Acessibilidade / Reportar erro

De quem é esse corpo? A sexualidade de mulheres com Síndrome de Down

Who does that body belong to? The sexuality of women with Down Syndrome

¿A quién pertenece ese cuerpo? La sexualidad de mujeres con Síndrome de Down

Resumo:

A sexualidade de mulheres com deficiência vem sendo tratada como tabu por mães e pessoas que trabalham de maneira muito próxima a essas pessoas. Na presente pesquisa, tive como objetivo analisar as narrativas de mães e profissionais sobre a sexualidade das mulheres com Síndrome de Down (SD). Para isso, foram realizadas entrevistas com mães de pessoas com SD e com profissionais que trabalham diretamente com tais indivíduos. Os resultados mostram que o silêncio é a norma. As participantes da pesquisa ficaram visivelmente incomodadas em falarem sobre o tema e, quando falaram, disseram que as mulheres com Síndrome de Down não são independentes no que diz respeito aos seus próprios corpos. Uma das consequências graves da negação ao direito básico pelos seus corpos é o alto número de violência sexual sofrida pelas mulheres com Síndrome de Down.

Palavras-chave:
sexualidade; Síndrome de Down; corpo

Abstract:

The sexuality of women with disabilities has been treated as a taboo by mothers and people who work very closely with these women. The present research aimed to analyze the narratives of mothers and professionals about the sexuality of women with Down Syndrome (DS). For this, interviews were carried out with mothers of people with DS and with professionals who work directly with such individuals. The results show that silence is the norm. The research participants were visibly uncomfortable talking about the topic and when they did, they said that women with Down Syndrome are not independent when it comes to their own bodies. One of the serious consequences of the denial of the basic right by their bodies is the high number of sexual violence suffered by women with Down Syndrome.

Keywords:
Sexuality; Down's Syndrome; Body

Resumen:

La sexualidad de las mujeres con discapacidad ha sido tratada como tabú por las madres y las personas que trabajan muy de cerca con estas mujeres. La presente investigación tuvo como objetivo analizar las narrativas de madres y profesionales sobre la sexualidad de mujeres con Síndrome de Down (SD). Para ello, se realizaron entrevistas con madres de personas con SD y con profesionales que trabajan directamente con dichas personas. Los resultados muestran que el silencio es la norma. Las participantes de la investigación se sintieron visiblemente incómodas al hablar sobre el tema y, cuando lo hicieron, dijeron que las mujeres con síndrome de Down no son independientes cuando se trata de sus propios cuerpos. Una de las graves consecuencias de la negación del derecho básico por parte de sus cuerpos es el elevado número de violencias sexuales que sufren las mujeres con Síndrome de Down.

Palabras clave:
sexualidad; Sindrome de Down; cuerpo

Introdução

A sexualidade de mulheres com deficiência é um assunto invisibilizado na quase totalidade dos ambientes (Abby WILKERSON, 2011WILKERSON, Abby. “Disability, sex, radicalism and political Agency”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies. Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 193-217.). A referência à sexualidade de tais mulheres é feita raramente e de maneira instrumental, com o objetivo de manter a ordem social, tocando em pontos como formas de evitar a gravidez e as doenças sexualmente transmissíveis (SHILDRICK, 2012SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality. London: Palgrave Macmillan, 2012.). Pretendo que esta pesquisa seja um pequeno passo para romper com tal invisibilização no que diz respeito especificamente à perspectiva de mães e de profissionais que lidam diariamente com tais mulheres. A pergunta que está no título de Hebe Régis (2013RÉGIS, Hebe. Mulheres com deficiência intelectual e a esterilização involuntária: de quem é esse corpo? 2013. (Dissertação de Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/123020/323929.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em 29/07/2023.
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha...
), ao focar na esterilização involuntária de mulheres com deficiência intelectual, perpassa toda a minha investigação: “de quem é esse corpo?”.

Goodley (2011GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction. London: Sage, 2011.), fazendo referência às pessoas com deficiência (PcD) de uma maneira geral, ressalta que os corpos de tais pessoas são vistos como assexuados, monstruosos e não atrativos. Assim, sua sexualidade não é sequer discutida. No caso específico das mulheres com deficiência, elas carregam todos esses rótulos, além de serem taxadas como inférteis (Rosemarie GARLAND-THOMSON, 2011GARLAND-THOMSON, Rosemarie. “Integrating Disability, Transforming Feminist Theory”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies. Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 13-47.).

Diante de tal cenário, o presente artigo alinha-se com a demanda de que sejam articulados gênero e deficiência em estudos comprometidos com a, obviamente, verdade, de que tais pessoas podem ter desejos sexuais e devem ter direito aos seus corpos. É urgente que a sexualidade dessas mulheres não seja vista pela sociedade como um tabu, para que as diferentes facetas de tal questão sejam debatidas (Tobin SIEBERS, 2008SIEBERS, Tobin. Disability Theory. Michigan: The University of Michigan Press, 2008.). Sendo assim, o objetivo desta pesquisa é analisar as narrativas de mães e profissionais sobre a sexualidade das mulheres com Síndrome de Down (SD). As narrativas aqui analisadas foram feitas por mães e profissionais ligados a instituições com foco no atendimento a PcD. É importante destacar que esse relatório é um recorte de uma pesquisa maior, na qual, além desse público, foram ouvidas, principalmente, as pessoas com Síndrome de Down. Ou seja, na pesquisa, tive preocupação com o protagonismo de tais pessoas em suas próprias narrativas de vida. Entretanto, a maioria das mães pediu, na ocasião das entrevistas, que eu não perguntasse nada sobre sexo ou sexualidade para seus filhos e suas filhas. Segundo essas mães, trata-se de um “tema delicado” ou de “algo que ela nem sabe que existe e é melhor não despertar”.

