insumos (por exemplo, os adoçantes derivados) (Goodman & Wilkinson, 1990GOODMAN, D., & WILKINSON, J. (1990) “Patterns of research and innovation in the modem agri-food system”. In Marsden, T., & Whatmore, S., eds. Technological Change and the Rural Environment. London, David Fulton.: 15). Assim, os requerimentos para a liderança nos mercados de commodities serão superiores à eficiente integração empresarial vertical, sendo além disso necessário o abandono da atitude passiva no mercado de tecnologia “pronta” para se adotar uma postura ativa de internalização da capacitação tecnológica. A capacitação nas tecnologias de enzimas parece ser particularmente estratégica para essas companhias, pois essa nova base tecnológica propiciaria uma clara estratégia de diversificação para um amplo espectro de insumos “banalizados” para uso final e para os mercados de especialidades (OECD, 1992OECD (1992) Biotechnology, agriculture and food. Paris.: 133). Isso significaria o desenvolvimento autônomo de atividades de P&D “dentro de casa” ou via contrato de transferência tecnológica com empresas genéticas e instituições públicas altamente especializadas.

Um importante passo nessa direção é uma integração orgânica de capital entre as NEBs emergentes e as empresas domésticas de sementes e genética animal, já que tal integração é condição tanto para as primeiras terem acesso ao mercado de produtos genéticos como para as segundas reduzirem seus custos de entrada nas novas tecnologias.

Se essa tríplice aliança é uma condição necessária para o estabelecimento de capacitação agrobiotecnológica interna, ela não é porém suficiente.

O uso de licenciamento e joint ventures de NEBs estrangeiras com liderança em nichos do mercado tecnológico genético parece ser uma condição decisiva para a constante atualização tecnológica das NEBs domésticas. Isso porque o regime tecnológico desse novo paradigma é caracterizado por elevada incerteza dos investimentos, custos de P&D ascendentes, retornos de longo prazo e alta taxa de obsolescência de novos produtos em função da velocidade de deslocamento da fronteira do conhecimento científico (Kloppenburg, 1990KLOPPENBURG, J. (1990) First the Seed: the Political Economy of Plant Biotechnology. Cambridge, Cambridge University Press.). De outro lado, a intensificação desses mecanismos de transferência internacional de tecnologia via mercado constitui-se numa necessidade das NEBs estrangeiras de vender com esforços seus serviços, pois sua comercialização é vital para que possam sobreviver independentemente num mercado internacional de produtos bioquímicos crescentemente dominado pelas multinacionais químico-farmacêuticas.

Certamente tais encadeamentos de interações intraprodutores de inovações e entre produtores e usuários desses produtos só seriam bem-sucedidos se apoiados por um sistema reestruturado de pesquisa agrícola pública. Isso incluiria o reforço da Embrapa, a definição de uma efetiva política nacional de biotecnologia (legislação de patentes, coordenação e financiamento de pesquisa básica com prioridades, rede de informações) e a criação de ligações mais duradouras da relação entre instituições de pesquisa pública e privada. Particularmente na periferia, as “forças de mercado” por si não têm historicamente sido capazes de dirigir o ambiente socioeconôrnico para mudanças estruturais. Ao mesmo tempo sabemos pela experiência histórica que o Estado não é um deus ex machina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ARTHUR, W. B. (1988) “Competing technologies: an overview”. In: DOSI, G. et ai. (eds.). Technical change and economic theory. London, Nova York, Pinter Publishers.
  • CASTRO, A. C. (1989) “Inovação tecnológica e crescimento da firma: o caso Agroceres”. In Encontro Nacional de Economia, 17, Fortaleza. Anais... [s.l.], ANPEC, pp. 3-29.
  • CAVES, R. E. (1982) Multinational Enterprise and Economic Analysis. Cambridge, Cambridge University Press.
  • CHENERY, H. & WATANABE, T. (1958) “International comparisons of the structure of production”. Econometrica, Avon, v. 26, pp. 487-521.
  • CHESNAIS, F. (1989b) “Prospective impacts on international trade and competitiveness”. In Biotechnology: economic and wider impacts. Paris, OECD.
  • CLARK, C. JUMA, C. (1991) Biotechnology for Sustainable Development: Policy Options for Developing Countries. Nairobi, ACTS.
  • CONNOR, J. M. (1983a) “Determinants of foreign direct investment by food and tobacco manufactures”. American Journal of Agricultural Economics. Worcester, V. 65, pp. 395-404.
  • CONNOR, J. M. & MUELLER, W.F. (1982) “Structure and performance of US multinationals in Brazil and Mexico”. Journal of Development Studies. London, V. 18, pp. 329-53.
  • CONNOR, J. M.; ROGERS, J. M.; MARION, R. T., & MUELLER, W. F. (1985) The Food Manufacturing Industries: Structure, Strategies, Performance and Policies. Massachusetts/Toronto, Lexington Books.
