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Estudo das condições de reprodução social de graduandos de enfermagem de duas universidades paulistas

Resumo

Objetivo:

Identificar características de reprodução social das famílias de graduandos de enfermagem.

Método:

Estudo de abordagem quantitativa, transversal descritivo, realizado em dois cursos de bacharelado em enfermagem, um público e um privado, no estado de São Paulo.

Resultados:

Participaram 285 estudantes, sendo 195 do curso público e 90 do privado, que responderam a um questionário para classificação dos perfis de reprodução social. Foram identificados quatro grupos com condições sociais distintas. Embora a maior parte das famílias tivesse condições estáveis de vida, a porcentagem de famílias com precarização nas condições de trabalho e de vida não era desprezível.

Conclusão:

A análise da reprodução social das famílias dos graduandos dos dois cursos expôs gradientes de estabilidade compatíveis com estratos sociais intermediários.

Descritores:
Estudantes de Enfermagem; Classe Social; Condições Sociais; Educação Superior

Abstract

Objective:

To identify the social reproduction characteristics of nursing undergraduates.

Method:

A quantitative descriptive cross-sectional study conducted in two undergraduate degree courses in nursing, one public and one private, in the state of São Paulo.

Results:

There were 285 students who participated, with 195 from the public university and 90 from the private one, who answered a questionnaire to classify social reproduction profiles. Four groups with different social conditions were identified. Although most families had stable living conditions, the percentage of families with poor working and living conditions was not negligible.

Conclusion:

The analysis on the social reproduction of the families of undergraduate students of the two courses exposed stability gradients which are compatible with intermediate social strata.

Descriptors:
Students, Nursing; Social Class; Social Conditions; Education, Higher

Resumen

Objetivo:

Identificar características de reproducción social de familias de estudiantes de enfermería.

Método:

Estudio cuantitativo, transversal, descriptivo, realizado en dos cursos de pregrado en enfermería, uno público y otro privado, en el estado de São Paulo. Resultados: Participaron 285 estudiantes, 195 del curso público y 90 del curso privado, quienes respondieron un cuestionario para clasificar los perfiles de reproducción social. Se identificaron cuatro grupos con diferentes condiciones sociales. Aunque la mayoría de las familias tenían condiciones de vida estables, el porcentaje de familias con condiciones de trabajo y de vida precarias no resultó despreciable.

Conclusión:

El análisis de la reproducción social de las familias de los estudiantes de los dos cursos expuso gradientes de estabilidad compatibles con estratos sociales intermedios.

Descriptores:
Estudiantes de Enfermería; Clase Social; Condiciones Sociales; Educación Superior

INTRODUÇÃO

Os cursos de nível superior, pelo menos grande parte deles, não consideram a heterogeneidade das condições sociais dos graduandos; portanto, planejam o ensino com base no princípio da homogeneidade do corpo discente, assim considerado devido à sua opção por um mesmo curso e por ter sido submetido a um filtro seletor semelhante - o exame vestibular. No entanto, a origem social está diretamente associada à trajetória escolar(11. Massi L, Muzzeti LR, Suficier DM. A pesquisa sobre trajetórias escolares no Brasil. Rev Ibero Am Estudos Educ. 2017;12(3):1854-73.).

Com a implementação de diretrizes das políticas federais de inclusão, contidas no Plano Nacional de Educação, houve aumento do número de ingressantes que fazem parte de grupos historicamente excluídos do ensino superior. Como decorrência, observa-se aumento da diversidade social, identificada por análises de questionários socioeconômicos, que passaram a ser aplicados sistematicamente a ingressantes e concluintes(22. Ristoff D. O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação. Avaliação (Campinas). 2014;19(3):723-47.).