Logicamente, tal pedido já é um indicativo importante de como a sexualidade das pessoas com Síndrome de Down é um tabu. Sei que seria muito importante ter os relatos das pessoas com SD, mas diante do que foi exposto e da riqueza do material obtido com as mães e com as profissionais, optei por manter a realização do artigo. Ressalto, porém, mais uma vez, que se trata da análise da perspectiva de terceiros sobre a sexualidade das mulheres com SD.

Na pesquisa, alinho-me aos Estudos Feministas da Deficiência como campo do conhecimento em que a deficiência se inscreve como resultado de um sistema de opressão e não como uma questão médica. Aqui recorro à reflexão de que o feminismo - particularmente quando se aproxima de ideias liberais - mostra-se extremamente nocivo às mulheres com deficiência, ao não deixar espaço para seus corpos. Um exemplo de tal mecanismo ideológico de silenciamento pode ser observado nas discussões da ética feminista do cuidado, âmbito em que usualmente se coloca as mulheres com deficiência como incapazes de cuidar, e como corpos que precisam de cuidados de outras mulheres, nomeadamente aquelas sem deficiências (GARLAND-THOMSON, 2019GARLAND-THOMSON, Rosemarie. “Reconfigurar, Repensar, Redefinir: Estudos Feministas da Deficiência”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima. Coimbra: Almedina, 2019. p. 47-78., Susannah MINTZ, 2011MINTZ, Susannah. “Invisible Disability: Georgina Kleeg’s Sight Unseen”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies. Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 69-90.).

Sexualidade, tabus e a eterna criança

Ao analisar os artigos científicos publicados no periódico Sexuality and Disability, Meinerz (2010MEINERZ, Nádia. “Corpo e outras (de)limitações sexuais: uma análise antropológica da revista Sexuality and Disability entre os anos de 1996 e 2006”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 72, 2010.) destaca que a sexualidade é apontada recorrentemente como um dispositivo de fronteira no que diz respeito ao acesso ao rótulo de indivíduo normal. Neste contexto de padronização de corpos, os indivíduos deficientizados1 1 A escolha por utilizar o termo deficientizados está em linha com a proposta da perspectiva não médica da deficiência. Aqui, assumo a perspectiva biopsicossocial, na qual a deficiência se inscreve como resultado de um sistema de opressão. são apontados como fora da norma, corpos incontidos e desobedientes (Ana Cristina SANTOS, 2019SANTOS, Ana Cristina. “Introdução”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima. Coimbra: Almedina, 2019.).

Aprender sobre sexualidade e, especificamente, sobre sexo, passa necessariamente por conhecer o corpo e ter noções sobre individualidade e consentimento. A importância dessas questões leva ao entendimento de que negar às PcD o conhecimento e a posse dos seus próprios corpos é um caminho deliberadamente adotado que as priva de serem indivíduos plenos do ponto de vista de suas sexualidades (Margrit SHILDRICK, 2012SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality. London: Palgrave Macmillan, 2012.).

No que diz respeito, especificamente, às mulheres com deficiência, os teóricos dos Estudos Feministas da Deficiência denunciam que as críticas feministas ao patriarcado e ao mito da mulher como objeto sexual e como mãe ignoram as mulheres com deficiência. Isso porque tais mulheres são reiteradamente vistas como assexuadas e inférteis (MINTZ, 2011MINTZ, Susannah. “Invisible Disability: Georgina Kleeg’s Sight Unseen”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies. Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 69-90.). A exigência da procriação como centro da vida (Sasha ROSENEIL et al., 2020ROSENEIL, Sasha; CROWHURST, Isabel; HELLESUND, Tone; SANTOS, Ana Cristina; STOILOVA, Mariya. The Tenacity of the Couple-Norm. Intimate Citizenship Regimes in a Changing Europe. UCL Press, 2020. p. 3-33. Livro publicado em regime de Open Access. Disponível em https://www.uclpress.co.uk/products/166273#.
https://www.uclpress.co.uk/products/1662...
) impacta diretamente as mulheres com deficiência. Isso ocorre principalmente porque tais mulheres são vistas, erroneamente, como incapazes de ter filhos. Sobre tal questão, vale enfatizar a perspectiva de autores como Garland-Thomson (2019) de que, enquanto, para muitas mulheres, a maternidade é uma imposição, para as mulheres com deficiência é uma proibição. Essa questão parece-me uma das muitas que acaba por colocar as mulheres com deficiência à margem dos movimentos feministas. Shildrick (2019SHILDRICK, Margrit. “Algumas reflexões sobre cidadania sexual e mulheres com deficiência”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima. Coimbra: Almedina, 2019.) aponta que, se o feminismo está envolvido de fato com o reconhecimento e a valorização da diferença interseccional, é obrigatório que os estudos feministas se envolvam também com a questão da deficiência como uma das formas predominantes de diferença na sociedade contemporânea.

