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POLÍTICA INDUSTRIAL E DESINDUSTRIALIZAÇÃO NO BRASIL: INSPIRAÇÕES DE DAVID KUPFER AO DEBATE

INDUSTRIAL POLICY AND DEINDUSTRIALIZATION IN BRAZIL: DAVID KUPFER’S INSPIRATIONS TO THE DEBATE

RESUMO

O artigo discorre sobre os processos de especialização regressiva e desindustrialização precoce que acometem a estrutura produtiva do país, tendo como motivação as contribuições trazidas por David Kupfer às reflexões e proposições de políticas industriais e de inovação, tratadas em sua obra como meio para o desenvolvimento nacional, e não como um fim em si. À luz dessas reflexões, fazem-se conjecturas para o debate público sobre a retomada do desenvolvimento econômico por via da reindustrialização. A partir de uma breve introdução, o artigo se subdivide em três seções. A primeira, Especialização regressiva e desindustrialização precoce: Reflexões para o caso brasileiro, traz um diagnóstico do processo de perda de substância industrial na economia e seus desdobramentos; a segunda, Boom das commodities: Impactos no câmbio, nos termos de troca e na balança comercial da indústria brasileira, busca análise mais pormenorizada do problema da reprimarização da estrutura produtiva brasileira; a terceira, Considerações finais: Reflexões para a retomada da indústria e do desenvolvimento econômico, apresenta, à guisa de conclusão, contribuições para uma agenda de debates sobre as questões tratadas ao longo do artigo.

PALAVRAS-CHAVE:
Política industrial; desindustrialização; especialização regressiva; David Kupfer

ABSTRACT

This study aims to evaluate the processes of regressive specialization and early deindustrialization that affect the Brazilian productive structure. This research draws motivation from the contributions brought by David Kupfer to the reflections and propositions of industrial and innovation policies, which this study treated as a means for national development, rather than as an end in itself. In the light of these reflections, conjectures are made for the public debate on the resumption of economic development by reindustrialization. After a brief introduction, this study is divided into three sections. The first one, Regressive specialization and early de-industrialization: reflections on the Brazilian case, provides a diagnostic overview of the process of loss of industrial substance in the Brazilian economy and its consequences; the second one, Commodity boom: Impacts on the exchange rate, on the terms of trade, and on the trade balance of Brazilian industry, seeks a more detailed analysis of the problem of reprimarization of the Brazilian productive structure; and the third one, Final Considerations: reflections for the resumption of industry and economic development, describes, to conclude this study, contributions to an agenda of debates on the issues addressed throughout this research.

KEYWORDS:
Industrial policy; deindustrialization; regressive specialization; David Kupfer

INTRODUÇÃO

O artigo discorre sobre os processos de especialização regressiva e desindustrialização precoce que acometem a estrutura produtiva do país, tendo como motivação as contribuições trazidas por David Kupfer às reflexões e proposições de políticas industriais, de inovação e desenvolvimento nacional, em que sempre tomou as duas primeiras como meio para esta última. À luz dessas reflexões, inspiradas pelo empenho de Kupfer à uma agenda que rompesse com as amarras da dependência e atrofia do setor produtivo, fazem-se conjecturas para o debate público sobre o tema do desenvolvimento, que inexoravelmente passa por uma política de reindustrialização do país.

Na primeira seção, contextualiza-se o debate sobre a especialização regressiva e a desindustrialização precoce da economia brasileira, apresentando conceitos e dados que ilustram os argumentos. Na segunda seção, uma leitura sobre o papel do setor externo na estrutura produtiva brasileira é apresentada, discorrendo sobre algumas variáveis-chave para a compreensão dos fenômenos discutidos na primeira seção. Na terceira e última seção, à guisa de conclusão, é feito um esforço propositivo para uma agenda que considere a dimensão do país e suas especificidades para a retomada do crescimento com justiça social, sintetizando o propósito geral do artigo.

1. ESPECIALIZAÇÃO REGRESSIVA E DESINDUSTRIALIZAÇÃO PRECOCE: REFLEXÕES PARA O CASO BRASILEIRO

O Brasil passa por um longo processo de perda de substância industrial em sua estrutura produtiva. Este processo pôde ser mais claramente identificado nos anos 1990, embora seus condicionantes remontem aos anos 1980 com a crise da dívida, o esgotamento do modelo de substituição de importações, a reorientação do papel do Estado e a reestruturação produtiva liderada pelas empresas multinacionais naquela década, o que remodelou a divisão internacional do trabalho ao deslocar e segmentar unidades produtivas à países de baixa renda, sobretudo no continente asiático. Esses eventos, imbricados e operados em conjunto, resultaram em desequilíbrios macroeconômicos e deteriorações estruturais na economia brasileira, cujas consequências são sentidas e se agravam contemporaneamente.

David Kupfer deu contribuição fundamental à compreensão desses fenômenos ao traçar seu diagnóstico quando estes ocorriam. Sua tese de doutoramento, defendida em 1998 no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), já se debruçava sobre os padrões de competitividade da indústria brasileira à luz do duplo choque que esta sofrera nos anos 1990: o primeiro, decorrente da abertura comercial - ampla e abrupta - concomitante à desregulamentação econômica e redução da atuação estatal; o segundo, pela estabilização monetária advinda com o Plano Real, que impôs uma ancoragem cambial que pareou a moeda nacional ao dólar estadunidense, simultaneamente promovendo uma ampla indexação de preços.