A sistematização desses resultados tem permitido realizar estudos de identificação de perfis sociais dos estudantes de graduação, por meio de dados demográficos e socioeconômicos, que os classificam em estratos sociais(33. Palazzo J, Gomes CA. Origens sociais dos futuros educadores: a democratização desigual da educação superior. Avaliação (Campinas). 2012;17(3):877-98.). Alguns estudos relacionaram variáveis socioeconômicas com a escolha dos cursos/carreira e com o desempenho acadêmico(11. Massi L, Muzzeti LR, Suficier DM. A pesquisa sobre trajetórias escolares no Brasil. Rev Ibero Am Estudos Educ. 2017;12(3):1854-73.,44. Lima Junior P, Ostermann F, Rezende F. Análise dos condicionantes sociais do sucesso acadêmico em cursos de graduação em física à luz da sociologia de Bourdieu. Ens Pesqui Educ Ciênc. 2013;15(1):113-29.), tornando visíveis diferenças sociais do conjunto dos estudantes do ensino superior e suas implicações no processo de formação.

Visto que as condições sociais dos estudantes estão na base de sua formação, é imprescindível reconhecê-las para uma avaliação das contradições do processo ensino-aprendizagem como ponto de partida para organização e implementação de mudanças curriculares que promovam práticas educativas emancipadoras(55. De Sordi MRL, Malvazi MMS. As duas faces da avaliação: da realidade à utopia. Rev Educ PUC (Campinas). 2004;17:105-15.).

As condições sociais dos estudantes são determinadas pela classe social à qual pertencem e têm como consequência as diversas e desiguais condições de inserção no trabalho, que resultam em desiguais possibilidades de acesso aos bens socialmente produzidos, ou seja, em desiguais condições de vida. As relações entre os sujeitos, portanto, são relações entre classes sociais e a reprodução da vida social se faz por meio da reprodução e manutenção dessas classes(66. Viana N, Soares CB, Campos CMS. Reprodução social e processo saúde-doença: para compreender o objeto da Saúde Coletiva. In: Soares CB, Campos CMS, organizadoras. Fundamentos de saúde coletiva e o cuidado de enfermagem. Barueri: Manole; 2013. p. 107-42.).

A partir dessas considerações, tomou-se como pressuposto que incluir estudantes de curso privado no estudo favoreceria maior diversidade de características de reprodução social.

O objetivo do estudo foi identificar características de reprodução social das famílias de graduandos de enfermagem.

MÉTODO

Desenho do estudo

Trata-se de um estudo de abordagem quantitativa, transversal descritivo.

Cenário

O estudo foi realizado em dois cursos de bacharelado em enfermagem. Intencionalmente, um deveria ser público no município de São Paulo, que passamos a chamar de Curso da Capital (CC), e outro privado, do interior do estado de São Paulo, o qual denominamos Curso do Interior (CI). Vale ressaltar que essas instituições são universidades com rigoroso critério de seleção para ingresso.

Coleta de dados

Foi realizada por meio de questionário, aplicado para identificar as condições de reprodução social dos estudantes de enfermagem. Tal questionário foi elaborado a partir do Índice de Reprodução Social (IRS), instrumento utilizado em contextos diversos(77. Arruda MSB, Soares CB, Trapé CA, Cordeiro L. Crackland: beyond crack cocaine. Soc Med. 2017;11(1):8-17.), de acordo com características de reprodução social dos indivíduos e famílias, nas dimensões da produção (inserção no trabalho) e do consumo (acesso aos bens produzidos socialmente).

O IRS é composto pela identificação do responsável pela família e por um conjunto de variáveis que avaliam a dimensão da produção, relacionadas ao trabalho dos responsáveis: curso preparatório para o trabalho, classificação da ocupação; e a dimensão do consumo, cujas variáveis estão relacionadas às condições de vida das famílias: propriedade da residência onde mora o responsável, se recebe conta de água, luz, IPTU, acesso a serviço público de esgoto, se algum membro da família tem como atividade de lazer a ida a cultos e número de cômodos para dormir.

A classificação da ocupação dos responsáveis foi feita pelas pesquisadoras a partir da descrição detalhada da função do responsável pelos respondentes em relação à atividade desempenhada e ao vínculo empregatício, partindo da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO)(88. Brasil. Ministério do Trabalho e do Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações Internet . Brasília; 2018 citado 2018 abr. 15 . Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf
http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/h...
)
.