Uma das questões que podem e devem ser debatidas quando se fala de sexualidade e direito ao próprio corpo por mulheres com deficiência é a infantilização das PcD. Em um processo cíclico, nada benéfico para as PcD, têm-se a proibição social de que essas pessoas tenham relacionamentos amorosos/sexuais com a desculpa de que elas seriam crianças, mesmo quando estas já têm idade adulta. Adicionalmente, fazer parte de um casal é amplamente visto como uma conquista, um status estabilizador característico da vida adulta. Não fazer parte da forma de casal é, de muitas maneiras, estar fora, ou pelo menos à margem, da sociedade adulta (ROSENEIL et al., 2020ROSENEIL, Sasha; CROWHURST, Isabel; HELLESUND, Tone; SANTOS, Ana Cristina; STOILOVA, Mariya. The Tenacity of the Couple-Norm. Intimate Citizenship Regimes in a Changing Europe. UCL Press, 2020. p. 3-33. Livro publicado em regime de Open Access. Disponível em https://www.uclpress.co.uk/products/166273#.
https://www.uclpress.co.uk/products/1662...
). Tal ciclo acaba por se configurar como uma desculpa social para a visão das PcD como eternas crianças.

O rótulo de eternas crianças faz com que até mesmo os adultos com deficiência estejam sujeitos ao adultismo. Sobre tal conceito, Mafalda Esteves, Ana Cristina Santos e Alexandra Santos (2021ESTEVES, Mafalda; SANTOS, Ana Cristina; SANTOS, Alexandra. “Zonas de Liberdade LGBTI+? Práticas e Gramáticas para uma intervenção profissional inclusiva com crianças e jovens LGBTI+”. Ex æquo, Lisboa, n. 44, p. 145-161. 2021. DOI: https://10.22355/exaequo.2021.44.10.
https://10.22355/exaequo.2021.44.10....
) ressaltam que a criança vê a sua vida determinada pelas normas sociais formuladas por adultos de forma implícita e invisível, logo, naturalizadas. As mesmas autoras chamam a atenção para o fato de que se cria uma hierarquia incontestável entre adultos e crianças. Sendo assim, dentro da lógica capacitista,2 2 Nesta pesquisa, o termo capacitista é utilizado como sinônimo de preconceito ou discriminação contra pessoas com deficiência. as PcD, por estarem “presas à infância”, mas não somente por isso, se tornam hierarquicamente inferiores às pessoas ditas normais.

Uma última questão, que costuma ser ainda mais invisibilizada, mas que não pode ser posta de lado em um debate verdadeiramente comprometido com a luta pelos direitos sexuais das mulheres com deficiência, é a imposição heteronormativa. Sobre tal ponto, Shildrick (2012SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality. London: Palgrave Macmillan, 2012.) coloca que o discurso de que as PcD são seres desprovidos de sexualidade é prejudicial para todos os indivíduos com deficiência e ainda mais grave para aqueles que são homossexuais. Autores como Siebers (2008SIEBERS, Tobin. Disability Theory. Michigan: The University of Michigan Press, 2008.) defendem que entender a sexualidade de PcD pode ser importante, inclusive, para romper com padrões de normatividade sexual.

Violência sexual e cidadania íntima

Os pontos anteriormente levantados dão conta de que as PcD e, especialmente, as mulheres com deficiência, são impedidas de terem direito aos seus próprios corpos. Das reflexões feitas, nasce o questionamento sobre o direito à cidadania íntima por parte de tais pessoas. Isso porque a cidadania íntima diz respeito ao poder de controle e agenciamento sobre o corpo, seus sentimentos, seu prazer e sua vida sexual. Sendo assim, para que seja possível pensar em cidadania íntima, é suposto ter como base o acesso ao próprio corpo e à sexualidade (Ken PLUMMER, 2003PLUMMER, Ken. Intimate Citizenship: private decisions and public dialogues. Montreal & Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2003.).

Discutir cidadania íntima para mulheres com deficiência passa, infelizmente, e necessariamente, por discutir violência. Para Regina Passos, Fernanda Telles e Maria Oliveira (2019PASSOS, Regina; TELLES, Fernanda; OLIVEIRA, Maria. “Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência”. Saúde Debate, v. 43, número especial 4, p. 154-164, 2019. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-11042019S413.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S41...
), existem lacunas éticas que impedem o exercício pleno da cidadania das mulheres com deficiência, principalmente quando são vítimas de violência sexual. Tais reflexões impulsionaram o desejo de realização da presente pesquisa, ao declararem que é urgente que se quebre o silêncio acadêmico, legal, social e nas políticas públicas sobre violência e mulheres com deficiência.

Dan Goodley (2011GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction. London: Sage, 2011.) afirma que é preciso que se entenda o contexto de exclusão vivenciado pelas mulheres com deficiência, para que se perceba a complexidade da violência sexual por elas sofrida. Até mesmo a realização de denúncia por parte dessas mulheres é um processo complicado e que, por vezes, impede, inclusive, o início de uma investigação. Passos, Telles e Oliveira (2019PASSOS, Regina; TELLES, Fernanda; OLIVEIRA, Maria. “Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência”. Saúde Debate, v. 43, número especial 4, p. 154-164, 2019. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-11042019S413.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S41...
) salientam que existe um grande problema de falta de acessibilidade atitudinal para que as denúncias feitas por tais mulheres cheguem ao Estado com a devida credibilidade.