O resultado foi um ambiente de competição desigual entre as indústrias nacionais e estrangeiras, com o coeficiente de importações industriais crescendo acelerada e constantemente. A relevância das cadeias globais de fornecimento foi ampliada neste período com a globalização dos mercados e dos fluxos de capitais. Impulsionadas pela crescente massa de recursos financeiros, as empresas transnacionais puderam expandir seus investimentos para além dos seus territórios, incrementar os fluxos de comércio e acelerar a inovação dos seus produtos e serviços com dispêndios crescentes em pesquisa e desenvolvimento. Os fluxos de investimento direto estrangeiro global cresceram da média anual de US$ 50 bilhões, nos anos 1970, para US$ 600 bilhões a partir dos anos 1990, e mais de US$ 1 trilhão a partir do início da primeira década do século XXI (UNCTAD, 2019UNCTAD - UNITED NATIONS ON TRADE AND DEVELOPMENT. World Investment Report, 2019. Genebra: UNCTAD, 2019. Disponível em Disponível em https://unctad.org/webflyer/world-investment-report-2019 . Acesso em: 1 out. 2021.
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; LACERDA, 2004LACERDA, A. C. Globalização e investimento estrangeiro no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.).

Houve uma expressiva integração entre as três dimensões citadas: investimentos, comércio e inovação. Atualmente, cerca de dois terços do comércio mundial são conduzidos por grandes empresas transnacionais, as mesmas que são responsáveis por grande parte das inovações (UNCTAD, 2019)UNCTAD - UNITED NATIONS ON TRADE AND DEVELOPMENT. World Investment Report, 2019. Genebra: UNCTAD, 2019. Disponível em Disponível em https://unctad.org/webflyer/world-investment-report-2019 . Acesso em: 1 out. 2021.
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. Numa segunda fase dessa ampliação das interdependências produtivas globais, os países em desenvolvimento (PED) tornaram-se atores do processo com a também crescente internacionalização das suas empresas, com destaque para a Coreia do Sul e a China.

A globalização representou, para estes países, uma oportunidade de inserirem-se como filiais das grandes cadeias transnacionais, especialmente aqueles com maior potencial de mercado interno. Por outro lado, os PED também vivenciaram um rápido processo de desnacionalização de suas empresas.

Nesse contexto, o Brasil se inseriu de maneira passiva e subordinada ao novo modelo de acumulação, especializando-se progressivamente na produção de commodities como meio de engatar-se às cadeias globais de valor. Esse fenômeno é descrito na literatura como especialização regressiva, visto que os segmentos que passaram a galgar espaço no produto interno bruto (PIB) estão voltados predominantemente à exportação de matérias-primas, produtos in natura, semiacabados ou semiprocessados, que carregam baixo valor agregado. (KUPFER, 2009KUPFER, D. Em busca do setor ausente. In: SICSÚ, J.; CASTELAR, A. Sociedade e economia: Estratégias de crescimento e desenvolvimento. Brasília, DF: Ipea, 2009.). Esses produtos têm como característica geral a homogeneidade (indiferenciação), são intensivos em trabalho e recursos naturais e seus produtores são tomadores de preços, cuja determinação se dá nas praças bursáteis internacionais.

Kupfer (1998KUPFER, D. Trajetórias da reestruturação da indústria brasileira após a abertura e estabilização. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.) ressalta que as empresas desse setor, dado o caráter altamente competitivo e globalizado de seu mercado, necessitam recorrer constante e intensivamente a novos métodos e processos de otimização produtiva e organizacional para reduzir seus custos e, assim, ampliar suas margens de lucro, visto as características de precificação. Estas também são compelidas a desenvolverem capacidades de antever a demanda futura para amenizar os impactos das oscilações de preços e quantidades na procura mundial, por se tratar de um mercado de alta volatilidade. Esse conjunto de fatores faz com que a incorporação de novas técnicas, insumos, maquinarias e ferramentas de produção, bem como modelos de gestão organizacional, sejam imprescindíveis para sua competitividade e sobrevivência a médio-longo prazo.

Explica-se assim a vantagem relativa que o setor de commodities apresenta quanto à assimilação da biotecnologia e das tecnologias da informação e comunicação (TICs), como o sensoriamento remoto, conectividade, internet das coisas, big data etc. É tanto pelas características do mercado quanto pelo aprofundamento das vantagens comparativas, enquanto estratégia de inserção externa, que o agronegócio brasileiro desponta em relação ao seu alinhamento com os novos paradigmas tecnológicos, referido como manufatura avançada ou indústria 4.0, conjugando rapidez informacional e otimização produtiva. Aplicadas ao agrobusiness, essa onda de inovações tem sido designada como agricultura digital ou agricultura 4.0.

Contudo, a incorporação desses artefatos da fronteira tecnológica no setor atua como contraforte da dependência externa, nos termos de uma leitura histórico-estruturalista: seus ganhos de produtividade reforçam a radicalização do usufruto das vantagens comparativas - que, diga-se, não se furta da ocupação extensiva de terras, muitas vezes ambientalmente predatória e socialmente violenta, ainda que high-tech. A implementação de uma agricultura digital não implica na superação da posição de subordinação à um mercado fortemente dominado por oligopólios globais, mantendo o país numa posição vulnerável dentro da divisão internacional do trabalho (DOWBOR, 2017DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Outras Palavras; Autonomia Literária, 2017.). A modernização produtiva e organizacional é uma condição de resiliência (e existência) frente à exogeneidade da determinação dos preços e quantidades. Soma-se a isso o fato de que o progresso técnico - fertilizantes, sementes, defensivos agrícolas e sistemas de TICs - estão patenteados por grandes corporações que centram boa parte de seus investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento nos países-sede, cabendo aos produtores nacionais a importação dessas tecnologias e o pagamento de royalties.