Na CBO, ocupações como médicos, dentistas, professores de ensino superior, advogados, chefes e encarregados de sessão, diretores e empresários fazem parte do conjunto de ocupações de planejamento e organização. No grupo das ocupações qualificadas na execução, estão técnicos em análise de dados, contabilidade e enfermagem. Entre as semiqualificadas, estão os auxiliares de enfermagem, vendedores de loja, cozinheiros e cabeleireiros. Entre as não qualificadas na execução, estão repositores de lojas ou supermercados, comerciantes ambulantes, pintores de parede e frentistas. Há ainda as ocupações mal definidas, que não se enquadram em nenhum dos grupos de ocupações definidos pela CBO.

Para além das questões que permitiram a classificação das famílias, foi acrescentada pergunta para identificar se os graduandos recebiam auxílios das universidades.

Análise e tratamento dos dados

A caracterização das condições de reprodução social das famílias foi realizada por meio da análise de variáveis e pela somatória de pontos atribuídos a essas variáveis. O IRS, portanto, varia em função dos escores obtidos.

Esses escores classificam as famílias em quatro grupos sociais, com características de reprodução social distintas, partindo do Grupo I (GI), com maiores pontuações na análise das variáveis e, portanto, com condições mais estáveis de trabalho e, consequentemente, mais estabilidade nas condições de vida, até as condições mais precárias, com as menores pontuações, encontradas no Grupo IV (GIV). O instrumento utilizado identifica a heterogeneidade desses grupos e expõe os gradientes de estabilidade, caracterizando estratos sociais no interior de cada um dos quatro grupos sociais.

As informações coletadas foram organizadas num banco de dados construído com a ferramenta Excel®; foi gerado o IRS de cada família e sua classificação no grupo social correspondente ao valor alcançado. Na sequência, os dados foram analisados por meio de estatística descritiva.

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Curso da Capital, com parecer favorável sob n. 1.075.039, em 18 de maio de 2015; com base nesse parecer consubstanciado, o Curso do Interior autorizou a realização da pesquisa. Seguiu os preceitos da Resolução n. 466/12, do Conselho Nacional de Saúde, sobre pesquisas com seres humanos. O convite para participação no estudo foi feito pelas pesquisadoras a todos os estudantes presentes em sala de aula nos dias de coleta de dados; os que aceitaram participar assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após receberem todas as orientações.

RESULTADOS

A coleta de dados aconteceu entre agosto e dezembro de 2015, nas duas Universidades, por meio de questionário. No CC, estavam matriculados 280 estudantes e participaram da pesquisa 207 deles. No entanto, 12 questionários foram excluídos por não conterem todas as respostas solicitadas. No CI, eram 125 estudantes matriculados; participaram da pesquisa 96 deles, e seis foram excluídos por falhas no preenchimento.

Dessa forma, participaram 285 estudantes, o que corresponde a 70,4% de todos os graduandos matriculados em ambas as Instituições. Dos 285 respondentes, 195 estudantes eram do CC e 90 do CI, 68,4% e 31,6%, respectivamente.

A população de 285 graduandos de enfermagem está caracterizada demograficamente na Tabela 1.

Tabela 1
Série, idade e sexo dos respondentes, por Instituição de Ensino Superior - São Paulo, SP, Brasil, 2015.

Observam-se na tabela acima a predominância do sexo feminino, esperada em cursos de graduação de enfermagem, a idade corresponde à faixa etária esperada nos cursos de graduação e a maior participação de estudantes da primeira série.

A aplicação do IRS identificou quatro grupos com condições sociais distintas (GI, GII, GIII, GIV), apresentados na Tabela 2.

Tabela 2
Grupos sociais, de acordo com Instituição de Ensino Superior - São Paulo, SP, Brasil, 2015.