O estudo de Kristin Bumiller (1990BUMILLER, Kristin. “Fallen Angels: The Representation of Violence Against Women in Legal Culture”. International Journal of the Sociology of Law, Londres, Nova Iorque, n. 18, p. 125-142, 1990.), apesar de não falar especificamente de violência contra mulheres com deficiência, pode ajudar a compreender o cenário de violência sexual vivenciado por elas. Primeiro no que diz respeito ao lugar de ingenuidade que a mulher é levada a ocupar em julgamentos de crimes sexuais, fazendo com que elas levem parcela de culpa por terem sido violadas. Outra questão importante, levantada no referido texto, é que, muitas vezes, a busca por objetividade faz com que seja mais difícil manter as versões contadas pelas vítimas quando estas não correspondem ao padrão esperado de crime sexual, com uso de armas e realizado por um estranho. Sobre tal questão, estudos mais recentes apontam a maior incidência de violência intrafamiliar. Ainda assim não é possível descartar a importância do imaginário social do agressor como um estranho que usa de violência física para cometer o estupro (Maria BARBOSA; Marília MELO, 2022BARBOSA, Maria; MELLO, Marília. “A distopia de uma política criminal punitivista frente aos crimes de estupro”. Direito Público, v. 19, n. 103, p. 385-413, 2022. Disponível em https://doi.org/10.11117/rdp.v19i103.6627.
https://doi.org/10.11117/rdp.v19i103.662...
). No caso das mulheres com deficiência, especialmente das com deficiência intelectual, a questão da culpabilização da ingenuidade pelos crimes é intrínseca. Ou seja, crimes de estupro e violação sexual cometidos contra mulheres com deficiência comumente são vistos como reflexo da ingenuidade delas. Sobre a questão de o crime corresponder ao que o senso comum acredita ser o esperado, é muito comum que as mulheres com deficiência sofram violência por parte de pessoas da família ou muito próximas. Isto, mais uma vez, é um elemento utilizado para descredibilizar os relatos de violência sexual feitos por tais mulheres (PASSOS; TELLES; OLIVEIRA, 2019PASSOS, Regina; TELLES, Fernanda; OLIVEIRA, Maria. “Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência”. Saúde Debate, v. 43, número especial 4, p. 154-164, 2019. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-11042019S413.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S41...
).

Cabe um destaque final de que não ignoro que a violência e a falta de direito à cidadania íntima também estão presentes nas vidas dos homens com deficiência. Entretanto, segui o caminho recomendado por autoras como Carol Thomas (2008THOMAS, Carol. Female Forms: Experiencing and understanding disability. Philadelphia: Open University Press, 2008.) e Garland-Thomson (2019), que salientam ser necessário lançar luz em questões específicas relativas às mulheres com deficiência.

Metodologia

A investigação contou com a participação de: 1) profissionais que trabalham diretamente com pessoas com deficiência intelectual em instituições portuguesas; e 2) mães de pessoas adultas com Síndrome de Down.

Sobre o primeiro grupo, destaca-se que as profissionais estão ligados a três instituições localizadas em Coimbra: Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Coimbra (APPACDM Coimbra); Cavalo Azul - Associação de Famílias Solidárias com a Deficiência (A.F.S.D.); Associação Olhar 21. No total, foram dez informantes-chave, profissionais que trabalham há pelo menos 5 anos com pessoas com Síndrome de Down nas instituições. Cabe, aqui, a observação de que, sem que existisse nenhum tipo de filtro nesse sentido, todas as profissionais entrevistadas eram mulheres. Essa situação é bastante interessante de ser percebida pela questão de o cuidado, mesmo que remunerado, ser uma função predominantemente feminina. O Quadro 1 traz uma breve caracterização destas entrevistadas sem apresentar seus nomes e os nomes das instituições, para manter as identidades das participantes preservadas.

Quadro 1
Entrevistadas nas instituições

No que diz respeito ao segundo grupo de entrevistadas, foram ouvidas 16 mães de adultos com Síndrome de Down. É importante notar que não foi feito o filtro de só entrevistar mulheres mães de mulheres com SD. Entretanto, para as análises que serão apresentadas, utilizaram-se somente os trechos nos quais as entrevistadas falaram sobre sexualidade de mulheres com SD. Vale a ressalva de que as mães de homens, mesmo tendo contato mais próximo com a realidade de seus filhos, relataram recorrentemente suas perspectivas sobre a sexualidade das mulheres com SD.

O Quadro 2 apresenta as mulheres que são mães das pessoas com SD. Os nomes foram retirados para preservar a identidade das participantes.

Quadro 2
Mulheres mães de pessoas com SD participantes

O presente estudo contou com entrevistas semiestruturadas como a principal forma de ouvir as perspectivas de mães e profissionais. Durante as entrevistas não foram utilizadas perguntas fechadas. Existia somente um roteiro com tópicos que deveriam ser abordados: (1) Sexualidade; (2) Violência Sexual; (3) Educação Sexual. As entrevistas foram feitas em 2018 e 2019. Todo o material empírico obtido foi tratado por meio da técnica de análise de conteúdo (Martin BAUER, 2002BAUER, Martin. “A análise de conteúdo clássica: uma revisão”. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 189-217.). A análise de conteúdo foi feita sem o auxílio de softwares e as categorias que surgiram de maneira mais significativa estão apresentadas nos subcapítulos dos resultados.

Apresentação e análise dos resultados

A primeira análise que pode ser feita, e que vai ao encontro do que teóricos como Wilkerson (2011WILKERSON, Abby. “Disability, sex, radicalism and political Agency”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies. Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 193-217.) já tinham apontado, é a identificação de um silêncio quase absoluto nas instituições e nas famílias sobre a sexualidade das mulheres com Síndrome de Down. Para além do que já foi dito sobre a proibição feita pelas mães de que eu tocasse no tema nas entrevistas realizadas com as pessoas com SD, nas narrativas das entrevistadas, foi possível perceber que elas não estão nada confortáveis quando o tema é sexualidade.