Alijado, ou insuficientemente integrado ao desenvolvimento de segmentos industriais baseados em ciência e difusores do progresso técnico, o avanço do setor de commodities corrobora para intensificar a desindustrialização precoce do país, na medida em que sorve a maior parte dos financiamentos e intentos produtivos, num processo que parte dos economistas denominam de doença holandesa. Esta se caracteriza por ser uma tendência à realocação dos investimentos em indústrias de baixo valor agregado ou de produtos não industrializados, em detrimento do setor manufatureiro de maior complexidade e encadeamentos produtivos (BRESSER-PEREIRA, 2010BRESSER-PEREIRA, L. C. Do antigo ao novo desenvolvimentismo na América Latina. Texto para discussão 274. EESP/FGV, nov. 2010.; OREIRO; FEIJÓ, 2010OREIRO, J. L.; FEIJÓ, C. A. Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro. Revista de Economia Política, v. 30, n. 32, abr./jun. 2010.). Evidentemente, não se trata de ojerizar o setor primário, de importância indiscutível, mas de compreender suas limitações frente às demandas de um país urbano, de grandes proporções territoriais e globalmente conectado aos padrões de consumo como o Brasil.

Segundo os intérpretes da doença holandesa, o aumento da demanda internacional por commodities provoca elevação nos seus preços, gerando superávit comercial para os países exportadores. Com o maior influxo de capitais internacionais decorrentes das receitas das exportações, a taxa de câmbio se valoriza, provocando a perda de competitividade da indústria doméstica, que se defronta com uma competição desigual em relação aos manufaturados importados. A associação deste fenômeno ao caso brasileiro tem gerado uma discussão sobre a “doença brasileira” e seus impactos para o câmbio, estrutura produtiva e balança comercial.

Soma-se a esse contexto o componente da valorização cambial como resultante de um processo de desarranjo do conjunto de políticas macroeconômicas, a exemplo dos juros domésticos, que superam a média internacional, sendo em si mais um fator pró-valorização. O processo de desindustrialização não significa apenas a substituição da produção nacional já existente por similares importados. Fundamentalmente, este processo restringe a expansão da capacidade produtiva nacional, seja pela transferência de recursos para indústrias de baixa intensidade tecnológica, seja pela diferença entre o efetivo crescimento da demanda por manufaturados nos mercados interno e externo e o seu verdadeiro potencial.

A Tabela 1 mostra como as indústrias classificadas como de baixa tecnologia ganharam espaço na estrutura industrial brasileira entre 2010 e 2018. Em termos de valor da transformação industrial, o segmento de média-alta tecnologia foi o que mais perdeu participação.

Tabela 1
Participação total das indústrias extrativa e de transformação a partir de variáveis selecionadas e da intensidade tecnológica: unidades industriais com cinco ou mais empregados, Brasil (em %)

A especialização regressiva pode ser entendida como um sintoma da desindustrialização precoce1 1 A desindustrialização natural ou positiva resulta da mudança do perfil de produção e consumo de um país após este atingir um determinado (e elevado) nível de renda per capita, se especializando no core da produção, isto é, em atividades mais sofisticadas, como as de concepção de novos produtos, engenharia, design etc. A desindustrialização precoce ou negativa é um processo indesejado de perda de participação relativa da indústria na produção doméstica e no emprego total sem que o país tenha atingido um nível elevado de renda per capita. , processo indesejável no qual a indústria de transformação: i) perde relevância em termos de participação no produto nacional, além de apresentar trajetória errática nos indicadores periódicos de produção2 2 Como os captados pela Pesquisa Industrial Mensal de Produção Física (PIM-PF), realizada pelo IBGE, e pelo indicador mensal de consumo aparente de bens industriais, calculado pelo Ipea. ; ii) perde participação relativa no contingente total de trabalhadores, sem que novos postos de trabalho associados à indústria sejam repostos no setor de serviços; e iii) manifesta constantes déficits em sua balança comercial, com crescente elevação do coeficiente de importação.

A produção industrial brasileira teve seu nível médio de 2021 praticamente equivalente ao de dez anos antes, média de 2009, período marcado pelos efeitos da crise subprime nos Estados Unidos. Ou seja, a indústria vive uma longa estagnação, e o País, um processo precoce de desindustrialização, com perda substancial de participação no PIB, atualmente apenas restrita a cerca de 10%, contra uma média internacional de 16%, bem abaixo do verificado em países como México (17,5%) e Coreia do Sul (27,6%).

A perda de relevância da indústria no PIB pode ser observada quando se compara o peso do valor adicionado bruto3 3 A soma do valor adicionado bruto dos quatro grandes setores definidos pelo IBGE — agricultura, indústria, serviços e setor público — mais os impostos sobre produtos, líquidos de subsídios, resultam no produto interno bruto (PIB). (VAB) da indústria de transformação no valor adicionado bruto total. Em 2004, o VAB da indústria de transformação chegou a ser 17,8% do VAB total, maior participação para o período 2002-2016, mas desde então passou a arrefecer continuamente, chegando a 12,5% em 2017 (Gráfico 1).

