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EDITORIAL

Este número da Revista Estudos Feministas marca a entrada em seu décimo quinto ano de publicação. Nestes quinze anos, a Revista manteve firme seu propósito de ampliar as fronteiras dos debates acadêmicos no campo dos estudos feministas e de gênero e instrumentar as práticas dos movimentos de mulheres, através da publicação de artigos, ensaios e resenhas que apresentem reflexões teóricas consistentes e inovadoras, com bibliografia atualizada.

Assim, no momento em que estão sendo discutidos na sociedade brasileira e latino-americana temas tão caros aos movimentos feministas e de mulheres como a descriminalização do aborto e a lei contra a homofobia, a Revista Estudos Feministas resolveu acolher neste número a publicação de uma separata contendo o Manifesto por uma Convenção Interamericana dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos, impulsionada por uma rede de organizações não-governamentais e movimentos de mulheres na América Latina. Esta é mais uma maneira de nos fazermos presentes e de subsidiar o debate político sobre temas do cotidiano de mulheres e homens e tão polêmicos, especialmente com a visita do Papa ao Brasil no mês de maio, o que parece reforçar toda uma reorganização conservadora dos meios católicos no sentido de impedir a incorporação desses direitos pelo Estado. Neste momento em que o Governo Federal parece propício a deslanchar um processo de consulta à sociedade sobre a descriminalização do aborto, os grupos contrários a essa reivindicação histórica do movimento feminista organizam-se e recebem o reforço da visita do Papa, com seu discurso conservador. Embora não se tenham dados estatísticos precisos, já que é uma prática clandestina, o aborto continua matando mulheres e adolescentes, ou causando seqüelas graves, sendo uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil, que é bastante grande ainda. Como dizem Sílvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian, "... nenhuma mulher quer abortar, mas quando precisa abortar, o que ela necessita e merece receber, além de assistência social, médica, jurídica e psicológica é, mais do que tudo, afeto, solidariedade, tolerância, respeito e repouso... e não prisão...".

1 1 Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian. Aborto: descriminar para não discriminar. Disponível em: http://www.agende.org.br/dados_pesquisas/saude/saude.php. Acesso em: 22 abr. 2007.

Iniciando este número temos o artigo de María Luisa Femenías, "Esbozo de un feminismo latinoamericano", em que a filósofa argentina defende a existência de um feminismo latino-americano com seu próprio perfil e seus próprios desafios. Para a autora, é justamente o posicionamento periférico da América Latina que nos confere a possibilidade de um pensamento e uma ação feminista originais e de traduzir aquilo que é proposto por outros feminismos segundo nossos objetivos e perspectivas.

Em "Maternidade, cuidados do corpo e 'civilização' na Pastoral da Criança", Gabriele dos Anjos analisa as práticas relativas aos cuidados e usos do corpo difundidas por essa pastoral da Igreja Católica. A autora mostra como nessas práticas se estimula nas mulheres a auto-identificação com um determinado papel de "mãe" e, no caso das líderes, com um papel educativo e "civilizador". Ela afirma que esses papéis contrapõem-se diretamente às propostas feministas, ao responsabilizarem as mulheres pelo bem-estar das crianças e valorizarem sua atuação especialmente no âmbito do privado e do cuidado, propondo uma instigante e atual discussão sobre as práticas da Igreja Católica com relação às mulheres.

No campo das sexualidades, o artigo "Saindo do armário e entrando em cena: juventudes, sexualidades e vulnerabilidade social", de Fernando Altair Pocahy e Henrique Caetano Nardi, debate os limites e possibilidades das pesquisas de intervenção social, ao mesmo tempo em que aborda as maneiras como um grupo de jovens vive e improvisa experimentações da sexualidade a partir de um projeto de ação de saúde no campo das doenças sexualmente transmissíveis/AIDS, coordenada por uma organização não-governamental atuante na defesa dos direitos humanos e da livre expressão das sexualidades. A questão da homofobia aparece nesse debate como algo que precisa ser enfrentado por esses jovens em suas experiências e em seu cotidiano.