A distribuição das famílias dos estudantes nos quatro grupos sociais foi proporcionalmente semelhante nas duas instituições de ensino, o que expressa condições sociais semelhantes. Nas duas instituições, a maioria das famílias foi classificada no GI, o percentual de famílias classificadas no GII do CC foi duas vezes menor do que no GI e, no CI, o percentual de famílias do GII foi 2,5 vezes menor do que o percentual de famílias no GI. Nos grupos GIII e GIV, das duas instituições, os percentuais foram baixos. Os percentuais dos grupos GIII e GIV do CC somados correspondem a 9,7% do total de famílias, enquanto no CI a soma dos percentuais foi 8,9%.

Os resultados nas tabelas serão apresentados nos quatro grupos sociais (GI, GII, GIII e GIV), mesmo quando o número de representantes for pequeno, para contemplar a heterogeneidade social encontrada na população estudada.

As pessoas reconhecidas pelos estudantes como responsáveis por suas famílias estão apresentadas na Tabela 3.

Grande parte dos estudantes do CC (87,7%) responderam que moravam com o responsável pelo domicílio. A mesma resposta foi dada por 96,7% do CI. Nos quatro grupos sociais do CC, os maiores percentuais de responsáveis pelas famílias foram de pais, enquanto no CI esse percentual foi maior apenas no GI. Dentre os responsáveis pelas famílias do CI, houve predomínio de mães no GII, de companheiros/cônjuges no GIII e no GIV destacaram-se as(os) próprias(os) graduandas(os), o que caracteriza um potencial de estabilidade menor em relação às famílias do CC.

Destacam-se as características ocupacionais dos responsáveis pelas famílias. Dentre estes, 63,2% tinham ocupações que exigiam curso preparatório de nível universitário, tecnológico ou técnico (dados não apresentados em tabela).

Quase a totalidade dos responsáveis com curso preparatório para o trabalho foi encontrada no Grupo I, tanto do CC (38,2%) quanto do CI (18,9%) (dados não apresentados em tabela).

A inserção do responsável pela família no momento da produção, o trabalho, variou de acordo com a qualificação e a especificidade da ocupação executada, descrita segundo a CBO(88. Brasil. Ministério do Trabalho e do Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações Internet . Brasília; 2018 citado 2018 abr. 15 . Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf
http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/h...
)
, determinando formas variadas de trabalhar, como mostra a Tabela 4.

Tabela 3
Relação de parentesco com responsáveis pelas famílias, por grupo social, de acordo com Instituição de Ensino Superior - São Paulo, SP, Brasil, 2015.
Tabela 4
Classificação da ocupação do responsável pelo domicílio, de acordo com grupo social e Instituição de Ensino Superior - São Paulo, SP, Brasil, 2015.

No conjunto de famílias dos estudantes, o predomínio foi de responsáveis com ocupações Semiqualificadas (32,6%), aquelas que não requerem curso técnico ou superior, mas apenas algum conhecimento prático específico. No CC, o percentual de responsáveis com ocupações Semiqualificadas foi de 33,8% e, no CI, 30%.

O percentual de responsáveis com ocupações Qualificadas no CC foi de 18,4% e no CI, foi de 26,6%. Já os percentuais de responsáveis com ocupações de Planejamento e Organização foram 22,5% no CC e 13,3% no CI; portanto, cerca de 40% dos responsáveis pelas famílias, tanto do CC quanto do CI, tinham ocupações que exigiam formação específica.

Ressaltamos também que 15,7% dos responsáveis estavam inseridos em ocupações que não exigiam preparo algum para o trabalho, aquelas classificadas como Não Qualificadas na execução, Serviços Gerais, Serviços de Escritório, Não Operacional/Apoio.

Os responsáveis com essas características de trabalho estavam distribuídos entre 13,3% das famílias de graduandos do CC e entre 21,1% das famílias de graduandos do CI.

A Tabela 5 a seguir apresenta características do domicílio onde vive o responsável pela família.

Tabela 5
Características do domicílio de acordo com grupo social e Instituição de Ensino Superior - São Paulo, SP, Brasil, 2015.