Por parte das organizações, uma das informantes disse que a instituição oferecia aulas de educação sexual para as pessoas com SD, mas os pais foram contra e pediram para que as aulas fossem interrompidas. Uma vez que, na visão dos profissionais desta organização, é muito importante que se tenha esse tipo de aula, foram criadas duas turmas: Psicologia do Feminino e Psicologia do Masculino. Tais aulas têm como conteúdo principal a educação sexual. Cabe o destaque de que as aulas são dadas separadamente para homens e mulheres, e que os conteúdos são bem diferentes. Se no caso dos homens pode-se afirmar que existe certa preocupação com o conhecimento do próprio corpo e questões relacionadas ao prazer, a aula das mulheres segue bem o que foi apontado por Shildrick (2012SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality. London: Palgrave Macmillan, 2012.) no sentido de ser instrumental para tentar evitar gravidez e violências sexuais.

Gênero e sexualidade de pessoas com SD

A visão interseccional de gênero e deficiência é fundamental, uma vez que, se a sexualidade é tabu quando se fala de pessoas com Síndrome de Down, quando se foca nas mulheres com SD o tema passa a ser ainda mais indesejado e negligenciado. Rui Machado (2018), em palestra proferida em Lisboa por ocasião do IncomoArte,3 3 Rui Machado, ativista dos direitos das pessoas com deficiência, cocriador do MovimentoSim, nós fodemos; membro da comissão coordenadora dos (d)Eficientes Indignados e da direção do Centro de Vida Independente em Portugal. Palestra intitulada “Deficiência e Sexualidade” no Simpósio IncomodArte: Deficiência e sociedade. Lisboa, Portugal, 2018. afirmou que a maior parte das mulheres com deficiência não reivindica seus direitos sexuais porque nem mesmo sabe que seus corpos podem ser seus.

Nos depoimentos das mães, fica muito claro que existe um discurso negacionista no que diz respeito à possibilidade de as mulheres com Síndrome de Down terem desejo sexual. Ainda que a sexualidade dos homens também seja impactada por uma visão capacitista, o tabu é muito mais enraizado no caso das mulheres com SD.

- Ela nem pensa nisso [sexo]. Também porque é mulher. (Mãe 8)

- Não tem mesmo que ter aulas de educação sexual, para os miúdos talvez. Mas para elas que são mulheres e deficientes não. (Mãe 16)

A maior naturalização do desejo sexual desses homens não é acompanhada por uma visão de que eles poderão encontrar de maneira autônoma uma parceira. Sendo assim, em muitas narrativas, foi possível perceber que a própria família recorre a alternativas como o pagamento de profissionais do sexo.

- O meu [filho] é homem então é diferente. Ele tem as necessidades mesmo dele. No caso das miúdas com Down é mais fácil. Elas não precisam dessa coisa de corpo e sexo. É uma questão fisiológica mesmo, no caso do meu filho, contratamos uma profissional certa vez. Era preciso. (Mãe 7)

Outro reflexo da diferença de como as famílias e as instituições lidam com a sexualidade de mulheres e homens com SD diz respeito à possibilidade de envolvimentos amorosos. Também com base em preconceitos capacitistas, mães e profissionais participantes da pesquisa disseram que pessoas com SD só podem namorar/casar entre elas. Nesta lógica, que por óbvio está completamente equivocada, levanta-se o problema de que se permite, ou melhor, se tolera que os homens tenham vida sexual ativa, mas suas parceiras “naturais”, as mulheres com SD, estão proibidas de conhecerem seus corpos.

A negação da importância das mulheres com SD serem donas e responsáveis pelos seus próprios corpos foi quase uma unanimidade entre as participantes da pesquisa. Tal postura ultrapassou até mesmo o que a literatura havia apontado (SHILDRICK, 2012SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality. London: Palgrave Macmillan, 2012.). As mães não se mostram confortáveis nem mesmo com a apresentação de temas como prevenção de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis para mulheres com SD. Os depoimentos dão conta de que muitas vezes as profissionais das instituições entendem a necessidade de que as mulheres com SD tenham conhecimento sobre seus corpos, mas as famílias são contra.

- A gente já tentou ter aulas de educação sexual, mas não estava a resultar. É muita coisa para a cabeça delas [mulheres com SD]. Só piorava. Agora evitamos o assunto. (Informante 8)

- Sei que isso pode fazer com que ela seja violentada e nem saiba o que se passa, mas sinceramente a miúda não tem, assim… capacidade para entender. É melhor nem falar, pode, se calhar, despertar o que não precisa. (Mãe 15)

A discussão sobre a sexualidade das mulheres com Síndrome de Down é urgente e diretamente impactada pela maneira como a sociedade, aqui representada pelas mães e profissionais, vê o direito ao corpo por mulheres e homens com SD. Diversos estudos anteriores já mostravam a importância da interseccionalidade na discussão referente à inclusão de PcD (Nirmala EREVELLES, 2011EREVELLES, Nirmala. Disability and Difference in Global Contexts: Enabling a Transformative Body Politic. New York, N.Y: Springer, 2011. DOI: https://doi.org/10.1057/9781137001184
https://doi.org/10.1057/9781137001184...
), mas tal questão parece não ganhar espaço exatamente pelo determinismo de classificação social entre pessoas normais e anormais. Na presente pesquisa, ficou bem clara a necessidade de que sempre se tenha em conta a interseccionalidade no que diz respeito às mulheres com deficiência.