Gráfico 1
Participação relativa do VAB das Indústrias Extrativas e de Transformação no VAB Total (em valores correntes)

A especialização regressiva da economia nacional e sua orientação às commodities agropecuário-minerais não poderiam resultar senão na elevação do coeficiente de penetração dos importados (CPI), indicador que mede a participação dos produtos estrangeiros no consumo aparente nacional junto à elevação do coeficiente de insumo industrial (CII), que afere a participação dos insumos importados no total de insumos empregados pela indústria brasileira. Juntos, eles apontam para a própria desindustrialização precoce, já que tanto o CPI quanto o CII se situam acima do coeficiente de exportações da indústria (CEI), que afere a participação das exportações industriais no total da produção do setor, indicando que os produtos estrangeiros têm ganhado competitividade em relação aos nacionais (CNI, 2022)CNI - CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. Importância do mercado externo para a indústria cresce significativamente. Coeficientes de Abertura Comercial, ano 11, n. 1, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/coeficientes-de-abertura-comercial . Acesso em: 3 out. 2023.
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. A evolução desses coeficientes pode ser visualizada no Gráfico 2 4 4 O Coeficiente de Exportação mostra a importância do mercado externo para a produção da indústria. Quanto maior o coeficiente de exportação, maior é a importância do mercado externo para o setor. O Coeficiente de Penetração de Importações mostra a participação dos produtos importados no consumo aparente (a soma do valor da produção destinada ao mercado doméstico e das importações). Quanto maior o coeficiente de penetração, maior é a participação de importados no mercado interno. .

Gráfico 2
Coeficientes de abertura comercial (em %), indústria de transformação, 1996 a 2021 (a preços correntes)

Com o boom das commodities no início dos anos 2000, a pressão sobre o câmbio foi retomada num contexto de evolução positiva no consumo das famílias por ocasião do destravamento do crédito, da elevação real do salário-mínimo e das políticas públicas de redistribuição de renda. Esse novo quadro atuou para que parte importante da demanda vazasse ao exterior, frente a um parque produtivo cada vez mais incapaz de responder à expansão interna da demanda (CARNEIRO, 2018CARNEIRO, R. Navegando a contravento: Uma reflexão sobre o experimento desenvolvimentista do governo Dilma Rousseff. In: CARNEIRO, R.; BALTAR, P.; SARTI, F. Para além da política econômica. São Paulo: Editora Unesp, 2018.; HIRATUKA; SARTI, 2018HIRATUKA, C., SARTI, F. Desempenho recente da indústria brasileira no contexto de mudanças estruturais domésticas e globais. In: CARNEIRO, R.; BALTAR, P.; SARTI, F. Para além da política econômica. São Paulo: Editora UNESP, 2018.).

É a própria regressão da estrutura produtiva nacional que explica a elevada propensão a importar no Brasil: o coeficiente de penetração dos importados vai de 15% entre 2003 e 2009 para 21,2% em 2015, chegando a 22,8% em 2021 (CNI, 2022)CNI - CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. Importância do mercado externo para a indústria cresce significativamente. Coeficientes de Abertura Comercial, ano 11, n. 1, 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.portaldaindustria.com.br/estatisticas/coeficientes-de-abertura-comercial . Acesso em: 3 out. 2023.
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. O coeficiente de insumos industriais importados se eleva continuamente, passando de 18,5% em 2008 para 21,4% em 2021. Como corolário, é inevitável a fragilização dos elos industriais, impactando sobremaneira os encadeamentos regionais e a própria dinâmica socioeconômica das regiões assentadas na produção industrial, num efeito cumulativo deletério.

2. BOOM DAS COMMODITIES: IMPACTOS NO CÂMBIO, NOS TERMOS DE TROCA E NA BALANÇA COMERCIAL DA INDÚSTRIA BRASILEIRA

Os anos 2000 se caracterizaram por uma situação atípica nas relações comerciais externas dos países periféricos devido ao chamado boom das commodities. Esse processo foi diferenciado não só pelo patamar de preços atingido por esses produtos, mas sobretudo por sua longevidade, quebrando os ciclos de preços observados desde os anos 1960 (CARNEIRO, 2012CARNEIRO, R. Commodities, choques externos e crescimento: Reflexões sobre a América Latina. Santiago: CEPAL, jan. 2012.). Isso se deveu fundamentalmente ao “efeito China”, isto é, à estratégia de catching-up do país asiático, o qual, ao mesmo tempo em que elevou a demanda e os preços dos produtos primários por considerável período, reverberando importantes impactos nos países primário-produtores, também levou ao barateamento dos bens manufaturados devido às economias de escala, baixos salários e novos processos de gestão e divisão social do trabalho, conferindo assim ganhos significativos nos termos de troca (TT) da periferia global (PINTO, 2013PINTO, E. C. Dinâmica econômica e regional no Brasil dos anos 2000: efeito China, desconcentração espacial e bloco no poder. In: BRANDÃO, C.; SIQUEIRA, H. (Orgs.). Pacto federativo, integração nacional e desenvolvimento regional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.).

Uma maneira de aferir a competitividade de um país no comercio internacional é avaliar os seus termos de troca, dado pela razão entre o valor das exportações do país pelo valor de suas importações. Colocado de outra forma, é dizer o quanto das exportações de um país pagam suas importações. Se um país eleva persistentemente o valor de suas exportações sobre suas importações, diz-se que este obtém ganhos nos termos de troca. Do contrário, se o valor das importações passa a superar persistentemente as exportações, há uma deterioração em seus termos de troca. O Gráfico 3 mostra o índice dos termos de troca do Brasil, calculado pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex), e o índice dos preços das commodities entre janeiro de 2000 e dezembro de 2018, compreendendo um período de elevação nos preços dos bens primários (2002), de impactos da crise global de 2008 e, por fim, do arrefecimento dos preços, a partir de 2014.