No conjunto de famílias dos dois cursos, predominaram aquelas que eram proprietárias de sua residência, com destaque para as famílias do GI, que também concentraram os domicílios maiores, com três ou mais dormitórios. Já no GII, o percentual de famílias proprietárias de suas residências foi 21,4% maior no CI, em comparação com o CC, que tem percentuais maiores de residências cedidas, alugadas e financiadas.

No que diz respeito à variável recebimento de IPTU, considerando-se a totalidade das famílias, no CC, 85,1% das famílias recebiam cobrança para pagamento desse imposto e no CI eram 91,1% das famílias. Enfatizamos que, no CC, as famílias que não recebiam IPTU estavam mais concentradas no GII (14,3%), o que guarda coerência com a característica da habitação - cedida ou alugada (dados não apresentados em tabela).

Com relação ao acesso oficial a serviços de infraestrutura - água, energia elétrica e esgoto - poucas foram as famílias que residiam em habitações sem acesso a algum desses serviços (7%), a maior parte delas classificadas no GIV. Esses dados indicam que os graduandos residem em áreas com acesso aos serviços de infraestrutura (dados não apresentados em tabela).

Dados referentes ao recebimento de bolsas ou auxílios pelo estudante revelaram que 64 graduandos do CI (71,1%) precisavam de algum subsídio para cursar a universidade, enquanto no CC foi encontrado um percentual de 53,8% (105) de graduandos que recebem algum tipo de bolsa ou auxílio. Do total de 165 benefícios, 24,2% (40) eram auxílio-moradia, 28,5% (47) eram auxílio-refeição e 6,6% (11), auxílio-transporte. Dentre os graduandos do CI, 35,5% (32) recebiam bolsas ou auxílios para o pagamento das mensalidades, 18,8% (17) faziam parte do Programa Universidade para Todos (PROUNI) e 5,5% (5) utilizavam o Programa de Financiamento Estudantil (FIES) (dados não apresentados em tabela).

DISCUSSÃO

As duas IES participantes utilizam processos de ingresso bastante seletivos, privilegiando estudantes que tiveram maior possibilidade de preparo para esse processo(99. Ristoff D; Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil. Perfil socioeconômico do estudante de graduação: uma análise de dois ciclos completos do Enade (2004 a 2009). Cad GEA Internet . 2013 citado 2018 out. 11 ;2(4). Disponível em: http://flacso.redelivre.org.br/files/2015/03/Caderno_GEA_N4.pdf
http://flacso.redelivre.org.br/files/201...
)
.

Pressupõe-se que os graduandos de enfermagem do estudo tenham condições sociais mais estáveis quando comparados a graduandos de enfermagem de outras instituições brasileiras de ensino superior.

Esse pressuposto se confirma, tanto pela identificação de pertencimento da maioria dos graduandos do estudo a grupos sociais de maior estabilidade social quanto pela comparação com os perfis socioeconômicos de uma amostra de concluintes de diversos cursos de enfermagem brasileiros, conforme resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) 2016(1010. Brasil. Ministério da Educação; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório síntese de área enfermagem. Brasília; 2016.).

Análises de 32.860 questionários do ENADE, respondidos por concluintes de cursos de enfermagem no Brasil, mostraram que 61,7% deles tinham renda familiar de até três salários mínimos; 38,8% eram os primeiros da família a concluírem o curso superior; 27,7% tinham pai ou mãe com nível superior ou pós-graduação completos; 27,9% dos graduandos trabalhavam semanalmente 40h ou mais; 71,6% cursaram o ensino médio em escola pública e 23,3% ingressaram por ação afirmativa ou de inclusão social(99. Ristoff D; Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior no Brasil. Perfil socioeconômico do estudante de graduação: uma análise de dois ciclos completos do Enade (2004 a 2009). Cad GEA Internet . 2013 citado 2018 out. 11 ;2(4). Disponível em: http://flacso.redelivre.org.br/files/2015/03/Caderno_GEA_N4.pdf
http://flacso.redelivre.org.br/files/201...