  • DUNNING, J. (1974) “The distinctive nature of the multinational enterprise”, In Dunning, J., ed. Economic Analysis and the Multinational Enterprise. London, George Allen & Unwin.
  • EMBRAPA. (1990) “Biotecnologia: cenário internacional e perspectivas para o Brasil”. [s.l.]/[s.n.]. (Área de Planejamento), mimeo.
  • ERBER, F. (1984) “The capital goods industry and the dynamics of economic development in LDCs: the case of Brazil”. Rio de Janeiro, IEI-UFRJ. Texto para discussão nº 8.
  • FAJNZYLBER, F. (1983) La Industrializacion Trunca de America Latina. México, CET.
  • FONSECA, M. G. D. (1990) “Concorrência e progresso técnico na indústria de máquinas para a agricultura: um estudo sobre trajetórias tecnológicas”. Campinas, Unicamp. Tese de Pós-doutorado.
  • GOODMAN, D., & REDCLIFT, M. (1991) Refashioning Nature. London, Nova York, Routledge.
  • GOODMAN, D.; SORJ, B., & WILKINSON, J. (1987) From Farming to Biotechnology: a Theory of Agro-industrial Development. Oxford, Basil Blackwell.
  • GOODMAN, D., & WILKINSON, J. (1990) “Patterns of research and innovation in the modem agri-food system”. In Marsden, T., & Whatmore, S., eds. Technological Change and the Rural Environment. London, David Fulton.
  • GREEN, R. (1990) Lucha entre Multinacionales: Bunge y Born frente Cargill, Nestlé y Unilever. Paris, INRA-Economia, mimeo.
  • GUIMARÃES, E. (1982) Acumulação e Crescimento da Firma: um Estudo de Organização Industrial. Rio de Janeiro, Zahar.
  • HAGUENAUER, L.; ARAÚJO JR, J. T.; PROCHINIK, V., & GUIMARÃES, E. A. (1984) “Os complexos industriais na economia brasileira”. Rio de Janeiro, IEI/ UFRJ. Texto para discussão nº 62, pp. 1-72.
  • HAYAMI, Y., & RUTTAN, V. (1985) Agricultura/Development: an International Perspective. Baltimore, London, The Johns Hopkins University.
  • JUNNE, G. (1992) “The impact of biotechnology on international commodity trade.” In Silva, R. da C., & Sasson, A. Biotechnology: Economic and Social Aspects. Issues for Developing Countries. Cambridge, Cambridge University.
  • KLOPPENBURG, J. (1990) First the Seed: the Political Economy of Plant Biotechnology. Cambridge, Cambridge University Press.
  • LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.
  • NAIDIN, L. C. (1985) “Crescimento e competição na indústria de defensivos agrícolas no Brasil.” Rio de Janeiro, UFRJ. Dissertação de Mestrado.
  • OECD (1992) Biotechnology, agriculture and food. Paris.
  • PEREZ, C., & SOETE, L. (1988) “Catching up in technology: entry barriers and windows of opportunity.” In Dosi, G. et al., eds. Technical change and economic theory. London, Nova York, Pinter Publishers.
  • POSSAS, M. (1988) “Complexos industriais na economia brasileira: uma proposta metodológica.” Campinas, IE/Unicamp.
  • PRADO, E. (1981) “Estrutura tecnológica e desenvolvimento regional.” São Paulo, IPE.
  • ROSENBERG, N. (1976) Perspectives on Technology. Cambridge, Cambridge University Press.
  • SCHUMPETER, J. (1934) The Theory of Economic Development. Cambridge, Harvard University.
  • SHIKI, S. (1991) “Agro-food policies and petty commodity production in Brazil: some implications of changes in the 1980s.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.
  • SILVA, J. F. G. da. (1985) A relação setor público-privado na geração de tecnologia agrícola no Brasil. Brasília, Cadernos de Difusão de Tecnologia, 2(2): 185-232.
  • SILVEIRA, J. M.; SALLES FILHO, S. L.; FUTINO, A. M., & BONACELLI, M. B. (1990) “Inovações biotecnológicas e a indústria de sementes.” Campinas, IE-Unicamp, mimeo.
  • SIMPSON, D., & TSUKUI, J. (1965) “The fundamental structure of input-output tables, an international comparison.” Cambridge, The Review of Economics and Statistics, 47(4): 434-446.
  • UNITED NATIONS/UNCTAD (1992) “THE CAPITAL goods sector in developing countries: technology issues and policy options”. Nova York.
  • VERNON, R. (1966) “International investment and international trade in the product cycle.” Cambridge, Quarterly Journal of Economics. vol. 80, pp. 190-207.
  • 1
    Sem entrar em julgamento de valor sobre o caráter socialmente perverso da “Revolução Verde”. Ver a esse respeito De Janvry (1981) e Silva (1982SILVA, J. F. G. da. (1985) A relação setor público-privado na geração de tecnologia agrícola no Brasil. Brasília, Cadernos de Difusão de Tecnologia, 2(2): 185-232.).