Gráfico 3
Índice de preços das commodities* (eixo esquerdo) × índice dos termos de troca (eixo direito), jan./2000 a dez/2018 (em US$, 2016 = 100)

A análise gráfica destes dois indicadores sugere uma significativa correlação entre ambos a partir de 2006. Também é possível notar os efeitos da política anticíclica chinesa após a crise mundial de 2008, que implementou pacotes de estímulo fiscal para a retomada da produção, das exportações e das importações (PONTES, 2018PONTES, R. M. A gestão da crise financeira de 2008 pela China: O papel do Estado na implementação de políticas anticíclicas e desafios subsequentes. Brazilian Journal of Internacional Relations. v. 7, n. 1, 2018.), o que inflexionou o índice de preços das commodities já em 2009, após forte revés. Este só arrefeceria mais acentuadamente no segundo semestre de 2014, num contexto de crises regionais - como o da Europa - e de menor crescimento mundial.

O desempenho desses indicadores é relevante para compreender a especialização regressiva da indústria nacional, associada à desindustrialização precoce e seu reforço às atividades primárias. A trajetória de valorização no preço das commodities, iniciada em 2002, e de apreciação cambial, iniciada em 2004, permitiu o acomodamento desse modelo de oferta e inserção externa, conjuntamente a um Balanço de Pagamentos favorável e à melhoria nos termos de troca. Isso ocorreu não só devido aos altos patamares de preços atingidos pelos bens commoditizados exportados, o que elevou o numerador dos TT, mas também pela consequente sobreapreciação cambial, que barateou as importações via preços relativos, concomitantemente ao barateamento dos próprios bens manufaturados no mercado global pela já mencionada estratégia de catching-up chinesa. Reduziu-se, portanto, o denominador dos TT, melhorando assim o resultado do indicador. Ou seja, é possível induzir, tendo em mente que a indústria nacional permaneceu com constantes déficits em sua balança comercial (Gráfico 3) e trajetória de redução na participação no produto nacional (Gráfico 5), que parte significativa dos ganhos nos termos de troca tenha se originado da excepcional valorização nos preços das commodities dentro de um novo cenário externo, o que mais do que compensou a decorrente valorização cambial pelo influxo de moeda forte oriunda das exportações, impedindo que o efeito câmbio reduzisse a rentabilidade dos exportadores.

O Gráfico 4 mostra as curvas do índice dos termos de troca e da taxa de câmbio efetiva real,5 5 A taxa de câmbio efetiva real aqui utilizada é aquela elaborada pelo Ipea e define-se como uma média ponderada entre as taxas de câmbio reais bilaterais do Brasil em relação a 24 parceiros comerciais, selecionados de acordo com o peso na corrente de comércio (importações + exportações). O deflator utilizado para o Brasil é o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo IBGE. no qual se percebe que os períodos de desvalorização cambial coincidem com uma piora nos termos de troca, enquanto uma valorização real do câmbio é acompanhada pelo efeito contrário, sugerindo uma correlação negativa entre as séries.

Gráfico 4
Taxa de câmbio efetiva real x índice dos termos de troca

Ainda que a trajetória das curvas pareça contrariar a literatura histórico-estruturalista, estabelecida desde as conclusões apresentadas nos anos 1940 por Raul Prebisch à Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), esse comportamento de deterioração nos termos de troca simultâneos à uma desvalorização do câmbio efetivo real, que deveria produzir o efeito contrário ao baratear as exportações, parece estar associado à própria baixa diversificação estrutural da economia brasileira e à alta dependência dos importados manufaturados. O que se sugere é que o Brasil não atende à condição Marshall-Lerner, pelo menos no que tange à balança comercial do setor manufatureiro.

A condição Marshall-Lerner propõe que uma desvalorização real da taxa de câmbio só ocasionará melhoria na Balança Comercial de um país se a demanda pelas exportações for elástica frente a uma redução nos preços relativos; isto é, se a procura no exterior por tais bens for sensível à redução dos preços em moeda estrangeira - no caso, o dólar estadunidense. Ao mesmo tempo, uma desvalorização cambial encarece as importações, de maneira que o comportamento da demanda interna deve ser elástico a esta elevação nos preços, reduzindo significativamente as quantidades importadas. Espera-se, assim, que haja um efeito positivo na balança comercial e na conta de transações correntes do balanço de pagamentos (BP). Se o valor das exportações superar o valor das importações após uma mudança de preços relativos (neste caso, o câmbio real), o efeito da desvalorização cambial é positivo ao BP. Isso pode ocorrer mesmo quando a elasticidade-preço das exportações for menor do que a elasticidade-preço das importações, já que uma redução na procura interna pelos importados mais que compensaria uma estabilidade ou aumento no valor das exportações.

A curto prazo, pode haver uma piora na balança comercial devido à existência de contratos remanescentes (realizados antes da mudança cambial) e ao tempo necessário para que os agentes econômicos se adaptem aos novos preços relativos. A esse lapso temporal de curto prazo se denomina “Curva J”, devido ao aspecto gráfico que o saldo da balança comercial assume frente à desvalorização cambial real. Se o país cumprir a condição Marshall-Lerner, a “Curva J” será revertida a curto prazo e o país passará a perceber maiores saldos comerciais. Porém, há a possibilidade de as importações serem rígidas e as exportações inelásticas, o que frustraria a estratégia da política cambial. Esse parece ser o caso do Brasil.