10. Brasil. Ministério da Educação; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório síntese de área enfermagem. Brasília; 2016.
-1111. Brasil. Ministério da Educação; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da educação superior 2015. Brasília; 2016.)
. Tais perfis são compatíveis com condições de trabalho e vida menos estáveis do que as que foram observadas nas famílias analisadas neste estudo.

A análise de variáveis relacionadas à inserção no trabalho das famílias estudadas revelou que as ocupações dos responsáveis não exigiam, majoritariamente, formação superior e não colocavam esses trabalhadores em posições hierárquicas superiores na organização do trabalho. Os responsáveis por essas famílias tinham ocupações de posição intermediária na classe trabalhadora, o que significa trabalhadores com menos possibilidades para negociar salários, submetidos à dinâmica que rege o mercado de trabalho que, geralmente, tem rendimentos compatíveis com a manutenção de gastos familiares imprescindíveis(1212. Santos JAF, Ribeiro LVF. Emprego, estratificação e desigualdade. Estud Av. 2016;30(87): 89-102.).

Soma-se a essa instabilidade a porcentagem maior de mulheres chefes de família, ou a própria graduanda, no GII do CI, que eram as mães, uma vez que a média das mulheres brasileiras recebe salários inferiores aos dos homens, como atesta relatório sobre desigualdade social no Brasil(1313. Oxfam Brasil. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras Internet . São Paulo: 2017 citado 2018 out. 11 . Disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/relatorio_a_distancia_que_nos_une.pdf
https://www.oxfam.org.br/sites/default/f...
)
. Domicílios chefiados por mulheres, portanto, refletem maior instabilidade nas condições de trabalho e de vida, o que foi observado neste estudo.

As condições de reprodução social dos estudantes estão nas bases de suas possibilidades de cursarem o ensino superior, como mostram estudos que relacionam condições objetivas de vida de estudantes e sua trajetória na universidade. Já no processo de opção pelo curso, observa-se que graduandos oriundos do ensino público tendem a optar por cursos menos valorizados socialmente e por carreiras com menor nível de competição em exames vestibulares, em função de maior chance de ingresso, em detrimento da valorização social da carreira(44. Lima Junior P, Ostermann F, Rezende F. Análise dos condicionantes sociais do sucesso acadêmico em cursos de graduação em física à luz da sociologia de Bourdieu. Ens Pesqui Educ Ciênc. 2013;15(1):113-29.,1414. Ferreira DM, Silva MEL. Condições objetivas e investimentos acadêmicos dos estudantes do ensino superior. Educ Soc. 2015;36(130):101-15.). Por outro lado, a maior parte dos estudantes com status socioeconômicos mais altos, que têm melhores condições de vida, procuram os cursos e as instituições de ensino superior mais prestigiadas socialmente(33. Palazzo J, Gomes CA. Origens sociais dos futuros educadores: a democratização desigual da educação superior. Avaliação (Campinas). 2012;17(3):877-98.).

Análise de dados de concluintes de medicina, em três ciclos do ENADE, mostrou que o percentual de famílias com renda mensal de mais de dez salários mínimos é cerca de seis vezes maior do que a média brasileira de famílias nessa faixa de renda(22. Ristoff D. O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação. Avaliação (Campinas). 2014;19(3):723-47.). Já entre os concluintes do curso de enfermagem em 2016, apenas 2,1% das famílias dos respondentes tinham renda de mais de dez salários mínimos(1111. Brasil. Ministério da Educação; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da educação superior 2015. Brasília; 2016.), muito abaixo do percentual nacional de famílias nessa faixa de renda.

O desempenho acadêmico dos graduandos também guarda relação com suas condições sociais(33. Palazzo J, Gomes CA. Origens sociais dos futuros educadores: a democratização desigual da educação superior. Avaliação (Campinas). 2012;17(3):877-98.-44. Lima Junior P, Ostermann F, Rezende F. Análise dos condicionantes sociais do sucesso acadêmico em cursos de graduação em física à luz da sociologia de Bourdieu. Ens Pesqui Educ Ciênc. 2013;15(1):113-29.,1414. Ferreira DM, Silva MEL. Condições objetivas e investimentos acadêmicos dos estudantes do ensino superior. Educ Soc. 2015;36(130):101-15.), confirmando a importância da identificação das características de reprodução social das famílias para a compreensão da trajetória acadêmica dos estudantes.