Sexualidade e o mundo adulto

A sexualidade já havia sido apontada como dispositivo de fronteira entre o normal e o anormal (Nádia MEINERZ, 2010MEINERZ, Nádia. “Corpo e outras (de)limitações sexuais: uma análise antropológica da revista Sexuality and Disability entre os anos de 1996 e 2006”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 72, 2010.). Na pesquisa, tal questão ficou confirmada e adicionalmente posso afirmar que a sexualidade também estabelece fronteiras entre o mundo infantil e o adulto. Sendo assim, ao negar a sexualidade das mulheres com Síndrome de Down, aprisionam-se, de maneira deliberada, tais mulheres na infância. Trata-se de um processo retroalimentado: as mulheres com SD não podem ter desejos sexuais porque são crianças, mesmo que não o sejam; e como são impedidas de terem vida sexual ativa, são vistas por suas mães, e por grande parte da sociedade, como eternas crianças ou, como foi dito por muitas entrevistadas, como “miúdas que nunca crescem”.

- Ela não é adulta. Isso [ter uma vida sexual ativa] é só uma das coisas que ela não faz e que são coisas de adulto. (Mãe 5)

- Sexo é pra pessoas adultas. Ela é uma miúda. (Mãe 4)

Um dos rituais da vida adulta que é negado às mulheres com Síndrome de Down é a maternidade. Sendo a exigência da procriação vista como centro da vida feminina adulta (ROSENEIL et al., 2020ROSENEIL, Sasha; CROWHURST, Isabel; HELLESUND, Tone; SANTOS, Ana Cristina; STOILOVA, Mariya. The Tenacity of the Couple-Norm. Intimate Citizenship Regimes in a Changing Europe. UCL Press, 2020. p. 3-33. Livro publicado em regime de Open Access. Disponível em https://www.uclpress.co.uk/products/166273#.
https://www.uclpress.co.uk/products/1662...
), fica claro, nos depoimentos, que tal questão é um ponto muito importante na vida das mulheres com SD. Não sendo as mulheres com SD consideradas donas de seus corpos, é imediato perceber que lhes é vedada a possibilidade ou mesmo a expressão do desejo de ser mãe. Muitas entrevistadas disseram que suas filhas verbalizam que querem ser mães, mas, para elas, nas palavras da Mãe 4, isso é um “sonho impossível” ou “um delírio de quem não sabe o que está falando”. Nesta questão, é importante trazer a reflexão feita por Garland-Thomson (2019) de que, enquanto, para muitas mulheres, a maternidade é uma imposição, para as mulheres com deficiência é uma proibição. Mãe? Claro que não. Ela não pode cuidar nem dela mesma (Mãe 8).

Mintz (2011MINTZ, Susannah. “Invisible Disability: Georgina Kleeg’s Sight Unseen”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies. Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 69-90.) também deu importante contribuição para a análise desta questão ao afirmar que os teóricos dos Estudos Feministas da Deficiência devem denunciar que as críticas feministas ao mito da mulher como objeto sexual e como mãe ignoram as mulheres com deficiência, que são tidas como assexuadas e inférteis. Alinho-me, portanto, com autoras como Shildrick (2019SHILDRICK, Margrit. “Algumas reflexões sobre cidadania sexual e mulheres com deficiência”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima. Coimbra: Almedina, 2019.), que acreditam ser mandatório que o feminismo esteja envolvido com as questões relativas às mulheres com deficiência.

Quero fazer aqui a observação de que as mesmas mães que naturalizam o impedimento de uma vida sexual ativa para as mulheres com Síndrome de Down lamentaram imensamente que as suas filhas não pudessem ter filhos. Segundo elas, assim “não se pode ser uma mulher completa” (Mãe 4), sendo que, desse modo, não podem lhes dar netos, fato este que é muito lamentável na visão das entrevistadas.

Por fim, um ponto que merece novos esforços de pesquisa com um foco mais específico diz respeito à tentativa das mães de ocultarem a existência de mulheres com SD homossexuais. A literatura já tinha apontado que a heteronormatividade é vista como a única possibilidade para as PcD (SHILDRICK, 2012SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality. London: Palgrave Macmillan, 2012.). Somente uma das profissionais entrevistadas mostrou-se atenta à existência de mulheres homossexuais dentre as utentes da instituição. Sei que algumas das miúdas gostam de miúdas. Eu sei, mas não falo porque sei que as famílias não aceitam. Então, tento ajudar como posso (Informante 6). Outra profissional entrevistada revelou que uma das utentes da instituição é homossexual e que a família nega, diz que ela não tem condições nem mesmo de saber o que é isso. Em outros momentos, em diferentes entrevistas, foi possível perceber que a orientação sexual das mulheres com SD é um tema que nem mesmo se faz presente no imaginário das famílias.

Vivências de violência por mulheres com SD

Ainda no que diz respeito aos reflexos da sociedade patriarcal na vivência da deficiência por mulheres que têm o direito aos seus corpos negado, não se pode deixar de refletir sobre a questão da violência sexual. Sobre este ponto, Goodley (2011GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction. London: Sage, 2011.) já havia afirmado que as mulheres com deficiência ocupam um local específico da exclusão que passa pelo fato de sofrerem muito mais abusos sexuais se comparadas com os homens com deficiência. Ainda que com alguma resistência, por medo de estarem se expondo em demasia, muitas mães relataram que suas filhas já sofreram violência sexual em algum momento de suas vidas, comumente já mesmo na infância.