Sonaglio, Scalco e Campos (2010SONAGLIO, C. M., SCALCO, P. R., CAMPOS, A. C. Taxa de câmbio e a balança comercial brasileira de manufaturados: evidências da J-Curve. Revista EconomiA, v. 11, n. 3, p. 711-734, set./dez. 2010.) testaram os efeitos da taxa de câmbio e a existência da “Curva J” na balança comercial de manufaturados do Brasil entre 1994 e 2007. Concluíram que, dos 21 setores que a compõem, apenas dez apresentaram o efeito da “Curva J”; contudo, desses, somente dois (indústrias diversas e óleos vegetais) cumpriram a condição Marshall-Lerner, revertendo o déficit de curto prazo e obtendo superávit comercial após a desvalorização cambial. Outros seis setores não apresentaram piora de curto prazo na balança comercial, mas cumpriram, dentro do modelo adotado, a condição Marshall-Lerner: borracha, calçados, equipamentos eletrônicos, madeira e mobiliários, peças, outros veículos e artigos de vestuário. Portanto, a maioria dos setores manufatureiros não atenderam à condição. Nota-se também que grande parte destes que se beneficiaram de uma desvalorização cambial situam-se nas indústrias de baixa tecnologia, único segmento da balança comercial da indústria de transformação que vem apresentando superávits comerciais. Ou seja, seu desempenho parece estar muito mais associado à trajetória já superavitária do que a um novo elemento de competitividade oriundo dos preços relativos (câmbio), o que dá mostras do lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho.

É preciso assinalar também que o comportamento da taxa de câmbio pode sofrer variações bruscas a curto prazo devido às dinâmicas dos fluxos de capital, que refletem a percepção dos agentes econômicos em relação à economia local e global. Logo, a previsibilidade e a persistência temporal do nível da taxa de câmbio são condição sine qua non para a tomada de decisão dos produtores internos que miram o mercado externo ou que dependem da importação de bens intermediários e de capital para produzir. A alta volatilidade cambial, portanto, frustra os possíveis ganhos de competitividade da indústria nacional em termos de preços relativos ao carregar o componente de imprevisibilidade da taxa de câmbio num contexto de permanente incerteza global.

Dessa maneira, contrariando em parte os autores ligados à interpretação da “doença holandesa”, que tendem a conferir grande centralidade ao câmbio enquanto variável explicativa e de ajuste da debilidade estrutural da economia brasileira, não parece ser este um preço macroeconômico suficiente para promover a revitalização estrutural da indústria brasileira, ainda que sua adequação de longo prazo seja necessária para tal fim. Constata-se que, conforme avança a especialização regressiva e a desindustrialização precoce do país, mais ineficiente se torna a política cambial e mais agravado se mostra o BP, dadas a inelasticidade do perfil das exportações e o crescente coeficiente de penetração dos importados, que ampliam a situação de dependência.

O Gráfico 5 traz o saldo da balança comercial da indústria entre 2008 e 2018 segundo as categorias de intensidade tecnológica, de acordo com a taxonomia estabelecida pela OCDE (2011)OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. ISIC Rev. 3 Technology Intensity Definition. Paris: OECD, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.oecd.org/sti/ind/48350231.pdf . Acesso em: 20 set. 2020.
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, além do saldo de produtos não classificados na indústria de transformação.

Gráfico 5
Saldo comercial da indústria de transformação brasileira por intensidade tecnológica, 2008 a 2018 (em US$ FOB)

Para todo o período entre 2008 e 2018, a indústria de transformação incorreu em déficits na sua balança comercial, à exceção de 2016, quando apresentou um pequeno superávit de US$ 258 milhões. Em especial, os segmentos de média-alta e alta tecnologia foram os que apresentaram os maiores déficits, seguidos do de média-baixa tecnologia. A única exceção é o segmento de baixa tecnologia, que inclui papel e celulose (no qual o Brasil tem protagonismo global, tratando-se também de uma commodity), têxteis, tabaco e alimentos. Em conjunto, a indústria de transformação encerrou o ano de 2018 com um déficit de quase US$ 23 bilhões. Subtraindo-se a indústria de baixa tecnologia, que apresentou superávit de US$ 38.750 bilhões em 2018, a indústria encerrou o referido ano com um déficit de US$ 61.656 bilhões. Em 2015, ano que marca o aprofundamento da crise brasileira, esse déficit foi de US$ 64 bilhões. Em 2014, pior ano da série no período, o déficit desses três segmentos chegou a US$ 99.287 bilhões, frente a insuficientes superávits de US$ 39 bilhões no segmento de indústrias de baixa tecnologia e de US$ 56.107 bilhões nos segmentos não classificados na indústria de transformação, dando mostras da grave situação do aparelho produtivo nacional.

Em relação à participação dos produtos não classificados na indústria de transformação nas exportações, grande parte deles se constituem em commodities, que têm seus preços determinados por grandes corporações globais que atuam nas bolsas, sobretudo na Chicago Mercantile Exchange, tendo os países produtores quase nenhum poder de influência nas flutuações cíclicas destes preços (DOWBOR, 2017DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Outras Palavras; Autonomia Literária, 2017.). Ou seja, uma desvalorização cambial real não altera seus preços em moeda estrangeira, sendo o pass-through6 6 Pass-through é o repasse aos preços em moeda estrangeira oriundo de alterações no câmbio real. Quando o pass-through é total, a modificação de preços relativos por conta do câmbio é integralmente repassada. tendente à zero (TEJADA; SILVA, 2008TEJADA, C. A. O.; SILVA, A. G. O pass-through das variações da taxa de câmbio para os preços dos principais produtos exportados pelo Brasil. Rev. Econ. Sociol. Rural, v. 46, n.1, jan./mar. 2008.). Além disso, e de acordo com a interpretação clássica disseminada por Prebisch (1962PREBISCH, R. O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais. Boletín Económico de América Latina, v. 7, n. 1, 1962.), os bens primários se caracterizam pela inelasticidade em relação aos preços e à renda dos países importadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: REFLEXÕES PARA A RETOMADA DA INDÚSTRIA E DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

A questão da desindustrialização se revela como um dos principais problemas e desafios para a economia brasileira. O artigo buscou caracterizar o fenômeno e suas consequências para o País, recorrendo à indicadores-chave para a compreensão do processo com base na literatura especializada.