Os resultados deste estudo mostraram que os melhores cursos de enfermagem do país recebem estudantes de grupos sociais que têm alguma estabilidade, se comparados aos graduandos dos demais cursos de enfermagem do país.

A análise permitiu identificar nuances dessa estabilidade, expressas nas diversas condições de trabalho e de vida das famílias.

Na exemplaridade das condições de trabalho do GI, encontrou-se responsáveis pela família que desempenhavam ocupações de Planejamento e Organização, aquelas que requerem educação superior, mas também responsáveis que desempenhavam ocupações Qualificadas, para as quais a formação técnica é suficiente. Entre os responsáveis de famílias classificadas no GII, destacaram-se os com ocupações Semiqualificadas, aquelas cuja execução exige curso preparatório. No entanto, eles atuavam em ocupações não relacionadas com sua área de formação e, apesar de terem vínculos estáveis, em grande parte ocupavam cargos menos prestigiados no mercado de trabalho.

Vale ressaltar que, mesmo entre esses dois grupos sociais, que apresentam maiores gradientes de estabilidade, identificou-se responsáveis com ocupações que não exigiam preparo para o trabalho, as quais promovem às famílias maiores gradientes de instabilidade, tanto nas características de vínculos empregatícios quanto da remuneração e de outros benefícios advindos do trabalho.

Embora a maior parte das famílias dos graduandos de enfermagem deste estudo tenha condições mais estáveis de vida (GI e GII), não é desprezível a porcentagem de famílias com maior precarização nas condições de trabalho e de vida (GIII e GIV).

Portanto, o estudo permitiu identificar a heterogeneidade social dos grupos de estudantes, tanto internamente a cada grupo quanto entre os grupos sociais.

O estudo apresenta a limitação de ter sido realizado com estudantes de duas Universidades que encabeçam classificações das melhores do país. Para identificar características de reprodução social de estudantes de outros cursos de enfermagem, sugerimos estudos que tomem realidades distintas.

CONCLUSÃO

Embora a maior parte das famílias tenha sido classificada nos grupos de maior estabilidade social (GI e GII), o que seria mesmo esperado entre jovens que ingressaram nas Universidades deste estudo, a análise da reprodução social das famílias dos graduandos dos dois cursos, por meio do IRS, expôs gradientes de estabilidade compatíveis com estratos sociais intermediários.

O estudo demonstrou a dinamicidade que existe na realidade social, superando caracterizações mais estáticas encontradas em estudos que fragmentam a realidade em dados sociodemográficos descritos de forma isolada e independente.

Essa dinamicidade foi capturada pelo IRS, instrumento que permite a superação de classificações sociais elaboradas a partir de indicadores socioeconômicos e permite a identificação de características de estabilidade/instabilidade social, sempre condicionadas à dupla face indissociável do fenômeno - a vida das famílias dos graduandos de enfermagem.

O que permitiu identificar entre graduandos de enfermagem subgrupos dos estratos sociais de maior estabilidade nas condições de reprodução social (GI e GII) foi a sensibilidade do instrumento utilizado para a classificação social (IRS), que articula variáveis relacionadas às condições de trabalho e de vida, mostrando a relação dinâmica que há entre elas.

Este estudo traz desafios para a universidade no tocante ao reconhecimento dos perfis sociais dos estudantes dos diversos cursos, com vistas a identificar instabilidades sociais e elaborar políticas de fortalecimento, tanto as que aperfeiçoam aspectos das políticas afirmativas quanto as que promovem diretrizes para a permanência estudantil na universidade. Coloca também o desafio de transformar a formação acadêmica calcada historicamente na manutenção do status quo das elites.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2018
  • Aceito
    22 Ago 2019
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