Algumas mães disseram que se sentem culpadas pela violência sexual sofrida pelas filhas, o que, mais uma vez, mostra a atuação da opressão patriarcal. Comumente tem-se a culpabilização das mulheres vítimas de violência sexual. No caso das mulheres com Síndrome de Down, a culpa recai principalmente sobre as mães. Importante o esclarecimento de que esta visão tem três pontos com raiz na linha abissal promovida pelo patriarcado: 1) ao culpar as mães, reforça-se que a mulher com trissomia do 21 não é dona de seu próprio corpo e precisa, portanto, de outra pessoa para protegê-la; 2) recai somente na mãe a culpa por não proteger a sua filha, ficando o pai isento da cobrança social. Aqui cabe a observação de que, logicamente, culpabilizar também os pais não resolveria a questão; 3) obviamente, o último ponto diz respeito diretamente à absurda visão de que a vítima tem culpa, e não o agressor.

- Ela não sabe o que faz. Eu que tinha que ter defendido. (Mãe 8)

- Se calhar ela disse que queria. E nem sabe. Eu me sinto mal com isso. (Mãe 4)

A invisibilização da violência sexual sofrida por mulheres com deficiência (PASSOS; TELLES; OLIVEIRA, 2019PASSOS, Regina; TELLES, Fernanda; OLIVEIRA, Maria. “Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência”. Saúde Debate, v. 43, número especial 4, p. 154-164, 2019. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-11042019S413.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S41...
) ficou clara no que tange às mulheres com Síndrome de Down. Muitas mães, nomeadamente as que falaram que se sentem culpadas pelas violências sofridas por suas filhas, disseram que preferem não tocar no assunto. As profissionais das instituições afirmaram que já souberam de episódios nos quais as famílias e as instituições decidiram não denunciar casos de assédio ou mesmo de estupro para não levantar tais questões.

Dois pontos apresentados no estudo de Bumiller (1990BUMILLER, Kristin. “Fallen Angels: The Representation of Violence Against Women in Legal Culture”. International Journal of the Sociology of Law, Londres, Nova Iorque, n. 18, p. 125-142, 1990.) foram centrais nos relatos sobre violência sexual contra mulheres com Síndrome de Down: a culpabilização da vítima e o descrédito de crimes de estupro que são cometidos por pessoas próximas.

- Elas [mulheres com SD] muitas vezes não sabem portar-se [...] E então muita coisa acontece. São interpretadas da maneira errada por alguns gajos e, se calhar, aí pode existir crime sexual. (Mãe 7)

- Essa cena [crime sexual] acontece assim com pessoas desconhecidas. Já vi miúdas com Down a falar que pai e irmão fizeram algo assim. É muito da cabeça delas. (Mãe 15)

- Aqui sempre temos que apurar quando vem esse tipo de denúncia. Para as famílias é difícil. Julgam e culpam as miúdas. Principalmente quando o agressor é família. (Informante 4)

O último depoimento levanta uma questão importante, relativa aos crimes de violência sexual. Existem tanta descrença e culpabilização das vítimas que as denúncias são esvaziadas, não sendo apuradas a contento. Sendo assim, tem-se impunidade e são desencorajadas novas denúncias.

Outro tipo de violência que foi citada e muitas vezes até mesmo naturalizada pelas participantes da pesquisa foi a esterilização involuntária das mulheres com Síndrome de Down. É importante notar que, na pesquisa, foram as mães de homens com SD que tocaram em tal assunto e defenderam a esterilização, não de seus filhos, mas das mulheres com SD. Esses depoimentos me fazem retomar, de maneira urgente, o questionamento de Régis (2013RÉGIS, Hebe. Mulheres com deficiência intelectual e a esterilização involuntária: de quem é esse corpo? 2013. (Dissertação de Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/123020/323929.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em 29/07/2023.
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/ha...
): “de quem é esse corpo?”. Certamente, não é das próprias mulheres com SD. Trata-se de um corpo público sobre o qual quase todo mundo pode opinar e, ao mesmo tempo, é um corpo que deve ser escondido, infantilizado e visto como assexuado.

- Se calhar, o melhor era impedir que as miúdas [com SD] pudessem gerar. Elas não sabem portar-se. (Mãe 3)

- Elas [as mulheres com SD] são sempre miúdas. Não faz sentido pensar que elas podem ter bebés. É melhor que isso fique resolvido de maneira médica. (Mãe 6)

Para fechar a análise, é preciso destacar que os depoimentos apresentados, quase que em sua totalidade, evidenciaram que o capacitismo, com base em um padrão corponormativo, posiciona as pessoas com deficiência como incapazes, opera por meio da naturalização de que mulheres com deficiência são incapazes.

Considerações finais

Diante do que foi apresentado, fica claro que se tem um longo caminho quando se trata do direito das mulheres com Síndrome de Down aos seus corpos. O resultado do descaso com tal questão são mulheres interditas de suas sexualidades. Na perspectiva das participantes da pesquisa, a discussão sobre cidadania íntima sequer parece ter lugar quando se fala das mulheres com SD.

Por fim, gostaria de enfatizar que é urgente que os movimentos feministas enxerguem as mulheres com deficiência. No que diz respeito ao direito ao próprio corpo, tal grupo tem diferenças e particularidades que vêm sendo sistematicamente deixadas de fora das agendas feministas. A questão do impedimento à maternidade, a negação do acesso à informação sobre sexualidade e a violência sexual são alguns dos pontos que têm que ser debatidos com a presença de mulheres com deficiência nos movimentos feministas.