Os desafios que se apresentam para o futuro envolvem não apenas a correção dos graves desequilíbrios sistêmicos brasileiros e seus impactos na indústria, mas a definição e implementação de políticas de competitividade (política industrial, comercial e de inovação) nos moldes das melhores práticas internacionais e locais, como sempre pontuado por Kupfer. Seria equivocado apostar que apenas as “forças do mercado” e a abertura comercial poderiam, por si só, nos recolocar no caminho do desenvolvimento. Não foi assim nas melhores experiências internacionais conhecidas (LACERDA, 2019LACERDA, A. C. Por uma estratégia de política econômica para crescer e gerar empregos. Revista Interesse Nacional, ano 12, n. 46, out./dez. 2019. Disponível em: Disponível em: https://interessenacional.com.br/por-uma-estrategia-de-politica-economica-para-crescer-e-gerar-empregos/ . Acesso em: 20 set. 2020.
https://interessenacional.com.br/por-uma...
).

Os pressupostos da chamada “indústria 4.0” estão a nos exigir estratégias ousadas, mas, igualmente, seria um equívoco desconsiderar a experiência da indústria tradicional e resiliente no Brasil. Isso não vai se dar somente pelas “forças do mercado”. Uma boa estratégia pressupõe o diagnóstico adequado. Do contrário, avaliações equivocadas nos levarão, inexoravelmente, a falsas soluções.

Os defensores das ideias neoliberais, que pregam a privatização, o “Estado mínimo”, a abertura comercial e financeira e a desregulamentação, sempre buscaram pretensas referências para seus argumentos. No entanto, as contribuições de Kupfer exploradas neste artigo denotam a fraqueza do argumento que o Chile seria o modelo econômico de sucesso a ser seguido pela economia brasileira, que tem características próprias. O Chile, com pouco mais de 20 milhões de habitantes, menos de 10% da população brasileira, extensão territorial de cerca de apenas um décimo da nossa, a rigor, nunca foi um parâmetro relevante para o Brasil.

Embora o Chile tenha apresentado progresso econômico durante algum tempo, se mostra claramente limitado. A sua atividade é reduzida a poucos produtos representativos, basicamente cobre, pescado, frutas e flores, praticamente sem desenvolvimento industrial. Mas isso nunca foi possível para o Brasil, tampouco para países de estrutura e dimensão comparáveis, como uma boa análise histórica claramente comprova.

Há uma farta literatura apontando a análise das experiências históricas que lograram sucesso, como são os casos de Estados Unidos, Alemanha e Japão, países que alcançaram o padrão de desenvolvimento já no século vinte e, pelo menos um exemplo de progressão mais recente, que é a Coreia de Sul.

Cada um dos países citados teve a sua história de progresso, mas o que há pontos comuns nas estratégias de desenvolvimento e políticas econômicas adotadas com êxito:

  1. a combinação da atuação do Estado, como empreendedor, quando necessário, mas também coordenador, articulador de políticas públicas, além do seu papel regulador e fiscalizador;

  2. o engajamento do setor privado, articulado com o Estado, mediante a criação de um ambiente favorável;

  3. a adoção de políticas macroeconômicas (monetária, fiscal e cambial) favoráveis ao desenvolvimento;

  4. a articulação das políticas de competitividade (políticas industrial, comercial e de ciência, tecnologia & inovação, para fomentar a atividade econômica, em especial da indústria, imprescindível para o desenvolvimento.

O Brasil, dado o seu potencial econômico, social e ambiental, detém todas as pré-condições para superar a atual estagnação e atingir um grau de desenvolvimento expressivo. Somos o único país do G-20 a combinar potencial nos macrossetores e de enorme demanda reprimida, em termos de investimentos, na infraestrutura e políticas sociais. Nossas debilidades também representam grandes oportunidades.

Mas isso não se viabilizará automaticamente, pelas “forças do mercado” e baseado apenas na suposta “confiança” como único fator de desenvolvimento, ao contrário do preconizado pelas políticas econômicas em voga por aqui!

A pandemia da covid-19 provocou, dada a necessidade, um processo espontâneo de reconversão da indústria para a fabricação de itens necessários para o seu enfrentamento. É diante desse desafio que várias empresas vêm respondendo com sucesso na transformação de suas plantas para a produção de respiradores e outros equipamentos médicos relevantes.

Por outro lado, a crise sanitária também revelou uma das faces mais trágicas da desindustrialização, que é a extrema dependência de equipamentos médicos, mesmo aqueles mais simples, de proteção individual dos profissionais da saúde, como máscaras, luvas, gorros etc., além da própria população. Mais recentemente, os desdobramentos da guerra Rússia-Ucrânia também provocaram rupturas nas cadeias internacionais de logística e produção, denotando o fator insegurança de fornecimento, que passou a ser relevante na definição dos locais de produção futuros.

Na lógica globalista das cadeias de valor pós-globalização, países como a China haviam se tornado as “fábricas do mundo”. Muitos, como infelizmente o Brasil, se restringiram ao conforto de se colocarem como fornecedores de matérias primas e alimentos não processados (commodities) e criaram excessiva dependência de importação de produtos industrializados.