"Frutos da castidade e da lascívia: as crianças abandonadas no Recife (1789-1832)", de Alcileide Cabral do Nascimento, lança uma perspectiva histórica sobre a prática do abandono de crianças no Recife colonial, e sobre os discursos que acompanhavam e emolduravam essa prática que se institucionalizou através da Casa dos Expostos. Esses discursos, ao mesmo tempo em que atribuíam o abandono dos bebês nas ruas ou na roda dos expostos à miséria e à lascívia de ligações não oficiais, também pensava essa prática como uma proteção às moças que, enganadas ou seduzidas, com o abandono de seus "frutos" poderiam recomeçar suas vidas. O artigo nos ajuda a enxergar as grandes transformações ocorridas em dois séculos quanto ao cuidado e aos papéis sociais da infância e as maneiras pelas quais as sexualidades foram objeto de políticas públicas.

Interrogando as relações entre saber e poder na distribuição de espaços de poder na Universidad de Los Lagos (Chile), Diana Kiss, Olga Barrios e Judith Alvarez constroem, no artigo "Inequidad y diferencia. Mujeres y desarrollo académico", uma instigante reflexão sobre gênero na universidade. As autoras analisam a estrutura acadêmica e as hierarquias da universidade a partir de uma perspectiva de gênero, especificando cargos acadêmicos e administrativos, remunerações, distribuição de carga de trabalho e de disciplinas, e mostrando o longo caminho ainda por percorrer no sentido da eqüidade entre homens e mulheres nesse espaço.

Na seção Ponto de Vista, temos neste número a publicação da entrevista com Toril Moi realizada por Susana Bornéo Funck e Rita Terezinha Schmidt por ocasião do Seminário Mulher e Literatura que ocorreu no Rio de Janeiro em 2006. Toril Moi é professora de Literatura e Romance na Duke University, Estados Unidos, e trabalha sobre teorias feministas e escritura de mulheres. Na entrevista são debatidos temas como a crítica feita pela autora ao paradigma pós-estruturalista, o uso das categorias "gênero" e "mulher", e o feminismo como projeto político. De maneira muito clara e explicativa, esses debates fundamentais para a teoria feminista contemporânea aparecem nessa entrevista, que se constitui assim quase em um guia de leitura dos artigos e livros de Toril Moi, e das autoras com quem ela discute, entre as quais podem ser citadas Judith Butler, Simone de Beauvoir, Monique Wittig e Joan Scott.

Este número também traz à tona uma temática bastante atual e central dos estudos de gênero: a mídia. A Seção Temática Gênero e Mídia, organizada por Marília Gomes de Carvalho, Miriam Adelman e Cristina Tavares da Costa Rocha, reflete sobre alguns dos debates travados acerca do tema. Essa seção é, de certa maneira, resultado do I Simpósio Brasileiro de Gênero & Mídia, realizado em Curitiba em 2005, porém os textos foram bastante retrabalhados pelas autoras para se configurarem em artigos, passando pelo crivo das/dos pareceristas. Também foram incorporados à Seção Temática proposta inicialmente outros artigos que chegaram autonomamente à Revista e que se encaixavam na proposta. A maneira como a mídia apresenta e assenta imagens de gênero por meio das notícias, da publicidade, das novelas e de revistas tem sido preocupação de muitas e muitos pesquisadoras/es, pois, através desses meios, o gênero passa a constituir o imaginário social e, ao mesmo tempo, através deles, é possível também a proposição de mudanças nos comportamentos e nas hierarquias.

A seção Resenhas apresenta um bom painel das publicações no campo de estudos de gênero, feminismo, mulheres e sexualidades a partir de análises de oito livros, sendo três publicados no exterior. Os livros tratam de assuntos diversos que englobam a violência por uma perspectiva de gênero, movimentos homossexuais, participação das mulheres nas atividades desportivas, panorama das questões de gênero no Brasil, gênero e linguagem na mídia, história das mulheres, gênero na história do cotidiano e a polêmica questão do aborto.

Boa leitura.

Cristina Scheibe Wolff e Sônia Weidner Maluf

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    Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian.
    Aborto: descriminar para não discriminar. Disponível em:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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