Referências

  • BARBOSA, Maria; MELLO, Marília. “A distopia de uma política criminal punitivista frente aos crimes de estupro”. Direito Público, v. 19, n. 103, p. 385-413, 2022. Disponível em https://doi.org/10.11117/rdp.v19i103.6627
    » https://doi.org/10.11117/rdp.v19i103.6627
  • BAUER, Martin. “A análise de conteúdo clássica: uma revisão”. In: BAUER, Martin; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático Petrópolis: Vozes, 2002. p. 189-217.
  • BUMILLER, Kristin. “Fallen Angels: The Representation of Violence Against Women in Legal Culture”. International Journal of the Sociology of Law, Londres, Nova Iorque, n. 18, p. 125-142, 1990.
  • EREVELLES, Nirmala. Disability and Difference in Global Contexts: Enabling a Transformative Body Politic New York, N.Y: Springer, 2011. DOI: https://doi.org/10.1057/9781137001184
    » https://doi.org/10.1057/9781137001184
  • ESTEVES, Mafalda; SANTOS, Ana Cristina; SANTOS, Alexandra. “Zonas de Liberdade LGBTI+? Práticas e Gramáticas para uma intervenção profissional inclusiva com crianças e jovens LGBTI+”. Ex æquo, Lisboa, n. 44, p. 145-161. 2021. DOI: https://10.22355/exaequo.2021.44.10.
    » https://10.22355/exaequo.2021.44.10.
  • GARLAND-THOMSON, Rosemarie. “Integrating Disability, Transforming Feminist Theory”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 13-47.
  • GARLAND-THOMSON, Rosemarie. “Reconfigurar, Repensar, Redefinir: Estudos Feministas da Deficiência”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima Coimbra: Almedina, 2019. p. 47-78.
  • GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction London: Sage, 2011.
  • MEINERZ, Nádia. “Corpo e outras (de)limitações sexuais: uma análise antropológica da revista Sexuality and Disability entre os anos de 1996 e 2006”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 25, n. 72, 2010.
  • MINTZ, Susannah. “Invisible Disability: Georgina Kleeg’s Sight Unseen”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 69-90.
  • PASSOS, Regina; TELLES, Fernanda; OLIVEIRA, Maria. “Da violência sexual e outras ofensas contra a mulher com deficiência”. Saúde Debate, v. 43, número especial 4, p. 154-164, 2019. Disponível em https://doi.org/10.1590/0103-11042019S413
    » https://doi.org/10.1590/0103-11042019S413
  • PLUMMER, Ken. Intimate Citizenship: private decisions and public dialogues Montreal & Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2003.
  • RÉGIS, Hebe. Mulheres com deficiência intelectual e a esterilização involuntária: de quem é esse corpo? 2013. (Dissertação de Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/123020/323929.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 29/07/2023.
    » https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/123020/323929.pdf?sequence=1&isAllowed=y
  • ROSENEIL, Sasha; CROWHURST, Isabel; HELLESUND, Tone; SANTOS, Ana Cristina; STOILOVA, Mariya. The Tenacity of the Couple-Norm. Intimate Citizenship Regimes in a Changing Europe UCL Press, 2020. p. 3-33. Livro publicado em regime de Open Access. Disponível em https://www.uclpress.co.uk/products/166273#
    » https://www.uclpress.co.uk/products/166273#
  • SANTOS, Ana Cristina. “Introdução”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima Coimbra: Almedina, 2019.
  • SHILDRICK, Margrit. “Algumas reflexões sobre cidadania sexual e mulheres com deficiência”. In: SANTOS, Ana Cristina; FONTES, Fernando; MARTINS, Bruno; SANTOS, Ana Lúcia (Orgs.). Mulheres, Sexualidade, Deficiência: Os Interditos da cidadania íntima Coimbra: Almedina, 2019.
  • SHILDRICK, Margrit. Dangerous Discouses of Disability, Subjectivity and Sexuality London: Palgrave Macmillan, 2012.
  • SIEBERS, Tobin. Disability Theory Michigan: The University of Michigan Press, 2008.
  • THOMAS, Carol. Female Forms: Experiencing and understanding disability Philadelphia: Open University Press, 2008.
  • WILKERSON, Abby. “Disability, sex, radicalism and political Agency”. In: KIM, Hall. Feminist Disability Studies Indiana: Bloomington and Indianapolis, 2011. p. 193-217.
  • 1
    A escolha por utilizar o termo deficientizados está em linha com a proposta da perspectiva não médica da deficiência. Aqui, assumo a perspectiva biopsicossocial, na qual a deficiência se inscreve como resultado de um sistema de opressão.
  • 2
    Nesta pesquisa, o termo capacitista é utilizado como sinônimo de preconceito ou discriminação contra pessoas com deficiência.
  • 3
    Rui Machado, ativista dos direitos das pessoas com deficiência, cocriador do MovimentoSim, nós fodemos; membro da comissão coordenadora dos (d)Eficientes Indignados e da direção do Centro de Vida Independente em Portugal. Palestra intitulada “Deficiência e Sexualidade” no Simpósio IncomodArte: Deficiência e sociedade. Lisboa, Portugal, 2018.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    FARIA, Marina Dias de. “De quem é esse corpo? A sexualidade de mulheres com Síndrome de Down”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 1, e90414, 2024
  • Financiamento:

    A presente pesquisa foi realizada como financiamento de bolsa de investigação atribuída pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia proveniente do Orçamento de Estado e do orçamento comunitário através do Fundo Social Europeu (FSE) e do Programa Por Centro
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2022
  • Revisado
    15 Ago 2023
  • Aceito
    22 Set 2023
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br