Afora as consequências perversas da desindustrialização, a saber, a perda de empregos de qualidade, a vulnerabilizarão das contas externas, a queda de arrecadação tributária, em meio à atual crise um fator adicional se mostra mais evidente: a questão da segurança no fornecimento. Além dos itens já mencionados, outros setores relevantes também dependem fortemente de insumos importados, como é o caso dos eletrônicos, máquinas, equipamentos e químico-fármacos, para citar os mais gritantes.

No entanto, o novo quadro das cadeias internacionais de suprimentos abre novas perspectivas para os países em desenvolvimento. Reverter o processo de desindustrialização, promover a reconversão da produção para as necessidades mais prementes e reconstruir nossa capacidade técnica representa ao mesmo tempo um enorme desafio, mas também uma oportunidade a ser aproveitada. Registre-se dois pontos fundamentais de saída: i) o Brasil, apesar do processo descrito, ainda detém o maior parque industrial da América Latina, o que nos coloca estratégica e geopoliticamente bem-posicionados; ii) industrializar não é para quem quer, mas para quem pode. O Brasil detém economia de escala e de escopo para a reconstrução.

Isso, no entanto, não se dará de forma automática, apenas pela decisão das empresas. É preciso construir um ambiente de políticas macroeconômicas e de competitividade para fomentar o processo. As boas experiências internacionais e mesmo a nossa pregressa nos dão boas indicações dos caminhos a serem seguidos.

Os bancos públicos, especialmente o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ainda têm um papel relevante a desempenhar para o financiamento de longo prazo e a taxas de juros minimamente compatíveis com a rentabilidade esperada dos projetos. Por outro lado, o excelente corpo técnico permanente dessas instituições, assim como da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), dentre outras, podem ajudar muito com o seu know-how.

Será também imprescindível mobilizar o setor privado por meio de empresas-líderes e associações, muitas das quais já têm um diagnóstico claro, a partir do qual se poderá construir um plano estratégico de reconstrução da indústria brasileira. A favorecer nossa ação está o histórico de reação brasileira às crises: as grandes transformações se deram em resposta a elas!

Um programa sério de discussão de uma maior abertura da economia para que se atinja o interesse do desenvolvimento, e não apenas uma nova (e impossível) panaceia, passa necessariamente por:

  1. Condições macroeconômicas que favoreçam o desenvolvimento, leia-se câmbio, juros e questão fiscal, ajustadas ao padrão internacional;

  2. Redução da burocracia, distorções tributárias e melhoria da infraestrutura e logística;

  3. Adoção de políticas de competitividade (leia-se, política industrial, política comercial e de ciência, tecnologia e inovação), para fortalecer as vantagens existentes e criar outras;

  4. Negociação da abertura de setores na economia brasileira mediante o acesso aos mercados internacionais.

Partindo do ajuste das condições sistêmicas, é sim possível rever a estrutura das alíquotas, porém sem generalizações. É preciso começar com a desoneração dos insumos de forma a dotar a indústria de transformação de maior poder, ao contrário de estimular a concorrência via rebaixamento das tarifas de importação dos produtos acabados. Aqui não se trata de “reinventar a roda”, mas de adotar práticas internacionais bem-sucedidas. Mas, para isso é preciso se livrar de dogmas e paradigmas. A profícua obra de David Kupfer sobre os desafios da política industrial representa excelente inspiração para o estudo e implementação de estratégias para recolocar o Brasil no caminho do desenvolvimento sustentável.

REFERÊNCIAS

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    » https://unctad.org/webflyer/world-investment-report-2019
  • 1
    A desindustrialização natural ou positiva resulta da mudança do perfil de produção e consumo de um país após este atingir um determinado (e elevado) nível de renda per capita, se especializando no core da produção, isto é, em atividades mais sofisticadas, como as de concepção de novos produtos, engenharia, design etc. A desindustrialização precoce ou negativa é um processo indesejado de perda de participação relativa da indústria na produção doméstica e no emprego total sem que o país tenha atingido um nível elevado de renda per capita.
  • 2
    Como os captados pela Pesquisa Industrial Mensal de Produção Física (PIM-PF), realizada pelo IBGE, e pelo indicador mensal de consumo aparente de bens industriais, calculado pelo Ipea.
  • 3
    A soma do valor adicionado bruto dos quatro grandes setores definidos pelo IBGE — agricultura, indústria, serviços e setor público — mais os impostos sobre produtos, líquidos de subsídios, resultam no produto interno bruto (PIB).
  • 4
    O Coeficiente de Exportação mostra a importância do mercado externo para a produção da indústria. Quanto maior o coeficiente de exportação, maior é a importância do mercado externo para o setor. O Coeficiente de Penetração de Importações mostra a participação dos produtos importados no consumo aparente (a soma do valor da produção destinada ao mercado doméstico e das importações). Quanto maior o coeficiente de penetração, maior é a participação de importados no mercado interno.
  • 5
    A taxa de câmbio efetiva real aqui utilizada é aquela elaborada pelo Ipea e define-se como uma média ponderada entre as taxas de câmbio reais bilaterais do Brasil em relação a 24 parceiros comerciais, selecionados de acordo com o peso na corrente de comércio (importações + exportações). O deflator utilizado para o Brasil é o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), calculado pelo IBGE.
  • 6
    Pass-through é o repasse aos preços em moeda estrangeira oriundo de alterações no câmbio real. Quando o pass-through é total, a modificação de preços relativos por conta do câmbio é integralmente repassada.
  • 7
    CLASSIFICAÇÃO JEL: O11; O14; O25.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2021
  • Aceito
    27 Jul 2023
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