  • 2
    Importações/total do consumo interno (produção interna-exportações+importações).
  • 3
    Exportação/produção interna.
  • 4
    Ver, por exemplo, os resultados obtidos por Haguenauer et al. (1984HAGUENAUER, L.; ARAÚJO JR, J. T.; PROCHINIK, V., & GUIMARÃES, E. A. (1984) “Os complexos industriais na economia brasileira”. Rio de Janeiro, IEI/ UFRJ. Texto para discussão nº 62, pp. 1-72.) e Prado (1981PRADO, E. (1981) “Estrutura tecnológica e desenvolvimento regional.” São Paulo, IPE.) para as matrizes de 1975 e 1970, respectivamente.
  • 5
    Definidos como o percentual das vendas e compras intracomplexo sobre o total das vendas e compras, respectivamente.
  • 6
    Assim, E+V=1. Ver metodologia em Lemos (1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.).
  • 7
    Ver metodologia e discussão dessa classificação em Lemos (1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 321-55).
  • 8
    ‘Isso vai refletir no diferencial relativamente reduzido das margens médias de lucro entre os “líderes” e a “indústria”, em particular no diferencial de mark-up (Lemos, 1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 287).
  • 9
    Incluídas entre as 500 maiores empresas do Brasil.
  • 10
    Em contraste com os mark-ups médios de 10% e 24% nas indústrias de “resfriamento” e “pasteurização”, respectivamente, o mark-up médio da indústria de “laticínios” fica em tomo de 50% (Lemos, 1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.: 304).
  • 11
    Segundo Penrose (1959), a estratégia de crescimento direcionada para a diversificação de uma firma significa a utilização plena de recursos tecnológicos, gerenciais, mercadológicos, etc., até então subutilizados na sua área original de especialização.
  • 12
    Dois casos ilustrativos são do grupo Cacique no complexo “café” e do grupo Sadia no complexo “grãos-aves” e “carne”. A partir de uma estratégia de “verticalização”, o grupo Cacique deixou de investir nas etapas intermediárias de beneficiamento e torrefação para se concentrar na liderança do segmento de cafés solúveis finos, principalmente para exportação. O grupo Sadia, ao contrário, tem combinado a estratégia recente de diferenciação em produtos de aves e carnes com o reforço da verticalização via indústrias de “rações” e “frigoríficos” (Lemos, 1992LEMOS, M. B. (1992) “The agro-food system in semi industrialized countries: the Brazilian case.” London, University of London. Tese de Pós-doutorado.).
  • 13
    O grupo Bunge & Bom, única multinacional de alimentos com sede no Brasil, é um interessante exemplo de como uma estratégia aparentemente deliberada de “diversificação” representa efetivamente “conglomeração”. Ou seja, seu controle de capital de um conjunto amplo de atividades mais ou menos desconexas (de grãos e alimentos finais até têxteis, fertilizantes e tintas) está longe de representar uma exploração sinergética de sua área inicial de especialização no comércio internacional de grãos, ao contrário do sugerido por Green (1990GREEN, R. (1990) Lucha entre Multinacionales: Bunge y Born frente Cargill, Nestlé y Unilever. Paris, INRA-Economia, mimeo.).
  • 14
    Além disso, o País possui uma vasta e diversificada reserva natural de germoplasma e o maior banco de coleção e conservação genética da América Latina (Embrapa-CenargemEMBRAPA. (1990) “Biotecnologia: cenário internacional e perspectivas para o Brasil”. [s.l.]/[s.n.]. (Área de Planejamento), mimeo.), o que representa um enorme potencial para pesquisa celular e molecular.
  • 15
    A hipótese da “queima de etapas” baseia-se na ideia de que países retardatários têm maiores chances de entrar em um novo paradigma tecnológico nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, já que eles estão menos comprometidos com o aparato institucional e socioeconómico dos paradigmas já existentes (Perez & Soete, 1988PEREZ, C., & SOETE, L. (1988) “Catching up in technology: entry barriers and windows of opportunity.” In Dosi, G. et al., eds. Technical change and economic theory. London, Nova York, Pinter Publishers.).
  • 16
    As duas NEBs líderes no Brasil, Biomatrix e Bioplanta, foram fechadas em 1990 e 1991, respectivamente. Embora fossem filiadas à empresa genética brasileira líder, Agroceres, e à subsidiária de um conglomerado internacional, Souza Cruz, do grupo BAT (Reino Unido), o fechamento dessas empresas parece irreversível (Silveira et al., 1990SILVEIRA, J. M.; SALLES FILHO, S. L.; FUTINO, A. M., & BONACELLI, M. B. (1990) “Inovações biotecnológicas e a indústria de sementes.” Campinas, IE-Unicamp, mimeo.: 143-5).
  • 17
    JEL Classification: Q13; Q16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1996
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br